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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

DOSSIÊ - OBJETIVAÇÃO PARTICIPANTE E ESCOLHA DO TERRENO

Objetivação participante e escolha do terreno

 

(Organizadores Paulo Mendes* e Humberto Martins**)

*Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, CRIA, Edifício Polo II da SCHS, Quinta de Prados — 5000-801 Vila Real, Portugal. E-mail: wellenkraft@gmail.com

**Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, CETRAD, Departamento de Economia, Sociologia e Gestão (DESG), Edifício Polo II da SCHS, Quinta de Prados, 5000-801 Vila Real, Portugal. E-mail: humbmsm@yahoo.com

 

Em 2013, aquando do V congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), em Vila Real, passavam exatamente 10 anos desde a publicação do controverso artigo de P. Bourdieu, “L’objectivation participante” (primeiramente apresentado em 2000, na Huxley Memorial Medal and Lecture). Nesse artigo, Bourdieu, critica uma das facetas do “reflexive turn”, a “diary disease”1 e, concomitantemente, sugere uma outra aproximação às virtualidades da (auto)reflexividade para a investigação em ciências sociais:

L’objectivation participante se donne pour objet explorer (…) les conditions sociales de possibilité (donc les effets et les limites) de cette expérience et, plus précisément, de l’acte d’objectivation. (…) Ce qu’ il s’agit d’objectiver, en effect, ce n’est pas l’anthropologue faisant l’analyse anthropologique d’un monde étranger, mais le monde social qui a fait l’anthropologue et anthropologie consciente ou inconsciente qu’il engage dans sa pratique anthropologique; pas seulement son milieu d’origine, sa position et sa trajectoire dans l’espace social, son appartenance et ses adhésions sociales et religieuses, son âge, son sexe, sa nationalité, etc., mais aussi et surtout sa position particulière dans le microcosme des anthropologues [Bourdieu, 2003, pp. 44-45].

 

Foi partindo desta proposta de Bourdieu que organizámos um painel a que seis investigadores responderam com base em trabalhos que têm vindo a desenvolver, e do qual foram selecionadas quatro contribuições para este dossiê. À vigilância epistémica de “largo espectro” de Bourdieu contrapropusemos aos investigadores reduzir o questionamento às condições de possibilidade, aos limites que determinam ou influenciam os processos de escolha dos seus objetos de estudo: porque escolhemos um objeto, um terreno e não outro? O que condiciona essa escolha? Motivações e interesses pessoais? Contextos académicos? Problemáticas sociais? Urgência? Financiamentos? Na génese deste nosso desafio esteve uma preocupação com os modos de produção do conhecimento sobre o social. E, neste sentido, importava indagar sobre as condições em que a pesquisa sobre o social é feita – em particular, a antropológica, na qual a escolha do terreno e observação participante se afiguram como momentos críticos.

Fazer observação participante implica, quase sempre, o confronto do investigador consigo mesmo, o que necessariamente se enreda e influencia os resultados da investigação. Contudo, se a observação participante configura modos de produzir conhecimento que também são projetos teórico-filosóficos que estimulam achamentos de perpétuas e inesgotáveis alteridades individuais e coletivas, dir-se-ia ontologias, para lembrar um outro “turn”, o momento que a antecede, o da escolha de para onde ir, do que investigar e porquê, não pode ser esquecido na justa medida em que pode explicar condições de possibilidade que afetam (para não esquecer um outro “turn” ainda) a produção de conhecimento. Esse momento, o da escolha do terreno/objeto, remete-nos também para a validação do objeto pela comunidade científica, na medida em que a unidade de análise os objetos e os sujeitos podem (não) ser considerado relevantes por entendimentos e constrangimentos vários. Entre eles, o repúdio pela proverbial autonomia do investigador antropólogo na escolha do seu objeto de estudo. Contudo, como vemos nos artigos que se seguem, a aparência de liberdade de escolha permanece entre os antropólogos, o que se, por um lado, facilita a “inovação”, por outro, é uma característica que tem, por vezes, como que hipotecado a validade do próprio conhecimento antropológico, seja porque parece procurar o exótico ou responder a curiosidades individuais, seja porque à partida parece privilegiar a (inter)subjetividade, a troca e a equiparação de saberes como forma de produção de conhecimento em detrimento da delimitação sociológica do que deve ser um objeto, e/ou de enquadramentos teóricos e/ou metodológicos mais fechados, entendidos como “mais científicos”.

Os autores deste dossiê optaram por refletir sobre a diversidade dos seus percursos, mas que em comum têm a tentativa e a virtude de contextualizarem as escolhas dos seus objetos de pesquisa noutras “contribuições” que não as da sua própria vontade.

Luiz Rojo faz (auto)vigilância epistémica do seu objeto de estudo e dos modos como se posiciona face a eles na justa medida em que considera que “nunca, ou praticamente nunca, tinham sido abordados pela antropologia brasileira”. Este facto obrigou-o a “reafirmar, permanentemente, a ‘relevância’ [do seu] trabalho – o que não ocorre quando se estuda os objetos ‘canônicos’ da disciplina – [e] implicou uma permanente atenção sobre (...) as interações entre o ‘racional’ e o ‘emocional’ na definição (...) [e a criticar] a preocupação com os efeitos sobre a própria perspetiva antropológica quando a alteridade é secundarizada face ao crescimento da realização de auto-etnografias”. Os seus objetos de estudo, (in)suspeitos na sua invulgaridade, as relações de género no hipismo e as relações de amizade entre naturistas, implicaram relacionamentos de grande proximidade, física e afetiva. Por isso, colocaram o autor numa posição privilegiada para refletir sobre como o objeto e os resultados da pesquisa estão intimamente intrincados, e até dependentes, do envolvimento emocional e afetivo do investigador no terreno.

Carmo Lorena introduz uma reflexão de cariz mais autobiográfico, no entanto o que procura é o “enquadramento sociocultural d[a] [sua] biografia” na sua relação/construção do terreno e objeto. Ao longo do texto, a autora vai desdobrando camadas sucessivas de análise que simultaneamente remetem para a sua própria história de vida e família, para a sua primeira visita ao terreno, para questões de género e assédio no terreno, genealogia e identidade e, afinal, identidade cabo-verdiana, o seu objeto de pesquisa, e Mindelo, a cidade onde fez trabalho de campo.

Fátima Amante, não deixando de fazer uma reflexão crítica das propostas de Bourdieu, que inspiraram o nosso painel no congresso da APA, como que lhe responde em discurso direto. Relaciona a escolha do seu objeto, “processos de construção identitária” e fronteiras, com “uma tendência de investigação [então] com alguma consistência no grupo de antropologia do qual fazia parte”, e a escolha do “terreno-lugar” com a sua formação académica e circunstâncias pessoais e familiares que configuraram, simultaneamente, impedimentos e possibilidade de outras linhas de análise.

Por fim, Sofia Sampaio remete-nos para um universo em que o objeto é um passado gravado em imagens, e o terreno é o espaço fechado pelas paredes que guardam o arquivo dessas mesmas imagens. Não se trata agora tanto de entender constrangimentos sociais na construção/delimitação do objeto e terreno; a autora quer antes refletir sobre “a noção de arquivo como um terreno antropológico”. Como escreve, “o artigo dá conta do processo de “methodical confrontation with the gritty realities of the field” (Bourdieu, 2003, p. 282), durante o qual a investigadora se viu perante modos alternativos de compreender (no sentido racional e espacial do termo) o arquivo, aos quais teve de reajustar o objeto da pesquisa, bem como as teorias que tinham estado na base da sua investigação”. À aparente natureza etérea das imagens que estuda, a investigadora contrapõe noções e confrontos pessoais que implicam corporalidades quase inesperadas, mas indelevelmente manifestas no “regresso [a casa que] tornava mais do que evidentes os elementos de fisicalidade envolvidos, conduzindo a processos de ‘re-corporização’ e ‘re-ancoragem’.”

Este dossiê pretende, assim, apresentar uma antropologia dos antropólogos agentes da antropologia que eles próprios desenvolveram. Na esteira de Bourdieu, consideramos que nada é inócuo e que se todas as relações sociais são relações simbólicas e de poder, então qualquer ato de conhecimento também o é e deve ser analisado como tal; isto é, a produção de conhecimento e a sua divulgação tem consequências sobre quem se conhece, mas também sobre quem conhece e o que se conhece. A (auto)vigilância, configure ela uma reflexividade epistémica ou não, não é só devida apenas porque algures alguém privilegiou exercícios de autoscopia em prejuízo de estudo de alteridades e do empreendimento “tradicional” da antropologia, conhecer o “outro” (para nos conhecermos enquanto espécie social), mesmo quando em geografias próximas. Revelam-nos os autores deste dossiê que há algo mais importante e que se relaciona com um dilema próprio à especificidade metodológica (que é também ética e política) da disciplina – o de um trabalho de campo fundado num envolvimento pessoal, íntimo até, intransmissível e baseado em interações e diálogos irrepetíveis. Escamotear níveis de envolvimento pessoal ou condicionamentos exógenos à vontade do investigador-pessoa, é esquecer que não há nem objetos, nem investigadores, nem terrenos, nem contextos de produção de conhecimento neutros e, logo, irrelevantes para a compreensão do que se estuda e para o corpo de conhecimento que se vai construindo. Por conseguinte, há caminhos que se trilham não só por causa de um terreno ou de um sujeito mas também por razões que são prévias e antecedem a confrontação com a empiria. Foi esse o nosso desafio inicial aquando do congresso da APA, agora plasmado nos artigos que se seguem; i.e., partindo da noção de “objetivação participante” de Pierre Bourdieu (2003), e não menorizando as virtualidades de uma abordagem mais interpretativa, este dossiê propõe a análise das condições sociais de possibilidade para a escolha de objetos de investigação, de terrenos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOURDIEU, P. (2003), “L’objectivation participante”. Actes de la recherche en sciences sociales, 150, pp. 43-58.         [ Links ]

GEERTZ, C. (1988), Works and Lives the Anthropologist as Author, Stanford, Stanford University Press.         [ Links ]

 

NOTAS

1Cf. Referência de Bourdieu (2003) à expressão de Roland Barthes usada por Clifford Geertz (1988).

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