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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.215 Lisboa jun. 2015

 

RECENSÃO

Palacios Cerezales, Diego

Estranhos Corpos Políticos. Protesto e Mobilização no Portugal do Século XIX,

Lisboa, Edições Unipop, 2014, 148 pp.

ISBN 9789899751941

 

Fátima Sá e Melo Ferreira*

*ISCTE-IUL, CIES, Av. das Forças Armadas, s/n, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: fatima.sa@iscte.pt

 

Neste pequeno mas denso livro, reúnem-se três ensaios de Diego Palacios ­Cerezales que se encontravam dispersos, um dos quais não tinha sido ainda publicado em português. Todos se debruçam sobre a história da ação coletiva no ­Portugal oiticentista, terreno de observação privilegiado deste jovem historiador espanhol, formado na Universidade Complutense de Madrid e atualmente professor na Universidade escocesa de Stirling.

Em Estranhos Corpos Políticos. Protesto e Mobilização no Portugal do Século XIX, Diego Palacios recua do século XX para o século XIX, se tivermos em conta o seu primeiro livro, publicado em 2003, onde abordava a intensa mobilização coletiva que eclodiu em Portugal depois do 25 de Abril de 1974, embora mantenha interesses e áreas temáticas já presentes nessa obra. Ao recordar ter pretendido levar para o passado teses de O Poder Caiu na Rua (2003, ICS), remete para ele o primeiro texto de Estranhos Corpos Políticos, “O princípio da autoridade e os motins antifiscais de 1862”, ao afirmar ter pretendido testar, noutro contexto, a hipótese de ser a crise do Estado ou a sua debilidade “uma dimensão fundamental para explicar muitas das ­formas que a participação popular tinha tomado em 1974 e 1975” .

Em “O princípio da autoridade e os motins antifiscais de 1862”, Diego ­Palacios Cerezales debruça-se sobre protestos que eclodiram com particular intensidade no Minho, nas Beiras e nos Açores, mas que tiverem também expressão em Trás-os-Montes e no Algarve, dirigidos centralmente contra a nova contribuição predial que atingia os proprietários agrícolas e, secundariamente, contra os impostos municipais e a introdução dos pesos e medidas do sistema métrico decimal.

Trazer à superfície estes episódios esquecidos do processo mais geral de resistência à penetração do Estado no mundo rural oitocentista justificaria só por si a sua pertinência. Na análise daquele curto mas intenso ciclo de contestação, que se inscreve diretamente na linhagem dos tumultos iniciais da Maria da Fonte, que as autoridades da época evocam de forma explícita como temível precedente, o autor debruça-se sobre os modos de ação e os recursos das autoridades que combateram ou procuraram prevenir os motins, interrogando “o sistema de ordem pública” pelo qual se regiam.

Somos, assim, levados a percorrer vários conflitos ilustrativos dos “meios materiais” erráticos de que Estado dispunha para manter a ordem que, na ausência de uma polícia nacional, o obrigavam a recorrer sistematicamente à tropa para combater ou prevenir as ações de protesto, e também dos seus “meios intelectuais”, ou seja, conceções genéricas sobre a revolta popular onde as noções de contágio, necessidade de prevenção e coerção imediata eram centrais.

A partir da análise dos tumultos da Horta, nos Açores, onde a tropa foi atacada e dispersa pela população, passando pelos de Vila Real, em que se usaram sobretudo métodos preventivos de dissuasão, nos quais a exibição da força militar desempenhou o principal papel, Diego Palacios centra-se nas representações e dinâmicas de intervenção das autoridades civis e militares, tendo sempre no horizonte outras geografias suscetíveis de proporcionarem comparações pertinentes. Pondo em paralelo os métodos das autoridades em Portugal e em Espanha, sublinha a clara proeminência do poder civil no caso português, referindo-se a um “protagonismo militar sem militarismo” que, ao contrário do que ocorria em Espanha, implicava a entrega dos agitadores capturados ao poder civil e não à autoridade militar, fazendo, deste modo, economia de conselhos de guerra e fuzilamentos.

Na “sociologia espontânea” das autoridades, militares e civis, que assentava na crença de que um conflito coletivo isolado podia difundir-se e converter-se numa insurreição generalizada, por ­contágio, se a sua ação não fosse suficientemente rápida, identifica perspetivas comuns sobre os agentes dos protestos. Perspetivas pautadas pela alternância entre representações das populações rurais como sendo de índole pacífica e respeitadora da autoridade, em consequência de uma cultura comum e de valores partilhados, vigentes em tempos de paz, com outras visões, menos idílicas, que se manifestavam em caso de revolta. Nestas, o caráter pacífico dos “povos”, referidos num plural comunitário, aparecia como uma realidade precária e dependente dos aparatos coercivos do Estado e da sua capacidade para impor a obediência.

Nas duas representações, “o princípio da autoridade” era a noção-chave e a sua quebra significava a “anarquia”. Cabia às autoridades restaurá-lo ao “anular publicamente o sinal de debilidade do Estado perante a encenação da existência de uma reserva coerciva pronta a agir”.

Embora mais dirigido à compreensão do “sistema da ordem pública” do que à das dinâmicas da contestação, situando-se numa linha de interesses que o autor irá prosseguir na sua tese de doutoramento intitulada Estado, Régimen y Orden Público en el Portugal Contemporáneo (1834-2000) e, depois, em Portugal à Coronhada (2011, Tinta da China), o artigo não negligencia a análise dos tópicos mais relevantes das formas de ação coletiva que analisa. Embora priviligie o estudo dos mecanismos coercivos do Estado, consegue cruzar de modo eficaz um leque documental variado, explorando as suas diferentes perspetivas, colocando-se ora do ponto de vista dos revoltosos, ora do das autoridades.

Em “Estranhos corpos políticos: o nascimento do movimento social no Portugal do século XIX”, o segundo texto da obra que é, sem dúvida, a sua aposta mais forte, esta dupla perspetiva mantém-se, embora num quadro de problemas distintos.

Situando agora a sua análise num tempo longo que abarca uma grande parte do século XIX, Diego Palacios interessa-se pela transição das práticas de contestação, que informavam aquilo a que Charles Tilly chamou o “antigo repertório de ação coletiva”, para as práticas e modos de ação que configuram o movimento social moderno.

O texto retoma as teses clássicas de Tilly sobre a passagem de protestos dominados pela ação direta, pontual, e de âmbito local, para formas mais continuadas de intervenção, expressando reivindicações que já não se esgotam nesse quadro, mas que se dirigem a autoridades nacionais. Da queima de arquivos, assaltos a repartições de finanças, tabelamentos populares dos preços dos cereais e tentativas para impedir a sua saída dos termos concelhios, ter-se-ia passado para formas de ação mais “modernas” como a petição, o comício, a manifestação e a greve, modalidades de ação que, pela sua persistência, muitas vezes tomando a forma de campanha, configurariam o moderno movimento social.

A esta simples dicotomia que tende a restringir as ações coletivas do antigo repertório a objetos de natureza social, mais do que política, Diego Palacios ­contrapõe exemplos ilustrativos de como as formas de ação coletiva, protagonizadas pela “multidão”, tiveram desde inícios do século conteúdos políticos inegáveis.

Recorrendo ao conceito de “contra-democracia” de Pierre Rosanvallon, que, na formulação deste autor, não designa o contrário de democracia mas “uma democracia dos poderes indiretos disseminados no corpo social”, são convocados múltiplos casos da intervenção coletiva no Portugal do século XIX, situando-se em 1808 a primeira grande mutação da participação popular em acontecimentos políticos.

Na grande crise de 1808, decorrente das invasões francesas e da partida do Princípe Regente para o Brasil, deixando ordens de não resistência ao invasor, Diego Palacios identifica “os povos” como grandes motores da mobilização anti-francesa e recorda a interferência permanente das multidões junto das autoridades locais, forçando a resistência.

Na linha do que tem vindo a ser defendido pela historiografia ibero-americana, chama a atenção para um dos dados mais relevantes dessas manifestações: o facto de as Juntas de Governo que se foram constituindo em diversas localidades do país, sobretudo a Norte do Douro, terem afirmado retirar a sua autoridade da vontade do povo e terem, desse modo, legitimado a sua ação. Um povo representado sempre de modo ambivalente, ora como fonte e guardião da independência, ora como populaça ou canalha capaz dos maiores excessos.

A este momento inaugural da intervenção política da multidão, seguir-se-iam muitos outros no período convulso de 1820 a 1834, epicentro dos conflitos entre liberais e absolutistas. A mobilização coletiva como forma de ação política teria vindo para ficar no Portugal de oitocentos, tanto em cerimónias de tipo tradicional, como as entradas régias na capital, agora lidas politicamente, como na intervenção nas galerias das Cortes, fazendo pressão sobre os deputados, ou nas ruas celebrando a outorga da Carta Constitucional em 1826, ou a chegada de D. Miguel em 1828.

Interessante é a chamada de atenção para a campanha peticionária organizada pela Câmara Municipal de Lisboa sustentando a assunção da realeza por D. Miguel, que outras câmaras municipais secundarão. Embora não esqueça a importância do uso das petições no Antigo Regime, com assinaturas muitas vezes canalizadas pelos munícipios, o autor sustenta terem sido os partidários do absolutismo miguelista a introduzir esta prática no repertório da ação coletiva politizada, não se tendo mesmo coibido de recolher muitas assinaturas de mulheres para apoiarem a subida de D. Miguel ao trono.

O recurso à multidão como forma de “encenar a vontade nacional” foi particularmente intenso, segundo o autor, no período de 1834-1851, dominado pelos confrontos entre cartistas e setembristas. As manifestações coletivas aconteceram, como habitualmente, nas ruas e praças das cidades, mas também no interior dos teatros, espaços de sociabilidade centrais do universo oitocentista, onde se aclamavam ou vaiavam figuras públicas, se tocavam hinos políticos e os espetadores se manifestavam a favor ou contra determinada solução governativa ou constitucional.

Segundo o autor, a mobilização da Guarda Nacional serviu até aos anos 40 do século XIX o mesmo fim de intervenção pública e de pressão política, até à sua desmobilização progressiva a partir de 1838, após o seu confronto com o exército em Lisboa no célebre “massacre do Rossio”.

A chegada ao poder de Costa Cabral marcará novo virar de página nas formas de ação coletiva politizada. A partir de 1842, a “centralização administrativa” do cabralismo, incluindo a extinção de muitos cargos eletivos e a sua substituição por outros de nomeação governamental, assim como o desmantelamento da Guarda Nacional, substituíra o “Estado cívico”, presente no pensamento do primeiro liberalismo, por um “Estado burocrático”, separado da sociedade civil, que, simultâneamente, fechava algumas portas e abria outras à ação coletiva.

Em consonância com a inspiração da Carta, o espaço de intervenção coletiva deveria passar agora para o domínio da “opinião pública” e para modos de ação que se desejava ver confinados à imprensa e à petição.

Tal desígnio foi votado ao fracasso. A prová-lo está a grande revolta iniciada no Minho na primavera de 1846, e que se prolongou durante o ano de 1847, conduzindo à guerra civil da Patuleia, misturando em doses variáveis política popular e local e política nacional. Um período sobre o qual o autor quase não se debruça, o que se compreende, em parte, dada a densidade dos acontecimentos desses anos torrenciais.

É depois desse novo confronto e da famosa “pacificação” da Regeneração que Diego Palacios situa a expansão das formas do novo repertório de ação coletiva.

Na sua nova fórmula de direito garantido na Carta Constitucional, a petição conhecerá então grande voga. A sua evolução do quadro corporativo para a participação individual através de recolhas de assinaturas, muitas vezes dinamizadas pela imprensa, é acompanhada de perto pelo autor, que sinaliza alguns casos emblemáticos do seu uso, como a que ocorreu contra a lei que limitava a liberdade de imprensa, a famosa “lei das rolhas”, ainda em 1850. Às 30 000 assinaturas recolhidas em 1856 contra a política fiscal do governo seguir-se-iam outras importantes campanhas assentes em petições, como as ocorridas a propósito da “questão das irmãs da caridade”, em que se registaram petições contra e a favor, amalgamadas com outras formas de intervenção política como o comício ou meeting. Foi a essa nova forma de intervenção que Fontes Pereira de Melo chamou “corpo político estranho aos que a constituição reconhecia”. Tal opinião não foi, porém, unânime entre as elites políticas, já que havia quem defendesse os comícios e os visse como uma forma “nacional e patriótica” de os cidadãos discutirem os assuntos públicos.

A campanha extraparlamentar que em janeiro de 1868 viria a fazer cair o governo, configurando a famosa Janeirinha, apoiou-se fortemente em comícios, petições e campanhas de assinaturas, e o autor considera mesmo terem sido estas manifestações a constituírem o primeiro movimento social de âmbito nacional que o país conheceu.

Mas se a Janeirinha marca uma viragem decisiva nas formas tradicionais de protesto em direção ao moderno movimento social, não se deve esquecer que essas formas, presentes sobretudo nos centros urbanos, conviveram frequentemente com as do antigo repertório. Uma convivência que durará até pelo menos à I República como tem sido sublinhado por David Luna de Carvalho.

Desta convivência dá conta também Diego Palacios quando refere como a mobilização de rua se acentuou nos anos seguintes, incluindo agora, em meio urbano, novos grupos sociais como os assalariados. Grupos que articulavam os seus protestos com a política, mas não se eximiam a organizar desfiles que exigiam “pão ou trabalho” forçando a caridade das casa ricas “adaptando à cidade as formas de reivindicação do campo latifundiário”.

Depois do regresso à normalidade constitucional, “com a institucionalização dos partidos”, inauguraram-se novas formas de ação coletiva contando agora com a participação destes. Muitas campanhas peticionárias e comícios passaram a articular-se com os debates parlamentares e o direito político de reunião, assim como o meeting, foram consignados na revisão constitucional de 1885.

Nesta década, o repertório do movimento social estaria já “testado, normalizado e legalizado” e as ­associações operárias passaram a usá-lo com ­frequência. O associativismo operário estava em marcha, embora a lei ainda não o reconhecesse especificamente.

Se estas formas de ação política tinham passado a ser usuais, a manifestação tardou mais a sê-lo. Os cortejos cívicos republicanos inauguram-na a partir de 1880 com as comemorações do tricentenário da morte da Camões.

A passagem de um repertório de protesto a outro fica assim ilustrada de forma clara, convincente e bem documentada, não esquecendo também o autor a grande longevidade do repertório tradicional, com as suas formas de atuação mais diretas e locais e também, aos olhos das autoridades, mais sediciosas.

Alguns fenómenos bem expressivos do novo repertório ficaram fora da sua análise. É o caso da greve, ausência que se compreende à luz da proposta de dirigir a pesquisa para as formas de ação com objetivos políticos, muito mais do que sociais.

Fica assim justificada a afirmação de que os fenómenos analisados “faz(em) parte da história da democracia” , “a partir dos recursos de mobilização coletiva que foi capaz de inventar e reinventar num quadro histórico que passou a ter como referente a soberania popular”.

Chamando a atenção para transformações semelhantes verificadas noutros países, no quadro da emergência daquilo a que Maurice Agulhon chamou “a política moderna”, Diego Palacios não deixa de notar, com justeza, que estas formas de mobilização arrastaram consigo novos direitos, como os direitos de reunião e associação, sublinhando justamente que no caso português eles foram acompanhados, a partir da Regeneração, de uma “surpreendente prefererência governativa pela transigência e tolerância, em vez da resistência e da mão de ferro, que muitos observadores contemporâneos atribuíam à reconhecida ficção da representação eleitoral”.

A questão da intervenção feminina na vida política do liberalismo, através da subscrição de petições e as flutuações entre inclusão e exclusão das mulheres neste modo de participação alternativa ao direito de voto, é o fio condutor do terceiro texto deste livro: “Assinem, assinem que a alma não tem sexo”.

Considerando que as mulheres portuguesas que colocavam a sua assinatura numa petição exerciam um direito político, Diego Palacios mostra como essa forma de participação gerava debates e controvérsias “configurando e reafirmando as relações de género”.

Lembrando a exclusão das mulheres da cidadania ativa, não só em consequência da sua exclusão do direito de voto, mas também por não serem representadas como cidadãs no espaço público, o autor nota que as “matrizes católica e liberal-republicana” se encontravam ao considerarem ambas as mulheres não como cidadãs mas como filhas e mães de cidadãos, razões que tornavam desejável a sua educação, mas não a sua emancipação.

Não se tendo registado grandes movimentos em prol dessa emancipação política como os que ocorreram no último terço do século XIX na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, Palacios Cerezales recorda que, tanto em Portugal como em Espanha, o voto não foi reinvindicado pelas mulheres (como também não foi maioritariamente pelos homens excluídos desse direito) se não bem mais tardiamente.

Dirigidas preferencialmente às Cortes, as petições das grandes campanhas de opinião da segunda metade do século XIX eram depois publicadas no Diário do Governo, acompanhadas por extensas listas de assinaturas em que as correntes em confronto iam buscar argumentos de valorização ou desvalorização desses documentos. Foi o que aconteceu com as petições visando a política financeira do governo, com mais de 30 000 assinaturas, entre as quais constava um grande número de nomes femininos que a imprensa governamental, por isso mesmo, desvalorizou, assim como por conterem, também, assinaturas de homens destituídos de direitos políticos. Uma posição contestada, no entanto, por outros setores que defendiam a universalidade do direito de petição.

No grande debate público sobre a questão da entrada em Portugal das irmãs de caridade e dos padres lazaristas, dos anos de 1857 e 1858, as assinaturas contra e a favor foram recolhidas por jornais, respetivamente O Português e A Nação. Nas duas petições constavam nomes femininos em pequena, mas significativa percentagem, e a petição a favor das irmãs da caridade terá sido aquela que registou mais nomes de mulheres em todo o século XIX. Seguiu-se então uma acesa polémica sobre o modo como estas assinaturas tinham sido obtidas, utilizando-se o argumento, que se tornaria clássico, da eventual manipulação das consciências femininas por membros do clero, o que lhes retirava valor como expressão de uma opinião independente.

Poucos anos depois, em 1865, o projeto do casamento civil deu lugar a uma nova grande polémica e campanha peticionária. Uma petição contra o projeto, assinada exclusivamente por mulheres, conhecida como “O protesto das senhoras”, provocou reações violentas nalguma imprensa liberal, que apelou “a pais e esposos” para que exercessem a sua autoridade para silenciar essas vozes. Como resposta, uma das signatárias, Maria Cândida Falcão, defendeu o direito inconstestável de as mulheres emitirem a sua opinião no caso em apreço, com argumentos que cruzavam princípios da cidadania liberal e “uma leitura católica da igualdade e dignidade das almas”, defendendo que as mulhereres eram “irmãs dos homens por Adão e pela Pátria”.

A presença feminina já não marcará, porém, o grande ciclo contestário dos anos de 1867-1868, no qual Diego ­Palacios identificou a viragem na formação do movimento social em ­Portugal. A janela de oportunidades que as lutas liberais e a consolidação do liberalismo tinham aberto fechar-se-á para as mulheres a partir destes anos. Nas grandes petições coletivas, os nomes femininos só aparecerão agora residualmente, e por vezes serão mesmo retirados para não prejudicarem a causa defendida. O que estava em questão era o direito das mulheres a “representarem”, não possuindo direitos políticos reconhecidos constitucionalmente.

Os novos protagonistas da ação coletiva, como o movimento operário e sindical, também as rejeitariam. Não só foram muito dificilmente incluídas nas organizações operárias (mas não, da mesma forma, nas Associações de Socorros Mútuos estudadas por Virgínia Baptista), como os seus nomes também primaram pela ausência nas petições provenientes desse setor. Foi o que aconteceu com o “protesto lavrado entre a classe operária portuguesa contra os novos impostos”, em 1882, com quase 4000 assinantes, entre os quais não constava nenhum nome feminino. Tão pouco o ativismo católico retomou nas suas campanhas os argumentos usados em anos anteriores, sendo muito escassas as assinaturas femininas nas de 1884 e 1893 a favor do regresso das ordens religiosas.

A partir de 1890 o quadro muda e voltamos a encontrar iniciativas femininas no espaço público. Isso aconteceu nos movimentos de reação ao ultimato britânico, em que se passou da recolha de fundos por comissões femininas criadas para o efeito com vista a financiar a resistência, à sua entrega a escolas e asilos.

O decisivo virar de página ocorrerá ao longo da década de 90, quando uma geração nova de mulheres se destaca numa militância de inspiração republicana em lugares como a Associação do Registo Civil ou na subscrição de petições para que, no Código Penal, fosse tida em conta a liberdade de consciência. Em campanhas peticionárias pela proteção da indústria ou o descanso dominical, encontra-se também um número significativo de assinaturas femininas, sem que se registem debates em torno da legitimidade dessa participação.

À entrada do século XX, com a nova política de massas e o funcionamento de novos partidos como o Partido Republicano, a intervenção feminina foi mobilizada, ainda que com limites. Na verdade, essa mobilização não se fez pela incorporação de mulheres nas secções locais do partido, mas antes através da sua mobilização em causas como a do Livre Pensamento ou pela constituição de movimentos exclusivamente femininos como a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Apesar dos espartilhos que lhe procuraram impor, a Liga daria, depois de instaurada a República, provas de grande implicação na cena pública em favor de causas como a lei do divórcio ou o sufrágio. Neste último domínio, porém, como é sabido, o feminismo republicano fracassou. A República não reconheceria o direito de voto às mulheres e a sua reinvindicação pelas militantes republicanas não ultrapassaria também determinados limites: os limites impostos pelos republicanos aos analfabetos em nome da pretensa manipulação do seu voto por forças reacionárias.

Ao mesmo tempo, o exercício do direito de petição perdia força face às novas técnicas de mobilização da política de massas, tornando-se cada vez mais residual.

Com os seus avanços e recuos, a participação feminina na vida pública fundada no exercício de direitos, neste caso o de petição, não recobre todo o amplo leque de participação das mulheres no espaço público, que, como o autor sustenta, revestiu muitas outras e variadas formas, como o protesto de rua, a greve, as cerimónias festivas ou o uso político de momentos tão distintos como os funerais ou os carnavais. Mas para as avaliarmos nesses termos será necessário, como também judiciosamente sublinha, levar em conta: “os contextos de interpretação do sentido da presença feminina em cada um desses âmbitos”.

A conclusão possível, é a de que a esfera pública “burguesa” institucionalizada pelo liberalismo deixou deliberadamente pouco espaço de intervenção às mulheres, remetendo-as para formas de ação secundárias, como o direito de petição, ou não investidas de dignidade cidadã, como a greve ou a ação direta do repertório tradicional, esferas para as quais foram também remetidos os homens “sem qualidades”, por exemplo os analfabetos.

Mas a própria dinâmica da existência de uma “esfera pública” feita de periódicos, de petições, de associações, de comícios e de manifestações não deixaria de constituir uma brecha por onde novas manifestações e novos protagonistas se poderiam infiltrar.

Só podemos estar gratos a Diego ­Palacios Cerezales por nos ter feito descobrir também, em tão poucas páginas, mais este complexo caminho.

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