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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.216 Lisboa set. 2015

 

ARTIGO

Desenvolvimento e dependência na interpretação sociológica de Fernando Henrique Cardoso1

Development and dependence on sociological interpretation of Fernando Henrique Cardoso

 

Alessandro André Leme*

*Universidade Federal Fluminense, Departamento de Sociologia, Campus do Gragoatá, Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, Blocos N, O e P, São Domingos, Niterói - CEP 24210- 201 Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: alessandro_leme@id.uff.br

 

RESUMO

 

Desenvolvimento e dependência na interpretação sociológica de Fernando Henrique Cardoso.O artigo visa debater a questão do desenvolvimento e da dependência na obra do sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso como possibilidade explicativa/compreensiva, ou mesmo interpretativa do Brasil. Partiremos da crítica de Cardoso ao estruturalismo Cepalino e às abordagens marxistas sobre a dependência por meio dos fundamentos da sua teoria da dependência, em que a posição da política presente nos pactos entre elites/atores nacionais e internacionais configura o padrão de dependência e desenvolvimento associado. Deste debate vamos evidenciar a importância dada por Cardoso à política, que assume centralidade na análise, em substituição do económico, e à forma como o autor a articula partindo da dialética marxista. A análise crítica entre uma orientação metodológica assumida pelo autor e uma centralidade dada à política para se pensar o desenvolvimento e a dependência brasileira serão analisadas como fundamentos explicativos/compreensivos e principalmente interpretativos do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: desenvolvimento; dependência; Fernando Henrique Cardoso; pensamento social brasileiro.

 

ABSTRACT

 

The paper discusses the issue of development and dependency in the work of the Brazilian sociologist Fernando Henrique Cardoso as possible explanation / understanding or interpretation of Brazil. It departs from the critical Cardoso ECLA structuralism and Marxist approaches on addiction through the fundamentals of his theory of dependence, where the position of the present political pacts between elites / national and international actors shape the pattern of dependence and associated development. This discussion highlights the importance given by Cardoso’s Policy, which assumes the centrality of economic analysis in place, and as the author articulates, departing from Marxist dialectics. A critical analysis from a methodological orientation assumed by the author and given to political centrality to development thinking and Brazilian dependence will be analyzed as a fundamental explanatory / interpretative understanding, especially for Brazil.

KEYWORDS: development; dependence; Fernando Henrique Cardoso; Brazilian social thought.

 

INTRODUÇÃO

 

O debate na atualidade acerca do sociólogo Fernando Henrique Cardoso não é das tarefas mais fáceis de fazer. Não que a sua teoria ou reflexões sejam inalcançáveis, ou os seus textos, livros e artigos de difícil acesso. Talvez a dificuldade ocorra no campo das paixões. No quanto o autor e o ator se misturam, se confundem, ou mesmo se complementam.

O facto de Fernando Henrique Cardoso ter sido um académico e de também ter participado ativamente da política, sendo ministro de Estado e chegando a ser presidente do Brasil por dois mandatos dificulta sem dúvida a releitura e reinterpretação do autor, isto porque não faltam leituras “apaixonadas” e partindo da política neste processo, seja para o elogiar ou para o criticar.

Há várias maneiras de se investigar um autor e a sua respetiva obra, quando portador da particularidade de Fernando Henrique Cardoso, qual seja a de ter apresentado um protagonismo na academia (universidade e demais círculos da intelectualidade) e na política (ocupando cargos no Estado e, no caso em questão, sendo presidente da República). Aqui vamos evidenciar três, não necessariamente excludente entre si.

Poderíamos pensar numa maneira dialética e de totalidade, em que a obra e o autor são lidos (interpretados) no espaço e no tempo, ainda que com contradições, como um processo. Citamos aqui nesta possibilidade autores que ao analisar a obra de Fernando Henrique Cardoso acabam por vincular o dito (sociologia) e o feito (presidência) num único movimento, assim o teórico da dependência, ou de um tipo histórico de estratégia para o desenvolvimento seria também o executor de um tipo historicamente determinado de ­dependência, ainda que em outra conjuntura, e sobre influência de outros conceitos (globalização, neoliberalismo e etc.).

A segunda poderia ser caracterizada pelos estudos de trajetória (intelectual), em que a posição relativa que a ator/agente possui num determinado campo (político ou intelectual) está vinculada não somente ao seu estilo de vida, mas principalmente aos capitais que possui. Estes capitais (culturais, simbólicos ou políticos) estariam inscritos no habitus do agente, o componente fundamental para definir a posição relativa que o mesmo ocuparia num determinado campo, hierarquizando e estabelecendo estratificações de poder e dominação a partir daí.

Uma terceira possibilidade também se apresenta de forma consistente na revisão bibliográfica sobre o autor, ainda que fundamentada por diferentes abordagens teóricas e metodológicas. Qual seja: a investigação a partir de temas específicos na obra no autor, como por exemplo, a questão do empresário, a questão do negro, e a questão do capitalismo brasileiro (desenvolvimento e dependência, por exemplo) ou a questão do autoritarismo (contribuição que Lahuerta (2001), entende como uma das mais vigorosas produzidas na década de 1970 entre os intelectuais brasileiros2).

Neste tipo de investigação, soma-se à revisão bibliográfica a análise documental e de acervos sobre a temática em questão. No caso do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, a digitalização da sua obra (livros, artigos, entrevistas, etc.), formando um imenso acervo virtual no Instituto Fernando ­Henrique Cardoso é de extrema importância para a investigação. Uma espécie de sociologia feita a partir das ideias, da história, das trajetórias, enfim, visa revisitar o autor pela obra através da pesquisa em diferentes fontes, mas sem perder de vista o contexto, a posição e instituições de pertença do autor (o local e a posição de onde fala/escreve é importante).

Evidentemente que há outras maneiras e formas de lidar com o problema do autor/ator, apenas ilustramos algumas facilmente encontradas nas revisões bibliográficas analíticas, críticas, ou mesmo empíricas sobre Fernando ­Henrique Cardoso.

Aproximamo-nos neste artigo do terceiro tipo de investigação. Sendo assim, o texto tomará a seguinte forma. Num primeiro momento debateremos os fundamentos teórico-metodológicos priorizados por Cardoso nas suas investigações sobre o desenvolvimento e a dependência, destacando-se nesta parte a influência da dialética marxista, ainda que em complemento com outras abordagens essenciais para a realização da interpretação sociológica do autor.

Num segundo momento debateremos a questão do desenvolvimento e a dependência no autor, ou seja, a forma como Cardoso identificava as teorias e abordagens produzidas entre os anos 1950-1960, e quais seriam os seus alcances e limites. Uma vez identificados os limites, caberia à sociologia a elaboração de uma análise, a partir da própria periferia – América Latina – capaz de explicar/compreender as especificidades das condições concretas com que os países ditos subdesenvolvidos se encontravam e, quais as potencialidades de superação do subdesenvolvimento que estavam historicamente (politicamente) postas.

Em artigo publicado em 28 de maio de 1995 no “Caderno Mais!” da Folha de São Paulo, intitulado “Desenvolvimento: o mais político dos temas econômicos” Cardoso tece algumas ponderações e atualizações, ainda que em continuidade de pensamento sobre a importância que a política assume na análise sociológica sobre o desenvolvimento. Mais precisamente, sobre a relação entre o centro e a periferia a partir do conceito de desenvolvimento dependente associado. As opções políticas endógenas aos países, mesmo que pactuando interesses com classes exógenas, indicavam potencialidades de desenvolvimento económico e social, mesmo numa relação geral de dependência.

 

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA EM PERSPETIVA

 

Neste trabalho vamos centrar esforços na análise dos textos (artigos e livros) de Fernando Henrique Cardoso sobre a temática da dependência e do desenvolvimento. Mais precisamente, vamos refletir sobre a produção bibliográfica produzida maioritariamente entre as décadas de 1960 e 1970. Utilizaremos apenas como aporte analítico obras ou textos mais recentes do autor.

O autor assume textualmente a influência e a opção pelo método centrado na dialética marxista, por meio da abordagem histórico-estrutural baseada nas análises de situações concretas, em consonância com a chamada Escola de Sociologia Paulista, cujo grande mentor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas era Florestan Fernandes. A utilização deste método propiciava, justamente, a utilização de outras abordagens teóricas para a construção de um conhecimento sociológico.

Cardoso e Faletto (1970), no prefácio do livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaios de Interpretação Sociológica, definem assim o objetivo do mesmo:

 

[…] é esclarecer alguns pontos convertidos sobre as condições, possibilidades e formas do desenvolvimento econômico em países que mantêm relações de dependência com os polos hegemônicos do sistema capitalista, mas, ao mesmo tempo, constituíram-se como Nações e organizaram Estados Nacionais que, como todo Estado, aspiram soberania… falar da América Latina sem especificar dentro dela as diferenças de estrutura e de história constitui um equívoco teórico de consequências práticas perigosas [Cardoso e Faletto, 1970, p. 7].

 

Neste sentido, Cardoso e Faletto visam, nesta obra, elaborar uma interpretação sociológica centrada na abordagem histórico-estrutural. O conceito de processo histórico-estrutural parece-nos aqui particularmente interessante por permitir, no âmbito metodológico, a necessária fusão entre estrutura e história na análise social. Isto porque, sob tal perspetiva, as estruturas são concebidas como produto da luta social e como resultado da imposição social, sendo, deste modo, analisadas enquanto processos.

 

[…] a ideia de que existe uma explicação histórico-estrutural tem a ver com o processo de formação das estruturas e, simultaneamente, com a descoberta das leis de transformação dessas estruturas. Trata-se de conceber as estruturas como relações entre os homens que, se bem são determinadas, são também (…) passíveis de mudança, à medida que, na luta social (política, econômica cultural), novas alternativas vão se abrindo à prática histórica. Neste sentido, o objeto da análise não se reifica em atores, mas se dinamiza em conjuntos de relações sociais. [Cardoso,1995, p. 97].

 

Do ponto de vista dos princípios teórico-metodológicos, o autor declara textualmente a sua proximidade à dialética marxista. Cardoso faz referência a esta escolha de fonte metodológica não somente para tratar do fenómeno da dependência e do desenvolvimento, mas também para tratar dos estudos sobre o capitalismo e a escravidão no Brasil, na medida em que entende este procedimento metodológico como o mais adequado para uma análise sociológica a partir de situações concretas.

As análises concretas seriam então um produto simultaneamente da prática e da reflexão teórica. Por isto, quando Cardoso (1993) enfatiza que as análises sobre a dependência devem partir de “situações concretas” e ser referenciadas numa “análise concreta”, o procedimento inscrito nesta construção é o contido na Contribuição à Crítica da Economia Política de Karl Marx, cuja parte que melhor expressa este procedimento é: “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isto o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida…” (Marx, 1991, p. 16).

Para Cardoso (1993), esse esforço metodológico reflete a busca da elevação do particular para o geral, onde as relações parciais acabam por se determinar de modo a gerar sínteses que expressam o todo, a totalidade: “em síntese as análises concretas supõe a elaboração dos conceitos que permitem organizar a unidade do diverso… esta unidade não apaga as diferenças, não dissolve as particularidades na abstração representada por ideias gerais” (Cardoso, 1993, p. 92).

Percebe-se que na produção académica e bibliográfica do autor, a preocupação com os procedimentos metodológicos não é meramente formal. Cardoso encara o método como um garante de cientificidade para o conhecimento a ser produzido, sendo o método dialético (dialética marxista) aquele que melhor garante a inteligibilidade da realidade social, independentemente do tema ou foco da análise.

Citamos a famosa “Introdução” do livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul (1962), que resultou posteriormente na elaboração do “Prefácio” da 2.a edição (1977), 15 anos depois do lançamento do livro. Tanto na “Introdução” como no referido “Prefácio”, Cardoso acaba por “sustentar que o método dialético sustenta-se como alternativa de conhecimento” (Cardoso, 2003, p. 16).

No “Prefácio” da 2.a edição, ao debater sobre as reflexões realizadas no grupo de que fazia parte com Florestan Fernandes na USP, Cardoso (2003) afirma que havia uma constante necessidade de produzir uma sociologia que não fosse uma mera constatação positiva. A dialética, tal como o método funcionalista e o weberiano era encarada como um dos três métodos científicos fundamentais para o conhecimento sociológico.3 Sendo a aceitação do método dialético mais abrangente, subordinava a ele os outros métodos. Ciência, história, pesquisa e reflexão eram exercícios intelectuais complementares e simultâneos neste processo.

 

Na análise dialética, a explicação das relações estruturais e da dinâmica de sua transformação implica um esforço metodológico para estabelecer a hierarquia de vínculos entre cada situação particular e o conjunto do sistema social (a noção de totalidade) [Cardoso, 2003, p. 20].

 

O “olhar” sobre a totalidade dos fenómenos sociais, ou a totalidade vista a partir do fenómeno em particular, além de ser um dos aspetos centrais desenvolvidos na introdução do livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul também foi problematizado no artigo “O método dialético na análise sociológica”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. II (1) de março de 1962. Esta revista era uma publicação da Faculdade de Ciências Económicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Mais uma vez, o autor argumenta que a explicação sociológica necessita de duas condições, a saber, ser científica e, consequentemente, ter alcance interpretativo sobre situações concretas.

Em função disto, deve partir da dialética marxista como forma de garantia de alcance explicativo das situações concretas, e da forma como a totalidade se expressa no particular, se soma às análises dos movimentos estratégicos dos atores centrados num padrão de racionalidade por finalidade, nas práticas empresariais e no meio como articulam os seus interesses com os atores (empresários) estrangeiros. Ou seja, é através da junção entre a dialética marxista e a teoria da ação racional weberiana que Cardoso produz as suas interpretações sociológicas sobre a América Latina, e sobre o Brasil em particular.

É evidente nos textos do autor a constante afirmação de que o conhecimento produzido se faz a partir de uma interpretação sociológica legitimamente fundada como científica. A título ilustrativo, podemos citar entre outros exemplos, o título do primeiro capítulo do seu livro de 1969 Mudanças Sociais na América Latina: “Desenvolvimento e dependência: perspectivas teóricas na análise sociológica”.

A ideia de totalidade é um aspeto central que acompanha o autor ao definir sucintamente o objetivo do livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul, no qual escreve: “o livro visa analisar a totalidade social concreta que resultou da integração entre senhores e escravos na sociedade gaúcha” (Cardoso, 2003). Ainda a este respeito Cardoso escreveu:

 

O conceito de totalidade não se refere, ou pelo menos não se resume, na dialética, à reprodução de todas as condições, fatores, mecanismos e efeitos sociais que interferem na produção de um fenômeno, processo ou situação social. Na explicação dialética o conceito de totalidade é utilizado como um recurso interpretativo pelo qual se visa compreender, como explicitamente escreveu Marx, no post-fácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, não a identidade, o padrão de invariância, mas as diferenças em uma unidade, tal como são engendradas em uma totalidade determinada [Cardoso, 1962, p. 86].

 

Cardoso continua:

 

Na interpretação dialética as relações que se procura determinar nas totalidades também estão referidas de maneira imediata aos processos sociais reais, e também existe o escopo de reproduzir o real como concreto. Mas, neste caso, o concreto aparece como o resultado de um processo de conhecimento marcado por um movimento da razão que implica numa elaboração muito mais complexa do que a abstração dos padrões gerais, ainda que essenciais, que regulam a interação nas condições empíricas de sua manifestação [Cardoso,1962, p. 90].

 

Por fim, Cardoso (1962) reforça a necessidade da utilização do método dialético na sociologia a partir da problematização inserida por Sartre no livro Questão de Método: Crítica da Razão Dialética, no qual as totalidades sociais deveriam ser tratadas como totalidades singulares.4 Dá-se ao método dialético uma condição heurística, uma vez que “o real não é dado a priori, mas constitui esforço analítico de investigação” (Cardoso,1962, p.105). Neste aspeto, ­Cardoso aproxima Marx de Weber, ao considerar que em ambos o método não é empírico, e que a interpretação se vincula, ao invés, a um momento analítico que acaba por condicionar as possibilidades de generalização.

A explicação dos processos, das situações concretas não seria justificada pela história (ainda que esta componente seja necessária à análise), mas sim do ponto de vista da “história como realização da atividade humana coletiva” (Cardoso, 1962, p. 106).

No livro As Ideias e seu Lugar: Ensaios sobre as Teorias do Desenvolvimento, no capítulo “A dependência revisitada”, o autor também dedica esforços analíticos às questões teórico-metodológicas. Mais uma vez reforça a necessidade do empreendimento científico a partir de uma interpretação baseada na dialética marxista, em que a compreensão da totalidade e a necessidade de reflexões por meio de “análises concretas”, ou seja, a utilização da abordagem histórico-estrutural nesta perspetiva seria uma forma científica e relevante para tratar do fenómeno da dependência e do desenvolvimento.

 

[…] se especificam as formas históricas de dependência a partir do modo pelo qual classes, estados e produção se inserem na ordem internacional… mostrar como a “internacionalização do mercado” solidariza os interesses entre classes que no momento anterior apareciam como adversas (a burguesia nacional e a burguesia imperialista e mesmo setores das classes assalariadas e os monopólios internacionais, por exemplo). Neste movimento, a própria ideia de dependência, na medida em que é pensada e tem seu ponto de partida como “dependência nacional”, revela suas limitações [Cardoso, 1995, p. 94].

 

Ainda que do ponto de vista científico Cardoso valorize o procedimento teórico-metodológico centrado na dialética marxista, o mesmo admite a complementaridade, sem cair no ecletismo, com outras abordagens. Em vários momentos se pronuncia contra a essencialização de conceitos, ou a construção de conceitos imutáveis. Assim, afirma que os conceitos se vinculam ao próprio movimento da história, sendo a história e o alcance teórico-prático limitados. Os conceitos são analisados de forma similar ao alcance que o método dialético gera como fator interpretativo das “análises concretas” do real.

Em síntese, parte-se da dialética marxista para alcançar as situações concretas e respetivamente compreender as suas estruturas e dinâmicas nos casos particulares, em unidade dialética com a totalidade capitalista. Por outro, interrelacionam-se as classes, o Estado e os partidos, assim como também se evidenciam as condições e consequências dos processos de mobilização nacional, ambas levando em consideração as contradições e lutas travadas dentro e fora do Estado entre os interesses imperialistas e nacionais. Ao passo que na primeira parte o recorte metodológico é de grande influência marxista, na segunda o tratamento teórico centrado em estratégias racionais dos diferentes atores envolvidos é de grande influência weberiana.

 

DESENVOLVIMENTO E DEPENDÊNCIA COMO FATORES DE INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

 

Uma vez definidos os procedimentos teórico-metodológicos pelos quais ­Cardoso conduziu a análise sociológica, o autor contextualiza o tema do desenvolvimento, principalmente nas interpretações de influência Cepalina, funcional, teoria da modernização e marxista. Ao diferenciar-se destas perspetivas, propõe outro caminho interpretativo.

Neste sentido, pode-se afirmar que Cardoso percorre a respetiva trajetória argumentativa, a saber: crítica às teorias modernizadoras e de etapas do desenvolvimento; crítica à teoria da superexploração imperialista; assume a influência marxista, porém em diálogo com outras abordagens analíticas, e evidencia a problematização do nacional e do internacional na reprodução social, política e económica do Brasil.

Como principais aspetos dessa interpretação destaca-se que a dependência consiste em evidenciar os determinantes externos (imperialistas) relacionados com os determinantes internos (estrutura de classes); que há uma associação da burguesia local com as empresas multinacionais industriais e com a ­tecnoburocracia estatal (civil e militar) e, que o desenvolvimento dependente e associado se vincula às assimetrias de poder e de capital internacionalmente.

Como evidenciado, Cardoso ao vincular que os países da América Latina, e o Brasil em particular, apresentam uma situação concreta passível de ser intitulada a partir do desenvolvimento e dependência associada, em que a configuração do capitalismo em esfera global e a sua respetiva divisão internacional do trabalho seria um fenómeno propriamente político, em que a dimensão económica possui uma expressão relevante.

Ainda que o problema das relações entre Estados e entre nações continuasse relevante na divisão internacional do trabalho, seriam as relações de classes, no plano interno e na relação do endógeno com o exógeno, o aspeto fundamental para se pensar o desenvolvimento dos países. Daí a interpretação de que apesar de dependente, ou de assimetricamente com menos poder e com menos capacidade de se apropriar dos ganhos de produtividade, os países em situação de dependência (Brasil em particular), mediante pactos entre as elites políticas e económicas locais com as elites estrangeiras, apesar de não corrigir todas as assimetrias internas, poderiam provocar um tipo determinado de desenvolvimento associado.

Em termos gerais, Cardoso visava demonstrar que as relações entre o centro e a periferia haviam mudado (e encontravam-se em mudança), mesmo quando analisadas como movimento do capitalismo. Este tipo de análise criticava as teorias e abordagens marxistas centradas no imperialismo, que acabam por ver como impossível o desenvolvimento capitalista na periferia. Para Cardoso, as novas relações de dependência permitiriam a industrialização das economias subdesenvolvidas, em função dos pactos entre as classes e elites nacionais com as internacionais. Percebe-se que o principal aqui é a força da política e não meramente as estruturas económicas.

Ao preconizar que as relações económicas também são relações políticas, o autor, duplamente influenciado pela dialética marxista e pela racionalidade da ação – weberiana – (principalmente na orientação racional por finalidade) defende que a política estabelece a dinâmica necessária aos processos, ou seja, dependendo das opções e arranjos entre classes e/ou do surgimento de novas classes/atores, existiriam as oportunidades concretas de desenvolvimento económico, mesmo para os países subdesenvolvidos, num contexto geral de dependência.

O contexto mundial (dimensão histórica, económica, política e social) é fundamental para a reflexão de Cardoso, mas precisamente, é central para todas as discussões (teorias e abordagens) daquilo a que Sachs (2005) chama moderna teoria do desenvolvimento.5

É deste contexto que a Cepal faz parte, mais precisamente inserindo-se no debate acerca da necessidade da promoção da industrialização maciça da periferia do sistema mundial.

Para o debate cepalino as leis de livre comércio internacional centradas nas vantagens comparativas, na especialização da produção, beneficiavam os países industrializados em detrimento dos países primários exportadores (minerais ou alimentícios). A solução seria a industrialização da periferia.

 

[…] aquela altura (década de 1950) os textos cepalinos propunham, com variáveis graus de empenho, o apelo ao capital estrangeiro – de preferência sob a forma de empréstimos intergovernamentais – para promover a rápida industrialização; propunham uma política fiscal adequada, alterações substanciais no regime de propriedade da terra e, sobretudo, propugnavam pela ação coordenadora do Estado para conduzir o desenvolvimento nacional [Cardoso, 1995, p. 16].

 

Segundo Cardoso (1995), seria por meio da mudança da posição relativa das economias periféricas no comércio internacional, que a Cepal visava obter resultados similares aos dos países centrais. A urbanização, a industrialização da economia e a modernização/tecnificação da produção agrário-mineradora seriam os fatores necessários para romper os estrangulamentos presentes.

Neste sentido, não seria a inovação de teoria ou de abordagem a focalização das análises na dependência externa da economia, factos estes bem argumentados pela Cepal. Ainda que, ao centrar o debate na dualidade estrutural, estaria a vincular a dependência entre nações (Estado-Nação), deixando analiticamente pouco espaço para os problemas de classes/atores.

Cardoso (1995) evidencia que há relações estruturais e globais que unem as situações concretas do centro às da periferia:

 

Os estudos sobre a dependência mostravam que os interesses das economias centrais (e das classes que as sustentavam) se articulam no interior dos países subdesenvolvidos com os interesses das classes dominantes locais. Existe uma articulação estrutural entre centro e periferia e esta articulação é global: não se limita ao circuito do mercado internacional, mas penetra na sociedade, solidarizando interesses de grupos e classes externos e internos e gerando pactos políticos entre eles que desembocam no interior do Estado [Cardoso, 1995, p. 19].

 

Esta abordagem rompe com as análises centradas no reposicionamento entre os países no que concerne a divisão internacional do trabalho, sejam elas cepalinas ou dependentistas marxistas (imperialistas). O que ambas têm em comum é a forte ênfase na relação global entre o externo (o imperialismo) e o interno (a nação). Na análise de Cardoso há uma mediação entre o externo e o interno, caracterizada pelo processo de relação entre as classes6 (em ambos os níveis de forma antagónica e complementar). “O desenvolvimento deixa de ser uma questão económica e passa a ser uma questão política” (Cardoso, 1995, p. 19).

Tal análise era reforçada pelas situações concretas em que a relação do empresariado nacional e do Estado, principalmente a partir da década de 1950, vão estar em solidariedade com as empresas multinacionais, cuja expressão deste processo seria a presença no crescimento do mercado interno do dinamismo entre empresariado nacional, o setor estatal e as empresas multinacionais.

No artigo “Hegemonia burguesa e interdependência econômica: raízes estruturais da crise política brasileira”, publicado na revista Les Temps modernes, n.º 257, editada por Sartre, e posteriormente publicada como livro Brasil: Tempos Modernos, coordenado por Celso Furtado, Cardoso (1977), evidencia a importância do Estado e da burguesia industrial para o desenvolvimento brasileiro, ou seja, o desenvolvimentismo seria caracterizado pela possibilidade de uma política económica de desenvolvimento nacional centrada nos setores industriais mais dinâmicos da burguesia nacional.

Todavia, para Cardoso (1977) este modelo centrado no eixo estatismo, populismo e desenvolvimentismo, não conseguiria já manter a hegemonia, sendo necessário repensar novas reconstituições e novos sistemas de alianças, agora orientados de forma solidária entre o interno e o externo.

Cardoso e Faletto (1970) no livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica, reforçam a tese de que o problema do desenvolvimento económico deveria ser percorrido por uma interpretação que insistisse na natureza política dos processos económicos.

Por outro lado, as chamadas “situações históricas” que levam em consideração simultaneamente o momento histórico e as condições estruturais do desenvolvimento, quando aplicadas à interpretação dos países da América Latina, evidenciam que o “momento histórico é distinto, como também as condições estruturais do desenvolvimento e da sociedade tornaram-se historicamente diversas” (Cardoso e Faletto,1970, p.139).

A partir daí, Cardoso e Faletto afirmam serem insuficientes para a análise sociológica os conceitos de subdesenvolvimento e periferia económica. O conceito de dependência demonstra maior força e vitalidade como instrumento teórico, principalmente por conter na análise tanto os aspetos económicos do subdesenvolvimento, quanto os políticos, sejam eles de dominação de um país pelo outro ou de umas classes sobre outras, numa situação concreta de dependência nacional.

A produção capitalista assumiria nesses países os aspetos e as particularidades específicas das formações sociais cujo traço central é a dependência.

Porém, ao utilizarem o conceito de dependência, não o fazem em sintonia com o debate puramente marxista da época. Para os autores seria um erro pensar a relação de dependência como uma situação metafísica entre nações e/ou Estados. É fundamental compreender de que forma as relações entre esses polos estabelecem concretamente mediações, e quais os interesses e coerções que evidenciam os conflitos e os consensos entre os diversos grupos e classes sociais entre si.

A análise concreta de cada situação básica de dependência em que se relacionam o Estado, as classes e a produção é um fator fundamental para a interpretação sociológica de dependência.

Cardoso e Faletto (1970) mostram que na América Latina há duas situações básicas de relacionamento entre as classes e o Estado e com a produção. A primeira seria a especificidade das chamadas “economias de enclave”, e a segunda o controle nacional do sistema exportador.

No entanto, as transformações históricas concretas na América Latina também suscitam comentários sobre duas falácias da interpretação sociológica, a saber:

 

[…] a crença no condicionamento mecânico da situação político-social interna (ou nacional) pelo domínio externo, e a ideia oposta de que tudo é contingência histórica [­Cardoso e Faletto, 1970, p. 140].

 

Não existe puramente uma relação mecânica de determinismo imposto pela hegemonia externa, mas esta também não é irrelevante na análise. Existem vínculos estruturais limitadores das possibilidades de ação no plano interno, porém a intermediação da ação de classes, grupos, e mesmo movimentos sociais no plano interno (em diálogo) dos países dependentes são essenciais para a manutenção, rompimento ou transformação desses laços estruturais.

Pode-se dizer que há para os autores uma autonomia relativa, porém não sem contradições e possibilidades de convergências entre o sistema económico e o processo político. A novidade não estaria em evidenciar a dominação externa, mas na construção (conteúdo e forma) que ela assume e quais os efeitos produzidos nessa relação de dependência entre as classes e o Estado.

Os interesses externos passam cada vez mais a reproduzir-se no mercado interno, de forma a estabelecer alianças políticas com as classes e grupos endógenos.

O debate proposto por Cardoso sobre o desenvolvimento e a dependência, ou como muitas vezes se denomina de desenvolvimento dependente e associado, colocando a questão da política no centro da análise sociológica teve grande influência no Brasil e na América Latina, sendo bem recebida também na América do Norte e na Europa. Tal facto levou o autor a ser um dos autores brasileiros mais traduzidos e publicados no estrangeiro a propósito desta questão.

 

APONTAMENTOS E CRÍTICA

 

Porém, na época, não deixaram de existir controvérsias com marxistas, entre os quais Ruy Mauro Marini, por exemplo. Referimo-nos em concreto ao debate ocorrido na Revista Mexicana de Sociologia no ano de 1978.

Fernando Henrique Cardoso e José Serra escreveram nesse ano o artigo “Las desventuras de la dialectica de la dependência”, quando ambos eram professores visitantes no Institute for Advanced Study, Princeton, Estados Unidos. O artigo ainda contou com forte debate no CEBRAP, tendo sido paricularmente importantes para os autores os comentários críticos de Luiz Gonzaga Belluzzo e Vilmar Faria. O foco do texto foi a revisão crítica das análises feitas por Ruy Mauro Marini no seio da dialética da dependência.

Por sua vez, Ruy Mauro Marini no artigo “Las razones del neodesarrollismo (respuesta a F.H. Cardoso y J. Serra)”, publicado nessa mesma revista, rebate as críticas recebidas. Neste texto Marini responde às críticas de Cardoso e Serra evidenciando a partir da sua análise as insuficiências fundamentais contidas nas críticas de Cardoso e Serra.

Ao passo que Marini entende que não é possível separar a dialética marxista enquanto metodologia da teoria marxista de classes e da história como forma de explicação do capitalismo, e que ambas incidem sobre a inteligibilidade das condições de produção e reprodução do capitalismo na esfera mundial. Cardoso, não somente separa a metodologia da teoria, como justifica que a principal vantagem da metodologia a partir da dialética marxista justamente é a possibilidade de integrar na interpretação sociológica outras teorias, entre elas, a weberiana.

Por outro lado, Marini entende a dependência como condição estrutural do capitalismo, cuja expressão do imperialismo e as condições de superexploração colocariam os países dependentes em subordinação e subsunção formal e real ao capital. Já Cardoso, ao integrar na sua análise Marx e Weber, conforme já problematizado, interpreta que apesar do imperialismo e da lógica estrutural do capitalismo, o pacto entre as elites políticas e económicas nacionais com as elites internacionais geraria uma situação de desenvolvimento e dependência associada, ou seja, dependendo da capacidade estratégica dos atores nacionais nas resoluções de conflitos internos e pactuações com interesses externos, o país até poderia extrair benefícios, mesmo numa situação concreta de dependência.

João Quartim de Moraes também polemizou com Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort sobre a dependência. Moraes, para fins de participação no seminário sobre “Dépendance et structure de classes em Ámerique Latine”, em Genebra pelo centro suíço de estudos do Terceiro Mundo, escreveu o artigo “Le statut theorique de la notion de dépendance”, posteriormente traduzido pelo autor e publicado na Revista Crítica Marxista, n.º 31, de 2010.

Para Moraes (2010), não basta reconhecer o papel dos fatores internos e atribuir uma situação concreta de dependência para uma utilização correta e adequada da dialética materialista, é preciso buscar a génese da dependência enquanto formação histórica específica de dominação. A forma como Cardoso relaciona os fatores internos e externos nas situações concretas de dependência mascara e impede-o de demonstrar como na teoria e na prática, a dependência é uma forma específica de articulação de determinações internas e externas e, enquanto totalidade complexa, estruturalmente reproduz os interesses dominantes. Ou seja, reproduzem-se no plano interno as contradições na dependência, mas sem resolvê-las e superá-las, mantendo-se como país estruturalmente dependente.

Outras controvérsias também ocorreram nos debates promovidos pelo CEBRAP durante a década de 1970, entre elas com o sociólogo Francisco de Oliveira. Oliveira (1998) aceita a tese central de Cardoso de que a dimensão do político é central para as reflexões sobre o desenvolvimento e a dependência, todavia, refuta a ideia de que a reprodução do capitalismo brasileiro (expresso num padrão particular de desenvolvimento e em condições de dependência) se daria somente e em função da articulação entre interesses e pactos entre atores nacionais e internacionais. Para Oliveira, os interesses de classes e conflitos no âmbito interno também produziam efeitos no momentos de não sintonia e pactos entre atores internos e externos, dando assim mais dinâmica ao nacional nas análises de classes.

Por último, porém não esgotando as críticas, é preciso recuperar e contextualizar a abordagem do Cardoso à luz de novos estudos e experiências históricas relevantes que separam as discussões da década de 1960 e 1970, das realizadas no final do século XX e início do século XXI.

Ainda que de modo breve, vamos apresentar tal problemática em dois aspetos, a saber: as discussões acerca do método dialético na análise dos diferentes ciclos de crise que têm ocorrido no chamado capitalismo global. Em segundo, colocar o problema do desenvolvimento/dependência acerca das análises do “sistema- mundo” e das relações Norte-Sul e de pós-colonialismo.

No primeiro aspetos, Meszaros (2002) evidencia que na crítica produzida a partir dos escritos de Marx e de diferentes outros autores marxistas, como Lukács e Rosa Luxemburgo, haveria uma profunda reflexão sobre a sociabilidade e os conflitos contemporâneos. Por outro lado, a lógica do sistema do capital (a sua forma de produção e reprodução no tempo e no espaço) continuaria destrutiva, isto porque a expressão social do sistema do capital envolveria (ainda que com contradições) uma tríade formada pelo capital, pelo trabalho e pelo Estado. O resultado deste processo marca a dinâmica de um metabolismo social do capital incontrolável, mas, ao mesmo tempo, expansionista e destrutível.

Meszaros (2009) afirma que as crises e o colapso do sistema financeiro não seriam novas crises, mas historicamente evidenciariam o quanto a dinâmica do capital é perversa, cumulativa e endémica, ou seja, as crises seriam estruturais. Por isto, o papel do Estado, seja na sua forma socialdemocrata, com práticas de política-económica keynesianas, ou mesmo desenvolvimentistas, estaria destinado ao fracasso, retornando a partir daí a crítica marxista de necessidade de produção coletiva de novas formas de organização social, cultural e económica.

Antunes (2002) compartilha esta perspetiva de crise sistémica e estrutural, em que uma das suas principais manifestações ocorre na destruição da força de trabalho em quantidade e qualidade inimagináveis.

Harvey (1996), partindo do debate acerca do termo pós-moderno, vincula-o ao conjunto de transformações culturais e tecnológicas ocorridas no final do século XX, a partir da explicação iniciada por Marx que consistia em compreender que os processos sociais produzidos e conduzidos no sistema capitalista seriam marcados por fragmentações, individualismo, alienação, contradição, inovação e destruição criadora, entre outros fatores e processos. Neste sentido, a modernização capitalista teria criado um novo internacionalismo que envolveria as relações sociais num processo histórico-geográfico em que o capital continuaria como dominador do espaço-tempo, ainda que sob uma nova articulação.

No segundo aspeto, autores como Wallerstein (1974, 2004), Arrighi (1998) e Theotônio dos Santos (2002, 2010, 2012) ao analisarem as transformações capitalistas no final do século XX, evidenciam um movimento de produção e reprodução do capital num sistema mundial de relações económicas, sociais, políticas e culturais, porém extremamente hierarquizado, em que o Estado-nação, ainda que importante, não é já a única unidade de análise, centrando esforços na dinâmica contida no sistema-mundo como um todo. Esses autores acabam por revisitar a teoria da dependência na sua característica marxista e evidenciam as novas transformações, formas de organização e de reprodução do capital na esfera mundial. A existência de países centrais, semiperiféricos e periféricos articulam-se simultaneamente com uma economia hegemónica no sistema-mundo.

Boaventura Sousa Santos (2003, 2010), em consonância com as abordagens pós-coloniais, salienta que as relações assimétricas entre o Norte e o Sul devem ser compreendidas a partir de uma nova epistemologia. A análise contemplaria os principais processos de estruturação, de prática social e dos conjuntos de transformações a partir de quatro constelações de relações sociais, ou seja, de espaço-tempo estruturais, a saber: espaço-tempo doméstico; espaço-tempo da produção; espaço-tempo da cidadania e espaço-tempo mundial.

O fim da colonização na esfera política não significou o fim do colonialismo na esfera social, seja permanecendo como mentalidade autoritária, ou mesmo de reprodução económica desigual. A relação Norte-Sul expressaria simultaneamente uma forma de dominação social, cultural e económica na esfera global, reafirmando velhas desigualdades e gerando novas assimetrias.

Os dois aspetos expostos reforçam a ideia de que problematizar o desenvolvimento e a dependência de um país ou uma região requer considerar a lógica de produção e reprodução do capitalismo, em que as metamorfoses, contradições e assimetrias são mantidas de forma desigual. Ou seja, ainda que se considere a centralidade do político para se pensar a relação entre os países, e que a dominação seria uma construção em que as elites políticas e económicas nacionais e regionais pactuam com as elites externa, é preciso levar em consideração a forma e o conteúdo (lógica) da reprodução do capital sob as dinâmicas do sistema-mundo e/ou pós-colonial e a produção desigual e ­hierarquizada geradas pelas mesmas.

Neste sentido, o pacto político entre elites (internas e externas) não seria síntese de superação ou reposicionamento dos países no sistema capitalista, mas sim reafirmação e reprodução desigual, fragmentada e hierarquizada das relações económicas, mas também, sociais e culturais de um sistema de capital.

As controvérsias sobre a temática do desenvolvimento a partir do debate e diálogo crítico com o proposto por Cardoso, por si só, representam a relevância das análises geradas. Elas inserem-se neste texto muito mais como um apêndice do que propriamente como argumentos, até porque não foram desenvolvidas com a propriedade que deveriam ser tratas.

Por outro lado, servem para nos indicar que revisitar Cardoso a partir do tipo de investigação que propomos merece desdobramentos que, quando articulados em conjunto nos dão melhores condições para compreender as possibilidades e os limites da interpretação contida na análise sociológica do autor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Procurámos neste texto revisitar a obra do sociólogo Fernando Henrique ­Cardoso, mais precisamente os aspetos relacionados com a análise e interpretação sociológica sobre o desenvolvimento e a dependência.

Por meio da análise bibliográfica e de acervos documentais (Instituto ­Fernando Henrique Cardoso) visámos analisar os fundamentos pelos quais Cardoso expõe como condições do seu fazer sociológico sobre a interpretação do desenvolvimento e a dependência no Brasil (e na América Latina).

Fica evidente que a trajetória, o local, enfim, as relações e pertença institucional do autor são aspetos relevantes para as suas análises. Basta ilustrarmos que o fazer sociologia como sinónimo e rigor de se produzir um conhecimento científico, relativamente imune às ideologias, sem ser metafísico, mas sem cair numa produção positivista, não era apenas um propósito de Cardoso, mas sim, de toda a chamada escola de sociologia da USP, principalmente a partir do grupo do sociólogo Florestan Fernandes.

Daí a importância de se construir e problematizar a abordagem histórico-estrutural na perspetiva que Cardoso estabeleceu. Neste processo, dois mecanismos são fundamentais, o primeiro é a incorporação da dialética marxista como arcabouço teórico-metodológico, ainda que em complementariedade com outros procedimentos metodológicos, sem cair no ecletismo, conforme fundamento do autor. Cabe ressaltar que quando Cardoso foi ler O Capital no grupo de estudos na USP, já era leitor e conhecedor dos principais teóricos e abordagens sociológicas com influência no Brasil (e na América Latina) fora do campo marxista, conforme exposto neste artigo.

Em segundo lugar, por estabelecer que a análise sociológica sobre a problemática do desenvolvimento e da dependência centralmente estaria voltada para a política, mesmo quando se tratava aparentemente de fenómenos económicos. A dinâmica de classes no plano endógeno e exógeno, o tipo de relação concreta em situação de dependência estabelecida neste processo, assim como elas (relações de classes) vinculavam-se ao Estado e à forma de produção do capitalismo fora dos países centrais (desenvolvidos) ganha força analítica e, consequentemente, interpretação sociológica.

É possível ver uma estreita conexão entre o rigor de se produzir um conhecimento sociológico a partir dos países em situação de dependência (subdesenvolvidos – periféricos) com uma análise propriamente dita em que as situações concretas desses países – centrados na política – levou Cardoso a uma dupla consequência; se diferenciou das diversas abordagens presentes entre os anos de 1950 e 1970 (económicas, sociológicas, históricas ou da ciência política), com isto afirmou-se como uma possibilidade de interpretação sociológica (científica), por assim dizer, produzida a partir do nativo.

Em segundo lugar, ao trazer elementos novos para o debate, também trouxe as controvérsias quanto ao alcance das suas análises, principalmente na sua relação com as produções centradas no marxismo de forma mais ortodoxa. Isto porque, as interpretações, explicações, compreensões, ou seja, as análises produzidas se referiam a um país ou macro região (América Latina) requerente de desenvolvimento económico e social, mas também de democracia, sem perder de vista, que para muitos autores da época, este debate estaria contido na solução socialista aos problemas da América Latina. Quanto a esta última questão, parece-nos que Cardoso mais uma vez se apoia na construção de um conhecimento científico e não ideológico, ou seja, as suas ações no campo da sociologia seriam muito mais um tipo de ação racional por valor, do que por finalidade. O socialismo não seria a finalidade das suas análises, ainda que não descartado como possibilidade histórica de realização.

Por fim, repensar o desenvolvimento e a dependência a partir de novas epistemologias e de novos constructos intelectuais, levando em consideração o conjunto de transformações ocorridas nos últimos 40 anos é necessário, menos no intuito de validar ou não a interpretação de Cardoso, mas sim de problematizar e aprofundar a questão do desenvolvimento e da dependência como formas históricas, económicas, políticas e territoriais de organização capitalista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Recebido a 10-02-2014. Aceite para publicação a 17-10-2014.

 

NOTAS

1 Esta pesquisa contou com apoio Financeiro do CNPq e da FAPERJ.

2 As condições políticas desfavoráveis durante o regime militar no Brasil reforçam a importância da empreitada intelectual como luta política e simbólica. Neste sentido, a chamada Escola de Sociologia da USP com Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, entre outros. A Criação do CEBRAP por Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti, entre outros. Em ambos os momentos com participação ativa de Fernando Henrique Cardoso, cujo propósito engajado, de forte formação acadêmica, porém distanciados da militância política, visavam criar alternativas interpretativas e crítica sobre o Brasil. A este respeito ver “Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo e política no Brasil” de Milton Lahuerta (2001).

3 Cardoso (2003 e 2012) faz questão de afirmar que quando leu Marx e, por consequência, o debate marxista que ocorria entre os anos 1950 e 1960 no Brasil, já era leitor (rigoroso do ponto de vista do entendimento) de muitas outras abordagens sociológicas e filosóficas, a saber: Talcott Parsons, Robert Merton, Max Weber, Bergson, Mannheim, Descartes, Kant, bem como de parte expressiva do ensaísmo brasileiro.

4É importante ressaltar que Cardoso num primeiro momento tem na leitura de “História e Consciência de Classe: estudos de dialética marxista”, de Georg Lukács, a principal influência para se ler o marxismo ( em grande medida derivada dos seminários e estudos sobre Marx iniciado por José Artur Giannotti e, tendo a participação, além de Cardoso, de Octavio Ianni, Paul Singer e Fernando Novaes, para citar alguns), posteriormente, a partir da leitura que Sartre faz da dialética marxista há ajustes e refinamento na utilização da dialética marxista nos trabalhos de Cardoso.

5 Sachs considera que o artigo “Problems of industrialization of Eastern and South-Eastern Europe”, publicado em 1943 por Paul Rosenstein-Rodan sobre a industrialização da Europa oriental e meridional seria uma espécie de marco fundador da moderna teoria do desenvolvimento (Sachs, 2005).

6 Francisco de Oliveira, no livro A Economia Brasileira: Crítica da Razão Dualista, faz uma dupla crítica, primeiro a Cepal, por dar pouco ênfase à análise das classes e, em segundo, à abordagem da dependência de Cardoso, não no seu fundamento central, mas na sua dinâmica, ou seja, ao passo que em Cardoso os pactos entre classes marcariam uma mediação em sincronia de interesses, Oliveira evidencia que as relações entre classes como fatores mediadores se dão tanto nos momentos de pactos entre o externo e o interno, como também nos momentos em que o interno se dissocia, ainda que conjunturalmente, do externo (Oliveira, 1988).

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