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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.214 Lisboa mar. 2015

 

DOSSIÊ - NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE ELITES E DEMOCRACIA EM PORTUGAL

Autonomia e politização nas elites administrativas portuguesas, 1999-20091

Autonomy and politicization of the Portuguese administrative elites, 1999-2009

 

Filipe Abreu Nunes*

*Instituto da Defesa Nacional, Calçada das Necessidades, 5 — 1399-017 Lisboa, Portugal. E-mail: f.abreu.nunes@gmail.com

 

RESUMO

Como caracterizar as elites administrativas portuguesas do ponto de vista da autonomia profissional e da politização? Prevalece em Portugal um padrão de autonomia profissional na administração direta do Estado, embora se mantenham traços de uma certa politização clientelar na administração territorial. De resto, tem emergido um novo tipo de politização (de controlo) na administração central, localizada nos gabinetes ministeriais e dos institutos públicos – em linha com o que se passa noutras democracias ocidentais. Da análise do perfil das elites administrativas resulta assim um padrão híbrido, que contém elementos (predominantes) de autonomia profissional, na administração direta, mas também elementos (localizados) de controlo político (nos institutos públicos), e mesmo de politização clientelar na administração territorial.

PALAVRAS-CHAVE: recrutamento; elites administrativas; autonomia profissional; politização.

 

ABSTRACT

What is the position of the Portuguese administrative elites in the confrontation between professional autonomy and their politicization? In Portugal a pattern of professional autonomy within central government prevails. While keeping certain clientelistic traits at the local level, the Portuguese case reveals a new kind of politicization in public administration - in line with what is happening in other Western democracies. In sum, Portugal has an hybrid administrative elite recruitment pattern, containing predominant elements of professional autonomy within the central government, combined with elements of political control at agencies’ level, and even clientelistic elements in the state’s local branches.

KEYWORDS: recruitment; administrative elites; professional autonomy; politicization.

 

INTRODUÇÃO

 

Não é difícil encontrar na imprensa títulos como “O fantasma dos boys” (Público, 2001), “Governo faz 1260 nomeações” (D’Épinay, 2002), “já foram entregues 450 jobs, 73 saíram aos boys” (Antunes, 2011) ou “os boys do governo” (Sampaio e Capelo, 2012).

O recrutamento das elites administrativas constitui, sem dúvida, um tema que revela uma desproporção entre o ruído que lhe está associado e o conhecimento efetivamente produzido, pelo menos na perspetiva da ciência política. E é em relação ao caso português que a escassez de produção científica sobre o tema do recrutamento das elites administrativas mais se tornava visível. De facto, a administração pública foi desde logo uma dimensão algo secundarizada nos estudos sobre a democratização portuguesa (Magone, 2011, p. 758).

Na introdução a um conjunto de estudos de caso sobre recrutamento de elites administrativas, editado por Edward Page e Vincent Wright (1999, p. 6), estes autores assinalavam a pouca atenção que a ciência política tinha dedicado ao estudo do recrutamento das elites administrativas. Contudo, só Portugal é que não aparece analisado no referido conjunto de estudos.2

É certo que existem análises exploratórias que afloram a questão do recrutamento na administração pública, bem como as relações entre governos e administração em democracia, e que acabaram por corroborar a perceção pública de politização das nomeações. No entanto, muito embora ancorados em entrevistas com antigos membros do governo (Portas e Valente, 1990) ou em informações sobre as empresas públicas (Lopes, 2000), nenhum destes estudos assenta numa análise sistemática do perfil das pessoas que foram nomeadas para cargos administrativos de topo ou das estruturas em que atuam.

Esse tipo de estudo empírico sobre o recrutamento das elites administrativas foi feito para o período da Regeneração por Pedro Tavares de Almeida (1995), e para o período do Estado Novo por Luís Salgado de Matos (2000), embora sem a mesma centralidade do anterior. Foram entretanto publicados estudos que nos fornecem pistas sobre o perfil das elites administrativas em democracia (Nunes, 2003; 2012).3

Nem os estudos sobre o liberalismo e o autoritarismo, nem estes dados mais recentes sobre o período democrático (Nunes, 2012) nos permitem falar de um perfil de recrutamento absolutamente politizado em todas as esferas da administração do Estado.

Assim, neste artigo, vamos defender a ideia de que a elite administrativa portuguesa revela um forte padrão de profissionalização ao nível da administração direta e central do Estado, embora matizado pela persistência de lógicas de politização clientelar na administração desconcentrada (direções distritais e regionais dos ministérios) e pela introdução de novas dinâmicas de controlo político através do crescimento dos gabinetes ministeriais e da expansão da administração indireta (institutos públicos).

 

AUTONOMIA PROFISSIONAL E POLITIZAÇÃO DAS ELITES ADMINISTRATIVAS

 

É em Max Weber (1979 [1919]; 1991 [1921]) que, pela primeira vez, aparece teorizado o conceito de burocracia moderna e que é analisada a correspondente distinção entre administração e política, da qual decorre a ideia de autonomia profissional do funcionalismo público.

A função pública, tal como a política ou a ciência, é apresentada como uma vocação, que passa pela aceitação de obrigações específicas (deveres) e pela obtenção de uma carreira segura (estatuto) (Weber, 1979 [1919]). Mas tal como o cientista está separado do político, o político deve estar idealmente afastado do burocrata: têm carreiras, papéis e funções diferentes; um decide, o outro executa.4

Apesar das regras meritocráticas de acesso e progressão na carreira se terem imposto ao longo do tempo nos processos de recrutamento das administrações dos Estados ocidentais, a verdade é que a tensão entre politização e profissionalização continua a estar bem no centro do funcionamento dos sistemas político-administrativos e do debate público sobre a matéria. Mais: nas democracias ocidentais, a politização das elites administrativas parece estar a reforçar-se (Peters e Pierre, 2004, p. 6).

O declínio das diferenças ideológicas e das clivagens sociais entre partidos de governo e a crescente dependência desses partidos em relação aos recursos do Estado explicam em parte o fenómeno (Katz e Mair, 1995). Com uma natureza deste tipo, os partidos, desprovidos de uma organização de massas própria, tornam-se quase parte do Estado, “partidos de cartel” (Katz e Mair, 1995), e isso constitui o grande motor da vontade crescente em politizar da administração pública.

Mas essa nova necessidade politizadora das instituições e dos governos partidários não se podia concretizar sem uma correspondente transformação das estruturas administrativas. E é aqui que reside o papel da nova gestão pública enquanto instrumento de politização da administração pública nas sociedades ocidentais.5 De facto, este reaparecimento da politização em novas vestes pode ser explicado pelo crescimento das funções e da dimensão do Estado ao longo do pós-guerra ocidental, e pela maior necessidade de controlo da atividade (cada vez mais diversificada) dos organismos públicos por parte do poder político, especialmente a partir dos anos 80, quando esses organismos, por via das reformas inspiradas na nova gestão pública, saem da tutela direta dos governos.6

À partida, uma nova gestão pública, influenciada pelos modelos do setor privado e formalmente autónoma face ao poder político executivo, devia ter gerado menos politização das escolhas do pessoal dirigente. Acontece que acabou por ter exatamente o efeito contrário.

A partir dos anos 80, o modelo da gestão empresarial privada tornou-se dominante no mundo anglo-saxónico e nas organizações económicas internacionais, com a consolidação da ideia da superioridade desse modelo de gestão em relação à administração pública tradicional a fazer o seu caminho, algo muito facilitado pelo recurso ao conselho de consultores privados e pelo aumento de altos funcionários com qualificações académicas nas áreas da economia e da gestão, que eram justamente as áreas de onde vinham estas teorias (Self, 1993, p. 169). A ideia fundamental era a de que as técnicas da gestão serviam para utilizar de forma mais eficiente os recursos, seja no setor privado, seja no setor público.

Trata-se de uma ideia cuja implementação tem sido objeto de fortes críticas. Suleiman (2003) revela-se particularmente cético em relação a estas experiências privatísticas, que em nome da eficiência e da eficácia teriam transformado por completo a relação entre Estado e cidadão (agora transformado em cliente), e a relação entre políticos e burocratas, em benefício dos primeiros.7 Para Suleiman, o estatuto dos altos funcionários com carreira na administração pública saiu altamente prejudicado com o processo de fragmentação administrativa resultante das privatizações e da criação de novas estruturas administrativas paralelas à administração direta: “não há uma relação direta entre NPM8 e politização. Mas […] o NPM tem sido um estímulo para um processo que já estava em marcha” (Suleiman, 2003, p. 213).

É nesse sentido que, interrogando-se sobre a razão que levou tantos políticos das democracias ocidentais a optarem por este caminho de fragmentação administrativa, Sandra van Thiel (2004) responde à questão defendendo que isso não se deveu apenas à vontade do eleitorado, a preocupações de gestão eficaz das funções do Estado, ou à necessidade de aumentar a profissionalização da gestão pública: “Talvez existam outros benefícios políticos associados à proliferação dos quangos.9 Duas vantagens já foram identificadas: desresponsabilização e patrocinato” (van Thiel, 2004, p. 197).

Ou seja, os institutos públicos, nomeadamente aqueles que se regem pelas regras do setor privado e que são dirigidos por gestores, pelo facto de estarem formalmente mais afastados da gestão diária dos ministérios, permitem à tutela política desresponsabilizar-se dos resultados, sem que isso a impeça de condicionar as opções estratégicas e as escolhas dos gestores (mais bem pagos e nalguns casos menos condicionados pelas regras gerais de recrutamento). Pelo contrário: o leque de escolhas para os dirigir não sofre as restrições legais e culturais da administração direta tradicional, e torna-se por isso muito mais alargado e muito mais permeável à politização.

Estamos pois perante um ressurgimento da politização nas democracias ocidentais (Suleiman, 2003; Peters e Pierre, 2004). O que não podemos é associar esta nova forma de politização apenas às práticas patrimonialistas do passado ou à mera partidarização (clientelar) das nomeações dos dirigentes. A politização no recrutamento das elites administrativas ainda se pode manifestar enquanto politização clientelar e partidária, mas vai hoje em dia muito para além disso: pode implicar escolhas com base em critérios de lealdade pessoal ou ideológica, sem que isso implique a vinculação dos escolhidos a determinado partido político, ainda para mais num tempo em que é cada vez mais ténue a distinção entre militantes e quadros independentes que colaboram com os partidos de governo (Katz e Mair, 1995).

Como reconhece Suleiman (2003, p. 213) com ironia, este processo da politização não é facilmente definível, mas quando ocorre é difícil não o identificarmos. Suleiman propõe-nos que a politização seja avaliada em dois níveis de análise: ela pode ser medida objetivamente, através da análise dos cargos ocupados por escolha pessoal e política dos membros dos governos, dispensando-se o concurso (o patrocinato); mas também pode e deve ser medida subjetivamente, por intermédio de uma identificação de práticas informais que levam a que a possibilidade legal de escolhas de altos funcionários com base em critérios políticos se concretize efetivamente (2003, p. 232).

Distanciamo-nos, no entanto, do método “objetivo” de Suleiman (2003) para avaliação da politização, que parte da análise quantitativa dos cargos ocupados por escolha pessoal e política dos membros dos governos, dispensando-se o concurso. Esta opção justifica-se por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque a simples observação das regras legalmente consagradas para o provimento de cargos de topo na administração pública é uma fonte insuficiente para se perceber a verdadeira natureza do sistema de recrutamento e o seu grau de politização (Peters e Pierre, 2004, p. 6). Em segundo lugar, porque tratando-se aqui de um estudo sobre o recrutamento das elites administrativas com base em perfis, isso obriga-nos a discutir a politização, não tanto por via das regras jurídicas ou da análise quantitativa das nomeações políticas, mas antes a partir dos indicadores de politização que se conseguem obter a partir dos dados individuais e biográficos.

E existem estudos que nos podem servir de referência para a identificação desses indicadores de politização entendida como controlo político dos governos partidários. É o caso do já referido conjunto de estudos nacionais editado por Page e Wright (1999) ou de uma análise de Rouban (2004) sobre a politização em França.

Tendo como referência estes estudos (Page e Wright, 1999; Rouban, 2004), podemos proceder à identificação de alguns indicadores de politização acessíveis através da mera consulta aos dados biográficos dos membros das elites administrativas: a chegada a cargos dirigentes de topo quando se é ainda muito jovem para se ter uma carreira consolidada de acordo com os critérios de antiguidade do funcionalismo público tradicional; a chegada a cargos de topo com percursos feitos no setor privado; a falta de experiência dirigente ou o acesso a cargos dirigentes de nomeação sempre em determinados momentos políticos (quando um determinado partido está no poder) e não em todos; e o envolvimento dessas pessoas em cargos políticos para os quais foram eleitos em listas partidárias. A par destes, a passagem anterior das elites administrativas por gabinetes ministeriais, nomeadamente quando ocorre sempre em governos da mesma cor política, é outro indicador relevante, já que se trata de estruturas que têm vindo a crescer nas democracias ocidentais e que são total ou parcialmente ocupadas por pessoas escolhidas livremente pelos titulares dos cargos para com eles colaborarem.

 

 

 

UNIVERSO DE ANÁLISE E FONTES DE INVESTIGAÇÃO

 

Esta análise do perfil (político) das elites administrativas portuguesas centra-se, fundamentalmente, entre 1999 e 2009, período em que os governos ­contaram com maiorias no parlamento que duraram períodos suficientes para substituírem ou reconduzirem todos os altos funcionários de nomeação ­política.

As comissões de serviço dos dirigentes aqui em causa têm, de acordo com a legislação vigente entre 1999 e 2009, um prazo máximo de 3 anos e são renováveis por igual período de tempo. Mais: estes são cargos de nomeação política, para os quais não há lugar a concurso público. Ora, o XIV Governo Constitucional, liderado por Guterres, (outubro de 1999 a março de 2002) seguiu-se a um governo do mesmo partido (o PS) e do mesmo primeiro-ministro; os governos PSD/CDS10 (XV e XVI Governos Constitucionais) duraram no conjunto praticamente 3 anos (abril de 2002 a março de 2005); e o XVII Governo Constitucional, liderado por José Sócrates, de maioria absoluta do PS, completou os quatro anos da legislatura (março de 2005 a outubro de 2009).

Importa, contudo, esclarecer qual a perspetiva metodológica seguida na identificação das elites administrativas. De acordo com a perspetiva posicional, a elite pode ser definida como o conjunto das pessoas que, em virtude da sua posição estratégica em organizações de poder, são capazes de influenciar de forma regular e substancial a vida política nacional (Burton et al., 1992, p. 8). Em Portugal, como é próprio dos Estados modernos, as elites da administração do Estado atuam no âmbito dos ministérios. É aí que se encontram instituições analiticamente relevantes na discussão do recrutamento das elites administrativas: os ministérios, e dentro deles os diferentes serviços e organismos da administração (direta e indireta, central e desconcentrada) do Estado.11

Classificamos aqui os ministérios em quatro tipos: políticos, económicos, sociais e técnicos.12 Dentro dos ministérios políticos, e de acordo com as orgânicas vigentes entre 1999 e 2009,13 temos Administração Interna, Defesa Nacional, Negócios Estrangeiros, Justiça e Presidência do Conselho de Ministros. No grupo dos ministérios económicos, incluímos a Agricultura, a Economia, as Finanças e o Turismo. Entre os ministérios sociais encontram-se a Cultura, a Educação, a Saúde e o Trabalho e Segurança ou Solidariedade Social. Finalmente, inserem-se no grupo dos ministérios técnicos o Ambiente e o Ordenamento do Território, a Ciência e as Obras Públicas (nas suas várias áreas: ambiente, ordenamento do território, desenvolvimento regional, obras públicas, transportes, comunicações, habitação, ciência e tecnologia, ensino superior).

Dentro de cada ministério, e independentemente do tipo em causa, existem os diferentes tipos de serviços da administração direta do Estado14, chefiados por um diretor-geral (ou figura equiparada): gabinetes ministeriais; serviços de estudo e conceção; serviços de apoio e controlo; e serviços executivos.

Como se vê, a maior parte das funções do Estado é ainda desempenhada de forma central e direta. Mas nem sempre é assim. Todos os ministérios têm representações suas ao nível regional ou distrital: são os chamados serviços regionais ou locais.

Por outro lado, à semelhança do que se passa noutras administrações ocidentais, também na administração portuguesa se nota o crescimento do número de institutos públicos, isto é, na expansão da administração indireta do Estado, a “actividade administrativa do Estado, realizada, para a prossecução de fins deste, por entidades públicas dotadas de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa e financeira” (Amaral, 1989, p. 305).

Assim, por elites administrativas devemos entender o conjunto das pessoas que exercem na administração do Estado cargos de diretores-gerais, subdiretores-gerais e equiparados dos serviços e organismos da administração direta e desconcentrada do Estado, bem como os dirigentes dos institutos públicos equiparados a diretores-gerais ou a gestores públicos, para além dos próprios membros de gabinetes ministeriais (chefes do gabinete, adjuntos e “assessores”).15 Obviamente, os dirigentes equiparados a gestores públicos distinguem-se dos diretores-gerais não só pela maior autonomia financeira dos serviços que dirigem, como também por beneficiarem de um estatuto remuneratório bastante superior.

Vejamos ainda a que técnicas e fontes se recorreu para a operacionalização desta investigação sobre as elites administrativas portuguesas.

De acordo com o estatuto do pessoal dirigente de 1999 (Lei n.º49/99, de 22 de junho), o recrutamento de diretores-gerais, subdiretores-gerais e ­equiparados é feito por escolha, isto é, por nomeação política.16 Também segundo o referido estatuto, “o despacho de nomeação é publicado no Diário da República juntamente com o currículo do nomeado”.

 

 

A obrigatoriedade legal da publicitação curricular encontra-se consagrada na Lei n.º 49/1999, de 22 de junho, e foi justamente a partir dos elementos fornecidos pelos currículos que foi traçado17, no essencial, o perfil social dos referidos dirigentes: sexo, idade, origem geográfica, licenciatura, instituição de ensino superior frequentada, ou formação profissional. Esta prática de publicitação curricular também é seguida relativamente aos dirigentes equiparados a gestores públicos, pelo que se seguirá neste caso o mesmo método.

No fundo, trata-se do método da prosopografia, cujo objetivo é basicamente o de investigar estatisticamente as diferentes dimensões dos percursos de um determinado grupo social num determinado momento (Charle, 2001).

Contudo, deve reconhecer-se que os dados que constam dos currículos dos dirigentes e gestores nomeados, publicados em Diário da República, não são, desde logo, suficientes para se perceber em geral as lógicas que estão por detrás da seleção que é feita pelos decisores políticos.

Assim, procurou-se contornar estes problemas de investigação através da realização de entrevistas com os membros dos governos (formal e posicionalmente) responsáveis pela escolha de alguns membros destas elites administrativas.18 Definindo a população-alvo em função dos atores que se previa estarem em condições de produzir respostas às questões que se coloca, foram entrevistados 15 membros dos governos aqui em análise.19

 

AUTONOMIA E POLITIZAÇÃO

 

CARREIRA PROFISSIONAL

 

No período aqui em análise (1999-2009) não existe sequer nenhuma regra no enquadramento legal que obrigue ao recrutamento interno dos dirigentes de topo da administração do Estado. Mesmo assim, em Portugal a esmagadora maioria dos diretores-gerais continua a ser recrutada no interior da função pública, como de resto já sucedia no liberalismo (Almeida, 1995), no ­autoritarismo (Matos, 2000) e na primeira década da democracia (Carmo, 1987): 85,2% dos dirigentes de topo em funções entre 1999 e 2009 fizeram carreira no interior do setor público administrativo. De resto, 72,5% desses dirigentes trabalharam toda a vida apenas para o Estado, e só 14,8% passou exclusivamente pelo setor privado.

 

 

Se já no início dos anos 80 se notava um grande peso percentual de dirigentes com 25 ou mais anos de serviço na função pública (Carmo, 1987), essa percentagem mantém-se elevada na atualidade, o que reforça a ideia de que estamos perante um recrutamento predominantemente interno e face a cargos a que os funcionários acedem normalmente já mais tarde na sua carreira.20

Este (importante) indicador de autonomia profissional da elite administrativa coloca o caso português em linha com o caso francês (Rouban, 1999), algo afastado do recrutamento exclusivamente público do modelo da administração central britânica (Parrado, 2002) e completamente separado da prática dos Estados Unidos, onde 75% dos cargos executivos de confiança política são preenchidos com gente oriunda do setor privado (Aberbach e Rockman, 2000, p. 73).

 

 

No entanto, há diferenças entre ministérios e entre serviços, e mesmo ao longo do período aqui em análise. É nos ministérios económicos e nos institutos públicos de tipo empresarial que mais frequentemente surgem dirigentes oriundos do setor privado (Nunes, 2012). De resto, os ministros e secretários de Estados entrevistados sabem bem que, para determinadas tarefas, nomeadamente financeiras e relacionadas com a gestão de fundos estruturais, a seleção de pessoas no setor privado é uma opção a considerar.21

Nesta matéria, verifica-se simultaneamente uma variação ao longo da década aqui em análise (1999-2009), e em função do tipo de governo: se no Governo Guterres, um governo de maioria relativa22, a percentagem de dirigentes de topo recrutados no setor privado era de apenas 7,4%, já nos Governos PSD/CDS e Sócrates, governos com maioria absoluta no parlamento, essa percentagem sobe para uns mais significativos 19,0% e 19,8%, respetivamente. Portanto, os governos de maioria absoluta, de um só partido ou de coligação, parecem mais abertos a selecionar dirigentes fora da administração, o que constitui um indicador de maior politização no recrutamento.

Para além dos índices genericamente baixos de recrutamento externo, ainda que com tendência de crescimento, manifestam-se níveis igualmente reduzidos de mobilidade interministerial. Quando analisamos a percentagem de dirigentes que desenvolveram a sua carreira dentro do ministério onde exercem funções, vemos que atinge os 49,5% ao longo deste período. Ou seja, 68,5% dos dirigentes com carreira na administração pública fizeram toda essa carreira no ministério onde exerceram as funções dirigentes aqui analisadas.

A persistência de um nível baixo de mobilidade interministerial gera uma relativa coesão e autonomia face às mudanças eleitorais, que limita fortemente a capacidade dos governos para introduzirem mudanças de orientação política abruptas. A sensação que o fenómeno provoca em quem chega de fora a uma pasta ministerial encontra-se bem resumida nesta declaração: “há um partido da educação, da segurança social, e os militantes desses partidos tendem a defender-se uns aos outros. Há ideologia e luta ideológica, mas esses alinhamentos não correspondem às fronteiras partidárias. Na Educação e na Segurança Social podíamos perder tudo, mas era essencial não perdemos o apoio do partido da educação e da segurança social”.

Este padrão de mobilidade interministerial reduzida também se regista em França, onde se verifica, na prática, uma limitação do recrutamento ao interior da administração pública e mesmo do próprio ministério, apesar de a legislação a isso não obrigar: estima-se que cerca de 40% dos diretores-gerais franceses sejam recrutados no interior do próprio ministério onde vão exercer funções (Rouban, 1999, p. 70).

Contudo, também neste aspeto, igualmente sensível para a análise da autonomia e da politização das elites administrativas, há diferenças entre governos. Se durante o Governo Guterres mais de metade (51,5%) dos dirigentes de topo escolhidos dentro da administração tinha feito carreira no ministério em que exercia essas funções, no Governo Sócrates, de maioria absoluta de um só partido, essa percentagem desce para os 43,1%.

 

 

Conforme ilustrámos na Introdução, está bem disseminada a ideia de que a mudança de partidos no governo é sempre acompanhada por uma mudança de cor política - e portanto de pessoas - no topo da administração do Estado. Assim, seria de supor que poucos dos diretores-gerais em funções tivessem sido dirigentes em governos partidários diferentes. Acontece que essa mudança de pessoas só sucede parcialmente.

Com efeito, não só é significativa e largamente maioritária a experiência de chefia na administração pública (67,9% refere expressamente que já exerceu anteriormente cargos dirigentes),23 como em perto de 40% dos casos estamos perante dirigentes que exerceram funções de “confiança política” (­subdiretores, diretores-gerais, gestores públicos ou equiparados) em ­momentos políticos diversos: 37,4% dos dirigentes foram escolhidos para esse tipo de cargos de livre nomeação dos governos partidários em diferentes momentos políticos, isto é, tanto em governos do centro-direita como em governos PS (Nunes, 2012, p. 172).

 

 

Um dos ex-ministros entrevistados explica a recondução de alguns dirigentes que vinham do governo anterior por uma questão de “autodefesa”, isto é, para garantir que não havia uma “paralisação do sistema” administrativo, tendo em conta o conhecimento técnico que esses dirigentes revelavam.

 

O PREDOMÍNIO DA AUTONOMIA PROFISSIONAL E O PESO DAS CARREIRAS ESPECIAIS

 

Da análise do processo de recrutamento das elites da administração direta do Estado resulta um predomínio de perfis de autonomia profissional, o que estará relacionado com o aumento das exigências técnicas ao nível das funções dirigentes (Teixeira, 2010) e com a consequente presença de carreiras especiais do Estado em determinados ministérios.

Essas carreiras pesam mais do que as lógicas de politização enquanto canais privilegiados no acesso a cargos de direção superior, o que constitui sem dúvida um sinal de significativa (ainda que parcial) autonomia profissional face às mudanças eleitorais e pressões partidárias: não só revelada pela presença de docentes na Educação, Ciência e Ensino Superior, mas também pelo peso dos médicos no Ministério da Saúde, dos militares na Defesa Nacional, dos diplomatas nos Negócios Estrangeiros, e mesmo dos magistrados na Justiça e na Administração Interna. Ao todo, 42,1% dos dirigentes de topo que exerceram funções entre 1999 e 2009 pertencem a estas carreiras especiais do Estado, que se distinguem da carreira técnica superior por um maior estatuto social, associado a prémios salariais significativos (Campos e Pereira, 2009).

De acordo com os entrevistados que tiveram experiências governativas neste tipo de ministérios, há a perceção de que o leque de escolhas para os cargos de topo está fortemente condicionado pela força institucional destas carreiras. Um antigo titular de pastas de soberania confessa mesmo que o universo das escolhas “era um universo limitado, tanto na Administração Interna como na Defesa ou nos Negócios Estrangeiros […]. Nas áreas de soberania, a continuidade é o segredo do negócio. A primeira conversa que tive nesses ministérios foi, aliás, sempre com o ministro ainda em funções…”.

 

 

Nos Negócios Estrangeiros, por exemplo, essa forte presença de diplomatas, nalguns casos estatutariamente obrigatória, é justificada e legitimada por um discurso de autoridade perfeitamente interiorizado, assente no tipo de formação e socialização que só a carreira diplomática proporciona: “a formação que é dada na carreira diplomática é muito importante para o exercício destes cargos. Desde o grau zero que é incutido o princípio hierárquico. Todos sabem o que podem fazer e decidir. O que é do seu patamar e o que não é. Isto é muito importante porque tudo o que um diplomata diga vincula o Estado português. É fundamental que haja unidade na representação externa do Estado”.

Este é, aliás, o Ministério cuja elite administrativa mais claramente se aproxima do modelo britânico, por acumular um estatuto profissional autónomo e socialmente prestigiado, com uma grande influência no processo de decisão. Repare-se no testemunho de um antigo responsável pelos assuntos europeus: “a política é do domínio do Governo. Mas internamente, as coisas podem ser acatadas ou batalhadas, e muitas vezes, perante a opinião do diplomata, o ministro recua. Ou então arrisca-se a ser boicotado”.

“Regras tácitas”, “regras não-escritas”, são expressões que aparecem frequentemente nas entrevistas, a propósito do recrutamento dos dirigentes de topo dos Negócios Estrangeiros24, da Defesa Nacional ou da Administração Interna. De resto, podemos encontrar níveis igualmente fortes de “corporativismo”, por exemplo, na Educação, embora aí a presença das “corporações” e o seu impacto nas políticas públicas não tenha sido sempre aceite com a diplomacia registada nos ministérios de soberania. Há de facto um membro do Governo Guterres que assume a relevância da ligação sindical e do vínculo à carreira docente no exercício de determinados cargos dirigentes: “por exemplo, na direção-geral responsável pela administração escolar era essencial ter alguém que percebesse a linguagem sindical, que respeitasse os sindicatos e que fosse respeitado por eles. No caso das direções-gerais que lidassem com o currículo, era importante pessoas com proximidade a uma ideologia educacional, que é comum a pessoas do PSD e do PS”.

No entanto, o pós-Guterres parece marcar um ponto de viragem. Nem todos os ex-ministros da Educação do período 2002-2009 aceitam com tanta facilidade este tipo de lógica, e alguns assumem mesmo a completa rutura com ela:

 

Essa promiscuidade é um dos principais problemas do Ministério da Educação. Os sindicatos, os partidos, alguns académicos com determinado pensamento sobre educação, tomaram de assalto o ministério da Educação […] Eu não acredito em bruxas, mas que as há, há. Eles são as verdadeiras forças de bloqueio na Educação.

 

Trata-se, em todo o caso, de uma tendência que terá de ser confirmada em futuras investigações.

 

ESPAÇOS DE POLITIZAÇÃO: INSTITUTOS PÚBLICOS, DIREÇÕES REGIONAIS E GABINETES MINISTERIAIS

 

É nas novas estruturas administrativas – institutos públicos, orientados para a execução de novas políticas com relevância eleitoral – que as escolhas de dirigentes de topo feitas com base na confiança pessoal e política mais se fazem sentir. Isso é particularmente claro nos institutos públicos cujos dirigentes estão equiparados a gestores públicos, em contraste por exemplo com serviços de apoio e controlo da administração direta, como as secretarias-gerais, ou as inspeções-gerais (Nunes, 2012, p. 197). Neste tipo de institutos, como reconhece um antigo ministro, “havia que escolher pessoas que vestissem a camisola”. Até porque os diretores-gerais que vinham de trás “tendiam a reagir inicialmente mal” à introdução de novas políticas e novos métodos.

Outra componente frequentemente apontada nas entrevistas como sendo mais permeável à politização é a da administração periférica.

As posições dos ministros e secretários de Estado que entrevistámos oscilam entre a forte crítica e o apelo a regras legais mais apertadas, por um lado, e a aceitação do fenómeno dentro de certos limites, por outro. Um dos antigos ministros diz que “a tendência para a promiscuidade entre administração pública e partidos é dos aspetos piores da vida política nacional. É uma situação que existe e que só pode ser travada através de requisitos mais apertados”. No entanto, outro admite que não haja alternativas melhores, considerando a natureza territorial das organizações partidárias e a lógica do sistema eleitoral:

 

Queremos clientela para organizar eleições e depois não queremos clientela para responder às expectativas? Isso é que não existe em mundo nenhum! Temos de responder ao clientelismo de forma inteligente. Uma resposta que o considere e integre. Não podemos pensar que viveríamos num mundo melhor sem clientelismo, porque não resolvíamos o problema das eleições e da organização dos partidos, do recrutamento e da influência territorial que precisamos de ter.

 

A referência à dimensão territorial (local e distrital) das organizações partidárias é de facto particularmente relevante para a análise da persistência da politização de tipo clientelar no caso português. Tudo indica que essa seja a esfera mais clientelar da administração do Estado, como sugerem as entrevistas que realizámos com ex-membros do governo:

 

As estruturas regionais pressionaram despudoradamente para a atribuição de cargos dirigentes. De mim foram feitas queixas, por funcionários militantes que eu tutelava, para o partido, para o meu ministro e para os órgãos máximos do governo, por não colocar certas pessoas que detinham a direção do partido a nível local. Fui fortemente pressionado e criticado por governadores civis por ter escolhido pessoas de partidos da oposição para cargos dirigentes regionais.

 

Como vimos, também existe politização ao nível da seleção do pessoal dirigente da administração central, especialmente na administração indireta (institutos públicos). Simplesmente, ao nível central, o processo das escolhas é conduzido direta ou indiretamente pelo primeiro-ministro, e faz-se de forma mais reservada e com intuitos políticos que vão para além da satisfação das clientelas partidárias. Aí estamos mais perante uma politização motivada pelo controlo político, entendido em sentido lato, e não apenas no sentido partidário. Por vezes, esse controlo até pode ter como efeito travar lógicas clientelares.

Um antigo membro do governo descreve assim o processo de escolha dos dirigentes de topo da administração do Estado:

 

Havia um acompanhamento central das nomeações. Essa função existe: normalmente há sempre um membro do governo que tem essa função. Toda a gente faz isso, quem disser que não faz, está a mentir. Essa função existe para ajudar, e também induzir sensatez e moderação nas escolhas. As pessoas responsáveis por isto são normalmente pessoas com grande autoridade sobre o partido.

 

A referência ao papel deste tipo de ministros coordenadores do processo de recrutamento é recorrente. O facto de serem pessoas com peso no aparelho do partido e com influência junto do primeiro-ministro permite-lhes, por um lado, mediarem a relação entre ministros e estruturas partidárias distritais nas escolhas para a administração desconcentrada, e, por outro lado, servirem de porta-vozes da opinião do primeiro-ministro quando se trata de nomear pessoas para a administração central. Sem prejuízo de esse relacionamento se poder fazer, por vezes, diretamente, em contactos dos diferentes ministros com as estruturas ou nos despachos que têm com o primeiro-ministro.

Vejamos ainda o que se passa quanto à experiência em gabinetes ministeriais. Apenas 22,9% dos diretores-gerais e gestores públicos refere ter sido membro de um gabinete ministerial, na qualidade de chefe do gabinete, adjunto ou colaborador de gabinete equiparado a adjunto (os chamados “assessores”). Ou seja: ligeiramente menos de um quarto do nosso universo. Nessa medida, a passagem pelos gabinetes ministeriais, não sendo um passo absolutamente decisivo no caminho para se chegar a diretor-geral, não deixa de se revelar como um percurso, entre outros possíveis, para se chegar a cargos dirigentes de topo na administração do Estado.

E não surpreende que assim seja, tendo em consideração que os membros dos gabinetes têm como função o acompanhamento, não só político, como também técnico, dos vários “dossiers” do ministério. Um dos ex-ministros entrevistados resume particularmente bem a diversidade de funções exercidas nos gabinetes ministeriais, que vão muito para além do que a legislação aplicável nos diz:

 

O gabinete ministerial tem uma componente técnica e uma componente política, tem de ser uma escolha pessoal e política, e em alguns casos até tem de haver confiança partidária. O gabinete relaciona-se com a Assembleia da República, com a comunicação social, com as estruturas locais e distritais, com as autarquias…

 

Em todo o caso, ao distribuirmos o nosso universo pelas três legislaturas durante as quais as funções dirigentes aqui analisadas foram exercidas, somos obrigados a concluir pela existência de uma crescente tendência para a politização, agora manifestada pela presença de antigos membros de gabinetes ministeriais do mesmo tipo de partido do governo.

Em primeiro lugar, se durante o Governo Guterres apenas 17,4% dos dirigentes de topo em funções haviam passado por gabinetes ministeriais, no Governo PSD/CDS e no Governo Sócrates essas percentagens sobem, respetivamente, para 27,0% e 25,6%, o que representa cerca de um quarto dos diretores-gerais.

 

 

Para aprofundar o nível de politização associado a este aumento da presença de dirigentes que passaram por gabinetes ministeriais, distinguimos ainda os que passaram por todo o tipo de gabinetes (de membros do governo centro-direita e do PS) daqueles que passaram por gabinetes de um só tipo de governo (só de centro-direita ou só do PS), sendo certo que temos de considerar o facto de entre 1995 e 2009 (14 anos), o centro-direita ter estado no poder apenas durante três anos e de serem, por isso, menores as hipóteses de se ter passado por um gabinete de um membro de um governo do centro-direita do que por um gabinete de um membro do governo do PS, especialmente quando analisamos o Governo Sócrates.

Feita esta ressalva, verifica-se uma tendência para o aumento de casos de experiências em gabinetes ministeriais em governos de uma só cor política, o que não deixa de ser um indicador de crescimento da politização ao longo do período em análise. Se durante o Governo Guterres, 48,8% dos dirigentes com experiência de gabinete tinham tido essa experiência apenas durante Governos PS, no Governo PSD/CDS, apesar de o PSD estar afastado do poder há sete anos, a percentagem dos que tinham tido essa experiência apenas em Governos PSD sobe para os 60,3%. No Governo Sócrates, 87,1% dos dirigentes com experiência de gabinete tinham tido essa experiência apenas durante Governos PS.

Pelo contrário, no Governo Sócrates não encontramos nenhum caso de dirigente de topo que tenha passado (ou que revele ter passado) apenas por gabinetes ministeriais de Governos PSD/CDS. Esse tipo de casos corresponde a 39,0% dos dirigentes de topo do Governo Guterres que haviam passado por gabinetes ministeriais. De resto, 28,6% dos dirigentes do Governo PSD/CDS com experiência de gabinete haviam sido membros de gabinetes ministeriais de Governos PS.

Em suma, não só assistimos a um crescimento dos casos de escolha de dirigentes com experiência de gabinetes ministeriais, como observamos uma subida de ainda maior intensidade dos casos em que essa experiência ocorreu apenas durante um ciclo politicamente homogéneo.

Falta ainda analisar a relevância de outro indicador de politização no recrutamento de diretores-gerais e de dirigentes equiparados a gestores: o exercício de cargos políticos.25E a conclusão a retirar é que, comparada com a experiência em gabinetes, a experiência de exercício de cargos políticos é sem dúvida menos expressiva. Apenas 7,1% dos dirigentes que exerceram funções entre 1999 e 2009 revelam ter sido eleitos para cargos de natureza política. E aqui, ao contrário do que se passava com os indicadores anteriores, não há diferenças assinaláveis entre governos.

Ainda menos significativa, como seria de esperar, é a presença de antigos membros do governo: apenas 2,5% dos casos. É que, olhando para a hierarquia da administração do Estado, a passagem da elite ministerial para a elite administrativa pode ser vista como uma despromoção.

 

CONCLUSÃO

 

Como caracterizar as elites administrativas portuguesas do ponto de vista da autonomia profissional e do seu grau de politização? Estamos agora em melhores condições de dar resposta a esta pergunta.

Trata-se ainda de uma elite predominantemente recrutada no interior da própria administração pública, apesar da abertura que a legislação permite – o que é bem um sinal de um peso significativo de um padrão de autonomia profissional, pelo menos ao nível dos perfis. Além disso, são muitos os casos de dirigentes recrutados no interior do ministério onde vão exercer as funções dirigentes.

Simultaneamente, as carreiras especiais da administração do Estado surgem como centros de recrutamento privilegiados nos ministérios em que atuam: a carreira médica no Ministério da Saúde, a carreira diplomática no Ministério dos Negócios Estrangeiros, a carreira docente no Ministério da Educação, ou a carreira militar no Ministérios da Defesa Nacional – são disso exemplos. Os professores – nomeadamente os do ensino superior – são, em todo o caso, a carreira mais transversal ao conjunto dos ministérios.

Isto não significa que a autonomia profissional seja o padrão-único no recrutamento da elite administrativa. Há outros canais para se aceder a este tipo de cargos – alguns deles reveladores de lógicas mais politizadoras, como sejam os gabinetes ministeriais ou (embora bastante menos) o exercício prévio de cargos políticos. Por outro lado, na administração desconcentrada predominam, segundo testemunhos recolhidos, lógicas típicas da politização clientelar.

Em síntese, do caso português de recrutamento das elites administrativas resulta um padrão onde predomina a autonomia profissional, mas que contém, de forma localizada, elementos de controlo político e mesmo de politização clientelar. Este padrão português encontra-se bem resumido por Marcelo Rebelo de Sousa:

 

Acabámos por adoptar uma fórmula híbrida, que nem é a da continuidade da carreira administrativa, impermeável às vicissitudes da governação (como acontecia classicamente em muitos países europeus) nem é a da substituição maciça e rotativa de pessoal dirigente administrativo (praticada, com frequência, como vimos no sistema administrativo norte-americano) [Sousa, 1995, p. 52].

 

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LEGISLAÇÃO

 

Lei n.º 13/97, de 23 de maio.

Lei n.º 49/99, de 22 de junho.

Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro.

Lei n.º 51/2005, de 30 de agosto.

 

Recebido a 03-09-2012. Aceite para publicação a 22-10-2013.

 

NOTAS

1 Este artigo tem por base a tese de doutoramento realizada pelo autor no ICS, UL (Nunes, 2012).

2 Em contraste com os casos das restantes democracias mais recentes da Europa do Sul, Espanha e Grécia (Sotiropoulos, 1999; Parrado, 1996).

3 Existem outros, embora na sua maioria mais na perspetiva da ciência administrativa (Carmo, 1987), ou das atitudes e dos papéis de políticos e burocratas (Rocha, 2001; Teixeira, 2010).

4 Page (1985, p. 4) chama a atenção para o facto de que este conceito weberiano de ­burocracia moderna deve ser entendido como um tipo ideal – isto é, um conjunto de características próprias de uma forma de organização social e política – e não como um retrato perfeito do Estado moderno atual.

5 Christopher Hood (1991, p. 3) identifica os quatro traços fundamentais deste movimento na sua caracterização da Nova Gestão Pública: tentativas de redução da dimensão do emprego público; privatização ou semiprivatização da prestação de alguns serviços públicos; desenvolvimento de novas tecnologias; e a substituição das práticas administrativas tradicionais do Estado por práticas importadas do setor privado. Quando não implicou processos de privatização total de funções do Estado, a nova gestão pública levou à delegação de competências e à transferência de tarefas anteriormente desempenhadas pela administração direta do Estado para uma nova geração de estruturas administrativas autónomas.

6 É neste sentido que Kopecky e Mair (2006, p. 10) concluem que muitas das mudanças institucionais favoráveis às práticas de patrocinato partidário “emanam em larga medida de políticas de reformas de organizações internacionais, nomeadamente do Banco Mundial e da União Europeia”.

7 A literatura tende assim a olhar para esta tendência como sendo negativa do ponto de vista da qualidade da democracia. É certo que o controlo político é uma forma de politização, como a partidarização ou o clientelismo, mas não implica necessariamente partidarização ou clientelismo. Carboni (2008, p. 1) lembra que o controlo político pode assumir uma perspetiva positiva se o entendermos como capacidade de estabelecer uma direção à administração, que é justamente o que constitucionalmente compete aos governos.

8 Iniciais de New Public Management, corrente administrativa a que referimos em português como nova gestão pública.

9Quango é o acrónimo de quasi-autonomous non-governmental organisation.

10 Tratando-se de uma mesma legislatura (a IX) e de dois governos maioritários apoiados por uma coligação parlamentar, os governos PSD/CDS, embora liderados por dois primeiros-ministros diferentes (Durão Barroso e Santana Lopes), foram considerados com uma só unidade de análise. É deles que falamos quando falamos de Governo PSD/CDS ou de Governo Barroso/Santana.

11 Quando falamos de administração periférica, de administração desconcentrada ou de administração territorial, estamos a falar da mesma realidade.

12 Estas categorias adotadas por Freitas do Amaral (1989) são também parcialmente utilizadas por João Freire (2010).

13 As orgânicas dos XIV, XV, XVI e XVII Governos Constitucionais foram consultadas em http://www.portugal.gov.pt.

14 Esta é a tipologia definida por Freitas do Amaral para a administração direta (Amaral, 1989).

15 Embora estes últimos estejam abrangidos por estatutos legais próprios.

16 Alterado em 2004 (Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro) e 2005 (Lei n.º 51/2005, de 30 de agosto) sem se ter tocado neste aspeto.

17 Foram recolhidos 589 currículos, correspondentes a dirigentes de topo que exerceram funções e foram nomeados nos Governos Guterres (o segundo: 1999-2002), PSD/CDS (2002-2005) e Sócrates (2005-2009): 235, 233 e 121, respetivamente. Note-se que o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE, aprovado em 2006) veio a reduzir as estruturas de 411 para 220 (Rosalino, 2011). Por uma questão de gestão dos recursos disponíveis para o desenvolvimento deste trabalho, optou-se por analisar aqui apenas os perfis dos dirigentes equiparados a diretores-gerais (a grande maioria) ou a gestores públicos: diretores-gerais, secretários-gerais, inspetores-gerais e presidentes de institutos públicos, mas também vogais de conselhos de administração de institutos públicos (quando equiparados a gestores).

18 Como diz Lilleker (2003, p. 208), “as entrevistas facilitam uma visualização de acontecimentos que tiveram lugar dentro de portas, fora dos holofotes dos média e da opinião pública”.

19 Entre janeiro e maio de 2012 foram entrevistados 15 antigos membros do Governo que, entre 1999 e 2009, exerceram os seguintes cargos (com estas designações ou outras equivalentes): ministro da Administração Interna (1); ministro do Ambiente (1); ministro dos Assuntos Parlamentares (1); ministro da Cultura (1); ministro do Equipamento Social (1); ministro da Educação (4); ministro das Finanças (1); ministro da Presidência (1); ministro da Saúde (1); ministro do Trabalho e da Solidariedade Social (2); secretário de Estado dos Assuntos Europeus (1); secretário de Estado da Defesa Nacional (1); secretário de Estado das Florestas (2); secretário de Estado da Administração Pública (1); secretário de Estado do Ordenamento do Território (1); secretário de Estado da Proteção Civil (1). Entre os entrevistados, à data em que exerceram funções, oito eram militantes de um dos partidos do governo e sete independentes. Treze são homens e duas são mulheres. A todos foi assegurado o anonimato.

20 Esta frase de um antigo ministro entrevistado é igualmente bem ilustrativa daquilo que estamos a defender: “A experiência na administração pública é muito mais importante do que a experiência de gestão privada, que não serve para um recrutamento em série”.

21 Um exemplo: “Tive algumas recusas de gente do privado por razões remuneratórias, nomeadamente em lugares da área financeira, mas muito circunscritos”. Sobre a influência e o impacto das ideias da Nova Gestão Pública em Portugal vale a pena ler Isabel Corte-Real (2008).

22 Havia nessa legislatura uma situação de empate: o PS elegeu 115 deputados à Assembleia da República e os restantes grupos parlamentares outros 115.

23 Incluindo aqui exercício de cargos dirigentes intermédios: chefes de divisão e diretores de serviço, cargos providos por concurso ou procedimento concursal na maior parte do período aqui em análise: entre 1999 e 2004 e entre 2005 e 2009.

24 Note-se, uma vez mais, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros é um caso especial, já que estatutariamente há um conjunto de cargos dirigentes que só podem ser preenchidos por diplomatas de carreira.

25 Consideram-se cargos políticos os cargos de deputado à Assembleia da República, mas também cargos regionais e autárquicos eletivos (incluindo aqui não só membros do executivo camarário, como também deputados municipais).

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