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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.218 Lisboa mar. 2016

 

RECENSÃO

TAIBO, Carlos

Comprender Portugal ,

Madrid, Los Libros de la Catarata, 2015, 272 pp.

ISBN 9788483199817

 

Xerardo Pereiro*

*Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Escola de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Economia, Sociologia e Gestão, Edifício do Pólo II da ECHS, Quinta de Prados — 5000-801-Vila Real, Portugal. E-mail: xperez@utad.pt

 

E ste é um livro escrito por um politólogo galego, professor de ciência política na Universidade Autónoma de Madrid, no qual partilha o seu conhecimento íntimo, reflexivo e comparativo da complexa realidade social portuguesa. Neste mais do que recomendável livro, o autor mostra o seu apreço por Portugal, motivação fundamental para a sua escrita. O livro, que demorou quase 20 anos a ser escrito, tem como público-alvo os leitores espanhóis que, como bem afirma no prólogo, desconheçam Portugal em detalhe. Portanto, colmatar esta lacuna, alargando horizontes, é a missão deste trabalho erudito que traduz interculturalmente a complexa realidade histórica, social, cultural, geopolítica e económica portuguesa.1

O livro, redigido em castelhano, tem por base não só a experiência vivencial subjetiva e próxima do seu autor, mas igualmente uma profunda e bem fundamentada revisão da literatura científica e literária escrita sobre Portugal. A publicação está estruturada em 5 capítulos, que abordam a geografia, a história, a literatura, a língua galego-portuguesa, as relações com o Brasil, a cozinha portuguesa, o fado, o futebol e o estilo artístico “Manuelino” enquanto eixos diacríticos das identidades portuguesas. Sem fugir dos tópicos e lugares comuns, o autor tenta explicar como foram construídos, por quem e qual o seu sentido na ação social. Reconhece-se o esforço do autor na produção de um guia erudito para “turistas culturais” espanhóis, relacionando sempre Portugal com o seu vizinho ibérico peninsular, e particularmente com a Galiza.

No primeiro capítulo faz-se uma apresentação territorial e identitária de Portugal (uma sexta parte do território do Estado espanhol), o seu enquadramento entre o Atlântico e o Mediterrâneo, e a construção social da sua diferença com Espanha e da sua semelhança com a Galiza. O segundo capítulo aborda sumariamente a história de Portugal nos seus confrontos com o país vizinho, e nas alianças partilhadas face a outros inimigos comuns (ex. Contra-Reforma). Conclui questionando as causas do ethos imobilista português, algo mais do que discutível, e as suas semelhanças com o galego.

O terceiro capítulo foca a literatura portuguesa como objeto plural (­literaturas portuguesas) e como campo de tensão entre Lisboa e o resto do país. A sua passagem transversal por este tema, que relaciona com a música e o fado enquanto expressões culturais nacionais, questiona a interpretação que alguns portugueses fazem da literatura portuguesa como exercício de provincianismo (satélite intelectual de Madrid, Paris ou Londres), para a olhar sob outra perspetiva. Segundo Carlos Taibo, a literatura portuguesa tem mostrado uma grande capacidade para adquirir e assimilar influências estrangeiras, mas também para criar cosmopolitismo. O autor procede a uma revisão cronológica da literatura portuguesa desde os cancioneiros galaico-portugueses do século XIII até à literatura contemporânea de ­Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, entre outros. Ao longo da sua análise desconstrói tópicos como o cliché do fraco teatro ou o da alma portuguesa mesurada e cortês.

O capítulo quarto é o menos pacífico de todos, abordando um tema sempre controverso, o da língua de Portugal e da Galiza. Com uma abordagem muito rigorosa e esclarecedora para não especialistas, o capítulo começa por falar do esquecimento secular da Galiza em Portugal, de um conhecimento superficial em Portugal que reduz a Galiza (a Alsácia portuguesa, segundo Jaime Cortesão) a uma região espanhola. Apesar disso, o autor também reconhece que há hoje maior interconhecimento por causa do turismo e do comércio. Analisa os estereótipos cruzados entre Portugal e a Galiza, para mais tarde dar especial relevo à questão linguística propriamente dita. Neste ponto realça as raízes comuns das duas línguas, o galego-português, originário do território da antiga ­Gallaecia, para logo focar os dois pensamentos dominantes no panorama atual: a) os que pensam que são línguas diferentes (diferencialistas e isolacionistas); b) os que pensam que são a mesma língua, ainda que não sejam exatamente iguais (os reintegracionistas).

Carlos Taibo dialoga, na sua análise, com muitos linguistas, indo além do disfarce ortográfico que exagera as diferenças entre galego e português e da surpresa que a fonética do galego causa em Portugal. Segundo o autor, o português padrão recebeu influência árabe, judaica e mozárabe; pelo seu lado, o galego castelhanizou-se mas não desapareceu ainda, resistiu e representa um continuum com o português de Portugal e de todas as regiões lusófonas. Todavia, a reprodução do galego foi feita em contacto colonial e substitutivo com o espanhol, pesando mais nas atuais normas oficiais galegas a referência ortográfica e normativa do espanhol do que a da língua “irmã”, o português. Isto obedeceu a interesses geopolíticos e não a argumentos filológicos de peso, como esclarece Carlos Taibo. O desfecho deste processo é o da progressiva substituição do galego pelo espanhol como língua de prestígio numa situação social de diglossia. De uma política eutanásica passou-se a outra homicida (Taibo, 2015, p. 176), o que acabou com sinais de identidade que ligavam a Galiza e Portugal.

Face a essa situação, o autor analisa neste capítulo a proposta do reintegracionismo linguístico galego-português, e também as suas críticas, uma problemática que já tinha sido alvo de outra importante publicação do autor (De ­Nieves e Taibo, 2013). Esta secção do livro tenta elucidar os leitores espanhóis sobre a ligação da Galiza com a lusofonia (ou lusogalegofonia) e apresenta propostas filológicas para a intensificação desse vínculo entre os codialetos galego-portugueses, que envolvem uma comunidade de mais de 200 milhões de falantes. Como reconhece o autor, neste debate há quatro níveis que se entrecruzam: o da ortografia, o da língua, o da cultura e o da política.

No quinto capítulo, e último, o autor observa a mudança de valores sociais em Portugal condensada na trilogia dos três “F”: a trilogia do “fado, Fátima e futebol”, e a mais recente do “futebol, FMI e facebook”. Aqui o autor analisa a relação entre Portugal e Brasil, a cozinha portuguesa, o fado e outras músicas, o futebol português e o estilo artístico “Manuelino”. A partir de uma abordagem da geopolítica histórica, Carlos Taibo elucida-nos sobre os encontros, desencontros e ignorâncias mútuas entre Portugal e Brasil. Hoje em dia residem no Brasil meio milhão de portugueses, os quais são vistos com frequência como pessoas solenes, tradicionalistas, religiosas, fechadas, pouco comunicativas. Em Portugal, a imagem estereotipada e redutora dos brasileiros traduz-se na representação destes como pessoas ignorantes, que falam mau ­português, e do Brasil como país corrupto, sectário, e instável do ponto de vista económico. Estes clichés têm outros complementares, mas o certo é que ­Portugal perdeu para o Brasil o papel de guia da lusofonia.

O segundo foco de atenção deste último capítulo recai sobre a culinária portuguesa e sobre os hábitos alimentares em Portugal. Se somos o que comemos, os portugueses comem mais do que a média europeia fora de casa e gastam mais dinheiro em comida do que o resto dos europeus. Isso é uma realidade palpável no quotidiano, num país no qual há três vezes mais restaurantes (1 cada 131 habitantes) per capita do que no resto da União Europeia (1 restaurante cada 374 habitantes). Num país em que se aprecia o bacalhau e se comem cerca de 56 quilos de peixe por pessoa e por ano (22 na média da União Europeia), os portugueses falam mais de comida do que de política, futebol e da família, segundo o autor deste livro.

O terceiro foco deste capítulo incide sobre a música em geral, e sobre o fado em particular. Taibo explicita diversas facetas deste género musical, da sua utilização política pelo Estado Novo, e de como após o 25 de Abril lhe foram atribuídos novos usos e significados, com novos fadistas a reinventarem este género musical.

Fala ainda do futebol e do seu poder para criar identidades coletivas, e daquele que é considerado o estilo artístico nacional, “o manuelino”, mistura de gótico tardio com renascimento italiano e elementos pré-barrocos.

Entre os poucos pontos fracos da obra destacamos: a falta de análise do mirandês (asturiano-leonês) como segunda língua oficial de Portugal; a afirmação sobre o escasso interesse pela Galiza do escritor transmontano Miguel Torga; a falta de análise sobre o papel do Duque de Bragança e do atual movimento monárquico em Portugal; a falta de análise do papel de Filgueira Valverde na assunção das normas diferencialistas do galego; a falta de uma pequena aproximação à normativa do galego-português das Astúrias Ocidental; também notamos a falta de diálogo com a importante obra do filólogo galego Elias Torres, que analisa a política educativa “homicida” em relação à língua galega; a abordagem do papel de cantores populares como Quim Barreiros, de grande sucesso também na Galiza rural; e, finalmente, o facto de não diferenciar as imagens de Eusébio, Figo, Cristiano Ronaldo e Mourinho e o que representam como arquétipos sociais portugueses contemporâneos.

De forma sumária e para concluir, podemos afirmar que estamos face a um excelente livro, com uma abordagem que pode contribuir para reduzir o ­etnocentrismo intercultural ibérico e contribuir para melhorar a ­compreensão da diversidade cultural de Portugal e da Península Ibérica. Pensado para um ­leitor espanhol, consideramos que o seu valor e interesse vai mais além dessa intenção original, representando também uma mais-valia para Portugal e para o conhecimento dos portugueses relativamente aos modos como os outros olham para nós.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DE NIEVES , A. e TAIBO, C. (coord.) (2013), Galego, Português, Galego-Português? Falam 56 Figuras da Cultura Galega, ­Santiago de Compostela, Através Editora.         [ Links ]

TAIBO, C. (2010), Parecia não Pisar o Chão. Treze Ensaios Sobre as Vidas de Fernando Pessoa, Santiago de Compostela, Através Editora.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projeto UID/SOC/04011/2013.

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