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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

SILVA, Luís

Património, Ruralidade e Turismo. Etnografias de Portugal Continental e dos Açores,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2014, 211 pp.

ISBN 9789726713449

 

Xerardo Pereiro*

*Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Escola de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Economia, Sociologia e Gestão, Edifício do Pólo II da ECHS, Quinta de Prados, 5000-801-Vila Real, Portugal. E-mail: xperez@utad.pt

 

Este é um livro do antropólogo Luís Silva (CRIA), com um prefácio de João Leal sobre as novas funções do campo em Portugal, a sua multifuncionalidade, as novas produções e consumos, e também as suas representações. João Leal afirma neste prefácio a continuidade e renovação do olhar ruralista da antropologia portuguesa, com destaque para o autor deste magnífico livro. Um livro de 168 páginas muito acessível na linguagem, não exclusivamente orientado para académicos. Ele teve como base um longo, multisituado e longitudinal trabalho de campo do autor em Portugal Continental e nos Açores. Ao contrário de um ­anterior livro em língua portuguesa (Silva, 2009), que se centrou no turismo rural, este foca a problemática relação entre patrimónios cultur-naturais e turismo.

Além de uma introdução geral, o livro estrutura-se em três partes, que integram cinco capítulos, unidades que dão corpo a cinco casos de estudo bem etnografados pelo autor, e com um fio condutor bem definido. A maioria dos textos já tivera publicação anterior em revistas científicas internacionais de grande prestígio, portanto já eram conhecidos e reconhecidos pelos académicos. Agora, com esta publicação, o autor torna acessível em língua portuguesa e para um público mais alargado, trabalhos publicados anteriormente em inglês. Este exercício de partilha e transferência de conhecimento com os estudados e outro público mais vasto é muito relevante para os leitores, que dispõe assim de um livro muito agradável na sua apresentação e estrutura, esclarecedor, analítico e profundamente reflexivo.

Logo na introdução geral, o autor apresenta a dupla realidade do rural, a material (geográfica) e a imaterial (imaginada), e as suas premissas em relação à permanência do rural português, recusando a utilidade do conceito de “pós-ruralidade” para este caso, assumindo antes o de “nova ruralidade” para definir as transformações na conceção e no papel do rural nas últimas décadas. Luís Silva chega a afirmar aqui algo com o qual não posso estar mais de acordo: “(…) hoje talvez mais do que no passado e de diferentes formas, a ruralidade é uma constante da sociedade portuguesa”. E a ruralidade portuguesa é idealizada pela imagem turística assente em três elementos-chave para o autor: a paisagem, as relações sociais e a autenticidade.

A primeira parte aborda os significados do património cultural, os seus usos turísticos e os seus efeitos em contextos rurais. Estamos a assistir a uma mudança, relativamente recente na sua intensidade e extensão, que é a conversão do património cultural de emblema nacional e também regional, diria eu, a símbolo de promoção turística. Isto é, o património cultural já não é só para nós, é cada vez mais para os outros, sendo este convertido em mercadoria, ou melhor, a experiência turística deste.

O primeiro caso de estudo é apresentado pelo autor no capítulo 1, e refe­re-se ao seu trabalho de campo em Castelo Rodrigo (município de Figueira de ­Castelo Rodrigo, distrito da Guarda). Nesta aldeia histórica as casas habitadas foram-se convertendo em património cultural através de processos de institucionalização de uma imagem idílica do rural. Esta segunda vida do património vai afogar a primeira vida e gerar confrontos entre visões e agentes sociais participantes no processo de patrimonialização. Ela é fundamentalmente protagonizada por práticas governamentais que usam tecnologias de poder para alhear os residentes e os seus pontos de vista sobre as suas habitações sociais. Neste capítulo, o autor desenvolve uma crítica às teorias e práticas da governamentalidade, por não contemplarem a resistência e a contestação, mas também por não escutarem e integrarem o ponto de vista dos ­residentes do património cultural nas políticas de patrimonialização lideradas por políticos e arquitetos.

Neste primeiro capítulo também se mostra o efeito reduzido do turismo na regeneração rural em Portugal e também na Europa, algo que na nossa perspetiva é de geometria variável, tendo em atenção as diferentes relações entre turismo, agricultura e meios rurais. Este primeiro capítulo conclui com um tom reflexivo sobre a procura de conciliação entre a proteção do património cultural e a necessidade de as pessoas habitarem o património cultural, isto é, é preciso articular a componente estética com a componente social, algo que vem sendo repetido por numerosos investigadores. Este capítulo, baseado numa etnografia muito elucidativa e pedagógica, aponta para a necessidade de uma nova governança do património cultural em ­Portugal.

O segundo capítulo apresenta os efeitos da construção patrimonial na perceção dos residentes de Sortelha (aldeia histórica do município de Sabugal, distrito da Guarda), que potencialmente são de divisão ou de coesão social. Do ponto de vista económico, os efeitos positivos da patrimonialização ficaram aquém das expetativas ou previsões. Segundo o autor, a consciência da singularidade do património cultural leva consigo maior coesão social entre os residentes e torna-se uma fonte de orgulho pessoal e coletivo. Mas o sentido do lugar e da localidade podem ver-se ameaçados se o turismo afetar a perda de privacidade das comunidades recetoras, gerando assim concorrência e tensão intracomunitária, inveja e competição por recursos e prestígio social.

A segunda parte do livro envolve dois capítulos sobre ecoturismo e governamentalidade nos Açores, centrando-se mais nos patrimónios naturais. O terceiro capítulo aproxima-se da observação de cetáceos e os seus efeitos socioculturais e económicos numa perspetiva qualitativa. Um foco de análise, particularmente relevante, e já presente nos capítulos anteriores, diz respeito à tensão entre conservação e desenvolvimento turístico, o que dificulta a governança de um turismo de base comunitária e a distribuição dos benefícios gerados pelo turismo.

No capítulo quarto, o autor faz uma apresentação exemplar da governamen­ta­lidade e das suas perspetivas teóricas (governamentalidade transnacional, contra­governamentalidade, governamentalidade a partir de baixo, ecogovernamentalidade,…) aplicadas ao desenvolvimento do turismo. O contributo do autor é muito importante neste capítulo porque, segundo uma perspetiva inspirada em Foucault, apresenta-nos uma etnografia dos processos de patrimonialização da paisagem na comunidade de Sete Cidades (Açores).

A paisagem é vista pelo autor como uma arena política contestada, um espaço disputado, na qual interesses diferentes, que ele muito bem analisa, podem divergir no momento de utilizar os recursos naturais. Na sua função antropológica de dar voz às pessoas, Luís Silva conclui que os programas de conservação ambiental funcionam melhor quando o ponto de vista local é tomado em consideração, e quando as comunidades locais participam ativamente no processo. O autor também conclui que existem modos diferentes de os contextos rurais experimentarem a globalização.

A terceira parte do livro foca-se na persistência da ideologia pastoralista em Portugal. O pastoralismo é uma ideologia que idealiza os espaços rurais e preconiza a fuga da cidade para os campos, considerados mais simples, próximos da natureza, e repositórios de virtudes perdidas nas cidades. O ideal pastoral é de dois tipos: a) imaginativo-complexo; b) popular e sentimental. O primeiro é bem expresso na literatura de ficção e Luís Silva analisa, de forma sumária e brilhante, a literatura portuguesa do século XIX, o seu uso da dicotomia rural/urbano e a idealização do campo como cenário paradisíaco. Segundo o autor, o turismo rural atual é também uma versão da ideologia pastoral, catalisadora e força motriz da viagem ao campo na procura de revigoramento, relações sociais mais estreitas e amistosas, tranquilidade, calma e “cura” (diria eu). Paradoxalmente, como nos mostra o autor, a maioria dos turistas rurais não querem ou gostam de viver no campo por motivos profissionais, falta de serviços, equipamentos, oportunidades de emprego e o que consideram “tédio”.

De acordo com Luís Silva, o ideal pastoral passou em Portugal da literatura de ficção para as práticas turísticas. Ainda assim, o autor afirma que em Portugal, ao contrário de outros países, os portugueses frequentam pouco o turismo rural, porque segundo ele sentem mais atração pelas praias e porque os citadinos ainda continuam a ter laços familiares fortes com o rural. Em síntese, recomendamos vivamente o livro Património, Ruralidade e Turismo, que representa um contributo antropológico muito importante para melhor entender as complexas e dinâmicas relações entre patrimónios e turismo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

SILVA, L. (2009), Casas no Campo. Etnografia do Turismo Rural em Portugal, ­Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

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