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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

CARDIM, Pedro, SILVA, Cristina N. da, XAVIER, Ângela B. (orgs.)

António Manuel Hespanha – Entre a História e o Direito,

Coimbra, Edições Almedina, 2015, 386 pp.

ISBN 9789724057965

 

Luís Bigotte Chorão*

*Universidade de Coimbra, CEIS20, Rua Filipe Simões, 33 — 3000-186 Coimbra, Portugal.E-mail: lbigotte@netcabo.pt

 

Numa entrevista a Pedro Cardim, publicada nesta revista em 2011, António Manuel Hespanha (AMH) refere-se a dado passo aos investigadores do ICS com uma formação com várias valências, considerando-se a si próprio “entre historiador e jurista”. Desconheço se esta afirmação de AMH influenciou os organizadores, mas o título escolhido para a obra que comentamos, António Manuel Hespanha, Entre a História e o Direito, não poderia ser mais adequado. Na verdade, sintetiza, até por virtude da ordem de prioridades dos substantivos, a perspetiva de AMH sobre as relações entre a História e o Direito. E a quase totalidade das contribuições dadas à obra, constituindo diálogo com o homenageado, confirmam o acerto da escolha. Na qualidade de organizadores, Cristina Nogueira da Silva, Ângela ­Barreto Xavier e Pedro Cardim subscrevem um texto introdutório que constitui um verdadeiro ensaio compreensivo das contribuições reunidas nas suas reveladoras relações com a obra de AMH, naturalmente fazendo luz sobre esta na multiplicidade das suas dimensões. Como justamente assinalam, “apesar da diversidade de autores e de temas, há tópicos comuns, que dão unidade a este conjunto, reenviando e dialogando com os posicionamentos epistemológicos e teórico-metodológicos de António Manuel Hespanha”. Não se limitando a uma mera enumeração desses tópicos, os organizadores detetam a presença nos vários contributos e notam até a “centralidade” neles de um vasto conjunto de reflexões, temas e problemas que vêm ocupando AMH, muito especialmente como modernista, mas também como estudioso da contemporaneidade.

A circunstância de os organizadores de António Manuel Hespanha, Entre a História e o Direito terem sido (mais exatamente, serem) seus discípulos, valoriza a “Introdução” por via designadamente da referência às influências na obra de AMH, desde logo a “forte vinculação” do homenageado ao pensamento de Michel Foucault.

Da maior importância para uma introdução à obra de AMH são os tópicos a ela relativos glosados ao longo das diversas contribuições, e postos em destaque na “Introdução”. Desde logo, o respeitante à “leitura das fontes históricas”, essencialmente determinante do critério metodológico de AMH, e do sentido e ­profundidade do seu trabalho de investigação colocado entre a História e o Direito. Pressupondo o critério de leitura das fontes uma conceção da História e da finalidade do trabalho do historiador, a opção de AMH surge como uma consequência da radicalidade das suas interrogações, pelo sentido de provocação (desde logo autoprovocação) presente na sua obra e no seu ensino, num quadro de assumida desilusão ou ceticismo quanto aos resultados, sem se poupar à autocrítica, tudo dando sentido àquele propósito de fazer e desfazer a História, não por acaso definidor da linha editorial da revista Penélope, a cujo lançamento e direção ligou o seu nome. Não deve deixar de notar-se o silêncio sobre esse projeto que, tendo tido a marca impressiva de AMH, merecia uma referência particular.

Aquele critério de AMH relativo à leitura das fontes históricas propiciou um rasgar de horizontes que se encontra na base do pretendido questionamento do “acquis historiográfico” e dos “usos políticos mais correntes da história” através da adoção de “linhas contraintuitivas da narração histórica” de modo a serem evitadas a “naturalização dos processos de construção do saber e a repetição acrítica da historiografia tradicional”. Precisamente no momento em que apresentou a revista Penélope, AMH escreveu: “ousamos ter ideias que dirijam a busca dos factos”. Ora foi exatamente essa opção, essencialmente antipositivista, que acabaria por determinar a intenção construtivista de AMH, que está assinalada na referida “Introdução”, por referência a outros diversos tópicos da obra do homenageado. A rejeição “radical” de uma leitura estadualista das Monarquias do Antigo Regime (presente muito em ­especial em As Vésperas do Leviathan), com todas as consequências, não apenas no espaço europeu, mas também nos domínios ultramarinos, resulta das conclusões de AMH sobre a “prática institucional do poder”, sendo acompanhada pela revelação de uma pluralidade de “constelações de poderes e espaços jurisdicionais heterogéneos” ricos de sugestões. Deste modo coloca-se como central na obra de AMH a reflexão sobre o pluralismo de poderes e o pluralismo jurídico, cuja dimensão explicativa importa à compreensão histórica da modernidade, mas igualmente da época contemporânea. Se a “Introdução” alcança ser, na verdade, uma síntese do pensamento de AMH, construída a partir do cruzamento dos muitos diálogos que a obra possibilitou, ficou a complementá-la uma bibliografia (ativa e passiva) de AMH, felizmente já desatualizada, mas muito útil. Do bom critério organizativo de António Manuel Hespanha, Entre a História e o Direito, resultou o registo de contributos muito relevantes para uma biografia intelectual do homenageado. Desde logo, a entrevista a AMH de Mafalda Soares da Cunha, Teresa Pizarro Beleza, Nuno Gonçalo Monteiro e Rita Garnel, mas também os testemunhos de Jean-Frédéric Shaub, José Subtil, Tamar Herzog e os de André Belo, Carla Araújo, Catarina Madeira Santos, Joana ­Estorninho de Almeida, Nuno Camarinhas e Rui Tavares.

A entrevista convoca para discussão a política e a ideologia no pensamento de AMH, também, naturalmente, nas suas relações com a História e o Direito. E é importante que o tenha feito de forma assumida, logo patente na primeira pergunta: “Quando e como começou o seu interesse pela vida política?”. O entrevistado explica as razões históricas da sua “aproximação ao marxismo”, para a vincular não apenas a um reacondicionamento de uma “ideia solidarista” dos seus tempos de juventude católica, mas ao facto de entender que do ponto de vista intelectual, o marxismo “amparava bem a crítica antiformalista, anti-idealista e antimitificadora que se fazia à historiografia jurídica tradicional”. Reconhecendo o seu interesse pelo presente, AMH fala na sua “atual tomada de distâncias em relação ao ‘pluralismo’ político” que diz acompanhar uma progressiva desconfiança política “relativamente ao anti-estadualismo neoliberal”. Não iludindo a sua qualidade “militante” (embora sempre “crítico e incómodo” como faz questão de esclarecer), e reconhecendo até o “paralelismo” dos seus “ciclos teóricos” com os seus “ciclos políticos”, é a esta luz que deve ser compreendido o percurso e a obra de AMH. A declarada desafeição de AMH pelo Direito, convertido mesmo, nas suas palavras, em “desamor e desconfiança em relação àquele saber e ao grupo intelectual dos seus cultores” não comprometeu a sua afirmação, também no plano internacional, como historiador do Direito e não impediu que AMH chamasse a atenção para o que bem designou por “operacionalidade heurística do direito histórico”, tendo cumprido aliás a importante missão – como jurista e historiador – de demonstrar ser mais alegada do que real a “dificuldade do uso da tradição ­literária dos juristas como fonte da história cultural e social”. E esse uso serviu a alta pretensão problematizadora (ou crítica) do Direito por parte de AMH. Nem se vê como pudesse problematizar-se o Direito e o saber que o tem como objeto senão a partir de uma sólida formação jurídica. O fazer e desfazer da História encontram-se aqui naturalmente condicionados pela compreensão do Direito. E se essa compreensão não é exclusiva dos juristas de formação, não pode deixar de lhes ser reconhecido um saber próprio. Por sinal, o historiador Luís Reis Torgal, em comentário a As Vésperasdo Leviathan, não deixou de considerar o processo de problematização e conceptualização de AMH “bem próprio da sua formação de jurista”, mais, fundamentando “toda a sua prática como historiador”. À “piedade filial” de AMH ficou o próprio a dever a sua formação jurídica e a convocatória para o ensino histórico do Direito, e a historiografia um contributo inestimável, que vem sendo o de AMH, no diálogo entre historiadores e historiadores juristas, essencial aliás ao belíssimo exercício de revisão permanente da História, na verdade incompatível com dogmatismos ou ingenuidades. Se a entrevista que vimos referindo constitui mais um documento importante para a biografia intelectual de AMH, é interessante vê-la em conjunto designadamente com aquela outra já referida de Pedro Cardim, com as notas autobiográficas publicadas no Jornal de Letras de março de 2007, e ainda com as transcrições (que se sugerem) da lição de AMH no ICS, em 28 de setembro de 2012 e das palavras ditas no lançamento de António Manuel Hespanha, Entre a História e o Direito, a 16 de junho de 2015.

Os vários testemunhos já mencionados são reveladores de traços da personalidade de AMH sublinhados por quem melhor o conhece como professor, orientador, colega e sobretudo Amigo. Nesses depoimentos ressalta o gosto e a permanência do diálogo – (no original Aracne), o trabalho em grupo (em projetos de investigação, como o SILA e o POMO, e no plano institucional o Ophir, e em obras coletivas, caso do IV volume da História de Portugal dirigida por José Mattoso –, uma ambiência de cumplicidade produtora de novos temas e linhas de investigação, tudo favorecido pela projeção internacional da obra de AMH e, antes de mais, pela sua “atitude historiográfica” (Rui Tavares).

Perguntado sobre a influência recíproca que considera existir entre a sua obra e a de Bartolomé Clavero, AMH reconhece a influência que na análise da sociedade do Antigo Regime exerceram sobre ele os estudos de Clavero, que logo para o número fundacional da Penélope (1988) entrevistou, apontando-o, juntamente com Francisco Tomás y Valiente, como a “nova geração da história do Direito em Espanha”. Na investigação de ­Clavero reconhecia AMH “inovação, esforço construtivo, abertura à controvérsia” e notava o “carácter radical e polémico” do jus-historiador espanhol dizendo que o estilo de ­Clavero tocava muitas vezes as “raias da provocação intelectual”, o que, concluía AMH, constituía “um dos seus maiores encantos”. Quase trinta anos depois, na sua contribuição para a obra que comentamos, ­Clavero escreve ser AMH “el autor com quien más he congeniado y com cuya obra más ha sintonizado la mía desde nuestra temprana juventud”. À semelhança de Clavero, ­Carlos Petit dá continuidade a um diálogo nunca interrompido, de várias décadas, com AMH. Reflete sobre a memória e o esquecimento do Código Civil de ­Seabra e chama a atenção para os contributos para a história da “época ‘liberal’” de Guiando a Mão Invisível e, para o estudo do Código, da digitalização dos trabalhos preparatórios, iniciativa de AMH (Biblioteca Digital de Fontes para a História do Direito Português). Adriano Prosperi oferece à homenagem a AMH um estudo sobre os jesuítas e a pena de morte e Clara Álvarez Alonso trata da “invéncion hespanhista” e da perceção sociónica da história do Direito, sublinhando “una suerte de behaviorismo social”. Marta Lorente Sariñena sublinha a permanência em jurisprudência dos nossos dias de traços característicos da cultura do iuscommune, e Pablo ­Fernández ­Albaladejo reflete sobre as causas do “proceso de introspección colectiva” que caracteriza o reinado de Filipe III, dando origem à noção de “pátria comum”, superadora do cenário de “comunidade de reinos agregados”. Fernando Bouza Álvarez encarece o impacto dos estudos de AMH nos historiadores culturais da política e da época moderna, através da chamada de atenção para “nuevos espacios como la corte, la gracia, los afectos o, incluso, la propia materialidade de la disposición textual”. Angela de Benedictis dialoga com AMH em torno de Sabios y Rusticos e Revueltas y Revoluciones a respeito das dúvidas e certezas dos juristas na tradição literária do direito comum. Do ­Brasil, Airton Seelander e Ricardo Fonseca chamam a atenção para a influência da obra de AMH nesse país, não apenas ao “eliminar visões míticas e ultrapassadas sobre o Antigo Regime”, mas encorajando o “retorno à análise das fontes jurídicas”, não deixando de referir a contribuição analítica do homenageado sobre a “era liberal”. Também Maria ­Fernanda ­Bicalho sublinha a relevância das leituras da obra de AMH por parte de uma nova geração de historiadores do Brasil, designadamente por razão de novas perspetivas, conceitos e temas propostos nos domínios da história social, política e cultural. E José Reinaldo de Lima Lopes reflete sobre a reinterpretação do sentido da política e dos seus meios e instrumentos resultante de As Vésperas de Leviathan, e o contributo metodológico para a revisão do conceito de “prática do poder político”, para concluir pela importância da lição de AMH na forma como promoveu a reintrodução da história do Direito na universidade brasileira, “combinando história das instituições, teoria institucional do direito e história do pensamento”.

José Luis Cardoso oferece “diálogos modernos” sobre o comércio bolsista propondo-se “replicar um modo de abordagem” destinado a “elucidar procedimentos inovadores de captação das sociedades em mutação” por via da leitura de Joseph Penso de la Vega, autor de Confusion de Confusiones (1688). Em diálogo com AMH coloca-se ­Fernando Dores Costa, em torno da teoria do poder no século XIX. João Caupers e um grupo de alunos da FDUNL dão um contributo para a história da organização dos governos constitucionais da 2.ª República, cruzando-se com AMH ao colocarem em relevo a importância do pluralismo de poderes. O contributo de José de Sousa Brito, que constitui um ensaio de interesse historiográfico sobre o direito das religiões em Portugal depois da revolução de 25 de Abril, foi justamente incluído pelos organizadores no capítulo “Pluralismo jurídico e ‘o poder de dizer o Direito na época contemporânea’”. Tal como, também, o original diálogo com AMH ensaiado através da obra de Paulo Merêa por Teresa Pizarro Beleza e Helena Pereira de Melo. E do mesmo modo, as contribuições de Nuno Piçarra e Rui Pinto Duarte. O primeiro toma por base, no estudo das relações entre legisladores e juízes dos Estados-Membros da União Europeia, o “aparelho conceitual” de AMH em The Discrete Empowerment of Judiciary e Um Poder um pouco mais que Simbólico. Juristas e Legisladores. Pinto Duarte aprecia sobre as implicações políticas do discurso de AMH sobre o pluralismo jurídico, colocando a “questão de saber se a aceitação dos modos não legislativos de constituir o direito é vantajosa do ponto de vista democrático”, a que responde, e de cujas conclusões essenciais talvez não dissinta hoje AMH. Miriam Halpern Pereira oferece ao volume de homenagem um estudo sobre a questão do sufrágio na 1.ª República donde retira, com, aliás, ­fortes razões, que o regime da Constituição de 1911 “ficou para a história como um caso de persistente distanciação entre a legitimação teórica e a prática política”. Embora imperfeita, desta síntese de António Manuel Hespanha, Entre a História e o Direito só pode concluir-se pelo valor intrínseco de uma obra que constitui um modelar Liber Amicorum.

 

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