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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

DOSSIÊ - OBJETIVAÇÃO PARTICIPANTE E ESCOLHA DO TERRENO

Ambivalências identitárias em Cabo Verde: da história à etnografia1

Identity ambivalences in Cape Verde: from history to ethno­graphy

 

Carmo Daun e Lorena*

*Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, Av. Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail: carmodaun@gmail.com

 

RESUMO

 

Iniciando com uma breve resenha histórica e teórica acerca das diferentes formulações discursivas sobre a identidade cabo-verdiana, pretendo contextualizar a questão das ambivalências identitárias de uma forma mais geral no contexto cabo-verdiano. O artigo prossegue com o relato de algumas experiências etnográficas e elucida a vertente biográfica de ligação ao terreno, também ambivalente, procurando assinalar, por um lado, as continuidades provenientes desse lastro histórico ao nível da construção identitária (nacional e pessoal) e insistir, por outro, numa reflexividade acerca do trabalho de campo que visa sublinhar a dimensão processual e intersubjetiva do conhecimento etnográfico.

PALAVRAS-CHAVE: crioulidade; etnografia; reflexividade; identidade.

 

ABSTRACT

 

Starting with a brief historical and theoretical review about the different discursive formulations on the Cape Verdean identity, I intend to contextualize the issue of identity ambivalences in a more general way in the context of Cape Verde. This article proceeds with a report of some ethnographic experiences and elucidates on the biographical attachment to the field, ambivalent as well, seeking in one hand, to point the historical continuities concerning identity construction (national and personal) and on the other, to insist on a reflexivity about the fieldwork which seeks to highlight the processual and intersubjective dimension of ethnographic knowledge.

KEYWORDS: creoleness; ethnography; reflexivity; identity.

 

INTRODUÇÃO

 

Quando parti para S. Vicente, em janeiro de 2012, naquela que seria uma primeira e breve viagem exploratória ao terreno, sabia de antemão que essa estadia me permitiria colher impressões e percecionar dinâmicas que me possibilitariam uma aproximação ao meu objeto de estudo e, porventura, futuras modificações no seu recorte. Até aqui nada de novo. O que não sabia era que a minha presença e a minha vivência in loco dariam origem a uma diferente forma de analisar o meu objeto, fazendo de mim parte integrante da ponderação analítica e da produção de conhecimento. A partir daqui tudo mudou. Mas gradualmente. Quando regressei, vinha, como seria de esperar, com uma noção muito mais clara do meu terreno e dos desafios que ele me colocava. Como tinha previsto, muitas questões, até à altura impensadas, despontaram, e outras ganharam maior nitidez. Mas o exercício de sistematização e reformulação do meu projeto de investigação restringiu-se a uma abordagem “objetiva”, que tive inclusivamente que apresentar para avaliação. Tinha muitas informações e perceções novas, e foi entusiasmante constatar que o meu horizonte se alargara. Porém, tudo o resto, que não era de somenos importância, permaneceu nos bastidores dessa formalidade institucional.

O bloqueio causado pela avalanche do que trazia comigo e a dificuldade em processar tudo o que tinha acontecido em tão pouco tempo davam azo a uma auto-reflexão que não parecia caber na esfera académica e ficava relegada para uma idiossincrasia pessoal. Só mais tarde vim a concluir que a minha experiência no terreno era não só indestrinçável da minha pesquisa, como se impunha como parte integrante dela.

No meu projeto de doutoramento2, intitulado “História colonial e processos de construção identitária em Cabo Verde: um estudo sobre o carnaval do Mindelo”, a festa carnavalesca constitui o meu objeto de estudo. A minha investigação toma o carnaval como uma arena privilegiada para observar processos de construção identitária. Nesse sentido, o Carnaval é o meu foco, apesar de, como refere Bourdieu (2003) para o caso do Homo Academicus, ser apenas o objeto aparente.

A identidade cabo-verdiana tem sido um tema amplamente discutido, muitas vezes alimentando acesos e conflituosos debates. Mas uma coisa é sabermos que este é um tema recorrente e exaustivamente debatido na literatura, e outra é constatarmos que é um assunto presente no quotidiano dos cabo-verdianos, saibam ler e escrever, ou não. Os debates sobre a cabo-verdianidade não ocorrem somente nos círculos académicos e da elite letrada. Nem tampouco foram apanágio de outros tempos, em eras charneira da história cabo-verdiana. Porventura muitos dos debates atuais estão excessivamente centrados nos discursos da elite intelectual cabo-verdiana que, ao longo dos tempos, se debruçou militantemente sobre a questão, podendo daí resultar desequilíbrios históricos de representação, nomeadamente de outros grupos sociais e dos seus entendimentos sobre a cabo-verdianidade. Apesar de ser compreensível que as versões identitárias nos cheguem pelos relatos de uma elite, que era quem escrevia e debatia estes temas, o que importa sublinhar é que estes debates são atuais, socialmente transversais, e sobretudo quotidianos. Mais do que isso, vi-me a ser parte desse debate de uma forma inesperada.

O propósito deste texto é mostrar como também eu fui incorporada na análise, numa simbiose entre a minha experiência etnográfica e as questões da crioulidade e da crioulização em Cabo Verde, que eram também o meu objeto de estudo, mas que só marginalmente me integravam, afinal o meu foco era o carnaval. Não me ocuparei aqui do carnaval e deixo para outro momento a empreitada de pensar a cabo-verdianidade e a paisagem social e cultural do Mindelo a partir dele. Neste ensaio pretendo colocar em evidência como o trabalho de campo coloca desafios conceptuais e metodológicos, pois não só nos permite aprofundar determinados temas, como simultaneamente vai moldando o nosso objeto.

Iniciarei com um resumido panorama das narrativas da construção identitária cabo-verdiana, cujo objetivo é fornecer algumas coordenadas para a contextualização das questões que abordarei na segunda secção do texto, onde me proponho refletir sobre a posição do etnógrafo face ao etnografado e vice-versa; apresento aí alguns episódios que se constituíram como ocasiões decisivas para repensar o meu objeto de estudo, acentuando o entrosamento entre a experiência pessoal e a atividade científica.

Ao dar conta destes episódios não pretendo fechar-me numa auto-referenciação e refletir somente sobre mim. Ao revelar estas interpelações estou a fornecer dados sobre a forma como os meus interlocutores entendem também a sua identidade crioula. Contrariando uma postura meramente auto-reflexiva, pretendo com isso aprofundar a multiplicidade de sentidos da condição de crioulo, que também dependem do ponto de partida, neste caso de quem interroga ou está presente.

 

ALGUNS CONTRIBUTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS

 

As diferentes formulações discursivas sobre a identidade cabo-verdiana, elaboradas ao longo dos tempos, longe de convergirem para uma construção da identidade nacional linear e inequívoca, representam a diversidade, por vezes conflitual, de que é feito hoje esse sentimento de pertença cabo-verdiano. Esta é uma história repleta de ambiguidades e ambivalências que se inserem, obviamente, em conjunturas históricas, políticas e ideológicas particulares, sendo as diferentes versões identitárias coetâneas das épocas em que são produzidas.

Antes de mais, importa percorrer o legado de três gerações de intelectuais – desde os nativistas do nacionalismo lusitano-crioulo, passando pelos claridosos luso-tropicalistas, até aos africanistas independentistas – que foram determinantes para a formulação destes discursos identitários.

Em meados do século XIX, a geração nativista partilhava a crença de que as eventuais diferenças étnicas entre portugueses e cabo-verdianos se neutralizavam face à sua identificação com a nação. Embora esta elite manifestasse a sua lealdade à pátria, não reconhecia qualquer superioridade moral dos seus representantes sobre os “filhos da terra” que, subalternizados pelo poder colonial, reclamavam para si os cargos administrativos reservados aos metropolitanos. Com a instauração da República, estes colonizados passam a afirmar sem reservas a sua condição de nacionais com plenas garantias de cidadania, isto é, sujeitos de direitos e não apenas deveres. Contudo, o regime republicano e o seu pendor para um discurso étnico-civilizacional suscitou reações nesta elite local e fez emergir uma consciência que se traduziu naquilo a que Gabriel Fernandes (2006b) chama um “nacionalismo hifenizado”: o nacionalismo lusitano-crioulo, que mais não é do que expressão do pretenso portuguesismo do cabo-verdiano. Aos nativistas “(…) movia-lhes o propósito de resgatar seu portuguesismo, de base política, e colocá-lo ao serviço do seu caboverdianismo, de base sociocultural” (Fernandes, 2006b, p. 135).3

Para Fernandes (2006b), este nacionalismo lusitano-crioulo refletia a condição híbrida dos seus seguidores que, se por um lado, manifestavam o seu vínculo pátrio, por outro, afirmavam simultaneamente a sua alma crioula. O hífen deste nacionalismo junta num só conceito e sentimento de pertença, centro e margem, nação e província, portugalidade e africanidade, fazendo convergir o que se apresentava como binário e mutuamente excludente. Segundo o autor, estes atores sociais passam de uma condição de subcidadania para uma de dupla cidadania.

Nos anos 30 do século seguinte, em torno da revista Claridade, gravita uma nova geração que, apoiada nos pressupostos luso-tropicalistas, inaugura um novo sentido para a identidade cabo-verdiana.

Com Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ter-se-ia dado a “revelação”. A simetria com Cabo Verde parecia perfeita. A teoria subjacente apresentara-se não apenas como adequada, mas sim como a ilustração feita à medida do caso cabo-verdiano. Era como se a teoria freyriana funcionasse melhor em Cabo Verde que no Brasil.

O entusiasmo decorrente da existência de um modelo que resgatava Cabo Verde da sua orfandade identitária provocou, entre a elite intelectual claridosa, a vontade de que o sociólogo brasileiro pisasse o chão do arquipélago. “Enfim, Gilberto Freyre veio. Chegou, viu, interpretou” (Lopes, 1956, p. 7), mas as suas conclusões não agradaram a esta elite discípula.4 Para Freyre, a mestiçagem crioula teria falhado em Cabo Verde e restavam apenas “salpicos de influência europeia”. Segundo o claridoso Baltasar Lopes (1956), Freyre, impressionado com a “maquilhagem epidérmica”, havia deixado levar-se pelo “étnico” (leia-se “racial”) em detrimento do “cultural”. O “absurdo” freyriano de que o cabo-verdiano seria mais africano que português e de que Cabo Verde seria um país regionalisticamente descaracterizado, despoleta perplexidades que se tentam sanar com uma tentativa de análise do processo de formação social de Cabo Verde, que “se caracteriza pela fase mais avançada a que pode chegar o contacto das culturas europeias e africanas. (…) Dir-se-ia que a África, entendida como força de cultura, se dissolveu por cᔠ(Lopes, 1956, p. 13).

Suscetibilidades à parte, tínhamos então o criador do luso-tropicalismo a veicular uma versão africanista sobre Cabo Verde. E logo sobre Cabo Verde!

Como nos diz Miguel Vale de Almeida (2004), Osvaldo Silvestre, a partir da análise sobre a articulação entre identidade, etnicidade e nação, lança uma questão pertinente: Como pode uma teoria da emancipação funcionar como uma teoria da colonização? Vale de Almeida dá a resposta: a teoria de Freyre é hipercorrigida pelos claridosos, o que possibilita uma guinada na conceção colonizadora, transformando-a num desejo emancipatório. Já Silvestre (2002) nos advertia para a inversão das premissas iniciais, quando os cabo-verdianos, de objeto colonizado afirmam a sua condição de sujeitos de uma identidade nacional construída à revelia do colonialismo.5

Do evasionismo claridoso passa-se, na década de 50, para uma atitude que se quer engajada com a realidade social. No contexto internacional do pós-guerra e do colapso dos impérios coloniais, e numa altura em que proliferam os movimentos nacionalistas e independentistas em África, surge uma nova geração que passa a atribuir um sentido africano aos traços culturais cabo-verdianos. Os cabo-verdianos confrontam-se agora com um exercício de compatibilização da cabo-verdianidade com a africanidade e já não com a lusitanidade (Fernandes, 2006a). Apelava-se então a um retorno às “origens” e a uma “reafricanização dos espíritos”. Se, para os claridosos, Cabo Verde era um caso de regionalismo europeu, para a geração que se lhes seguiu, legatária da negritude, era um caso de regionalismo africano.6

Nesta altura, as diferenças étnicas, culturais, religiosas e sociais existentes dentro do mundo colonizado são atenuadas, enquanto as diferenças que o opõem ao colonizador são exacerbadas. Trata-se de um projeto emancipatório não mais dentro, mas contra o sistema. Da mesma forma, os cabo-verdianos já não se concebem a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas de fora, da sua compartilhada situação de colonizados. E, como nota Fernandes (2006a, p. 199), “Os ilhéus terão participado na luta mais pela sua condição política de dominados, que pela sua consciência étnica de africanos”.

Neste sentido, os traços culturais crioulos são abafados por um teto político-ideológico que os anula e, face à impossibilidade de construir um nacionalismo cabo-verdiano, adere-se ao nacionalismo disponível, o africano. O cabo-verdiano vive pois uma situação ambígua dado o desencontro entre a luta anti-colonialista e a construção nacionalista cabo-verdiana. E com isto, “dir-se-ia que a nação crioula foi sendo adiada à medida que se abriam aos crioulos as portas para um nacionalismo lusitano ou africano, e não propriamente cabo-verdiano” (Fernandes, 2006a, p. 183). Esta polarização entre focos de lealdade antagónicos constitui umas das facetas do dilema crioulo que atravessa gerações.7 Independentemente das correntes, ou dos seus protagonistas, a identidade cabo-verdiana é posicionada num acervo de categorias e representações alheias para descrever o seu próprio mundo.

João Vasconcelos (2004), na sua análise sobre o racionalismo cristão, fala-nos do também curioso binarismo entre a lusofonia dos espíritos e a crioulofonia das pessoas. Não deixa de ser significativo que a proclamada especificidade de Cabo Verde esteja dependente de enunciações sempre feitas em termos antagónicos, ou pelo menos binários, naquilo a que Vasconcelos (2004) chama de “desfasamento ontológico”. Essa especificidade é uma representação muito disseminada e extravasa as fronteiras sociopolíticas e ideológicas, mas também cronológicas daquelas épocas, assim como as de classe dos seus criadores e defensores. A ideia de uma singularidade cabo-verdiana está bem patente nas formulações discursivas acerca do que é ser-se cabo-verdiano. Com os nativistas, era aferida de um ponto de vista evolucionista: os cabo-verdianos eram mais civilizados do que os coloniais da África continental. Com os claridosos, a linguagem é culturalista, pois a singularidade advinha da interpenetração cultural no arquipélago. A mestiçagem era entendida não apenas como um processo histórico de miscigenação racial, mas também como um processo de civilização e de desafricanização cultural. Por seu turno, com os africanistas, a tónica era revolucionária, apelava-se à insurreição da negritude.

Vasconcelos nota que, não obstante as suas diferenças, os discursos identitários sobre Cabo Verde apresentam alguns elementos invariáveis. Por um lado, a identidade cabo-verdiana define-se invariavelmente pela mistura, reproduzindo arquétipos como Áfricae Europa, ou Portugal, que evocam sentidos diferentes. Por outro, os cabo-verdianos são tomados como pessoas com sangue africano mas com espírito português.

 

No vocabulário republicano, chamou-se a isto “civilização”. No vocabulário da Claridade chamou-se “aristocratização cultural”. No vocabulário inicial do PAIGC chamou-se “alienação cultural”. E no vocabulário emergente, colonizado pela literatura dos estudos culturais e dos estudos pós-coloniais, chama-se às vezes “hibridez”. Estas expressões transportam lastros ideológicos muito diferentes e exprimem perspetivas bem distintas sobre aquilo que é ser-se cabo-verdiano. Mas, ao mesmo tempo, todas elas nos falam de algo em comum [Vasconcelos, 2004, p. 185].

 

Mas, como o autor salienta, a identidade cabo-verdiana não é apenas equacionada face a dois polos de referência exteriores. Existe também uma África e uma Europa internas, sendo a primeira representada pela ilha de Santiago, terra do badio, e a segunda a ilha de São Vicente, terra do sampadjudo. Estas duas ilhas tendem a funcionar como tipos-ideais da africanidade e da europeidade cabo-verdianas.

Na perspetiva de José Carlos dos Anjos (2004), a suposta “fusão cultural” entre europeus e africanos teria constituído uma unidade nacional antes da implantação de um Estado nacional. Para este autor, a mestiçagem aparece não apenas como a ideologia que alivia as tensões internas, propondo assim uma imagem de coletividade homogénea, mas é também um “modelo de” compatibilização de diferenças, que operacionaliza a forma como modelos simbólicos exteriores podem ser integrados, justificando essa importação.

Segundo Vale de Almeida (2004), em Cabo Verde o processo de crioulização tem sido transformado em projeto de crioulidade. E aqui reside um dos pontos-chave da análise, pois é imperativo saber distinguir crioulidade de crioulização. Como adverte Palmié (2006), o termo “crioulização” tem sido usado acriticamente e de formas inapropriadas. Partamos então em busca de outros caminhos.

João Vasconcelos (2007) oferece pistas inovadoras para refletir sobre a crioulização cabo-verdiana. Para tal, começa por identificar as duas conceções de crioulidade e crioulização dominantes na literatura antropológica.

A primeira é aquela relativa aos estudos “pós” e “trans”, cujo autor paradigmático é Ulf Hannerz. “Esta concepção da crioulização como sinónimo de hibridez, colagem, mélange, miscelânea, montagem, sinergia, bricolage (…), mestiçagem, miscigenação, sincretismo, transculturação (…)” parece a ­Vasconcelos “francamente débil” (Vasconcelos, 2007, p. 4).

A segunda conceção é aquela que toma a região das Caraíbas como o protótipo da crioulidade e que tem servido de base a diversos exemplos etnográficos8, que partilham um denominador comum: a centralidade de categorias étnicas e raciais na análise sociocultural. Porém, elas nem sempre coincidem com aquelas dos analistas:

 

A questão é que na classificação racial, em qualquer classificação racial, entram em jogo modos de percepção e apreciação da cor da pele, da fisionomia, da qualidade dos cabelos e também da genealogia das pessoas e do seu estrato social que são aprendidos desde a infância e cujo domínio competente se torna, portanto, muito difícil a um indivíduo naturalizado noutro esquema classificatório e ignorante da pequena história local. [­Vasconcelos, 2007, p. 6]

 

É neste sentido que o autor defende para o caso cabo-verdiano, que “crioulo” seja encarada enquanto categoria emic.

Também importa reter a ideia de a crioulidade, enquanto categoria identitária, se tratar de “uma mestiçagem consciente de si própria”, segundo os termos de Édouard Glissant. Portanto, “estamos a falar de sociedades concretas nas quais as pessoas se vêem a si próprias como mistas ou misturadas e usam o vocabulário das ‘categorias puras’ que compõem a mistura para se pensarem e se classificarem” (Vasconcelos, 2007, p. 7). Como já vimos, no caso de Cabo Verde, ao invés de grupos étnicos, os arquétipos em presença são “África” e “Europa” (ou “Portugal”), tendo a valorização de um e outro oscilado consoante as conjunturas históricas e políticas.

Para além dos critérios de identificação insular, racial e classista que são acionados, Vasconcelos vai mais longe e advoga que estas classificações coexistem com uma outra lógica de formação identitária. Para o autor, em Cabo Verde, a crioulidade é uma classificação identitária que contempla não apenas elementos genealógicos e fenotípicos, mas também elementos performativos. Há assim, uma crioulidade “que obedece a uma lógica identitária que tem subjacente a ideia de que aquilo que se faz é uma parte importante daquilo que se é”. Assim,

 

Em Cabo Verde, ser-se crioulo é, entre outras coisas, ser-se di terra. Brancos, pretos e mestiços são todos crioulos sem que deixem com isso de ser brancos, pretos e mestiços. As classificações raciais e classistas que os diferenciam em certas situações coexistem com uma outra que os irmana [Vasconcelos, 2007, p. 11].

 

Apoiando-se na formulação de James Watson, o autor sugere a existência de dois tipos de identidades, “mendelianas” e “lamarckianas”, que devem ser concebidas como dois polos de um continuum de produção de semelhanças e diferenças. Num extremo estão aquelas estabelecidas a partir de reais ou supostas heranças genealógicas e no outro, aquelas relativas aos modos de vida, à prática quotidiana. A crioulidade cabo-verdiana congrega ambas as lógicas de formação identitária:

 

É-se reconhecido como crioulo em virtude tanto da ascendência familiar, como de traços corporais herdados e adquiridos socialmente, como ainda daquilo que se faz. O peso relativo atribuído a marcadores genealógicos, fenotípicos e comportamentais varia consoante os contextos de interacção social [Vasconcelos, 2007, p. 12].

 

E, por isso, Vasconcelos (2007, p. 13) defende um uso ad hoc da crioulidade “atento aos sentidos que ela possui nos diferentes espaços e tempos em que é empregada pelos agentes sociais”. Atentemos agora nalguns desses sentidos, bem como noutras ambivalências identitárias.

 

REFLEXIVIDADE E ETNOGRAFIA

 

Será ponto assente que todos nós, como indivíduos e como antropólogos, estamos envolvidos em processos de classificação. Necessitamos de classificações para nos situarmos face aos outros e ao mundo que nos rodeia. As classificações, e as categorias que lhes são subjacentes, não são mais do que instrumentos de pensamento e ação que nos ajudam a conhecer. Podem tornar-se perigosas quando são generalizantes, reificadas, acríticas ou redutoras. Mas é bom acreditar que, enquanto antropólogos, esforçamo-nos para contrariar essas tendências, submetendo as classificações e as categorias com as quais trabalhamos, a escrutínio continuado. O certo é que o ato de classificar é universal. Já a forma como classificamos é profundamente variável (para não dizer “subjetivamente cultural”).

O que pretendo explorar nesta secção são as ténues fronteiras e a permeabilidade entre etnografia e vida pessoal.9

Darei conta não apenas de determinadas interpelações sobre características minhas postas em destaque pelos meus interlocutores, como de alguns dados biográficos que não só esclarecem a forma como me posiciono no terreno, como servem de contraponto às interpelações dos outros. Há assim uma relação dialética: por um lado, a forma variável e circunstancial como sou vista e classificada, e por outro, a forma como me vejo a mim própria no terreno. A reflexão complexifica-se quando ambos os aspetos se cruzam entre si, e por sua vez com a minha investigação sobre a história colonial e os processos de construção identitária em Cabo Verde, acabando por desempenhar um papel decisivo na forma como a perspetivo, na medida em que as ambivalências identitárias – cabo-verdianas e pessoais – surgem com uma invariabilidade que permeia a análise e caracteriza o processo de construção identitária e de conhecimento etnográfico.

Pretendo, assim, lançar-me num exercício reflexivo sublinhando o facto de a etnografia se produzir no seio de relações sociais e acentuando a dimensão processual e intersubjetiva do conhecimento. É neste sentido que sigo Bourdieu, para quem a reflexividade implica “uma exploração sistemática das categorias de pensamento não pensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 40). Esta reflexividade epistémica sujeita a posição do etnógrafo à mesma análise crítica que o seu objeto. A objetivação participante de Bourdieu é, assim, uma espécie de “sociologia da sociologia e do sociólogo” – podendo substituir-se aqui “sociologia” por “antropologia” ou “etnografia”.

Longe, portanto, de qualquer gesto solipsista ou narcisista, pretendo levantar questões que não só estão na sombra da ribalta antropológica, mas sobretudo do meu percurso no terreno.

Como referem McLean e Leibing (2007), a sombra e a luz existem em relação uma com a outra. Prestar atenção à sombra significa “ver o que enquadra a nossa visão” (cf. p. 2). No trabalho de campo etnográfico deve prestar-se atenção às sombras não só porque elas podem conduzir a um novo conhecimento, mas também porque a sombra pode questionar o que se encontra na luz. Como sublinham as autoras, o exercício reflexivo ou autobiográfico é relevante apenas na medida em que o autor mostre a sua importância para a produção de conhecimento.

Esse conhecimento é mediado por elementos biográficos, encontros fortuitos, reações imprevistas, e outras subjetividades como as amizades que fazemos ou as incompatibilidades que pressentimos. Como nos diz Pina Cabral (1983, p. 330), “Fala-se como se o hábito andasse sem um monge dentro”. A idade, o sexo, a classe, a nacionalidade, o estado marital, ou até, como afirma, atributos como a inteligência, a honestidade, a emotividade, a coragem e a robustez física, são aspetos que influenciam a perceção que cada um cria do meio social e cultural que estuda(e eu acrescentaria a perceção que os outros criam de nós).

Fabian (1983) propõe uma “distância hermenêutica”, que se sustenta em dois vetores: o tempo e a reflexividade. Sobre esta última, o autor esclarece:

 

(…) hermeneutic distance is called for by the ideal of reflexivity which is always also self-reflexivity. Affirmation of distance is in this case but a way of underlining the importance of subjectivity in the process of knowledge. Hermeneutic distance is an act, not a fact. It has nothing in common with the notion (…) that distance be somehow the source of more general, hence more “real” knowledge. It may be useful to introduce a convention which distinguishes between reflexion qua subjective activity carried out by and revealing, the ethnographer, and reflection, as a sort of objective reflex (like the image in a mirror) which hides the observer by axiomatically eliminating subjectivity [Fabian, 1983, p. 90].

 

A subjetividade de que fala Fabian não se opõe à objetividade. Na mesma linha, quando fala de autobiografia, não a diminui tomando-a como supérflua. Para Fabian (2001) a autobiografia não impede a objetividade. Mais, é uma condição da objetividade etnográfica. Assim, subjetividade e autobiografia não são equivalentes. Partindo desta convicção, o autor formula duas teses de peso acerca da objetividade na investigação antropológica:

 

1. (…) objectivity lies neither in the logical consistency of a theory, nor in the givenness of data, but in the foundation of human intersubjectivity [Fabian, 2001, p. 14]

2. Objectivity (…) is attained by entering a context of communicative interaction through the one medium which represents and constitutes such a context: language [Fabian, 2001, p. 15].

 

Importa ressalvar que estas formulações foram feitas em contraponto a uma conceção positivista de objetividade e recusando uma oposição entre objetividade e subjetividade, daqui resultando uma noção de objetividade processual e histórica. O autor propõe então uma teoria da objetificação.10 Ainda de acordo com Fabian, importa destacar que o conhecimento etnográfico é necessariamente intersubjetivo. Esta intersubjetividade não é um método, mas uma forma de produção de conhecimento que é sempre contingente e de certa forma dialógico.

Antes de prosseguir, alguns dados biográficos. Nos anos 20 do século XX, os meus avós paternos, nascidos em Portugal, conheceram-se e casaram-se em S. Vicente, na época uma colónia portuguesa. Lá nasceram e cresceram os seus filhos, que acabaram todos, em datas diferentes, por vir para Portugal, para estudar ou trabalhar (entre eles o meu pai). Depois da independência de Cabo Verde em 1975, numa altura em que havia necessidade de técnicos e professores, o meu pai regressou a Cabo Verde, já casado, como cooperante, para dar aulas. E foi nessa altura, em 1980, que ocorreu o meu nascimento. Pouco mais de um ano depois, regressámos a Portugal. Cresci e vivi sempre em Lisboa. Nunca mais voltei a Cabo Verde, à exceção de dois períodos de férias, um em 1986, e outro em 1995.

Recentemente, no âmbito da minha pesquisa de doutoramento, regressei a S. Vicente, a minha ilha natal. Quero com isto dizer que desconhecia bastante a realidade cabo-verdiana, apesar de ter alguma familiaridade com certos aspetos da história e da vida social e cultural do arquipélago, que não adveio apenas dos laços familiares mas também do interesse pessoal e académico que tenho pelo arquipélago, e particularmente pela ilha de S. Vicente. Desde essa altura, tenho regressado anualmente, perfazendo até agora um total de dezasseis meses de trabalho de campo.

Numa fase inicial, é normal que a recolha de informação e a própria integração no terreno sejam lentas, pelo menos aos nossos olhos. As coisas demoram o seu tempo. Todavia, e talvez precisamente por isso, foi uma altura propícia à reflexão sobre a minha posição no terreno. À medida que o tempo passava, ia sentindo com mais preocupação a falta de informações ou dados “concretos” para a minha pesquisa. Mas tinha já vivido algumas situações que, não se integrando diretamente no que era suposto reunir em termos de material coletável, considerava profundamente significativas.

Pouco tempo depois de ter chegado a S. Vicente, num momento de total descontração quando deambulava pela cidade, cruzei-me com um homem novo, porém já muito desgastado fisicamente, que, para minha grande surpresa, inicia uma conversa sobre o que é ser cabo-verdiano, ou melhor, sampadjudo, cabo-verdiano de Barlavento, uma identidade afirmada em forte e recorrente oposição com a dos badios de Sotavento. Como vimos, este antagonismo clássico gira à volta da ideia de que os sampadjudos são mais europeus (e isto pode significar mais civilizados) do que africanos e que os badiossão mais africanos do que europeus. Mas dizia-me este homem que, na verdade, os cabo-verdianos não são nem uma coisa nem outra. Estão no meio do Atlântico, são cabo-verdianos.11

Não me tinha manifestado sobre qualquer tema afim e muito menos sobre o meu projeto de investigação ou o facto de ser antropóloga. A conversa continuou, e no final, para meu renovado espanto, acabou por me dizer que assim como eu os observava, eles observavam-me a mim… Fiquei a pensar nisto durante alguns dias.

Recuperando a ideia de mutualidade etnográfica de Fabian, julgo que é precisamente numa compreensão não trivial, produzida em conjunto por observador e observado, que reside o valor da etnografia. Como nos diz Pina Cabral (2013, p. 259), esta descoberta conjunta resulta em “revelações partilhadas”, na medida em que “aquilo que compreendemos é tão comunicado pelos outros, como compreendido com eles”. Mas como advertem Viegas e Mapril (2012, p. 515) “a partilha não significa, (…) assentir e, sim, alcançar pontos de comunicação – de semelhança e não de identidade”. Mas é, sem dúvida, através dessas revelações partilhadas que vamos reformulando as próprias categorias com que analisamos e compreendemos a realidade em estudo.

Em Cabo Verde, o termo “crioulo” designa uma pessoa cabo-verdiana. Como vimos, a crioulidade cabo-verdiana oscila entre duas lógicas de identificação: “mendelianas” e “lamarckianas”. Mais do que um dado genealógico, ser-se crioulo é ser-se di terra. Ora isto pode ser muita coisa. E ser-se “crioulo” pressupõe o cumprimento de requisitos nem sempre claros. O que quero sugerir é que a categoria “crioulo”, mesmo na sua aceção performativa, comporta variações e carrega igualmente todo um lastro de ambiguidade. É uma classificação com gradações. Quando aplicada a pessoas que não nasceram no país, isso é relativamente mais óbvio, mas quando recai sobre pessoas que, por exemplo, tendo nascido, não vivem em Cabo Verde, ou sobre pessoas que vivem lá mas cujas atitudes não se coadunam com determinados códigos de conduta, a classificação pode ser adaptada ou mesmo subtraída, não só porque é em si polivocal, mas também porque compete com outras categorias classificatórias. Mas uma atitude também pode medir a “crioulidade”. Por exemplo, alguém que não gosta de festa, nomeadamente do carnaval, “nem parece crioulo”. Todavia, é curioso notar a persistência de metáforas que remetem para a herança genealógica, e até mesmo biológica.

Por altura do carnaval, uma das expressões que mais se ouve é “nôtê l na sangue” (“temo-lo no sangue”). É uma justificação que se aplica a uma panóplia vastíssima de situações. A razão de toda a gente gostar do carnaval ou saber sambar, a razão de se regressar ao trabalho árduo depois de um esforço não reconhecido ou de se fazerem sacrifícios financeiros para se participar na festa, a razão para toda uma série de fenómenos relativos ao carnaval encontra-se na explicação: “nô têl na sangue”. Ou se nasce, ou não se nasce com ele. Por mais performativo que seja o carnaval e por mais “lamarckiana” que possa ser a integração nele, a montante o carnaval é sempre uma característica inata, “mendeliana”. O interesse desta expressão não reside apenas na metáfora biológica, mas sobretudo na ambivalência, sempre presente, de ser uma coisa e outra, de se poder ser de uma forma ou de outra, e em qualquer dos casos isso estar dependente de uma síntese vaga e imprecisa sobre algo que se advoga como concreto e definidor. Mais ainda, como algo imutável e inalienável.

Retomemos a questão da crioulidade. O que interessa por agora reter é que “crioulo” e “cabo-verdiano” são sinónimos. O meu constante encontro com esta palavra, surgindo no dia-a-dia ou especificamente direcionada a mim (fosse por afirmação ou negação), levou-me a prestar redobrada atenção a ela, quer pela sua recorrência, quer pela sua elasticidade semântica. A versatilidade e a polissemia do termo “crioulo” são assinaláveis. E isto prende-se, justamente, com a multiplicidade de sentidos e entendimentos do que é ser cabo-verdiano e do que é Cabo Verde.

O que pretendo sublinhar é a possibilidade de transformar em objeto de conhecimento etnográfico as categorias mobilizadas pelos nossos interlocutores face a nós, captando as representações endógenas e exógenas em presença, portanto, tomar as relações interpessoais como fonte de conhecimento. Contudo, há que ter também em linha de conta a diversidade ao nível dos interlocutores e das subjetividades em presença, bem como a ideia de que as identidades se constroem relacionalmente e são sempre plurais e dinâmicas.

Um dia caminhava apressada na rua quando um rapaz atrevido me chamou “branca”, com um tom, já familiar, de engate. Não foi a primeira vez que isso aconteceu, mas naquele dia eu estava mais intolerante a essas investidas e mandei-o calar. O tom de voz e a postura corporal mudaram imediatamente e ele respondeu: “Ninguém me manda calar a boca na minha terra!” O que está aqui em causa é uma projeção em mim, na minha cor, de um passado colonial que é mobilizado de forma totalmente descontextualizada. O facto de eu ter respondido, isto é, de eu ter reagido defensivamente ao assédio, transformou-me de objeto de desejo em objeto de repulsa. Certamente foi a rejeição que o rapaz sentiu que provocou esta transformação, mas o argumento que utilizou reativa e reforça os fantasmas em jogo.

Sendo recém-chegada e branca, era muitas vezes tratada como “­estrangeira”12. Posso também ser “portuguesa” ou “mondronga”, mesmo antes de pronunciar qualquer palavra. Contudo, falo sempre em crioulo. Dizem-me que falo muito bem crioulo, o que parece acentuar, a par do meu local de nascimento, a minha “crioulidade”.

Que a língua é uma ferramenta de integração determinante em qualquer destino, não há dúvida. A questão é que, em Cabo Verde, podendo viver falando sempre em português, a língua oficial do país – não obstante não ser falada nem compreendida por uma larga maioria – quem se dedica à aprendizagem do crioulo destaca-se positivamente devido à tentativa de aproximação cultural e pessoal. O facto de a minha aprendizagem do crioulo ter sido muito rápida também é visto com bastante apreço, mas sobretudo parece ficar a dever-se a razões de “umbigo” (ter nascido lá), o que me tira qualquer agencialidade, mas também reforça a minha “crioulidade”.

De modo geral, ter nascido em Cabo Verde e falar fluentemente crioulo fazem de mim “crioula” e ser branca torna-me estrangeira.13 Mas se é verdade que falar crioulo demonstra um comprometimento pessoal e cultural, essa virtude não apaga a condição de “estrangeiro” ou “branco”.

O facto de falar crioulo normalmente aproxima-me das pessoas, das conversas, dos lugares. Noutros momentos, ou melhor dizendo, com outros interlocutores, causa um certo desconforto, podendo mesmo chegar a agudizar alguma tensão. Guardo na memória dois episódios de especial violência. Um implicou uma agressividade verbal muito inflamada, no outro a violência esteve quase a passar o limiar físico. Em ambas as situações valeram-me amigos protetores, que me defenderam a mim e à minha “crioulidade”. Tudo isto envolve estados emocionais muito alterados, mas serve para refletir analiticamente. Tomo estes episódios como manifestações de racismo. Em Cabo Verde há racismo, não apenas dirigido a “brancos”, mas também a outros africanos, como os denominados mandjakus14 da costa ocidental africana, ou até entre cabo-verdianos, nomeadamente entre badios e sampadjudos.

Apesar da tentativa de evitar a “raça” como categoria analítica, Elizabeth Challinor (2012) mostra-nos como esta surge como uma “categoria da prática”, na aceção de Brubaker. A autora reconhece como inesperadamente certas situações se tornam racializadas, advertindo contudo para a necessidade de separar a intencionalidade do efeito, pois um comportamento racista não deriva necessariamente de uma intenção racista. Não obstante, os efeitos dos “automatismos raciais” podem ter um impacto profundo sobre as subjetividades dos indivíduos e sobre a forma como os atores sociais fazem sentido de si e dos outros. Ainda de acordo com Brubaker, os atores sociais recorrem a estereótipos raciais devido a uma “hiper-acessibilidade” de esquemas étnicos. Esses estereótipos são ativados em contextos particulares, onde podem estar em presença outras dimensões que são ocultadas por esses automatismos.

Importa reconhecer que, mesmo no sentido positivo da classificação, isto é, quando sou tomada como “crioula”, pode também estar implícito um pressuposto desconcertante: sou branca, mas “diferente”. Isto reitera um paradigma racista, um racismo positivo, que não é menos racista. Parte-se do princípio de que, em geral, o branco é mau, apesar de haver exceções, como eu.15 E pressupõe a inexistência de cabo-verdianos brancos.

Há que referir que existem outras características que delimitam a minha presença no terreno. O facto de ser mulher, por exemplo, condiciona em muito o meu raio de ação. Numa sociedade tão sexista, em que as mulheres são frequentemente alvo de assédio, torna-se complicado estabelecer uma relação, ou mesmo uma simples conversa, que não seja filtrada por esse intuito. A mulher fica assim desprovida de competência profissional e a interação tende a ser dominada por um padrão de relacionamento que pressupõe a sedução como regra. Isso condiciona a abordagem aos interlocutores e, no limite, põe em causa a sua continuidade. Uma coisa é sermos assobiadas ou importunadas. Outra é falarem connosco apenas porque somos do sexo oposto, numa tentativa de aproximação sexual, mesmo que de forma simpática e educada. E outra ainda é sermos simplesmente ignoradas. Mais do que uma vez aconteceu falarem de mim, à minha frente, como se eu não estivesse presente. Também aqui oscilo entre uma ambivalência desconcertante: ou reparam em mim enquanto mulher (no sentido de alvo sexual) ou me ignoram porque sou mulher (no sentido de menosprezo). Ser mulher é também uma condição ambivalente no terreno.

Os aspetos biográficos não têm apenas que ver com o etnógrafo, mas também com os seus interlocutores. A pesquisa é permeada por histórias de vida, por memórias familiares, deles também.

O confronto com as minhas memórias biográficas e familiares não acontece apenas ao nível dos diálogos e interações interpessoais. Ela surge também face a outros suportes e fontes de informação, nomeadamente ao nível do arquivo, quando folheio documentos antigos ou vejo fotografias de outros tempos. Aqui dialogo solitariamente com um passado colonial que não só me remete para o meu percurso autobiográfico, mas também para toda a história da nação. É como se algumas fontes arquivísticas funcionassem como reflexos de uma história pessoal, e como se certos vestígios desta fossem fragmentos de uma história maior. Já aconteceu folhear jornais do século passado, à procura de alguma informação relevante, e deparar-me, de modo imprevisto, com a minha própria história. Seriam meros fait-divers noticiosos, não fossem tratar-se de notícias relativas ao meu bisavô e aos meus avós paternos… Todos estes encontros no arquivo com a minha biografia pessoal lembram-me da intimidade histórica que me liga ao terreno. Além disso, acontece também que alguns dos meus interlocutores mais velhos lembram-se bem dos meus familiares e esse conhecimento impele-os a falarem-me deles e daqueles tempos.

Quando confrontada com a memória oral, as ambivalências identitárias são também facilmente identificáveis. Seja a respeito de pessoas ou acontecimentos de outrora, seja sobre o posicionamento face a marcos históricos do passado, deparo-me com o desconfortável pressentimento de que os meus interlocutores podem (e fá-lo-ão em muitos casos) adaptar o seu discurso àquilo que acham que eu sou ou quero ouvir. Neste sentido, o trabalho de campo não difere da vida corrente, a não ser na intensidade das interações e na postura reflexiva a que a etnografia obriga que torna o etnógrafo mais sensível a tudo o que vive e presencia do que seria na sua rotina diária.

A crioulidade cabo-verdiana é ambivalente porque assenta num equacionamento de dois elementos ou valores diferentes, até mesmo opostos, e ambígua na medida em que se lhe pode atribuir mais de um sentido, revelando-se muitas vezes incerta. Senão vejamos: “branco” e “preto” podem ser traduzidos por “colonizador” e “colonizado” respetivamente, e aqui a “raça” surge como categoria de poder, de classe. E podemos encontrar “africano” equiparado a “raízes”, “luta anti-colonialista”, ou então a “primitivo”, “atrasado”. Mas podemos ter também elementos que, não sendo em si opostos, como “África” e “Europa”, representam valores antagónicos. E é precisamente no essencialismo destas categorias e estereótipos que devemos ir buscar as pistas para os sentidos e os quadros de referência que elas invocam, isto é, questionando que mensagem é veiculada e que tipo de conhecimento se encontra subjacente. Consoante a conversa ou o contexto, ora se pende para uma valorização daquilo que é “branco”, ora do que é “afro”, assumindo estes termos conotações positivas ou negativas, longe portanto de qualquer maniqueísmo fraturante.

Esta ambivalência e ambiguidade não são logicamente fortuitas nem constituem um problema, um entrave. São características que, aliás, se situam na genealogia histórica e social de Cabo Verde. É também de realçar que esta ambivalência muitas vezes não é apenas referencial (dos referentes) mas operacional e estratégica.

A ambivalência e ambiguidade da crioulidade são aqui demonstradas na sua dimensão prática, mundana, popular, quotidiana, extravasando assim a reflexão teórica. Mas é possível detetar esta ambivalência identitária recuando na história. Encontramo-la desde logo na própria génese do país. O arquipélago de Cabo Verde era desabitado até à chegada dos primeiros navegadores. A colonização não assentou, portanto, de raiz, na usurpação de um território ou na dicotomia colonos/indígenas, o que subverteu logo de início as formas tradicionais de estratificação colonial e terá contribuído, em certa medida, para a ambivalência de lealdades, que vemos plasmada nas várias correntes discursivas da elite intelectual, assim como nas ideias de senso comum. Outro exemplo, foi o debate em torno do estatuto administrativo de Cabo Verde, entre província ultramarina ou arquipélago adjacente (como os Açores e a Madeira). Também a posição do cabo-verdiano na transição para a independência é bem reflexo disso: os cabo-verdianos ocupavam os cargos administrativos do regime colonial na Guiné.

Pretendi aqui salientar outras formas de que se pode revestir essa ambiguidade, o que nos ajuda a perceber como a crioulidade cabo-verdiana não só é prática, no sentido de performativa, como pode ser auscultada na prática diária do quotidiano, ao observarmos os esquemas de interpretação em ação, extravasando assim os limites prescritivos de certos modelos teóricos que fecham o assunto num determinismo ideológico supostamente inultrapassável.

Todos os episódios que aqui relatei, quase sempre imprevisíveis, acabam por se revelar cheios de significado e funcionam como catalisadores de reflexões e novas problematizações. Constituem-se como outras lentes que me ajudam a perspetivar o que me proponho estudar. No limite, reformulam o meu posicionamento no terreno e condicionam, limitando ou abrindo, o resultado da minha pesquisa.

Por vezes, é precisamente fora do espectro analítico concernente ao nosso objeto que nos confrontamos com importantes revelações.

Numa viagem de regresso a Portugal, em 2013, deparei-me inesperadamente com uma interpelação que me remeteu para as ambivalências, precisamente quando deixava para trás o terreno, acentuando ainda mais, numa espécie de simbolismo, a sua pertinência. Ao meu lado, no avião, sentou-se um casal de turistas portugueses. A determinada altura, a senhora perguntou-me: “Também veio no sábado passado?” Aquele voo era, para grande parte dos passageiros, o voo de regresso de uma semana de férias all-inclusive em Cabo Verde. Sorri interiormente. Senti que estava novamente a ser confrontada com uma identificação que não me identificava. Tornou-se claro que as classificações vêm de todos os lados, e que todas elas são parcialmente verdade, apesar dos diferentes ângulos.

O ricochete classificatório ora põe em evidência a minha exterioridade e não-pertença ao lugar, ora, inversamente, integra-me umbilical e “culturalmente”.

Estas ambivalências identitárias devem ser pensadas à luz da mutualidade etnográfica. Como diz Humberto Martins (2012, pp. 527-528) “as pessoas não estão só lá para ser conhecidas ou para se deixarem conhecer – são agentes ativos, coprodutores do conhecimento antropológico”.

 

NOTAS FINAIS

 

Numa incisiva advertência para “metodologismos” e “teoreticismos” resvalantes, Bourdieu (1992) defendia a fusão entre a construção teórica do objeto e o método, as práticas de pesquisa, numa interpenetração do teórico e do empírico. Conforme este autor, o próprio ato de pesquisa é simultaneamente teórico e empírico. Qualquer operação empírica envolve escolhas teóricas e o mais abstrato aparato teórico não pode ser clarificado sem um engajamento com a realidade empírica. Não se pode, portanto, dissociar a construção do objeto dos instrumentos de construção do objeto. Bourdieu (1992) fala-nos assim de uma “dupla verdade”, objetiva e subjetiva, que constitui a verdade completa do mundo social.16

Também Okely e Callaway (1992) referem que a divisão entre a experiência de campo e a teoria presume que os resultados da pesquisa são independentes da sua prática. Como se o trabalho de campo fosse um mero procedimento metodológico de aplicação de técnicas de pesquisa e de coleta de dados. E é aqui que reside o valor da autobiografia, ao desmantelar a “máquina positivista”. Ainda assim, as autoras relembram que uma reflexividade que exclua a dimensão política é em si irrefletida e a autobiografia não é um processo linear do indivíduo isolado fora da história e da cultura. Sendo assim, a reflexividade em questão não visa o self do antropólogo, mas a antropologia pode e deve ser informada por ele.

De igual modo, o que interessa aqui não é tanto a minha caracterização biográfica, mas o enquadramento sociocultural dessa biografia, nomeadamente no legado das formulações identitárias anteriormente descritas que acompanham o devir histórico nacional cabo-verdiano.

Muito diferente daquilo que na fórmula de Paul Rabinow (2007) era “observar observadores observando” (uma síntese das observações de segunda ordem de Luhmann), Bourdieu (2003, p. 282) define a objetivação participante como a “objectivation of the subject of objectivation, of the analysing subject – in short, of the researcher herself”, e isto passa por incluir o ponto de vista desse sujeito, mas também um inconsciente histórico, académico, isto é, o conjunto de estruturas cognitivas da sua formação disciplinar. Como escreve:

 

Participant objectivation undertakes to explore not the ‘lived experience’ of the knowing subject but the social conditions of possibility – and therefore the effects and limits – of that experience and, more precisely, of the act of objectivation itself. It aims at objectivizing the subjective relation to the object which, far from leading to a relativistic and more-or-less antiscientific subjectivism, is one of the conditions of genuine scientific objectivity [­Bourdieu, 2003, p. 282].

 

Para Bourdieu, o que deve ser objetivado não é o antropólogo ou a sua análise, mas o mundo social que molda ambos, desconstruindo interesses e convenções que o etnógrafo tende a projetar inconscientemente. Sendo certo que estou inserida num campo científico que orienta as minhas escolhas, optei por explicitar as condições sociais de produção de pré-conceitos e representações, pondo a nu a forma como determinados conceitos ou classificações se revelaram construções sociais, e não entidades abstratas ou reais.

Essas disposições socialmente constituídas guiam a minha ação e classificação, bem como a dos meus interlocutores. Tal como os etnógrafos, os atores sociais também projetam inconscientemente as suas representações, inclusivamente no etnógrafo, como aqui exemplifiquei. Fui apanhada desprevenida em muitas destas projeções, mas fui integrando-as na análise. Ao ser incorporada, pelos outros, nesta ponderação identitária, fui obrigada a objetivar-me num duplo sentido: perscrutando as conjunturas históricas e sociais que convidavam a essa minha integração na equação pelos outros (podendo ser de inclusão ou exclusão, como vimos) e objetivando o meu sentimento de me sentir “de fora” mas com “alma cabo-verdiana”. E assim, pude observar aquelas conjunturas a agir sobre os outros e sobre mim própria.

Foi possível analisar a noção de crioulo inscrita num sistema histórico e cultural específico, tal como a sua aplicação, a forma como é ativada na prática. O sentido dos acontecimentos que relatei deve ser pensado à luz dos vários legados discursivos, anteriormente descritos, mas não resumir-se a eles. O material etnográfico não só revela a forma como são aplicados esses discursos, como permite romper com as definições de cartilha da crioulidade ou da cabo-verdianidade. Estes episódios ajudaram-me a repensar estes temas, que pareciam arrumados nas prateleiras da literatura, trazendo-os para a sua dimensão prática e colocando-me como elemento integrante dessa análise. O meu contacto direto no terreno com pessoas e situações permitiu-me percecionar a questão identitária cabo-verdiana de outra forma, levandonãoa uma reorientação temática, mas a uma confirmação da pertinência do tema, refinando a sua abordagem A inconstância e ambivalência das minhas classificações exteriores permitiu-me ir depurando os elementos-chave do processo de classificação.

Percebi que as discussões sobre a cabo-verdianidade não se limitam aos círculos intelectuais e académicos, não são apanágio somente das gentes letradas de agora e de outrora, são discussões transversais a toda a população, são atuais e quotidianas. As versões dos livros estão enraizadas no dia-a-dia, no povo. E é nesta esfera que é possível constatar a plasticidade dos esquemas de estruturação da identidade e a necessidade de os observar na prática. As várias correntes discursivas apresentadas não são meras abstrações. Por um lado, são fruto do seu contexto de produção e devem ser interpretadas à luz do momento histórico e social em que foram produzidas e, por outro, têm eco ainda hoje e todos estes exemplos demonstram, de forma diferente mas convergente, a ativação dessas várias versões da identidade crioula em Cabo Verde.

O colonialismo, a “raça”, o género, a língua, a naturalidade, a nacionalidade, surgem como categorias importantes quando auscultamos os sentidos que se dão quotidianamente à crioulidade. Nada disto é exclusivo do contexto cabo-verdiano mas nele surge com particular relevância, na medida em que se transformam em dispositivos classificatórios comuns, que para além de recorrentes são dirigidos com propósitos muito claros de identificação e/ou exclusão. O machismo e o racismo que aqui referi, não sendo premissas da cabo-verdianidade, ajudam a esclarecer as arenas de debate e negociação dessa crioulidade.

O património discursivo e teórico sobre a cabo-verdianidade e a crioulização torna-se uma armadura conceptual que muitas vezes obscurece e confina o que é tão presente e corriqueiro. Se, por um lado, nos ajuda a situar e compreender os referenciais, pouco nos diz sobre a forma como eles são operacionalizados (reproduzidos e alterados), no fundo, a sua vertente prática. Assim, este texto não pretendeu ser mais uma dissecação teórica, mas antes uma tentativa de ampliação das possibilidades de captação dessa crioulidade cabo-verdiana. Pretendi contribuir para um entendimento da cabo-verdianidade através de categorias emic e de posicionamentos internos, entendendo-se a identidade cabo-verdiana para lá dos limites do aparato teórico acerca da crioulidade e da crioulização que, não obstante ser crucial tomar em conta, não esgota o potencial analítico destes temas e menos ainda reflete os sentidos disputados na prática. As versões identitárias não são verbalizadas qual ladainha de compêndio. No dia-a-dia são recuperadas num processo sincrético que, longe de reproduzir modelos estanques, combina princípios de doutrinas diversas e se consubstancia na ideia de se ser misturado.

Como seria se eu não fosse branca? Como seria se eu fosse descendente da segunda ou terceira geração de emigrantes cabo-verdianos? Como seria se eu fosse negra? Ou mulata, mas não falasse crioulo? Um filho ou neto de cabo-verdianos emigrados em Portugal, ou nos EUA, que nasceu na diáspora, que nunca esteve em Cabo Verde, que não tem qualquer conhecimento ou relação com o país, é mais crioulo do que eu? Como é que essa pessoa percecionaria a cabo-verdianidade? Em que medida é que o meu passado e o meu vínculo atual à terra moldam a minha análise sobre a cabo-verdianidade? E se eu fosse uma antropóloga inglesa ou francesa, e não portuguesa? De que forma é que a história colonial se projeta na formação das identidades em contexto pós-colonial? As implicações epistemológicas resultantes destes episódios são assinaláveis.

As relações intersubjetivas que estabelecemos permitem pensar “com” e não apenas “sobre”. Muitos destes encontros levaram-me não só a reconsiderar a minha própria posição, como a perceber em que moldes isso ia sendo feito pelos outros que comigo interagiam. Isso permitiu um avanço na compreensão dos sentimentos de pertença cabo-verdianos e sobretudo a descoberta de que a construção da crioulidade é um processo vivo e não cristalizado. E foi precisamente na mutualidade que se desencadeou essa perceção de uma estrutura complexa de formação identitária, assente numa teia de relações de classe, género, raça, de historicidade, de memória social do passado, de sistemas culturais de atribuição de significado, o que demonstra as formas compósitas das identidades.

O trabalho de campo etnográfico deve ser tomado como um processo de produção de conhecimento, e não apenas nos seus resultados. Sendo um processo, está sempre a ser feito e permanecerá sempre inacabado, mas importa não perder de vista que é nele e através dele que refletimos sobre as questões da nossa investigação. Importa por isso refletir sobre ele. Foi o que tentei iniciar aqui, pondo em evidência os processos e as circunstâncias em que o meu conhecimento etnográfico tem sido produzido e informado.

 

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Recebido a 03-09-2014. Aceite para publicação a 15-10-2015.

 

NOTAS

1Este texto resulta de uma comunicação apresentada em setembro de 2013 no painel “Objetivação participante e a escolha do terreno” do V Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia.

2Acolhido pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3Convém lembrar que “Neste quadro ideológico, as proclamadas portugalidade e civilização dos cabo-verdianos podiam servir de prova viva (e serviam-no) de que a raça não obstava à integração plena no corpo da nação. (…) Mas podiam também ser usadas (e eram-no) para discriminar favoravelmente os ilhéus dos restantes africanos das colónias” (Vasconcelos, 2004, p. 173).

4A superficialidade da observação teria levado a juízos de valor desfasados da realidade. Desta viagem – encomendada pelo Estado Novo – de Gilberto Freyre às províncias ultramarinas em 1951, resultaram duas publicações: Um Brasileiro em Terras Portuguesas e Aventura e Rotina. A indignação que estas obras provocaram no movimento claridoso foi profunda: “Para quê não falar claro? O Messias desiludiu-nos. (…) o depósito que fica das fraternidades entrevistas mas não cumpridas amarga como fel” (Lopes, 1956, p. 11).

5Para um aprofundamento da questão da ambivalência “estrutural” da teoria claridosa, cf. Silvestre (2002).

6De notar que a particularidade da colonização de Cabo Verde e a própria categoria de crioulização impossibilitavam um resgate da africanidade ou sequer um retorno às origens. Seria tarefa árdua proceder a essa reafricanização em Cabo Verde. Como Vasconcelos (2004, p. 180) bem aponta: “A proclamação da africanidade de Cabo Verde (…) Não era de todo uma afirmação pacífica. Se o fosse, Cabral e seus companheiros não teriam de repeti-la vezes sem conta, como o fizeram – ao passo que nunca acharam necessário vir lembrar aos guineenses que também eles eram africanos”.

7Este dilema está bem patente no projeto de unidade com a Guiné-Bissau formalizado no PAIGC. Também neste aspeto o esquecimento do Nós cabo-verdiano impulsionou a luta nacionalista africana, traduzindo-se numa aproximação com a Guiné, ao invés de uma identificação interna. E note-se como a própria unidade entre cabo-verdianos e guineenses, que o PAIGC preconizava, contradizia a representação da singularidade cabo-verdiana.

8Dos exemplos que Vasconcelos (2007) fornece, importa destacar o trabalho de Miller sobre a Trinidad, segundo o qual, dentro do pluralismo étnico e das formas de categorização social que dele derivam, sobressai um padrão classificatório dualista, cujos pólos (africanidade e indianidade) não são apenas atributos de dois grupos étnicos, mas antes dois estereótipos associados a valores opostos e que nem sempre refletem a real origem cultural invocada na categoria.

9Os acontecimentos que refiro remontam a 2012 e 2013. Daqui decorre um certo desfasa­- mento entre os factos que relato e a forma como atualmente me situo e me situam no terreno, não obstante a validade situacional do que vivi à época e a aplicabilidade de muitas situações ainda hoje.

10 Apesar de aparentemente apontarem na mesma direção, a objetificação de Fabian difere da objetivação de Bourdieu. E, como adverte Fabian (2001, p. 16): “To say that defending ethnographic objectivity requires a theory of objectification does of course not mean that a theory of objectification as such confers objectivity on ethnography.”

11É interessante notar que foi no prefácio de A Aventura Crioula ou Cabo Verde, uma Síntese Étnica e Cultural (Ferreira, 1967) que Baltasar Lopes avançou com esta síntese, que se veio a tornar num slogan: “Nem africanos, nem europeus. Somos cabo-verdianos.”

12Creio que o fascínio ou a rejeição que o estrangeiro provoca, devem-se essencialmente a um mesmo fator: um capital simbólico percecionado como privilegiado.

13Note-se porém que a cor da pele é um marcador muito relativo, não apenas devido à existência da mestiçagem, mas porque em terra maioritariamente de mulatos, as categorias “branco” e “escuro” são vulgarmente utilizadas. Essa designação pode ser meramente descritiva, ou implicar processos de distinção social, como no caso da expressão “gente branca”.

14Apesar das proveniências étnicas e geográficas distintas, este Outro, africano continental, é homogeneizado numa designação étnica.

15Com um exemplo diametralmente oposto (“Ele é negro, mas é boa pessoa”), Challinor (2012) interroga-se se este tipo de comentário é, de facto, puro racismo, ou se não será porventura um questionamento dos estereótipos raciais.

16Seria epistemologicamente profícuo confrontar esta ideia de “dupla verdade” com a de “verdades parciais” de James Clifford, mas desviar-me-ia do objetivo deste texto. Contudo, importa reter que Clifford avançava com a noção de “ficção” (na medida em que é criada, sem a conotação de falsidade, oposta à verdade) para caracterizar a escrita etnográfica e sugerir a parcialidade das verdades históricas e culturais. Como esclarece: “Even the best ethnographic texts – serious, true fictions – are systems, or economies, of truth. Power and history work through them, in ways their authors cannot fully control. Ethnographic truths are thus inherently partial – committed and incomplete” (1986, p. 7).

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