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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

DOSSIÊ - OBJETIVAÇÃO PARTICIPANTE E ESCOLHA DO TERRENO

A escolha do terreno: ruralidade, familiaridade e reflexividade na construção dos terrenos etnográficos

Rurality, personal pathways and reflexivity in the construction of the field

 

Maria de Fátima Amarante*

*Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais e Políticas, CAAP/Unidade Científica de Antropologia, rua Almerindo Lessa, 1300-663, Lisboa, Portugal. E-mail: mf.amante@iscsp.ulisboa.pt.

 

RESUMO

 

O objetivo deste artigo é o de partir da relação que o antropólogo estabelece com o terreno e, numa abordagem ex-post-facto, refletir sobre o modo como os percursos, pessoais e de formação, são relevantes na construção do terreno. Recorrendo ao conceito de objetivação participante de Bourdieu, num exercício de reflexividade, problematizam-se processos de categorização e classificação que decorrem dos “mundos sociais” e do modo como determinadas escolhas são tidas como pessoais, quando, na verdade, talvez devam ser pensados como resultado de circunstâncias e vinculações externas ao investigador e aos seus processos de racionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: terreno; objetivação participante; reflexividade; ruralidade.

 

ABSTRACT

 

The purpose of this article is to start with the relationship that anthropologists establish with the field, and through an ex-post-fact approach, consider how personal and training pathways are relevant in constructing the field. Drawing on the concept of participant objectivation by ­Bourdieu, in an exercise of reflexivity we problematize processes of categorization and classification that arise from ‘social worlds’ and discuss how certain choices often seen as personal should perhaps be thought of as the result of external circumstances and binding processes between the researcher and his rationality processes.

KEYWORDS: field; participant objectivation; reflexivity; rurality.

 

INTRODUÇÃO

 

A ligação que, desde as primeiras décadas do século XX, se estabeleceu entre a antropologia, a prática etnográfica e a conceptualização do terreno – embora sujeita a mudanças na forma como foi sendo concebida não só se impôs, como adquiriu uma dimensão axiomática. Ir ao terreno ou fazer terreno é uma expressão que foi sendo integrada na prática e no discurso dos antropólogos como incontornável, seja por influência de figuras como Stocking Jr (1992), que do alto da sua experiência de historiador da disciplina antropológica, definiu o trabalho de campo como o critério de qualificação profissional, seja dos que, num registo diferente, humorístico, mas igualmente influente e poderoso, como Nigel Barley (1983) no-lo introduziram através da “comédia intelectual e social do trabalho de campo” (Quintais, 2006, p. 12). A isto acrescem, claro, as experiências de cada um que, tendo feito terreno, dificilmente conseguem pensar a antropologia sem ele.

O objetivo deste artigo é partir desta relação que o antropólogo estabelece com o terreno, pensando-o não apenas como elemento central, mas “natural” da experiência etnográfica e, numa abordagem ex-post-facto, refletir sobre o modo como os percursos pessoais e de formação são relevantes na sua construção. Através de uma prática de autoanálise, de reflexividade, problematizam-se processos de categorização e classificação que decorrem dos “mundos sociais” que apresentam determinadas escolhas como naturais e automáticas, quando, na verdade, talvez devam ser pensados como resultado de circunstâncias e vinculações externas ao investigador e aos seus processos de racionalidade.

Para tal, torna-se necessário situar a importância do terreno-lugar na prática etnográfica e refletir criticamente sobre constrangimentos envolvidos no processo de seleção do mesmo. Desde logo, aceitar que, em muitas situações, o terreno impõe-se-nos, numa confirmação da máxima já estafada de que “não somos nós que fazemos o trabalho de campo, mas é o trabalho de campo que nos faz” (Simpson, 2006, p. 125). Neste processo, avulta uma multiplicidade de fatores, entre os quais se contam circunstâncias de natureza pessoal que, a par de exigências de teor científico, enquadram as condições sociais de possibilidade da pesquisa etnográfica.

Proponho-me, portanto, um trabalho de análise crítica da ação do investigador, do seu posicionamento no campo social em que existe, das razões que informam esse posicionamento e do modo como isso é consequente na produção do conhecimento etnográfico. Nesse sentido, recorro aos dispositivos da reflexividade científica, com recurso à noção e à prática de objetivação participante (Bourdieu, 2003, 2004), numa estratégia que também é comum à antropologia pós-moderna.

A partir da literatura, e utilizando a minha experiência de pesquisa etnográfica, tentarei dar conta de como o posicionamento do investigador no terreno está influenciado pelos enquadramentos institucionais em que se move e pela sua biografia, isto é, como estes conferem significado ao posicionamento do antropólogo e dos sujeitos e, em última análise, à produção do conhecimento etnográfico. Como todos estes contextos são, pois, relevantes enquanto parte dos “mundos sociais” referidos por Bourdieu.

 

OBJETIVAÇÃO PARTICIPANTE, REFLEXIVIDADE EPISTÉMICA E NARCISÍSTICA

 

Nos anos de 1980 tornou-se tendência, no âmbito da antropologia norte-americana, a revisão crítica da prática discursiva em antropologia. Todos os aspetos envolvidos no processo de construção do conhecimento etnográfico moderno – uns mais que outros, é certo – foram, então, criticamente avaliados num processo de “vigilância epistemológica” (Bourdieu, 1989; ­Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 2002). Desde a escolha de tema e de terreno, às relações estabelecidas em campo, e escrita etnográfica, tudo foi objeto de um exaustivo escrutínio por parte dos antropólogos, que se colocaram, a si e às suas potenciais opções metodológicas, sob as suas próprias lupas. Como chegou a ser referido, houve um momento em que “[era]quase um pecado, não ser reflexivo” (Maton, 2003, p. 54).

A atitude reflexiva é igualmente reconhecível em Bourdieu, a quem o interesse pela natureza da ciência suscitou, de modo muito assertivo, a necessidade de objetivar o sujeito da objetivação, isto é, aplicar o método científico também ao investigador e à sua ação, com o intuito de “antropologizar o nosso mundo, a sucessão de matrizes sociais de que provimos (…) [recorrendo então] à definição de ‘objetivação participante’” (Wacquant, 2006, p. 23). Bourdieu concede que esse controlo sociológico do investigador sobre o investigador – a tal “objetivação do sujeito da objetivação” que o próprio conceito quer significar – sendo difícil, é, não obstante, imprescindível.

A reflexividade científica, operacionalizada através da “objetivação participante”, é uma das várias estratégias que, entre outras, permite pensar a experiência e o encontro etnográficos. A antropologia pós-moderna deslocou a atenção do nativo para o antropólogo, problematizando, de modo produtivo, o seu próprio posicionamento no terreno, com insistência na intersubjetividade (Marcus, 1995; Coffey, 1999) e nas condições de produção do texto etnográfico (Clifford, 1986; Geertz, 1988 e Marcus, 1998). Este exercício de reflexividade resulta, em larga medida, da constatação de que o posicionamento adotado durante a investigação tem, obviamente, consequências na produção do conhecimento etnográfico e que o investigador das ciências sociais, não apenas o antropólogo, não observa apenas, mas fá-lo a partir de uma determinada posição, com várias implicações associadas.

A atitude de reflexividade pós-moderna, que antropólogos como ­Marcus e Fisher (1986) ou James Clifford (1986) tornaram tendência, com o seu enfoque na autoanálise do antropólogo à sua própria performance é, segundo ­Bourdieu, despiciente, nada mais do que “uma explosão de narcisismo, às vezes roçando o exibicionismo (…) [surgido] na esteira, e como reação a longos anos de repressão positivista” (Bourdieu, 2003, p. 282). Bourdieu reconheceu, através do seu aparato conceptual, que “a idiossincrasia das experiências pessoais, quando submetidas ao controlo sociológico, constituem recursos analíticos insubstituíveis e [que] a mobilização do passado social de cada um através de uma auto-sócio-análise pode produzir benefícios epistemológicos e existenciais” (Bourdieu, 2003, p. 281). Mas é crítico do modo como a antropologia pós-moderna encarou esta exigência, reconhecendo a insuficiência da explicação da “experiência vivida” como caminho para pensar objetivamente a produção do conhecimento científico. Bourdieu insiste: aquilo que é verdadeiramente relevante é a análise do mundo social que o fez antropólogo e no qual ele faz antropologia, incluindo aqui as condições sociais de produção das pré-noções, que todos transportam consigo e dos agentes sociais que as produzem (­Bourdieu, 2003). Quando refere as condições sociais, fá-lo numa perspetiva ampla – para lá dos habituais atributos e das dimensões identitárias, frequentemente explorados e discutidos pela antropologia reflexiva, e da intersubjetividade – para incluir aqui “estruturas objetivas de um microcosmos social ao qual o investigador pertence (…) que permanecem mais ou menos escondidas e que mantêm influência sobre o antropólogo, de modo que, as opções ­tomadas, mesmo as que parecem ser mais pessoais, são, na verdade, formadas por disposições socialmente constituídas” (Bourdieu, 2003, pp. 283-284). A objetivação participante, neste sentido, implica avaliar criticamente a sua própria prática de investigação a partir de um escrutínio sobre a posição do antropólogo na academia, na história da antropologia; do seu posicionamento na instituição à qual pertence. O que propõe é uma objetivação do campo social, com relevo para a crítica a aspetos que habitualmente são tomados como certos (Lynch, 2000) e, simultaneamente, considerados pouco relevantes na produção do conhecimento.

A sua proposta é a da “reflexividade epistémica”, isto é, a de que o olhar reflexivo que o investigador lança sobre a sua prática de investigação não se resuma a processos subjetivos de construção de texto, mas que o torne consciente da sua posição dentro do campo (sociologia, antropologia…) a partir do qual questiona a sua prática de terreno. O efeito da reflexividade epistémica é, pois, segundo Bourdieu, o de tornar cada participante do campo científico em que atua, “mais consciente sobre o modo como objetiva o seu ponto de vista, [perceber que] a verdade é produzida no âmbito de um campo, como resultado de uma luta de dominação, que a verdade é revisível e, finalmente, que a revisão da verdade deve basear-se na ‘objetivação mútua’ ou criticismo mútuo” (Kim, 2010, p. 4).

Numa leitura crítica desta abordagem de Bourdieu, tem sido sublinhado que, na verdade, não existe na sua proposta uma diferença substancial relativamente a outras práticas reflexivas das quais ele tentou demarcar-se (Kim, 2010; Maton, 2003; Lynch, 2000). Persistem dúvidas se a reflexividade epistémica, tal como vem sendo atribuída a Bourdieu e praticada pelos que seguem a sua orientação, não continuará a esgotar-se num individualismo metodológico (Maton, 2003), falha de uma dimensão coletiva que tanto defendeu.

Sem ter a pretensão de discutir estas posições teóricas, o que pretendo com este artigo é, tão-somente, recuperar as noções referidas e a ideia já avançada noutro momento de que voltar o investigador o olhar para si próprio e para as várias posições que ocupa durante o trabalho de campo não significa “tornar-se autista relativamente aos sujeitos da sua pesquisa” (Amante, 2012, p. 94) e ao que o rodeia, nem perder de vista que o interesse da antropologia é ‘o outro’. Desse modo, a prática da reflexividade é um exercício cujo interesse depende da sua capacidade para contribuir para a produção de conhecimento sobre sujeitos e objetos da pesquisa, ainda que o foco possa estar no investigador e na sua ação.

 

DO LOCAL DA PESQUISA AO TERRENO

 

O trabalho de campo implica um “‘o quê’ da antropologia [e um] ‘onde’” (Gupta e Ferguson, 1997). Sabemos que o terreno de pesquisa antropológica é muito mais do que um local onde vai ser realizada a observação. Mas também é um local. E se há casos em que, inequivocamente, local e objeto de pesquisa se confundem, outros casos há em que aquilo que tomamos como objeto de pesquisa poderia ser observado em vários locais. Quando é este o caso, não obstante a insistência no campo como uma construção (Amit, 2000), a verdade é que é preciso proceder também a uma escolha do local para realizar a pesquisa. Esta decisão sobre onde decorrerá a pesquisa pode ser uma das fases mais stressantes do trabalho de campo. Ela anda associada, normalmente, à avaliação de vários de fatores que é necessário ponderar e a graus de autonomia relativamente diferentes. Conhecemos da antropologia um tempo em que não foi necessário passar pelo processo de escolha de terreno, à partida já definido por “limites impostos por fronteiras geográficas ou étnicas bem precisas” (Sarró e Lima, 2006, p. 25); noutros casos, a seleção decorreu de interesses ou do apoio de terceiros, habitualmente dos orientadores, investigadores principais dos projetos, etc. Há ainda de quem se diz, como de C. Geertz, terem “tropeçado” no terreno (e na antropologia como campo) por força da sua integração, com outros estudantes, numa equipa de investigação da universidade de Harvard com destino a Java, Indonésia, onde faria um dos seus terrenos mais relevantes (1995). Finalmente, em alguns casos, são razões de ordem pessoal, autobiográficas, as que informam a tomada de decisão sobre a localização do terreno (Knowles, 2000).

No âmbito da autoanálise, que perpassou a disciplina antropológica antes referida, o processo de seleção do terreno-local permaneceu um dos aspetos menos tratados. Gupta e Ferguson (1997) constataram isso mesmo a propósito da academia norte-americana onde existe uma forte tradição de incluir nos curricula da formação em antropologia um período de trabalho de campo e, não obstante, sobre os processos de definição do mesmo parece haver um vazio discursivo. Isto é tanto mais estranho, quanto sabemos que para o antropólogo, o local onde decorre o trabalho de campo é de suma importância; afinal, estamos a falar do, ou dos contextos, onde decorrerá a observação (Stein, 2006). Na altura, afirmaram com perplexidade:

 

Mas e sobre o “campo”, em si mesmo? O local onde o trabalho específico do “trabalho de campo” pode ser feito, esse espaço tomado como certo onde a cultura e a sociedade do “Outro” estão à espera para serem observadas e escritas? Esse espaço misterioso – não o “o quê” da antropologia mas “o onde” – foi deixado ao senso comum, para lá e sob o reduto da reflexividade [Gupta e Ferguson, 1997, p. 2].

 

Efetivamente, quando nos manuais e nas etnografias se discute o trabalho de campo é mais para explorar o trabalho e menos o campo (Stein, 2006, p. 59). Igualmente verdadeiro é dizermos que as muitas dúvidas que se podem colocar sobre a escolha do local do trabalho de campo ficaram durante muito tempo ausentes da escrita etnográfica. Sobretudo razões de ordem pessoal (familiares, financeiras, etc.) só ganharam visibilidade digna de registo nas últimas décadas do século XX, precisamente no contexto da reflexividade pós-moderna, que questionou a convenção antropológica que pressupunha que fazer trabalho de campo implicaria necessariamente uma “distância cultural, social e espacial, como critério que garante a autenticidade etnográfica” (Amit, 2000, p. 4). A crítica à espacialização da noção de “campo”, que define o local da pesquisa como necessariamente exótico, distante, que requere longas deslocações espaciais (Clifford, 1992; Gupta e Ferguson, 1992 e 1997), introduz a reflexão sobre o local do trabalho de campo. À medida que o assunto foi sendo discutido, percebemos que, mesmo nos casos em que se trata de optar entre vários locais possíveis, essa escolha é apenas o início da construção do terreno. Uma vez iniciado o trabalho de campo, o antropólogo está numa situação que é a de tentar perceber como é que um determinado local pode construir-se como lugar e terreno antropológico.

É neste domínio que gostaria de me situar e, fazendo uso da ideia de Bourdieu sobre a importância de “objetivar o sujeito da objetivação”, voltar o olhar para o processo de construção do meu terreno aquando da realização da pesquisa conducente ao doutoramento em Antropologia. Persisto nalgum ceticismo sobre determinismos cerrados na seleção de objetos e terrenos etnográficos, tal como os evidenciou Charles Soulié (1995), um aluno de Bourdieu, quando relacionou estatisticamente os objetos de pesquisa com os percursos sociais, educacionais e de género dos seus autores. No entanto, é forçoso reconhecer a sua influência, por vezes inconsciente, bem como é relevante admitir que toda a atividade de investigação incorpora as exigências do campo científico do qual o investigador é parte (Bourdieu, 2003) e que, num nível mais “baixo”, “as escolhas são impostas pelas condições de trabalho académico e por práticas textuais aceites” (Fine, 1993, p. 268).

 

DIMENSÃO PESSOAL E INSTITUCIONAL NA ESCOLHA DOS TERRENOS ETNOGRÁFICOS

 

As dúvidas sobre onde realizaria o trabalho de campo colocaram-se no final dos anos 90, quando preparava o projeto de doutoramento em ciências sociais na especialidade de antropologia. Tinha definido previamente que trabalharia processos de construção identitária, na altura uma tendência de investigação com alguma consistência no grupo do qual fazia parte, e que dava resposta a uma nova área de especialidade na formação dos alunos de antropologia, então designada de Relações Etnoculturais. O interesse por zonas de fronteira ajudou na concretização da temática, tendo estabelecido que a investigação se centraria na exploração do conceito de cultura de fronteira, que incorporava e reproduzia, simultaneamente, a ideia, então amplamente difundida, das identidades híbridas, contestadas, manipuladas, por oposição à construção identitária como categoria homogénea. Trataria, pois, da construção de identidades em zonas de fronteira. Havia que começar por decidir qual fronteira e onde na fronteira. Recordo esta fase como uma das mais desgastantes de todo o processo.

Os anos noventa e a entrada no novo milénio tinham acentuado a polissemia das fronteiras internacionais: instrumento dos Estados, mas também das populações, vistas como obstáculos ou como pontes, capazes de funcionar enquanto elemento que permite, tanto a inclusão como a exclusão. As jovens fronteiras que se delineavam no coração da Europa, resultantes das mudanças políticas que vinham ocorrendo desde 1989, e que se, nuns casos, separavam comunidades, noutros as uniam, apresentavam-se, na altura, como um contexto etnográfico muito promissor e no qual tinha interesse. Equacionar a realização do trabalho de campo fora de Portugal foi, porém, liminarmente colocada de parte logo na fase inicial. Essa decisão dependeu essencialmente de questões de natureza pessoal e familiar e não, como seria de esperar, do interesse ou da maior ou menor relevância associada aos possíveis terrenos. Tinha sido mãe recentemente e não considerava deslocar a família, de forma tão duradoura, para o terreno. A opção pelos terrenos portugueses foi a que considerei melhor do ponto de vista do equilíbrio que desejava para cumprir com os papéis de investigadora, docente e mãe. Não seria, porém, uma escolha isenta de problemas.

Profissionalmente, as dificuldades surgiram sobretudo no que diz respeito à necessária dispensa de serviço para realizar o trabalho de campo, algo que não foi possível obter. Fazia doutoramento na instituição onde também trabalhava como docente e onde havia, na altura, muito pouca abertura para conseguir dispensa de serviço docente para os que, como eu, faziam doutoramento no país. A solução foi, pois, trabalhar a construção da identidade raiana, fazendo o trabalho de campo na fronteira luso-espanhola. Mas “onde”?

A escolha do local do trabalho de campo foi norteada pela busca de “aldeias com espelho” (Pais de Brito, 1995), não uma, mas várias, portuguesas e espanholas. Uma vez mais, esta decisão está enquadrada do ponto de vista institucional e pessoal. As vicissitudes que envolveram a escolha do local para fazer terreno – com intermináveis percursos ao longo da raia ­luso-espanhola e leitura de etnografias clássicas produzidas a partir de estudos de comunidade – ficam perdidas, agora, a uma distância de mais de uma década, numa névoa de dúvidas, de indecisões, de avanços e recuos, que me acompanhou, seguramente, ao longo de dois anos. A revisão da literatura revelava que, na altura, vários antropólogos vinham fazendo trabalho de campo na raia luso-espanhola: Paula Godinho e William Kavanagh, no Norte de Portugal e na Galiza; Luís Uriarte e Luís Cunha, no Alentejo e na Extremadura espanhola; José ­Valcuende del Rio, em Ayamonte. Não obstante a problematização que me propunha ser diferente, um dos critérios foi o de não trabalhar em zonas já estudadas.

Diz Bourdieu (2003) que o posicionamento do investigador em determinados meios académicos e disciplinares é relevante na forma como são tomadas as suas opções. Transpondo para uma outra escala, a da escola-instituição, e não de área disciplinar, e revendo o processo de seleção do local para fazer o trabalho de campo, percebo que o meu treino, desde os tempos de estudante, foi consequente na forma como geri as minhas opções epistemológicas e metodológicas. Ter estudado antropologia numa escola que, na altura, ainda privilegiava um modelo de formação metodológica comum, para estudantes de diversas formações, enfatizando a investigação social em detrimento da pesquisa etnográfica, de per si, preparara-me e formatara-me, percebi depois, num nível mais intenso do que pensei, para uma abordagem tendencialmente moderna e positivista ao terreno. A valorização de uma sólida formação na componente técnica da investigação social e de um modelo de ensino que preparava os estudantes para a aplicação das técnicas de recolha e de análise de dados, deixava, porém, pouco espaço para questões que são abordadas mais eficazmente se forem refletidas e discutidas. A dimensão familiar, pessoal e emocional da pesquisa que pesei muito na preparação do meu doutoramento é disto um exemplo.

Preparei um projeto que considerava dentro das tendências contemporâneas da investigação etnográfica, distante da monografia clássica, com intenção de pesquisar na aldeia e não sobre a aldeia (Geertz, 1973) e de conduzir uma etnografia multissituada (Marcus, 1995), o que veio a acontecer. O terreno foi construído a partir das histórias narradas pelos sujeitos, acompanhando o movimento dos objetos contrabandeados. Mas é forçoso referir que as condições de formação e outras práticas aceites como boas não só influem como persistem no nosso trabalho, mesmo quando já não as reconhecemos interessantes. Persistiu no meu trabalho algum ecletismo, identificável em algumas práticas que denunciavam a influência da formação metodológica de banda larga, por exemplo, a necessidade que senti de fazer uma recolha extensiva de alguns dados através da utilização de questionários nas várias aldeias onde trabalhei.

Acredito que estas opções foram reforçadas pela minha prática profissional no ensino de metodologia de investigação a estudantes de sociologia, que me mantinha nesse domínio, mais positivista. Sobre a escolha do local de pesquisa, as conversas com o meu orientador, e com um ou outro colega mais experiente situavam-se, habitualmente, no plano científico, remetendo a conversa para um conjunto de “categorias” e “classificações” insuspeitas – a relevância do local como terreno, a sua adequação e potencialidades ao nível do acesso – por serem as mais expectáveis na tradição da escola. De fora ficavam os critérios de ordem mais subjetiva que mantinha numa espécie de agenda paralela, em que ia ponderando as minhas opções a partir de uma outra variável, pessoal e familiar.

A relação entre o trabalho de campo e a família, amplamente discutida, como parte da crítica à masculinização do terreno etnográfico (Bell et al., 1993) e, portanto, à dimensão profundamente androcêntrica que a antropologia moderna imprimiu à pesquisa etnográfica, tem tornado evidente o quanto a família e as suas exigências se mostram relevantes e devem ser consideradas (Flinn, 1998; Bell et al., 1993; Frohlick, 2002).

Mentalmente, tentava antecipar como articularia as minhas rotinas de investigação com as académicas e as familiares. Fora das razões de ordem científica havia vários aspetos a considerar, entre os quais os de caráter financeiro, já que iria assumir os custos associados à investigação (a realização do trabalho de campo implicaria ter de arrendar uma casa, muitas viagens entre casa e o campo, etc.). Mas o fator que mais pesava, e desequilibrava, era ter, na altura, duas crianças ainda muito pequenas. Senti sempre que o meu trabalho de campo era uma imposição nas suas vidas e, por não querer quebrar as suas rotinas mais do que o necessário, decidi que só esporadicamente estariam comigo no terreno.

A distância entre campo e casa foi um importante fator de ponderação no momento de escolha do local para fazer o terreno. Fazia contas aos quilómetros que me separariam de casa se a minha opção fosse, como ainda equacionei, a zona raiana de Montalvão, Juromenha ou qualquer outro lugar no Alto Alentejo, onde tenho as minhas raízes e onde seria possível reproduzir a casa no terreno, mantendo as crianças mais próximas.

Cedi à influência da formação e acabei por escolher o terreno que considerava ser o mais relevante do ponto de vista da problemática formulada, e o mais distante de casa (entre os considerados): a zona raiana do concelho do Sabugal, distrito da Guarda, e a vizinha comarca de Ciudad Rodrigo. Esta decisão teve, do ponto de vista pessoal e da investigação, custos elevados. O trabalho de campo ficou marcado por esse afastamento forçado, por me saber ausente durante semanas. Lidei muito mal com isso, pelo que acabaram por estar comigo, lá, muito mais vezes do que antes havia decidido. Quando estavam, os meus filhos condicionavam as rotinas e a disponibilidade para trabalhar. A sua presença haveria de se revelar, no entanto, importante no ­estabelecimento de algumas relações: muitas vezes antes de falarem comigo, as pessoas abordavam as crianças, oferecendo-lhes doces, perguntando-lhes se gostavam de estar ali. A sua ausência também foi, em alguns casos, consequente na recolha de informação.

Numa das vezes em que cheguei sozinha, a D. Neves perguntou: “Então, hoje vem sozinha? E os meninos?” Respondi, desanimada: “Desta vez ficaram em casa”. Procurou animar-me, buscou na sua experiência e encontrou forma de o fazer: “Deixe lá… está cá muito frio. Ficam melhor com o pai. Já sei que custa, olhe, ainda me lembro quando fui para França e deixei as minhas filhas cá, com a minha mãe. Tanto tempo sem as ver… telefonava e pedia à Tia Chão que visse se alguma estava na praça, que a chamasse, para lhe falar. Vai ver que passa depressa e depois logo vêm para cá, quando o tempo estiver melhor”. Esta memória, recuperada pela D. Neves, e outras do mesmo teor, ajudaram a relativizar, mas não sem algum sentimento de vergonha da minha parte. Afinal, as experiências de afastamento que me narravam eram incomparavelmente mais penosas. Como vim a perceber, os seus afastamentos eram de meses e de anos, quando, tendo emigrado “a salto”, não podiam voltar.

No decorrer do trabalho de campo, percebi que a opção de os deixar em casa e enfrentar o campo sozinha, tentando que as suas vidas não fossem afetadas pelas exigências da pesquisa, escondia uma outra questão sobre a qual, na altura, não pensei, mas que se deve ter insinuado: a pesquisa também não deveria ser afetada e a sua presença poderia ter – e tinha – esse efeito, desviando-me das rotinas de investigação. Mais uma vez, a forte clivagem que então estabeleci entre a casa e o campo, a ciência e o quotidiano, o conhecer e o viver, denunciam essa orientação mais moderna da investigação antropológica, que, não obstante considerar datada, se deixava perceber nas minhas decisões. Criteriosamente, avaliei várias possibilidades, seguindo uma espécie de cartilha, mas mantendo ativadas outras razões que mantive mais ocultas. Todas foram importantes. Por força de tanto lermos e afirmarmos que “vamos para campo”, assumimos que o campo “está lá”, simplesmente, à espera de ser descoberto. Esta experiência ajudou-me a compreender melhor o sentido do que tem sido abundantemente referido na literatura: o campo é construído (Gupta e Ferguson, 1997; Amit, 2000; Berg, 2006; Mapril, 2006).

 

RURALIDADE, FAMILIARIDADE E ANTECIPAÇÃO DO TRABALHO DE CAMPO

 

A reflexividade epistémica de que fala Bourdieu (2004), concebida como uma “etnografia da etnografia encontra o seu valor na capacidade que tem de ­recuperar dimensões sociais e pessoais da investigação e, com isso, ajudar a converter a intuição decorrente da familiaridade social, de handicap intelectual para capital científico” (Bourdieu, 2004, p. 415). Reside aqui, do meu ponto de vista, a dimensão mais relevante da atitude reflexiva: não ser, apenas, um instrumento de autoanálise, a que Bourdieu chama narcisismo, e que ­Marcus designa como “reflexividade nula” (Marcus, 1988, p.193), mas um dispositivo capaz de produzir conhecimento etnográfico.

A reflexividade, qualquer que seja o seu tipo, e considerando que existem diversas tipologias (Lynch, 2000), não deve ter como objetivo último o autoconhecimento, mas sim a produção de conhecimento sobre os objetos e os sujeitos da pesquisa. É nesse sentido que procuro enquadrar a opção por terrenos rurais e pela pequena comunidade como campo de pesquisa antropológica. Essa opção decorre da formação antes referida como acentuadamente positivista, enraizada num discurso que reservava para a antropologia objetos e campos específicos. Embora a minha intenção fosse a problematização da comunidade como construção simbólica (Cohen, 1985; Strathern, 1982) e tivesse optado por um terreno que era uma zona raiana e não uma aldeia raiana, no cômputo final, quando penso no trabalho de campo, penso mais nos Foios e menos nas demais aldeias onde ele decorreu, recuperando a influência de Redfield (1953) acerca do estudo da pequena comunidade.

Para além desta dimensão de formação, neste questionamento de como cheguei ao trabalho de campo em várias aldeias e pueblos na raia luso-espanhola e não a espaços urbanos, com os quais tenho uma experiência mais recente (Amante, 2013), confronto-me claramente com a minha origem rural: nasci e vivi boa parte da minha vida numa das freguesias rurais do concelho de Borba: Orada, onde também cheguei a fazer terreno. A decisão de conduzir o trabalho de campo em meio rural decorre de uma construção subjetiva da ruralidade e das potencialidades que associo aos terrenos rurais. Ambas resultam da experiência de vida e de terreno.

Embora seja arriscado defini-la como categoria homogénea, algumas características estão associadas à ruralidade em Portugal, designadamente indicadores sociodemográficos das populações rurais; por exemplo, volume populacional, setores de ocupação, envelhecimento e níveis de dependência, são generalizáveis. O mesmo acontece com alguns comportamentos sociais decorrentes das características antes referidas: o interconhecimento generalizado, as relações de vizinhança, o controlo social, o conflito. Conheço-os bem, por ter convivido com eles durante boa parte da minha existência, o que faz com que, para mim, o espaço rural se torne expectável e, consequentemente, dotado de um maior potencial, garantindo a possibilidade de se construir como terreno. Invocar a vantagem da previsibilidade contraria a própria definição da pesquisa etnográfica que se define pelo inesperado (Pieke, 2000), dada a “disponibilidade e abertura do antropólogo ao que venha por acaso, ainda que ele pareça, à primeira vista, irracional e absurdo” (Okley, 2012, p. 23); mas é consentâneo com vantagens associadas à antropologia em casa, que aqui me pareciam poder ser transpostas, dada a maior familiaridade com terrenos rurais. Designadamente, a facilidade de entrada e permanência no terreno.

Na construção do terreno a relação de proximidade com as pessoas é fundamental. Conseguir fazer com que o local onde trabalhamos se construa, simultaneamente, como lugar e como terreno implica que consigamos estabelecer relação com espaços e pessoas e, para tal, temos de chegar até elas. Como argumentaram Patricia Adler e Peter Adler, entre muitos, o trabalho do antropólogo depende claramente da intersubjetividade (1987), do estabelecimento de um tipo de relação que crie uma “disponibilidade das pessoas falarem connosco livremente, presenteando-nos com as suas histórias” (Behar, 2003 p. 22). Era aqui, na possibilidade de estabelecer essa ligação, que acreditava estar mais preparada nos terrenos rurais, por partilhar experiências idênticas que me permitem entender certas resistências, ultrapassá-las, e chegar até às pessoas. As minhas origens rurais e a familiaridade com a vida na aldeia impactaram a construção do terreno pelo fator de antecipação que produziram, não só na entrada no terreno, bem como na dinâmica das relações sociais na aldeia.

A experiência da minha aldeia de origem sugeria-me que precisaria de encontrar maneira de avançar para lá de um certo clima de curiosidade cautelosa que me habituei a ver quando por lá aparecem desconhecidos. No passado, mais frequentes seriam ciganos, vendedores ambulantes ou, ainda, pessoas que se dedicam ao proselitismo, frequentemente Testemunhas de Jeová. Mais recentemente, são indivíduos que pertencem a instituições de solidariedade social e solicitam apoio porta a porta. Sempre que há estranhos a contactar as pessoas nas suas casas, rapidamente toda a aldeia é informada através do passa-a-palavra, detetando-se uma certa resistência ao contacto, sobretudo tratando-se de práticas de proselitismo.

O trabalho de campo obrigava-me a vestir, nos Foios e nas demais aldeias onde me deslocava frequentemente, a roupagem do estranho na aldeia, o que me levava a antecipar problemas de acesso ao terreno. As dúvidas tornaram-se ainda mais prementes devido à coincidência entre o início do trabalho de campo e uma alteração importante na sociedade portuguesa: a transição do escudo para o euro. Repetiam-se na comunicação social as notícias de burlas a idosos, sobretudo no interior do país, que, a pretexto da mudança da moeda, eram levados a entregar as suas poupanças. Consequentemente, havia uma campanha nos meios de comunicação social que alertava estas populações para a presença de pessoas estranhas às suas relações. Com base nisto, as inseguranças sobre o modo como deveria abordar a entrada no terreno adensaram-se ainda mais. Por isso, recorri ao meu repertório de estratégias de acesso à informação e tentei negociar via “figura influente”: falei sobre este assunto com uma das poucas pessoas que conhecia nos Foios, o presidente da Junta de Freguesia, pessoa que tinha recebido muito favoravelmente a ideia de ter um investigador na aldeia, e que, numa atitude paternalista, se predispôs a ajudar. Professor de profissão, mais qualificado do que a maioria dos vizinhos, profundamente dinâmico no estabelecimento de relações com os seus congéneres políticos, de um e outro lado da fronteira, desenvolveu esforços no sentido de conseguir que eu ficasse nos Foios, e não nas outras aldeias. Apresentou-me a algumas pessoas, fazendo passar a palavra de que “estava uma senhora na aldeia, cuja senhoria era fulana tal, e que era pessoa de bem”. Aconselhou-me a invocar o seu nome se detetasse maior resistência.

Também aqui encontrei fundamento para ponderar o benefício de tal atitude, dado o caráter profundamente competitivo da política local. Quando, na minha aldeia de origem, se enfrentam os candidatos ao poder local, a aldeia não é a mesma, conhece um tempo de exceção, e de excessos; não é invulgar membros da mesma família integrarem listas partidárias opostas e, durante o período de campanha, quebrarem os habituais laços de convivência, evitando-se e adotando um comportamento diferente do habitual. Quebram-se laços sociais, que são retomados posteriormente quando a azáfama da campanha já terminou e os ânimos serenaram. Ponderei que peso poderia ter esta proximidade ao presidente da Junta, que ali funcionava como gatekeeper. Temi que facilitasse o acesso a uns e, simultaneamente, dificultasse a relação com outros, e que a sua recomendação condicionasse os dados a recolher. Mas o receio de não conseguir permanecer na aldeia e fazer o terreno revelou-se mais forte. Aceitei a ajuda e, à distância, reconheço a sua importância, sobretudo para aumentar a minha confiança numa fase inicial.

Quando, em setembro de 2002, cheguei aos Foios para ocupar a casa que arrendara um mês antes, comecei lentamente o processo de aproximação aos Fojeiros. Inicialmente, um número reduzido de pessoas, sobretudo mulheres que frequentavam o Café Milénio, entre as quais a esposa do presidente da Junta e a proprietária do Café, ajudaram como puderam nessa tarefa: indicando onde deveria “fazer a compra”, isto é, abastecer a casa, recomendando que comprasse lenha, “muita, que cá faz muito frio”, e oferecendo algumas coisas.

Para além da inestimável dádiva de histórias de que fala Behar (2003), pequenas ofertas revelaram-se como uma das principais estratégias de acolhimento que encontrei durante o trabalho de campo, e foram muito importantes na própria construção do terreno. Duas semanas após a chegada à aldeia, ao abrir a porta de casa, deparei com um cesto repleto de produtos locais, hortícolas; pelo S. Martinho, os sacos com castanhas; no Natal, apareceu uma caixa com filhós: “Para conhecer as nossas, que são diferentes…”. Numa outra situação, no final de uma entrevista, os doces para os meus filhos e, claro, à medida que o tempo ia passando, a oferta do café. As ofertas mantiveram-me próxima e parte de uma rede de relações mais fina com algumas pessoas. Esta diferença na relação social mantida em campo e as suas implicações na produção do conhecimento etnográfico, já discutidas noutra ocasião (Amante, 2012), foram muito relevantes na construção do terreno: inevitavelmente, a maior proximidade a uns ditou o afastamento de outros. Questionava-me sobre que efeitos teria nos que estavam mais distantes e na relação com eles.

O valor desta experiência está, também, na infirmação das dificuldades antecipadas, reforçando o quanto as relações no terreno têm dinâmicas próprias, mesmo em contextos expectáveis, por semelhantes. Ainda assim, decorrido quase um ano de trabalho de campo e atingido um nível de conforto na relação social, registei no meu caderno de campo as dúvidas que ainda me assaltavam no momento de participar num convívio local.

“Assim que cheguei, mesmo antes de entrar em casa, parei para conversar com a Tia Graciete que me informou que “— Amanhã temos uma festa cá nos FoiosÉ o dia dos caçadores e há um almoço para todo o povo. Vamos todas, e você vai também”’. “— Pois claro!”, Concordaram as, entretanto chegadas, D. Maria e D. Josefa. Instruíram-me para levar prato e talher e que estivesse pronta às 11 horas, que me chamariam para a missa e, de seguida, iríamos almoçar. No dia seguinte, lá fomos, não sem alguma apreensão da minha parte. As festas convívio de caçadores que conheço são eventos restritos ao grupo, apenas homens, não são sequer abertos às suas famílias. Não tinha ideia de quem seriam os caçadores e se estariam dispostos a ter lá quem não convidaram. No próprio dia, ainda perguntei à D. Maria se não estranhariam a minha presença, sobretudo os mordomos da festa. Sossegou-me: “Não. Você agora mora cá, pode ir como toda a gente”. Morar lá não me deixava mais à vontade; a artificialidade da minha presença ali, naquela festa, mantinha-se, não só porque as minhas referências eram outras, mas porque o tempo que ali passara já me permitira perceber que a pertença se define por muito mais do que a residência.

A pesquisa etnográfica em contextos rurais, com comunidades de pequena dimensão, deve considerar a apertada malha de relações sociais definida pelo interconhecimento generalizado. Este padrão tem consequências, sendo as mais frequentes a intriga e o rumor, bem como as oposições entre membros da comunidade motivadas por “invejas”. Várias pessoas afirmavam que a inveja era o que melhor caracterizava os Fojeiros, e a crítica social aparecia associada a isso. Na verdade, também na minha aldeia de origem se dizem invejosos. É algo que decorre do conhecimento profundo, detalhado, da vida de cada um e que resulta numa espécie de competição pela diferenciação, habitualmente através da exibição de sinais de riqueza. No caso dos Foios, um dos alvos habituais da crítica eram os que no passado conseguiram, através do contrabando, um poder económico que lhes permitia gerir contrabandistas e carregos. A minha senhoria incluía-se nesta categoria. O discurso sobre a vida difícil na raia, antes da intensificação da emigração para França, trazia sempre consigo uma avaliação dos protagonistas das histórias. A relação de patrão/cliente do passado era agora transposta para o presente e ativada como crítica, que chegava, por vezes, a ser dura. Nas suas palavras, transparecia uma atitude de desvalorização do sucesso económico dos que, como a minha senhoria, tinham enriquecido com o contrabando. Surgiam narrativas recorrentes que lhes apontavam o provincianismo: “têm muito dinheiro, mas nunca saíram daqui”, vindas sobretudo dos que se tinham libertado da dureza da vida do contrabando em favor da emigração. A legitimação social do contrabando não se aplicava a quem fazia dele negócio, mas apenas aos que recorriam a ele como estratégia de sobrevivência.

Esta situação colocava-me perante discursos opostos: de um lado, o argumento da minha senhoria de que o que fazia era “Dar trabalho quando não o havia”; do outro, que era “Como uma exploração”, porque eram eles que se arriscavam na serra com o carrego nas costas. Sempre que me falavam do assunto, deixando transparecer indignação, percebia que o faziam por associarem uma proximidade entre nós. Ela sabia que era alvo de julgamento devido ao passado e devolvia, recriminando a ingratidão dos seus vizinhos. Inicialmente, não sabia como gerir esta informação, que uso fazer dela. Não me parecia certo, do ponto de vista ético, explorar um conflito que percebia ser latente. Mas, independentemente de se considerar a utilização do rumor como fonte de informação (Van Vleet, 2003), não tenho dúvidas de que, quando me concentrei em avaliar o conteúdo da situação, foi forçoso reconhecer que muita informação de que dispunha sobre as práticas sociais da comunidade tinha sido conseguida através dessa atitude crítica, do “diz que foi assim”, e que só acedi a ela precisamente por ter sido aquela, e não outra pessoa, a arrendar-me a casa. A sua posição na rede de relações sociais na raia (não apenas na aldeia) revelara-se, a mim, numa primeira fase, pelo facto de ter arrendado a sua casa. A relação patrão/cliente que o contrabando suscitou, para alguns, ganhou um sentido diferente e foi trabalhada no decurso, e através, da relação que estabeleci com ela. Desde logo, introduziu uma diferença de qualidade nas categorias “contrabando” e “contrabandistas”: nem todos os tipos de ­contrabando ­gozavam de igual ­valorização, e nem todos os contrabandistas mereciam lugar no discurso. Apenas o pequeno contrabandista, o que se arriscava, que se iludia e sobrevivia, tornando o contrabando numa “arma dos fracos” (Scott, 1985), merecia ser enaltecido.

 

CONCLUSÃO

 

A proposta de objetivar o sujeito da objetivação, como caminho que permita maior solidez no conhecimento científico, foi ensaiada neste artigo através de uma revisão sobre os processos envolvidos na construção do terreno etnográfico e do modo como uma dimensão identitária do investigador influiu igualmente nessa construção. Em ultima análise, a meta-etnografia é mais uma estratégia de produção de conhecimento sobre aquilo e aqueles que nos propomos conhecer melhor. No primeiro aspeto que aqui tratei, adquiriram maior destaque a formação, o posicionamento do investigador num campo científico e o modo como esse posicionamento influiu na tomada de decisões. A hierarquização das funções, com maior valorização institucional da docência, em detrimento da investigação, condicionou a permanência, e isso teve implicações no processo de construção do terreno.

Também a minha posição na família jogou um papel fundamental na construção do terreno. A avaliação feita permite sustentar a ideia de que algumas opções dependeram de práticas normalizadas por mecanismos de ordem institucional e social. Talvez a dimensão de produção do conhecimento seja aqui menos evidente do que no segundo aspeto, relacionado com as próprias interações no terreno, onde, claramente, foi possível estabelecer uma relação dinâmica entre a experiência de vida e a interpretação de situações, pessoas e comportamentos ocorridos. Aceder ao campo e manter-me lá foi apenas uma das muitas situações em que busquei nas raízes rurais o sentido para a minha experiência de terreno nas aldeias raianas. A dimensão coletiva que a reflexividade epistémica busca é, aqui, mais evidente, uma vez que na construção do terreno e no conhecimento produzido sobre ele foram relevantes as expectativas com que parti para o trabalho de campo, o capital de conhecimento que as sustentava, e o modo como, muitas vezes, se viram infundadas. Foi relevante não tanto para que aumentasse o autoconhecimento, mas para conhecer melhor o grupo com que trabalhei e, diria, até o meu próprio grupo de origem. Se, antes, este forneceu as expectativas que anteciparam o terreno, posteriormente foi o terreno de pesquisa que ajudou na interpretação de contextos e comportamentos sociais que sempre tive como certos.

 

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Recebido a 03-09-2014. Aceite para publicação a 10-10-2015.

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