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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.215 Lisboa jun. 2015

 

RECENSÃO

Salgado, Susana

The Internet and Democracy Building in Lusophone African Countries

Surrey, Ashgate, 2014, 198 pp.

ISBN 9781409436577

 

José Pedro Zúquete*

*Universidade de Lisboa,ICS-UL, Av. Prof. Anbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: jpzuquete@gmail.com

 

A teorização e o estudo do impacto (social, político e cultural) das novas tecnologias da informação e da comunicação, como a internet, não são tarefas fáceis porque o objeto de estudo está em fluxo, em movimento – interagindo sempre com a inovação, a novidade e a possibilidade de novos tipos de interação e práticas inovadoras entre os indiví­duos, entre os indivíduos e o Estado, e entre os indivíduos e a sociedade. A relevância deste tema, numa sociedade cada vez mais dependente da tecnologia e do digital, quase se impõe por si só, e ele é naturalmente interdisciplinar – aberto quer às ciências sociais, como às comunicacionais e, claro, tecnológicas. E também por isso é um tema de fácil dispersão – ou seja, em que se torna difícil encontrar um foco de análise – porque, de facto, existem vários caminhos para abordar e ponderar este tema.

Esse perigo da dispersão não existe neste livro. Logo nas páginas iniciais, a autora descreve e delimita o seu objeto de estudo: o papel da internet na construção da democracia nos países africanos de expressão portuguesa, nomeadamente através da sua influência nos media e no sistema político. A delimitação não invalida a ambição do projeto, até ­porque ele problematiza obviamente questões mais gerais como a qualidade da democracia nesses países, ou a existência (pelo menos potencialmente) de sociedades civis autónomas e fortes. Os seis anos dedicados a esta investigação, e as inúmeras entrevistas com políticos, jornalistas e académicos, que dela resultaram, visaram compensar o obstáculo de uma informação deficitária e limitada. À inexistência de bases de dados, estudos de opinião, ou de trabalhos específicos sobre o tema, acrescentou-se a própria secundarização que a área geográfica da África lusófona ainda sofre na literatura académica internacional. Com a exceção da Guiné-Bissau – ausente neste estudo, presumivelmente devido à instabilidade dos últimos anos, que impossibilitou a investigação – este livro colmata uma ausência nos estudos da África contemporânea.

The Internet and Democracy Building in Lusophone African Countries divide-se em três partes. A primeira, teórica, as restantes mais empíricas e oferecendo um olhar mais detalhado sobre cada um dos quatro países em análise: Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Questões mais gerais e contextuais – como a interligação entre os media, o desenvolvimento e a democratização – ocupam o grosso da primeira parte. A reter as seguintes ideias: a transição para a democracia – e no caso da África subsariana isso é evidente – está longe de ser automática, e muitas vezes, no lugar da democracia plena, surgem regimes híbridos, com tendências autoritárias; de uma maneira geral o papel positivo dos media nos processos de democratização é reconhecido, embora possam também ser instrumentalizados para manipular as massas (o papel da rádio no genocídio do Ruanda, por exemplo, exacerbou uma situação já de si explosiva). Já o capítulo final da primeira parte aborda o papel da internet na democratização. Muitos estudos sobre este tópico tendem a cair em dois campos: balançam entre o tecno-otimismo (a máxima valorização das tecnologias de comunicação) e o tecno-pessimismo (a desvalorização desse papel revolucionário das tecnologias). A autora defende uma perspetiva mais equilibrada, em que o potencial democratizante da internet é sempre necessariamente condicionado pelo contexto (social, económico e político) em que ela se encontra inserida.

A segunda parte do livro foca a situação particular de cada um dos países envolvidos. Uma premissa fundamental: não obstante experiências históricas semelhantes, e a existência de uma mesma língua, a África lusófona não é monolítica, e a democratização nesses países obedece a ritmos próprios, diferenciados, e nesse sentido está a dar origem também a regimes díspares. Angola é apresentada como o exemplo de democratização menos bem-sucedido. A hegemonia do MPLA e da família de José Eduardo dos Santos, assim como da elite que gravita à sua volta, faz do país um exemplo quase consumado de um “regime híbrido” (p. 66). E os media, com algumas exceções, contribuem para a manutenção deste regime, visto que a informação dos media do Estado, e dos media privados (detidos maioritariamente pela elite política e económica do regime), é controlada politicamente. O investimento angolano nos media portugueses é visto como a continuação desta estratégia de controlo e manipulação, que, neste caso, visa contribuir para promover uma imagem risonha do regime no exterior. Já em Moçambique, o panorama da democratização é mais favorável, embora ainda longe de ser considerado de sucesso. Os media do Estado estão alinhados com o partido do poder (a Frelimo), embora exista espaço para media independentes que, embora sobrevivam com dificuldade, asseguram um nível mínimo de pluralismo na informação. Esse maior “dinamismo” (p. 78) dos media moçambicanos reflete--se também na proliferação de estações de rádio locais e comunitárias, assim como de jornais distribuídos por fax e e-mail (neutralizando assim os custos proibitivos da produção e circulação). Quanto a São Tomé e Príncipe, o estado dos media é de “subdesenvolvimento” (p. 92), e a inexistência de condições materiais e financeiras afeta a qualidade do jornalismo praticado nas ilhas, mal--preparado profissionalmente, com poucos leitores e vulnerável à autocensura (típica de meios pequenos e insulares), assim como à influência dos partidos do poder. Cabo Verde surge neste estudo como a “jóia da coroa”, sendo considerado o “processo de democratização mais promissor” (p. 93) de todos os casos analisados. Contribui para isso a estabilidade do sistema político, e, no campo dos media, a legislação que assegura na prática a liberdade de expressão e de imprensa, e em geral a existência de maiores índices de liberdade e autonomia, com um grande dinamismo da iniciativa privada (no setor da rádio e dos jornais), embora os media cabo-verdianos tendam muitas vezes a servir de espelho-refletor da própria bipolarização do sistema político (dividido entre o PAIVC e o MpD), tornando assim mais invisíveis os pequenos partidos.

A terceira parte tem especificamente como objectivo descrever os usos e o impacto da internet – dos media online – na África lusófona, que, embora tenha níveis reduzidos de usuários, tem visto o seu número crescer nos últimos anos (também aqui Cabo Verde assume a dianteira). Assim, a prática do ciberjornalismo tem registado um grande aumento, o que é visto, de uma forma geral, como um fator positivo na democratização desses países, porque muitas vezes esses media servem como alternativa aos tradicionais. O facto de apresentarem maiores níveis de interatividade com os leitores fomenta e encoraja a participação cívica (p. 129), embora isso signifique igualmente que quanto mais sucesso os media online têm, maior é a tentação de as autoridades os controlarem. O ciberativismo – através da blogosfera, e das redes sociais – tem conhecido igualmente (com exceção de São Tomé e Príncipe) um grande dinamismo. E também neste caso é de referir o seu papel no processo de democratização. Se a blogosfera muitas vezes assume um papel de vigilância e monitoramento dos poderes estabelecidos, às vezes de forma anónima, distribuindo informações e fomentando visões críticas – ampliando, na visão de muitos dos entrevistados, o pluralismo na sociedade – as redes sociais podem servir como catalisadores da mobilização coletiva. Para fazer face a isso (e no contexto da então chamada “Primavera Árabe”), o governo angolano aprovou uma lei que, de facto, criminalizava a convocação pela internet e através de smartphones, de protestos e demonstrações. Finalmente, a comunicação política dos partidos políticos da África lusófona também está presente online através de websites, e de páginas nas redes sociais como o facebook. Mas em termos de impacto e relevância – assim como de interatividade – esta presença na internet por parte destes partidos ainda é muito discreta, se comparada, por exemplo, com os media digitais.

As páginas finais recapitulam as principais conclusões do estudo. Neste sentido, a sua ilação maior, tendo em vista a intenção inicial de analisar o papel da internet na construção democrática, está presente na última página (p. 168): mais do que um “iniciador”, a internet é, acima de tudo, um “facilitador” em termos de mudanças sociais e políticas. A internet não é uma “varinha mágica”; têm de existir condições (as estruturas económicas e políticas) para que a “magia”, a democracia plena, aconteça.

A inclusão de imagens teria tornado mais apelativos os capítulos sobre a blogosfera, redes sociais e websites. A descrição às vezes revela-se árida, até por não poder nunca competir com o impacto do visual. Por vezes o estilo é repetitivo, e a mesma ideia aparece com frequência ao longo do livro. A ausência da Guiné--Bissau, como já foi dito, é compreensível, embora seja de referir que, desde a recente acalmia política, o novo governo guineense tenha feito um esforço para aprofundar a sua presença na internet. Refira-se uma incorreção: a “terceira onda da democratização”, enunciada por Samuel Huntington, não começou nos anos 90, como se refere no livro (p. 46), mas em Portugal com a Revolução de 1974. Estas imperfeições, contudo, não afetam em nada a qualidade geral deste livro, que, no âmbito do estudo da África Lusófona, e de certa forma para além dela, é verdadeiramente pioneiro.

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