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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.218 Lisboa Mar. 2016

 

RECENSÃO

PENVENNE, Jeanne Marie

Women, Migration & the Cashew Economy in Southern Mozambique: 1945-1975,

James Currey, Boydell & Brewer, 2015, 303 pp.

ISBN 9781847011282

 

Bárbara Direito*

*Universidade Nova de Lisboa, FCSH, IHC » Av. de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: barbaradireito@gmail.com

 

A recente publicação de Women, Migration & the Cashew Economy in Southern Mozambique: 1945-1975, de Jeanne Penvenne, representa, para quem acompanha de perto a história de Moçambique e em particular na sua fase colonial, um acontecimento digno de nota. Professora no Departamento de História da Universidade de Tufts (Estados Unidos) desde a década de 1990, Penvenne ajudou a lançar a profícua e influente linha de investigação sobre história social e do trabalho de Moçambique, para a qual contribuiu com trabalhos essenciais como African Workers and Colonial Racism; Mozambican Strategies for Survival in Lourenço Marques, Mozambique 1877-1962 (1995), ainda hoje uma referência para qualquer estudante da história deste território.

O tema do caju em Moçambique tinha já merecido destaque em alguns trabalhos importantes em língua portuguesa, em especial a monografia de Fernando Bessa Ribeiro (2010) sobre as dinâmicas do capitalismo naquele território na atualidade e os trabalhos de história económica de Joana Pereira Leite (1995), focados sobretudo no período anterior à independência. Na presente obra, o culminar de uma longa investigação iniciada na década de 1990, Jeanne ­Penvenne, mantendo-se próxima dos seus temas de eleição, privilegia a história oral para estudar as trabalhadoras do setor da indústria do descasque da castanha de caju. Estas escolhas refletem o objetivo da autora de se distanciar da “narrativa androcêntrica da história do trabalho colonial” (p. 3) e de lutar contra o relativo esquecimento a que as narrativas apoiadas sobretudo em fontes arquivísticas e dedicadas apenas à economia formal do caju votavam as vivências e a agência destas trabalhadoras. As inúmeras e ricas entrevistas que realizou junto de trabalhadoras da fábrica da Caju Industrial de Moçambique em 1993 e 1994, depositadas no Arquivo Histórico de Moçambique, são habilmente integradas numa narrativa histórica sustentada em fontes mais clássicas. Mas este olhar original nem por isso interessará apenas aos que procuram uma perspetiva de género sobre a história de Moçambique. De facto, é a complexa articulação entre história do trabalho, história social, história urbana, história económica, história rural e história das migrações de Moçambique, unidas pelas memórias destas operárias fabris, que constitui o maior contributo desta obra, e que fará despertar o interesse de um conjunto alargado de leitores.

No primeiro capítulo desta investigação, Penvenne começa por apresentar a história do caju na economia do sul de Moçambique desde inícios do século XX e a sua importância nos circuitos comerciais que ligavam este território à Índia, explicitando as várias utilizações desta oleaginosa e o modo como estas se integravam tanto na economia formal como na economia informal. Este capítulo permite compreender tanto o percurso da castanha de caju não processada do sul do Moçambique até à Índia, itinerário iniciado nas primeiras décadas do século XX pelas mãos de comerciantes de origem indiana, como a importância dada pelas autoridades coloniais portuguesas a este produto agrícola a partir da década de 50, que culminaria na criação de uma indústria de descasque, parcialmente mecanizada a partir dos anos 60. Em Moçambique, o caju sustentava também o fabrico e comercialização de bebidas alcoólicas. A cargo das mulheres africanas, esta produção assegurava um complemento para a subsistência familiar e comunitária, quer em meio rural quer em meio urbano.

O capítulo seguinte trata da história na primeira pessoa das trabalhadoras de uma das fábricas de caju, localizada no bairro de Chamanculo, na então ­Lourenço Marques. A fábrica da Caju Industrial de Moçambique, mais conhecida como Caju ou Tarana, propriedade do empresário de origem indiana Jiva Jamal Tharani, chegou a empregar milhares de mulheres, muitas das quais vindas sozinhas ou com os seus filhos de diversas partes do Sul de Moçambique a partir da década de 50, onde viviam em contextos de extrema pobreza. Ao ­descrever o ­processamento a que eram sujeitas as castanhas de caju e a divisão do trabalho no interior da fábrica, a autora revela o quotidiano dessas operárias, as suas tarefas repetitivas, fisicamente exigentes, perigosas e perniciosas para a saúde. Mas esta “industrial woman” (p. 90), conta-nos a autora, que procurou escapar à pobreza e muitas vezes à violência a que estava votada na sua província de origem, num contexto de forte migração masculina para a África do Sul, teria de enfrentar muitos outros desafios para lá das difíceis condições de trabalho. Enquanto “mulher[es] sem dono” (p. 86), isto é, sem estarem submetidas à autoridade de um homem, estas mulheres eram muitas vezes consideradas por outros habitantes da cidade como prostitutas. A fixação urbana levou estas mulheres de diferentes idades, que por vezes traziam consigo os seus filhos, a criar novas relações familiares e redes de solidariedade e a procurar, além da integração na economia formal, a exploração de vias informais sempre que era necessário complementar os seus parcos rendimentos enquanto operárias fabris.

No terceiro capítulo, onde se descrevem os contextos de origem destas mulheres e o conjunto de circunstâncias que as levou à cidade e ao trabalho na fábrica Tarana, Penvenne dá um contributo muito particular para um dos mais estudados temas da história de ­Moçambique: a migração laboral desde finais do século XIX. Se a historiografia dos fluxos migratórios da “mão-de-obra indígena” em Moçambique se tinha focado sobretudo na experiência dos homens que partiam para o Transval, e que compunham boa parte da força de trabalho, aqui interpreta-se a especificidade da mobilidade das mulheres e a trajetória que transformou habitantes rurais empobrecidas em operárias fabris residentes nos bairros de caniço de ­Lourenço Marques.

Voltando a centrar-se na vida na cidade e explorando mais de perto os testemunhos de algumas das entrevistadas que participaram no projeto de história oral levado a cabo pela autora, o quarto capítulo trata das reconfigurações e estratégias das trabalhadoras do caju em contexto urbano. Este capítulo permite compreender, por exemplo, o modo como participavam na economia informal através do fabrico e venda de bebidas alcoólicas. Trazendo à colação conhecidas fontes da história urbana de Lourenço Marques deste período, nomeadamente os importantes trabalhos do “administrador etnógrafo” António Rita-Ferreira, no capítulo seguinte Penvenne integra já as experiências das trabalhadoras da Tarana no contexto mais lato da vida das populações africanas do “caniço” no período colonial tardio. A interação entre o mundo do “caniço” e o mundo do “cimento” e a evolução das relações raciais entre populações africanas e europeias na fase final do colonialismo português, temas aprofundados em algumas investigações recentes, ajudam aqui a compreender algumas tendências identificadas pela autora neste período, nomeadamente o peso crescente do trabalho doméstico na vida das mulheres africanas.

Para terminar, Penvenne enuncia brevemente num epílogo as continuidades e descontinuidades da economia do caju entre 1975-2014, sublinhando a importância que este tema continua a assumir em Moçambique na atualidade.

Mas o que constitui o maior contributo desta obra da historiadora Jeanne Penvenne é a visão integrada e dinâmica do Sul de Moçambique em processo de industrialização entre as décadas de 40 e 70 do século XX, analisada a partir da perspetiva de um grupo de trabalhadoras, cujas experiências e estratégias até agora estavam sujeitas a um relativo esquecimento, e cujas memórias poderão sem dúvida ser utilizadas como fontes para outras investigações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LEITE , J.P. (1995), “A economia do Caju em Moçambique e as relações com a Índia: dos anos 20 ao fim da época colonial”. In Ensaios de Homenagem a Francisco Pereira de Moura, Lisboa, ISEG/UTL, pp. 631-653.         [ Links ]

RIBEIRO, F.B. (2010), Entre Martelos e Lâminas: Dinâmicas Globais, Políticas de Produção e Fábricas de Caju em Moçambique, Porto, Afrontamento.         [ Links ]

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