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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.216 Lisboa Sept. 2015

 

RECENSÃO

MACAGNO, Lorenzo

O Dilema Multicultural,

Curitiba, Editora UFPR, 2014, 303 pp.

ISBN 9788565888868

 

Patrícia Jerónimo*

*Universidade do Minho, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar, Campus de Gualtar — 4710-057 Braga, Portugal. E-mail: ppmj@direito.uminho.pt

 

Este livro reúne um conjunto de ensaios publicados por Lorenzo Macagno entre 2001 e 2009 e agora traduzidos e revistos de modo a assegurar a coerência interna da obra, ou melhor, nas palavras de Macagno, com o objetivo de “recuperar um sentido e, quem sabe, uma loquacidade que isolados não possuíam” (p. 43). O cuidado em articular os textos e em justificar a sua pertinência para o grande tema que os agrega – a reflexão crítica sobre o multiculturalismo – é evidente ao longo de todo o livro e é, de um modo geral, bem sucedido, mas não obsta a que o leitor se ressinta dos frequentes excursos e da demora no tratamento do “grande tema”, que só começa verdadeiramente a ser aflorado no fim do terceiro capítulo (p. 133), depois de digressões pela “genealogia do racismo” (capítulo 1), pelas “ilusões da nação” (capítulo 2) e pela discussão do nexo modernidade/pós-modernidade (capítulo 3). Os excursos são frequentes também no interior de cada capítulo, o que permite supor que resultem mais do estilo pessoal do autor do que da circunstância de o livro reunir textos originariamente concebidos de forma independente. O efeito impressionista não é desagradável e alguns episódios, como o relativo ao documentário sobre Pierre Bourdieu, são interessantes, mas os circunlóquios podem exasperar o leitor que tenha pressa em saber o que Macagno pensa afinal sobre o tema que o ocupa.

A resposta a esta interrogação é razoavelmente simples, ainda que o uso abundante de ironia e do condicional possam, por vezes, suscitar dúvidas sobre o exato sentido pretendido pelo autor. O multiculturalismo merece a Macagno as maiores reservas, não apenas por assentar numa visão redutora (essencialista) da cultura, e por induzir os indivíduos em autorrepresentações caricatas e/ou oportunistas, mas também por se prestar a aproveitamentos políticos e por não ser capaz de pôr fim às desigualdades económicas e sociais que continuam a corroer as nossas sociedades. No plano académico, o multiculturalismo – e o seu duplo, os estudos culturais – tem também efeitos deletérios, ao contribuir para a popularidade dos argumentos culturalistas que a antropologia tanto se esforçou por denunciar, e ao constranger muitos antropólogos – não Macagno, seguramente – a “vender a alma” e a pactuar com os usos políticos e académicos de tais argumentos, muito próximos, afinal, das ideologias racistas e demais exclusivismos (patriotismo, islamofobia, etc.) que o multiculturalismo pretende combater. Estes problemas perenes do multiculturalismo – que justificam o título dilema multicultural (p. 37) – não têm solução à vista, e Macagno não se propõe fazer mais do que identificá-los e lançar pistas para reflexão, assumindo como assume que o “dilema”, pela sua dimensão eminentemente política, nunca poderá ser resolvido num livro, num artigo científico ou numa reunião académica (pp. 270-271). Seja como for, diz-nos Macagno, o diagnóstico é útil, na medida em que o multiculturalismo – ou os seus “fantasmas”, se formos a acreditar nos recentes “atestados de óbito” (p. 278) – continua a propiciar “embates e controvérsias” e a interpelar-nos sobre a viabilidade da nossa vida em comum.

Não temos dúvidas de que a reflexão empreendida por Macagno mantém inteira atualidade, mesmo num tempo como o nosso em que, para invertermos o lamento de Nathan Glazer (1997), já ninguém é multiculturalista. Os atentados de 11 de setembro de 2001 – e os subsequentes, em solo europeu – desferiram, por certo, um duro golpe às “ilusões multiculturais” (p. 201), mas não conduziram ao abandono dos argumentos culturalistas que preocupam Macagno e outros antropólogos como ele. Basta lembrar que a resposta da comunidade internacional aos atentados de setembro de 2001 foi a de celebrar a diversidade cultural e de promover o diálogo intercivilizacional, intercultural e interconfessional, através de iniciativas como a adoção da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, pela Conferência Geral da UNESCO, em novembro de 2001, e o lançamento, pelo secretário-geral das Nações Unidas, da Aliança das Civilizações, em 2005. O diálogo intercultural é também o mantra dos discursos oficiais no plano interno dos Estados, sobretudo em matéria de imigração, e a relutância de muitos líderes políticos ocidentais em usar o rótulo “multicultural” não obsta a que, na prática, continuem a ser adotadas políticas subsumíveis ao ideário multiculturalista (Kymlicka, 2012, p. 14), como a revisão dos programas escolares para incluir o ensino da história e da língua de grupos minoritários, a dispensa do cumprimento de regras de vestuário por membros de minorias religiosas, o apoio à realização de festivais “étnicos”, etc. Ainda que o interculturalismo possa ser apresentado como uma forma de superar o potencial desagregador do multiculturalismo – ao sublinhar o diálogo em detrimento da diferença –, não nos parece que traga nada de verdadeiramente novo e certamente não resolve os problemas diagnosticados por Macagno.

Claro que o facto de a discussão sobre o multiculturalismo se manter atual não significa que os termos em que esta é levada a cabo por Macagno sejam inovadores ou persuasivos. Na verdade, as principais objeções que o autor apresenta contra o multiculturalismo correspondem ao essencial da crítica antimulticulturalista, hoje “doutrina dominante”, pelo que os alertas lançados ao longo do texto acabam por perder muita da sua premência, mesmo para quem concorde com aquela crítica, o que, como iremos ver, não é o nosso caso.

Não é difícil concordar com Macagno quando este sublinha o caráter construído da nação e a irracionalidade dos nacionalismos, quando nota que uma versão reificada da cultura veio substituir a raça como fator de discriminação, quando chama a atenção para o caráter crescentemente híbrido das identidades individuais (tornado evidente pelas migrações transnacionais contemporâneas), quando alerta para a persistência do patriotismo e para os recentes “regressos à nação” motivados pelo espectro do terrorismo islâmico, quando relaciona o legado colonial com o modo como os Estados europeus lidam com a diferença, quando desconstrói o mito da democracia racial no Brasil e quando denuncia o cinismo e as incongruências de algumas políticas multiculturalistas. Parece-nos, no entanto, que o retrato que Macagno nos apresenta do multiculturalismo – associado, sem surpresa, à “febre do politicamente correto” (p. 125) – tem muito de caricatura.

Apesar de reconhecer que existem muitos multiculturalismos – algo que trata simultaneamente como motivo de ceticismo (p. 147) e como correlato necessário da adequação das políticas aos contextos nacionais (pp. 41, 135, 138) –, Macagno imputa a todos os multiculturalistas sem exceção a culpa pela essencialização da cultura, partindo do pressuposto de que o multiculturalismo necessita sempre de “traçar fronteiras identitárias claras e definidas” para localizar os seus grupos-alvo e os respetivos atributos socioculturais, neutralizando desse modo “a lógica das invenções e reinvenções culturais” (pp. 146-147). Ora, o caráter dinâmico e fluído da cultura e a hibridez das identidades individuais e coletivas não são ignorados no campo multiculturalista e têm tradução política e jurídica em vários instrumentos de Direito interno e internacional, como a Convenção Quadro do Conselho da Europa para a Proteção das Minorias Nacionais, de 1995, que deixa aos indivíduos a decisão sobre se querem ou não ser tratados enquanto membros de uma minoria. Ainda que possa abrir espaço a abusos – um aspeto que, com razão, preocupa Macagno (p. 200) –, a confiança na autoidentificação individual permite obviar à violência que reconhecidamente sempre vai implicada na imposição aos indivíduos de rótulos identitários em que estes não se revejam, mesmo que a pretexto de os beneficiar ou proteger. Os eventuais equívocos e imprecisões envolvidos nos processos de auto e hetero-classificação não devem fazer-nos perder de vista que a cultura tem importância, seja como referente de sentido para indivíduos e grupos, seja como mecanismo de perpetuação das hierarquias sociais. Como nota Phillips (2007, pp. 15-16), para combater estas hierarquias e a discriminação que lhes anda associada, não basta negar validade conceptual às categorias cultura e raça e bani-las do vocabulário. Pode, pelo contrário, ser útil continuar a fazer uso destas categorias para evitar que os problemas do racismo/culturalismo se tornem invisíveis – um risco a que Macagno parece ser sensível (p. 271) – e para ajudar a ­combater o “monoculturalismo hegemónico” (Phillips, 2007, p. 14) das democracias ocidentais, contribuindo para uma cidadania verdadeiramente inclusiva.

Vale a pena lembrar que o multiculturalismo começou por ser – e ainda é, acima de tudo – uma reivindicação de inclusão, contra as velhas hierarquias raciais e a pretensa neutralidade cultural do Estado, pelo que o espectro do apartheid que Macagno convoca em vários pontos da sua análise (pp. 61, 160-161, 167-168) se afigura especialmente insidioso. Também não se compreende que o autor trate o multiculturalismo como estando numa tensão irredutível com o Estado-nação – de que quereria “emancipar-se” (p. 135) –, quando é bem sabido que as reivindicações multiculturalistas nunca foram dirigidas à implosão do Estado, mas sim ao reconhecimento pelo Estado do direito das pessoas pertencentes a minorias (étnicas, religiosas ou linguísticas) a participar na comunidade estadual mais ampla sem para isso terem de abandonar os valores e as práticas próprios do seu grupo. Assim sendo, e contra o que nos diz Macagno, não há nada de paradoxal no facto de “o multiculturalismo enquanto política de reconhecimento necessita[r] desse quadro nacional-estatal” (p. 168).

Em idêntico sentido, cumpre notar, para concluir, que a presunção de Macagno de que as “reivindicações particularistas que o multiculturalismo estimula” (p. 171) são incompatíveis com o princípio da igualdade requer que ignoremos que o multiculturalismo surgiu como um alerta para o desequilíbrio nas relações de poder entre maioria e minorias – resultante, desde logo, do facto de a ordem jurídica refletir apenas os valores caros à maioria – e como reivindicação de iguais oportunidades para os membros das minorias. Os “direitos de diferença” vieram somar-se aos “direitos de igualdade” do constitucionalismo liberal, sem pretender substituí-los. Concordamos com Macagno quando este observa que a atenção à diversidade cultural não pode distrair-nos do objetivo de promover a igualdade social e económica (pp. 204-205), mas não nos parece que o multiculturalismo possa ser responsabilizado pela persistência de desigualdades (que tendem a agravar-se em tempos de crise). O multiculturalismo não é, nem nunca foi, uma agenda global apta a resolver todos os problemas de exclusão social, mas apenas um contributo para uma agenda política mais ampla, integrada por instrumentos políticos e jurídicos de outra natureza (subsídios para indivíduos carenciados, habitação social, saúde pública gratuita, etc.). De qualquer modo, sempre poderá dizer-se, com Kymlicka (2012, p. 8), que várias políticas multiculturalistas (como as quotas para o acesso ao ensino superior ou à função pública) podem ter efeitos redistributivos e contribuir para a melhoria das condições de vida dos membros de grupos minoritários.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GLAZER, N. (1997), We Are All Multiculturalists Now, Cambridge, Harvard University Press.         [ Links ]

KYMLICKA, W. (2012), Multiculturalism: Success, Failure and the Future, ­Washington DC, Migration Policy Institute.         [ Links ]

PHILLIPS, A. (2007), Multiculturalism without Culture, Princeton e Oxford, Princeton University Press.         [ Links ]

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