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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.220 Lisboa set. 2016

 

ARTIGO

Gramáticas da ação na economia solidária e a justificação das práticas de consumo

The grammars of action in solidary economy and justification of practices of consumption

 

Felipe da Luz Colomé e Ricardo Mayer

*Universidade Federal do Rio Grande so Sul, IFCH, Campus do Vale, Prédio 43311, Sala 103, Av. Bento Gonçalves, 9500, Bairro Agronomia - CEP 91509-900 Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: flcolome@hotmail.com

**Universidade Federal de Santa Maria, CCSH, Campus, Prédio 74A, sala 2230 - CEP 97195-900, Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: r.mayer@laposte.net

.

 

RESUMO

 

Este artigo aborda o fenómeno do consumo crítico num mercado alternativo. Partindo do pressuposto de que para além de uma racionalidade caracterizada pelo cálculo utilitário, as relações económicas também encerram uma moralidade, analisamos com base numa abordagem qualitativa as práticas de consumo crítico numa Feira de Economia Solidária em Santa Maria, RS, Brasil. Assim, a partir da pesquisa empírica, configuramos a racionalidade axiológica subjacente ao consumo na forma de uma gramática social para descrever as relações entre consumo e eticidade, e que podem ser identificadas através das gramáticas do cuidado, da autenticidade e da solidariedade.

PALAVRAS-CHAVE: consumo crítico; gramática da ação; cuidado; autenticidade; solidariedade.

 

ABSTRACT

 

This paper focuses on the phenomenon of critical consumption in an alternative market. On the assumption that besides a rationality characterized by the utilitarian calculation, the economic relations also contains a morality. We analyze from a qualitative approach the critical consumption practices in a Solidary Economy Fair in Santa Maria, RS, Brazil. Thus, from the empirical research in this alternative market we configured the axiological rationality underlying the consumer in the form of a social grammar to describe the relationship between consumption andethicity, and that can be identified through the grammars of care, authenticity and solidarity.

KEYWORDS: critical consumption; grammar of action; care; authenticity; solidarity.

 

INTRODUÇÃO

 

O consumo crítico tem sido descrito como um fenómeno histórico controverso e multifacetado1, que tem engajado pessoas através de práticas variadas de consumo. Como destacado por autores como Micheletti (2003), Hilton (2003) e Sassatelli (2007), tais práticas traduzem formas de engajamento e contestação política que se utilizam de bens de consumo para a expressão de posicionamentos e/ou afirmação identitária, como é o caso do recurso ao boicote2 a bens de consumo, especialmente no contexto europeu e norte-americano dos séculos XVIII e XIX. Com efeito, as práticas de consumo têm constituído uma espécie de denominador comum da insatisfação e do descontentamento, um meio recorrente pelo qual se expressa o protesto político, como também um móbil3 para a constituição de associações e organizações políticas perfiladas sob a bandeira do consumo crítico. Nesse sentido, as suas origens relacionam-se com diversos contextos, nos quais os bens de consumo foram utilizados de alguma forma para interferir e alterar relações de poder julgadas injustas e demasiado assimétricas nas transações económicas. O protesto dos colonos norte-americanos contra as importações dos produtos britânicos, dos quais o mais célebre foi a campanha contra o chá inglês, mais conhecido como ­Boston Tea Party em 1773, constitui uma das primeiras formas de mobilização em torno do consumo. A rejeição dos produtos ingleses exerceu um importante papel na construção da nação estadunidense, ensejando a edificação de uma identidade comum face ao ocupante inglês. Pode-se afirmar que, nesse momento, as práticas de consumo adquiriram uma nova dimensão simbólica em termos da elaboração e conformação de novas solidariedades e como síntese de aspirações coletivas que então se esboçavam.4Estratégias semelhantes foram empregadas no âmbito da luta abolicionista pelos movimentos anti-escravagistas, que ao rejeitar os produtos fabricados pelo trabalho escravo politizavam as práticas de consumo desde a década de 1820.5 Desta forma, disseminaram-se diversos movimentos de protesto plasmados pelo consumo6: na Inglaterra, o movimento sindical fazia campanha em torno da consigna do consumo ético.7 Ainda nos Estados Unidos, no mesmo século, diversas iniciativas recorriam aos bens de consumo como estratégia de intervenção política num contexto no qual o movimento dos trabalhadores não era tão forte como no caso europeu.

Com efeito, para a compreensão adequada das práticas de consumo contemporâneas é necessário abordar brevemente a relação entre as pessoas e as coisas e as suas implicações sócio-culturais. Assim, conforme defendem ­Douglas e Isherwood (2006), durante algum tempo a literatura profissional sobre o consumo apresentava uma tendência para afirmar que as pessoas adquiriam bens baseadas em no máximo três propósitos restritos: bem-estar material, bem-estar psíquico e exibição, sendo os dois primeiros de cunho individual e o último um termo mais geral, que abarcaria as demandas da sociedade, que se resumiriam sucintamente em exibição competitiva, na qual a análise de Veblen sobre a classe ociosa teve um papel de grande influência. Em virtude disso, Douglas e Isherwood (2006) salientam que o consumo deve ser reconhecido como parte integrante do mesmo sistema social que explica, por exemplo, a disposição para o trabalho, sendo percebido como integrante da necessidade social de relacionar-se com outras pessoas, e de ter materiais mediadores para essas relações (2006, p. 26).

Nesta perspetiva, problematiza-se a perceção do consumo como algo descolado e hipostasiado do processo social, chamando a atenção para a necessidade de se compreender as práticas de consumo como dimensão constitutiva da vida social. Douglas e Isherwood consideram, portanto, que “dizer que um objeto está apto para o consumo é o mesmo que dizer que o objeto está apto a circular como marcador de conjuntos particulares de papéis sociais” (2006, p. 41). Em face disso, o relacionamento entre as coisas e as pessoas deve ser percebido para além de uma perspetiva utilitarista ou daquelas que abstraem o consumo dos demais processos sociais, sendo considerado como parte constitutiva e importante da vida social nas sociedades contemporâneas. Desta forma, a constituição de práticas e discursos que se utilizam do consumo para contestação política pode ser percebida na sua conexão com as modificações históricas que ocorreram no mundo do trabalho e no seio do sistema de produção e consumo capitalista.

De outra parte, as práticas de consumo não se configuram apenas como mero epifenómeno dos processos de alienação que caracterizam as sociedades capitalistas. Nesse aspeto, os estudos que articulam as práticas de consumo com a cultura material, dos quais Daniel Miller (1987; 2002) é a principal referência, esclarecem sobre as formas de reapropriação pelos agentes dos bens de consumo na sua ressignificação cultural.8 Com efeito, considerando o recorte e delimitação teórico-empírica da nossa abordagem, que é o consumo engajado moralmente, podemos encontrar exemplos desta inflexão dos estudos sobre o consumo em investigações que contemplam desde etnografias das práticas mais ordinárias e prosaicas relativas à cultura material da alimentação (Solier, 2013), até análises cujo objeto de discussão desagua, como já destacado anteriormente, na mobilização propriamente política mediada pelas práticas de consumo.9 Contemporaneamente, o fenómeno do consumo crítico tem sido objeto de diferentes abordagens10 sobre as suas características e potencialidades para o engajamento e a participação política. Assim, a ascensão de iniciativas perfiladas em torno do consumo crítico como do consumo engajado, político ou alternativo e adjetivações similares têm mobilizado estudos sobre as suas condições de possibilidade para o engajamento político via consumo. Não obstante, parece-nos ainda que a natureza heterogénea e heteróclita das práticas de consumo desafia uma caracterização uniforme do fenómeno do consumo crítico. Ou seja, muito embora autores como Hilton (2003) compreendam o consumo crítico como um fenómeno social, cujas raízes podem ser localizadas em movimentos de protesto que surgem em diferentes regiões e períodos históricos11, é possível problematizar a especificidade das práticas contemporâneas de engajamento político orientado através do consumo alternativo. Nesta perceção, apesar das aparentes proximidades, principalmente no que toca à longa história da conexão entre o consumo e a persecução de interesses políticos ou a consecução de uma visão de mundo capaz de materializar-se na coerência entre ideais morais e vida prática, debruçamos-nos, no que segue, sobre as lógicas de justificação do consumo crítico na atualidade. Mais especificamente, o argumento é desenvolvido a partir da manifestação deste fenómeno no sul do Brasil. Dessa forma, a exposição estrutura-se da seguinte forma: inicialmente abordamos os nexos teóricos entre engajamento político e consumo crítico. Em seguida, discutimos as condições de possibilidade da convergência entre julgamentos morais e as ações que decorrem destes juízos. Por fim, procuramos qualificar conceptualmente uma hierarquia axiológica singular vis-à-vis as práticas de consumo numa feira de economia popular que traduz as escolhas em relação ao consumo em termos de uma gramática para a ação.

 

CONSUMO CRÍTICO, POLÍTICA E ENGAJAMENTO

 

Na atualidade, diferentes discursos e iniciativas em torno do consumo crítico podem ser localizados ao redor do globo. Iniciativas como as do Comércio Justo, do Slow Food, alimentação orgânica, eco-rotulagem, reciclagem de ­produtos, campanhas para o consumo crítico, consciente ou responsável e suas variantes, abrigam nos seus discursos a compreensão das práticas de consumo12 como um local para a expressão de valores, moralidades e ideais, considerando os consumidores como potenciais agentes políticos. As iniciativas de Comércio Justo13, por exemplo, postulam que os consumidores podem manifestar as suas posições morais e políticas, em auxílio dos produtores, principalmente de produtos agro-alimentares localizados nos países periféricos, assim constituindo relações de comércio mais justa.14 Tais críticas estendem-se, inclusive, à alimentação contemplando o chamado Slow Food, que busca resgatar as tradições culinárias locais em oposição ao estilo de vida encarnado pelo consumo de Fast Food disseminado globalmente por multinacionais, como é o caso da cadeia de restaurantes McDonald’s. Trata-se de uma inflexão do consumo crítico no qual os padrões alimentares e gastronomia são objeto de uma crítica que evidencia a massificação e embotamento do paladar a partir da homogeneização do consumo alimentar. Aqui é o próprio gosto e hábito alimentar que se convertem em objeto de uma politização que procura articular a produção e o consumo de alimentos na prescrição de estilos de vida alternativos e na preservação da biodiversidade alimentar.15

O consumo crítico pode ser definido então com uma forma de engajamento político mediado pelas práticas de consumo que passam a ser vistas como lócus privilegiado para afirmação de identidades e justificação ideológica de estilos de vida, no qual a crítica a um consumo conspícuo e ostentatório de produtos, cuja produção não é sustentável ecologicamente e nem digna no tocante à organização e exploração do trabalho, constituem características fundamentais. Assim, diferentes autores, dos quais destacamos Hall (2011); Littler (2009); Thomas (2011); Halkier (1999); Johnston, Szabo e ­Rodney (2011); Micheletti (2002, 2003); Spaargaren e Oosterveer (2010); Murdoch e Miele (1999); Sassatelli (2006, 2007); Dubuisson-Quellier (2009); Sayer (2003); Sorensen (2005); Wilk (2001), têm centrado as suas análises sobre o universo variado das práticas de consumo crítico que caracterizam este ­fenómeno. ­Partindo de abordagens distintas, estes autores têm evidenciado que o consumo crítico pode ser destacado como um fenómeno que carrega consigo um grande leque de formas e motivações pelas quais os indivíduos se podem envolver nas práticas consideradas de consumo alternativo.

Nestes termos, este fenómeno parece conectado com uma miríade de motivações, as quais incluem questões ligadas a crenças e religiosidade, questões éticas e morais, ideologias e cosmovisões. Assim, na atualidade o consumo crítico parece expressar nas suas diferentes iniciativas, motivações diversas daquelas relacionadas com os protestos e boicotes utilizados principalmente por trabalhadores na Europa e América do norte no século XIX: se a justificação principal das primeiras manifestações de um consumo crítico radicava em questões económicas, contemporaneamente, o consumo crítico tem plasmado demandas que encontram na cultura o seu denominador comum.

Uma outra face do fenómeno do consumo crítico sinaliza a sua motivação a partir de questões de natureza religiosa. Com efeito, conforme Thomas (2011) e Littler (2009), as questões morais emergem sob uma roupagem ética, sendo possível a identificação de conexões entre o discurso do consumo ético e do comércio justo com a ascensão de narrativas de ordem moral-religiosa. Assim, noções de solidariedade e de caridade calcadas numa ética cristã16, também orientam as estruturas normativas do consumo crítico, nas suas diferentes variantes. Portanto, nas iniciativas como a do comércio justo, a moral cristã poderia desempenhar a função de uma estrutura normativa que sustenta e justifica o engajamento de uma boa parcela dos seus participantes. Já de acordo com autores como Johnston et al. (2011), Clarke et al. (2008) e Hall (2011), as práticas caracterizadas como de consumo crítico têm ensejado situações nas quais, potencialmente, os agentes aderem a eticidades que versam sobre obrigações morais como a responsabilidade, a obrigação e o cuidado não apenas em relação às pessoas, mas também em relação às questões sócio-económicas e ambientais.

Assim, longe de tratar-se de um fenómeno homogéneo e facilmente observável, ele tem sido enfatizado como um fenómeno heterogéneo e heteróclito. Autores como Sassatelli (2006; 2007) consideram que especialmente após a realização de protestos contra a organização mundial do comércio em Seattle no ano de 1999, que funcionou como uma espécie de catalisador de movimentos preocupados com o consumo crítico, é possível notar a ascensão de discursos críticos marcados pela politização das práticas diárias de consumo e destacando o consumidor como um sujeito moral e político. Com isso, o crescimento de modelos de consumo “alternativos”, materializados nas companhas de boicote à marcas e empresas transnacionais, nas campanhas articuladas pelos movimentos ambientalistas para redução dos níveis de consumo nos países centrais, ou ainda, no aumento da demanda por produtos do comércio justo e da produção de comida orgânica, evidenciariam a ampliação do campo de possibilidades do consumo para a participação política. Assim, as ações e os movimentos de ideias que buscam politizar as relações de consumo poderiam ser percebidas a partir de novas estruturas normativas que informam determinadas visões sobre o consumo e que conectam, por seu turno, produtores e consumidores em termos de uma reflexividade crítica sobre os processos de produção e consumo capitalistas.

Neste sentido, a perspetiva aqui utilizada compreende o consumo crítico na sua aceção positiva e sociológica, não apenas como um fenómeno social, mas também como uma categoria analítica para compreender e descrever as práticas de consumo engajado (Hilton, 2003). O consumo crítico é compreendido enquanto um fenómeno que materializa conceções morais e visões do mundo a partir de uma posição crítica em relação às práticas de consumo dominantes e suas respetivas racionalidades inerentes à lógica de acumulação do capital. Ademais, para os fins deste estudo, o consumo crítico será definido a partir da perspetiva de Sassateli (2006), ou seja, como um conjunto de discursos heterogéneos, capaz de justificar as práticas de consumo de potenciais agentes políticos e morais. Partindo desta perspetiva sobre a temática do consumo alternativo, bem como a partir do aporte teórico oferecido pela sociologia pragmática francesa17 questionamos: para além de uma racionalidade caracterizada pelo puro interesse que busca maximizar ganhos e minimizar perdas, quais os valores que justificam as escolhas dos agentes em mercados alternativos? Assim, considerando as condições de possibilidade de uma racionalidade axiológica, é possível admitir que os engajamentos dos agentes nas práticas de consumo alternativo podem ser interpretados em termos de uma gramática. No que se segue, buscamos qualificar conceptualmente a noção de gramática tendo em vista sua utilização sociológica.

 

AS GRAMÁTICAS DA AÇÃO

 

Partimos do pressuposto de que o consumo crítico configura uma modalidade de juízo engajado que se manifesta na definição de hierarquias axiológicas em relação às práticas de consumo. E para articular conceptualmente a ­convergência entre julgamentos morais e as ações que decorrem destes juízos recorremos à noção de gramática. A sua utilização na teorização sociológica pode ser feita num sentido fraco e de forma metafórica,18 ou pode ser deduzida a partir de uma aceção forte que presumirá o seu uso para caracterizar um tipo de ação social específico e respetiva forma de legitimação.19 As ações seriam então coordenadas tendo em conta tanto o contexto da sua realização, quanto o reconhecimento das regras tácitas compartilhadas definidas segundo aquilo que se poderia caracterizar como a capacidade para apreender o “modo gramatical” adequado à situação vivida.

No entanto, quando imaginamos a realização de uma ação no âmbito de uma situação regulada pela prevalência de uma dada moralidade e por orientações axiológicas ou deontológicas pré-estabelecidas, a sua execução não será determinada ou determinante. Contrariamente, estaremos fadados à contingência: sujeitos às probabilidades de ocorrência de tal ou tal ato configurado por um dado campo de possíveis que não podemos definir de antemão. As nossas ações serão objeto de avaliações e qualificações prováveis que irão depender, por seu turno, das interpretações da situação vivida realizadas pelos atores. No curso de uma ação situada é possível que improvisações, revisões, retificações, e mesmo, a própria criatividade, engenho e arte possam concorrer para a redefinição do seu sentido. Trata-se daquilo que se pode caracterizar como um processo recíproco de conjetura e validação que tornará possível o estabelecimento de acordos e consensos sobre a qualificação adequada dos seres e dos objetos aos quais somos confrontados.

Essa maneira de caracterizar a gramática social do agir presume três características fundamentais, a saber: ela é, a um só tempo, relacional, pluralista e realista.20 Ou seja, a análise das lógicas do social confere uma prioridade às relações21 constitutivas dos fenómenos sociais porque, ontologicamente, somos plasmados por processos de socialização e, assim, tanto a forma, quanto o conteúdo das gramáticas às quais recorremos para agir e julgar é de natureza intersubjetiva; é plural porque um mesmo indivíduo pode ver-se face a vários regimes de engajamento22, várias formas de cognição e várias gramáticas de julgamento que podem ser adotadas consecutivamente conforme as situações por ele vividas; e, por fim, é realista23 dado que a própria materialidade do mundo com os seus acontecimentos e eventos pode confirmar ou invalidar as conjeturas, representações e definições elaboradas por nós mesmos. Nesse aspeto, as nossas ações são engendradas por julgamentos, avaliações e qualificações acerca do valor diferencial das coisas e dos seres que existem e habitam os mundos natural e social. Trata-se de ações caracterizadas por operações de ordem cognitiva nas quais colocamos à prova24 as hierarquias de valor socialmente partilhadas, ou seja, testamos e avaliamos continuamente as justificações aduzidas pelos atores para sustentar as suas representações acerca dos mundos sociais nos quais estão inseridos, bem como face às eventualidades e ocorrências do mundo natural que se abatem sobre eles. A prova constitui um momento de incerteza e indeterminação, na qual são mobilizadas as capacidades para agir, julgar, qualificar ou justificar qualquer coisa ou qualquer um.

As formas de justificar tais avaliações, representações ou visões de mundo operam segundo um princípio de dessingularização, ou seja, consideradas as situações particulares nas quais são forjadas, procura-se desindexar essas tomadas de posição do contexto de sua produção e emergência. Noutras palavras, trata-se de um procedimento de generalização das formas de justificação acionadas para suportar a afirmação e defesa de uma posição, de um argumento, de uma interpretação ou de uma avaliação que busca relacionar um julgamento a uma ideia de bem comum vinculada, por seu turno, a uma dada hierarquia de valor ou ordem de legitimação.25 Trata-se de um movimento que vai do singular ao universal. Do ponto de vista desta operação lógica de generalização, o procedimento implica na definição do maior denominador comum às posições que demandam por justificação, considerando a sua adequação às ordens normativas e a perspetiva da sua legitimação ante uma determinada hierarquia axiológica.

Nesse sentido, a definição de uma gramática26 implica, segundo Lemieux

 

l’ensemble des règles à suivre pour être reconnu, dans une communauté, comme sachant agir et juger correctement […] Une grammaire est ce qui permet aux membres d’une communauté de juger correctement, c’est-à-dire de lier correctement à des discontinuités survenant dans le monde (corps, objets, matériaux, gestes, paroles…) des descriptions et d’éprouver vis-à-vis de certaines de ces descriptions un sentiment d’évidence27 [Lemieux, 2009, pp. 21-23].

 

Essa formulação concisa do conceito pressupõe, por sua vez, uma distinção de forma e conteúdo na configuração das gramáticas da ação. Para Lemieux (2009), na sua forma, a ação humana presume capacidades antropológicas28 reconhecíveis socialmente através do espaço e do tempo e imbricadas na racionalidade de todas as práticas. Concretamente, teríamos a conjugação de três lógicas (ou meta-regras) orientando implicitamente a ação, a saber: a) a lógica da dádiva e da contradádiva que se equaciona na fórmula dar, receber e retribuir; b) a lógica da ação estratégica caracterizada pelo cálculo, pela perceção e ponderação dos possíveis limites e restrições que envolvem as ações, enfim, pela coordenação de meios e fins tendo em vista a realização e efetividade de uma ação; e, c) uma lógica do juízo moral29 (ou do descentramento moral e distanciamento crítico) caracterizada pela competência para aduzir razões e justificar publicamente uma dada ação. A conjugação e imbricação destas três lógicas engendraria a forma das gramáticas sociais. O seu conteúdo seria preenchido conforme as hierarquias de valor prevalecentes em cada contexto sociohistórico e/ou compartilhada pelos grupos e classes sociais.

Assim, se compreender uma ação é explicitar a sua gramática social evidenciando, para além da sua forma, os conteúdos enunciados pelos atores para justificar, avaliar e qualificar a razão pela qual se age de uma dada maneira face a um dado objeto ou situação, isso não quer dizer que as gramáticas sociais sejam omnipresentes na vida social. Na maior parte das situações que vivemos não precisamos de justificar a razão pela qual agimos desta ou daquela maneira. Simplesmente agimos conforme as nossas disposições30 para pensar, sentir e agir acionadas de maneira irrefletida ou pré-consciente. Quando falamos de uma gramática da ação não nos referimos, portanto, às disposições interiorizadas no âmbito dos processos de socialização, mas àquilo que reclama por alguma justificação ética e moral referida a uma hierarquia axiológica. Com efeito, são as razões para agir aduzidas pelos atores que podem ser descritas e caracterizadas segundo algum princípio de justificação reportado reflexivamente no curso da ação que importam do ponto de vista da descrição e compreensão das gramáticas da ação. É nesse sentido que configuramos as gramáticas do consumo, pois elas implicam uma prática engajada plena de sentido moral e de razões para agir. A seguir, focalizaremos a possibilidade de compreensão do consumo crítico, localizado num mercado alternativo consti­tuído por uma feira de economia solidária como uma gramática governada por valores como o cuidado, autenticidade e solidariedade, conforme a figura 1.

No cenário brasileiro algumas iniciativas e discursos têm-se destacado no âmbito das propostas de consumo crítico, como é o caso das iniciativas de economia solidária. É perceptível na última década a constituição de uma proposta de consumo alternativo, conhecido como consumo solidário, que visa politizar as práticas de consumo desenvolvidas no ambiente da economia solidária. Assim, esta iniciativa pode ser compreendida como uma proposta que compreende os seus consumidores como sujeitos políticos, que ao realizarem as suas compras nas iniciativas de economia solidária estariam a aliar-se ideologicamente a ela. Em virtude disso, justifica-se a escolha de uma feira de economia solidária como objeto empírico pela consideração de que esta proposta de consumo alternativo potencialmente constitui um universo interessante para a investigação do fenómeno do consumo crítico no cenário brasileiro, dada a sua imbricação com uma proposta de modelo de economia alternativa.

A feira de economia solidária de Santa Maria, objeto da nossa investigação, foi criada a partir do Projeto Esperança Cooesperança31 da diocese de Santa Maria, sob a liderança de Dom Ivo Lorscheister32 em meados da década de 1970. Esta feira, também conhecida como feirão colonial, notabilizou-se enquanto um espaço de congregação de um movimento mais amplo do projeto, bem como de experiência do cooperativismo e da economia solidária. Numa estrutura composta por quatro pavilhões são comercializados legumes, hortaliças, frutas, além de produtos artesanais como queijos, pães, doces, fiambres, vinhos, licores compondo uma grande diversidade de produtos, incluindo ainda plantas ornamentais e flores e artesanato. Considerando o seu crescimento ao longo dos anos, esta feira, de acordo com os seus organizadores, têm atraído um contingente considerável de consumidores. Conforme os organizadores, a maior parte dos seus consumidores pertence a camadas médias, com menor participação das camadas altas e baixas da população local.

Em relação aos procedimentos metodológicos, o estudo recorreu a uma abordagem qualitativa, utilizando técnicas da observação participante e entrevistas semi-estruturadas realizadas com os consumidores da feira, bem como análises dos materiais e cartilhas de divulgação das propostas em torno do consumo solidário. Adotámos a abordagem qualitativa dada a necessidade de uma maior penetração no mundo dos pesquisados, possibilitando explorar com um bom grau de profundidade e riqueza as suas práticas e discursos (Rocha e Eckert, 2008). Partindo da técnica da observação participante buscámos identificar o perfil dos consumidores a serem entrevistados, englobando desde aqueles aparentemente mais engajados com o movimento de economia solidária, que frequentam a feira já há alguns anos, até alguns novos consumidores do local. Desta forma, objetivámos abarcar os diferentes perfis de consumidores da feira. Os dados foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo de tipo categorial (não apriorística) seguindo a abordagem de Bardin (2011). No trabalho de campo, realizado entre 2011 e 2012, foram ouvidos 60 consumidores, e deste número, 13 consumidores foram entrevistados em profundidade, sendo definido este contingente através da técnica de saturação de dados. As entrevistas foram analisadas a partir de seu tratamento informacional com o software RQDA.

 

CONSUMO CRÍTICO E A ÉTICA DO CUIDADO

 

As práticas de consumo, num mercado alternativo como uma feira de economia solidária, podem ser compreendidas através das justificações dadas pelos atores que participam e frequentam esses mercados. Mais concretamente, trata-se da utilização de argumentos ético-valorativos presentes nas narrativas e discursos desses atores que materializam a constituição de uma gramática social, compartilhada pelo público habitual desta feira, e que sinalizam a valorização de aspetos relativos à noção de bem comum. Aqui, a preocupação com a qualidade da alimentação destinada ao grupo primário indicaria principalmente a mobilização de uma ética do cuidado, traduzida na busca por alimentos hígidos e sadios e suas relações com outros aspetos, tais como o risco, bem- estar e cuidado do corpo. Neste sentido, o conceito de ética do cuidado é aqui pensado como uma estrutura normativa plasmada pelas práticas de consumo observadas e que, por seu turno, são compreendidas como meios de expressão de obrigações morais e éticas (Sassateli, 2006; Hall, 2011).

A noção contemporânea de ética do cuidado pode ser inicialmente considerada a partir da crítica de Carol Gilligan (1997) em relação à teoria da psicogénese da moralidade elaborada por Lawrence Kohlberg (1992). Com efeito, Gilligan (1987) ao questionar os resultados enviesados pelo género das investigações de Kohlberg acerca do desenvolvimento da moralidade, propõe para melhor contemplar as especificidades da construção do juízo moral das mulheres, aquilo que ela designará como “uma voz diferente”. Ou seja, a perspetiva moral caracterizada pela prevalência de noções abstratas, tais como universalismo, justiça, razão e autonomia identificada por Kohlberg como aspetos característicos de uma moralidade pós-convencional, passaria ao largo de aspetos mais contextuais e relacionais, tais como o cuidado, a solicitude e a preservação dos vínculos afetivos que, por seu turno, seriam mais ponderados pelas mulheres do ponto de vista da definição de seu julgamento moral.

Não obstante, para efeito da discussão aqui realizada, podemos compreender melhor a ética do cuidado a partir de sua problematização por Joan Tronto (2009, 2011). Partindo de uma reflexão ancorada na teoria política, Tronto rejeita a oposição simplista entre uma eticidade abstrata caracterizada pela persecução de ideais de justiça (imparcial, impessoal e universalista) e uma eticidade concreta caracterizada pelo primado do cuidado, do zelo e da solicitude (contextual, pessoal e particularista). Para Tronto (2009), é necessário reconfigurar o conceito de justiça de maneira que as questões inicialmente propostas pelo trabalho de Gilligan (1997) possam ser incorporadas sob uma perspetiva sociológica. Nesse sentido, as atividades contempladas pela noção “care” presumem tudo aquilo que se possa relacionar com o cuidado, ou seja, cuidar de algo pressupõe o reconhecimento daquilo que necessita de ser cuidado, bem como a obrigação moral da responsabilização em relação ao que deve ser cuidado. Ao pretender dar suporte sociológico para a análise das práticas sociais relacionadas com o cuidado (care) Tronto (2009), também se socorre do argumento empírico de que existe, historicamente, uma relação circular entre a desvalorização e/ou invisibilidade social das práticas relacionadas com o cuidado e a opressão daqueles grupos sociais tradicionalmente dedicados às funções que asseguram a subsistência e a reprodução social na esfera doméstica.

Mas, para além do aporte teórico de Joan Tronto (2009) que subsidia a reflexão crítica no âmbito da teoria política feminista, caberia ainda considerar, tendo em vista as condições de possibilidade de uma gramática moral perfilada pela noção de cuidado, a preponderância de uma eticidade concreta no âmbito das sociabilidades primárias, um contexto social de natureza comunitária, no qual a hierarquia valorativa será primada, tendencialmente, por um acento familístico, pessoalizado e particularista ou, dito de outro modo, por uma moralidade, cujas ações serão hierarquizadas valorativamente a partir das noções que caracterizam uma ética do cuidado.

Assim, as práticas de consumo, entendidas em sentido plural, enquanto atividades rotinizadas, que são articuladas através de nexos33 (Warde, 2005), são descritas por Hilton (2003), Sassatelli (2007) e Clarke et al. (2008) como atividades relacionadas historicamente com noções de moralidade e ética. Portanto, não constitui uma novidade que as atividades de abastecimento e consumo rotineiras estejam impregnadas de sentido ético sobre a obrigação moral do cuidado em relação ao grupo familiar, sobre as múltiplas conexões entre as compras e persecução de determinados comportamentos e condutas. Com efeito, os novos desdobramentos evidenciados pelos estudos já mencionados sobre o consumo crítico, nas suas variações, têm aprofundado as discussões acerca dos componentes valorativos que estão imbricados nas mais prosaicas atividades de consumo. Conforme Michelletti (2003), a obrigação moral com a subsistência e reprodução do grupo familiar, constitui-se como um facto histórico que têm mobilizado, preponderantemente, as mulheres a transcender os espaços aparentemente privados, nas suas reivindicações por alimentos mais hígidos e diversificados para aqueles que, segundo a divisão sexual do trabalho tradicional, assente na dominação masculina, possuem a obrigação moral de cuidar.

Contemporaneamente, com a ascensão de movimentos de ideias e iniciativas como o consumo ético, propostas de comércio justo, slow food e movimentos associativos em torno da economia solidária, que buscam politizar as relações de consumo, tem-se enfatizado o caráter ético-moral destas ações na própria medida em que trazem consigo conceitos sobre justiça, equidade e isonomia nas relações de poder. Neste sentido, a difusão e adesão crescentes a essa constelação de valores ideológicos, enfatiza que o consumo, nas palavras de Wilk (2001) é em essência uma questão de natureza moral.34 Em consequência, o consumo crítico parece evidenciar mais ainda esta noção, visto que entre os seus principais objetivos, busca redefinir modos e padrões de consumo através de posições moralmente sustentadas. Contemplando esta perspetiva, bem como os enfoques sobre os componentes morais inerentes ao consumo, as falas dos consumidores da feira de economia solidária de Santa Maria entrevistados ainda expressam de diversas formas uma preocupação com o cuidado e proteção dos seus entes nas compras de alimentos no local:

 

A motivação principal é que toda a minha família, as minhas irmãs, elas sempre tiveram um contato maior com a natureza porque elas se criaram para fora, elas sempre, sempre, é uma coisa já de família de procurar os produtos mais naturais. Isso é uma questão familiar da procura por esse tipo de alimentos, esse tipo de produtos [consumidor C5].

 

E eu me importo, me preocupo muito com isso ai, sabe com a saúde, botar na mesa uma coisa mais de qualidade, alimentos mais de qualidade, sem veneno, sabe com saúde, botar na mesa uma coisa de qualidade, alimentos de qualidade para a família (…) eles (filhos e esposo) gostam de tudo o que eu trago da feira, repolho, inclusive hoje ao meio dia eu fiz um repolho que eu trouxe no sábado passado! Repolho ou brócolis eles gostam do jeito assim que eu faço, refogado sabe? Tempero verde não pode faltar! [consumidor C8].

 

Assim, quando questionadas sobre as suas motivações para as compras, realizadas em busca da saúde, as respostas na sua maioria mencionavam ou aludiam compromissos morais ancorados na eticidade concreta do grupo primário. Deste modo, o conjunto de valores que subjaz a estas práticas está quase sempre relacionado com uma estrutura normativa que tem uma das suas bases constituídas a partir da ideia de uma ética do cuidado.35 Assim, para além de um mero cálculo utilitário de maximização de ganhos e minimização de perdas, o consumo também se constitui num meio pelo qual se expressam obrigações morais, prevalecendo a relevância atribuída às relações constituídas no âmbito das solidariedades primárias.

Nesse sentido, Clarke et al. (2008), ao investigarem os espaços e as éticas que perpassam a alimentação orgânica, destacam que as oportunidades práticas e materiais que estes espaços oferecem aos consumidores vão bem além dos seus princípios abstratos e das suas possíveis consequências. Em vez disso, as decisões de participar destas práticas de consumo estão conectadas com motivações éticas que versam sobre a importância das relações quotidianas de cuidado. Assim, quando estes autores falam sobre as “éticas do consumo”, eles estão a referir-se, predominantemente, às éticas que envolvem o cuidado com a família, sobre o paladar e o gosto, conectando o cuidado de si e do grupo primário às suas escolhas diárias (2008, p. 224). Desta maneira, conforme os autores, estas éticas parecem mobilizar os consumidores na direção de uma estrutura normativa que se refere diretamente à maneira como as pessoas realizam as suas atividades corriqueiras, mobilizadas por questões como “Que tipo de pessoa eu me esforço para ser?” (2008, p. 225). Logo, de acordo com os autores, as práticas de consumo alternativo, como é o caso das práticas de consumo de alimentos orgânicos por eles estudadas, configuram-se como espaços utilizados para pensar “éticas do cotidiano” expressas na preocupação e cuidado com a alimentação familiar. Noutras palavras, a ética do cuidado é a primeira razão para agir da gramática moral do consumo em um mercado alternativo.

Conforme a teorização de Barnett et al. (2005), acerca da constituição das práticas de consumo como atividades rotinizadas que possibilitam o exercício de competências éticas, os discursos dos consumidores sobre as suas práticas e justificações, evidenciam que esta estrutura normativa também é intrincada pela articulação de pressupostos morais relativos à auto-reflexão sobre os pressupostos da conduta individual e são caracterizados pela prevalência da ética do cuidado nas suas escolhas e decisões sobre o consumo diário. Deste modo, como é igualmente destacado por Miller (2002), os discursos sobre as compras carregam uma ideologia e hierarquia de valores com os quais os indivíduos desejariam estar engajados.

 

CONSUMO CRÍTICO E A ÉTICA DA AUTENTICIDADE

 

Juntamente com a ética do cuidado, a ética da autenticidade emergiu como um conceito fundamental para a compreensão das práticas de consumo focalizadas. Neste sentido, esta eticidade, parece compor e constituir uma parte importante das gramáticas de consumo em mercados alternativos. A teorização acerca da ética da autenticidade, aqui utilizada, está baseada na interpretação proposta por Charles Taylor (1991, 1997). Para Taylor (1991), a ética da autenticidade é algo relativamente novo e peculiar à cultura moderna. Nascida no final do iluminismo, a reivindicação da autenticidade como valor surge como contraponto à racionalidade desengajada do contexto da sua emergência que caracteriza o individualismo cartesiano. Aqui, o princípio da autenticidade está relacionado com um ideal expressivista que ganha força moral no pensamento ocidental a partir de Rousseau e Herder. Segundo Taylor (1997, p. 464), Rousseau está na origem de uma profunda transformação da cultura moderna em direção à exploração da intimidade, à liberdade de autodeterminação e da autonomia radical e Herder36 revigora o individualismo das luzes ao propor que a noção de diferença é fundamental nos processos de individuação. Ou seja, em vez de um indivíduo abstrato representando a espécie humana, mas despojado de toda particularidade, Herder propõe uma conceção de indivíduo que só pode afirmar-se enquanto tal a partir dos seus modos singulares de ser, pensar e agir que ganham sentido somente em virtude da sua pertença a uma comunidade cultural determinada. Tal perspetiva corrobora a visão rousseauniana acerca da natureza social do homem ou que a sua pertença a uma comunidade concreta é condição necessária para a sua formação. Isto é, consolida-se nestes autores a ideia de uma ética da autenticidade segundo a qual cada um deve ter assegurada a plena expressão da sua individualidade. É nesse aspeto que ganham sentido e expressão as práticas de consumo crítico que afirmam uma identidade e um estilo de vida singulares e antagónicos à sociedade do consumo conspícuo.

Partindo deste pressuposto, uma das noções que se fizeram mais presentes nas narrativas observadas, e que se relacionam com as eticidades que compõem a gramática moral destes consumidores, é a noção de produto natural. Se por um lado este termo se refere diretamente ao cuidado de si e dos próximos, como foi demonstrado na seção anterior, por outro ele está intimamente conectado com a ideia de autenticidade. Neste sentido, a noção de um produto natural, sem nenhum tipo de pesticida, herbicida, conservante, ou outros ­compostos químicos, vincula-se estreitamente com noções como natureza, pureza, pequenos produtores e agroecologia. Assim, os entrevistados parecem relacionar a produção em pequena escala, considerada tradicional, com a oferta de produtos considerados mais naturais:

 

A maneira é o consumo desse tipo de produto, esse produto muitas vezes não tem rótulo, não tem, a aparência pode não ser das melhores, não é, mas o produto industrializado, atrás daquela falsa aparência da embalagem tá escondido ali muita coisa ruim né? Então às vezes a aparência do produto está nos enganando por que está escondendo muita coisa nociva à saúde que tem ali embutido nesses produtos. Então uma coisa é o consumo, outra situação é essa questão de lógica de incentivar esse tipo de comércio, esse tipo de produção, esse tipo de vida do agricultor no campo não é? [consumidor, C5].

 

A questão dos produtos, nas hortaliças, nos vegetais, produtos novos, que não aparentam ser industrializados (…) comprei aquela bergamota bem comum, aquela que eu gosto, eu gosto daquela com cheirinho característico, são diferentes do mercado, que parece mais industrializada, esse tem um sabor e aparência mais bonita [Consumidor, C1].

 

Esta ligação entre produtos considerados naturais e a ruralidade, em oposição aos alimentos industrializados, percebidos como artificiais e nocivos, tem sido foco de diversos estudos37 que evidenciam uma re-valorização de culturas alimentares e produtos provenientes do mundo rural. Nesse sentido, a valorização da origem, principalmente dos produtos agro-alimentares, tem-se constituído como um fenómeno comum a diferentes contextos (Johnston et al. 2011; Clarke et al. 2008, Hall, 2011; Barnet et al. 2005), como é o caso do europeu e do brasileiro, que apesar das suas diferenças, possuem em comum a construção de um imaginário social sobre a vida rural e a natureza. Deste modo, as iniciativas que se têm difundido globalmente, como é o caso das práticas do slow food, originárias da Itália, buscam revalorizar as tradições alimentares locais, em oposição à alimentação industrializada, principalmente às práticas de consumo de alimentos em redes de fast-food. De acordo com ­Sassatelli e Davolio (2010), este fenómeno pode ser percebido como uma característica dialética da modernidade tardia, na qual a difusão de uma alimentação estandardizada e de baixo custo, como é o caso do fast-food, fornecidas por corporações globais, têm catalisado a atenção pública para os produtos considerados “naturais”, “locais” e “tradicionais”, bem como aqueles provenientes de práticas agrícolas “sustentáveis” e dos produzidos através de relações de trabalho percebidas como “justas”. De forma semelhante ao observado por Menasche (2010), a valorização da proveniência dos alimentos consumidos parece constituir-se como um discurso que associa aos produtos oriundos da agricultura familiar, da produção de pequena propriedade, realizada de forma tradicional, às qualidades dos alimentos, percebidos como mais puros, naturais e palatáveis. Assim, ela considera que a ruralidade, mais do que qualquer outro atributo, parece condensar as possíveis vantagens que distinguem o alimento desejável (natural) do alimento industrializado (2010, p. 206). Neste sentido, a construção de um imaginário social sobre o rural parece ensejar uma ética da autenticidade como reflexo de uma desconfiança em relação àquilo que, de alguma forma, se vincula ao moderno, à modernização, à industrialização, à pasteurização, enfim, ao inautêntico.

Nestes termos, a valorização da ruralidade, enquanto noção condensadora, evidencia a perceção afetiva ligada às formas de produção de alimentos tradicionais como autênticas e genuínas. A configuração de uma ética da autenticidade nos discursos destacados, revela um dos aspetos centrais que compõe a gramática dos consumidores da feira: o imaginário sobre o ambiente rural e a alimentação natural. Tal imaginário, no caso específico dos consumidores entrevistados, parece remeter para as vivências passadas em pequenas comunidades rurais, ou ainda na composição de um quadro idealizado romanticamente de como seria a vida fora da cidade, que mesmo não vivenciada diretamente por eles, está ainda relacionado com uma origem e tradição familiares ligada ao campo e ao mundo rural.

Paterson (2006) endossa tal perceção tornando evidente que longe de constituir uma oposição, as práticas de consumo quotidianas são ­perpassadas por ideais de autenticidade que se podem articular com o processo de constituição identitária. Em virtude disso, de acordo com este autor, o ideal de autenticidade parece constituir parte integrante das práticas de consumo (consumo de massa) quotidianas, que muitas vezes eram percebidas como desmanteladoras do “autêntico”.38 Portanto, a ideia de autenticidade deve ser percebida como parte da estrutura normativa também em relação ao sentido de pertença, visto que o sentido do que pode ser considerado como autêntico não obedece a uma rigidez identitária, mas decorre de um processo dinâmico. Assim, quando são realizadas construções imaginadas sobre a natureza, a vida em pequenas comunidades rurais, estes atores estão reelaborando noções compartilhadas socialmente a partir de uma idealização do agrário e da vida no campo.

Com efeito, pode-se pensar que quando os indivíduos se referem a um imaginário sobre o rural e sobre as suas ligações com comunidades consideradas mais tradicionais, estão a elaborar moralmente a constituição do seu self de forma relacional. Assim, a busca rotinizada por produtos percebidos como mais naturais e autênticos, enraizados em relações identitárias, pode ser considerada como uma prática de elaboração moral dos seus participantes tanto em termos de uma eticidade alicerçada nas relações de solidariedades primárias, quanto de elaboração moral do self. Portanto, sob o enfoque de Taylor (1991) tais relações podem ser consideradas como partes integradas do processo dialógico, pelo qual a ética da autenticidade é elaborada.

 

CONSUMO CRÍTICO E A ÉTICA DA SOLIDARIEDADE

 

Conforme Frère (2009), a constituição de uma moral solidária está intrinsecamente relacionada com o desenvolvimento de iniciativas de intervenção social por parte de setores da igreja católica que postulavam a necessidade de ações em auxílio dos desfavorecidos, que incluíam o fomento ao desenvolvimento de uma moral militante, que poderia impulsionar a construção de iniciativas de geração de renda destinadas à sua emancipação económica e social. Deste modo, o engajamento social de setores progressistas da igreja católica favoreceu a constituição de iniciativas da economia solidária, tendo como pano de fundo a retomada da tradição política engajada do catolicismo latino-americano vinculada à teologia da libertação. Nesta esteira, o solidarismo cristão tornou-se um dos pilares da gramática da economia solidária, fundamentando discursivamente os engajamentos dos seus participantes, bem como a identificação destas iniciativas por parte das camadas médias.

Nos termos de Frère (2009), na ligação dos atores à economia solidária é possível notar que o solidarismo cristão tem desempenhado um papel importante na composição da sua gramática. Com base nesta perspetiva, os engajamentos dos consumidores nas práticas de consumo na feira de economia solidária de Santa Maria, parecem apontar para alguns traços em comum com esta visão. As justificações dadas por estes agentes nas suas práticas indicam a importância que a noção de solidarismo39 desempenha na composição dos seus discursos. Assim, entrelaçada com as noções de autenticidade e cuidado, a noção de solidariedade com os pequenos agricultores, com a agricultura familiar e com os produtores rurais locais, compõe uma parte igualmente importante na constituição da gramática de consumo dos consumidores da feira de economia solidária observada. Desta forma, quando questionados sobre as suas motivações para frequentar a feira, muitos participantes referem-se à solidariedade e à simpatia com os produtores do local. As seguintes falas ilustram esta perceção:

 

(…) pra mim a vantagem é de comprar um produto de qualidade, ajudar um movimento que merece ser ajudado, dar força para eles, porque ele é positivo (…) por outro lado (…), ajudar a fortalecer os pequenos agricultores, agricultura familiar da região, que é importante, e o diferencial pra mim é esse, a qualidade né, e são as pessoas do movimento da agricultura familiar e hoje é a relação que eu tenho com eles, que eu hoje conheço que estão lá, que é o seu meio de sobrevivência, pra mim isso é importante na hora de consumir [consumidor C3].

 

eu acho muito importante essa parceria porque né proporciona que os agricultores tenham a oportunidade de vender seus produtos, a sua produção né, e o que é muito importante é a questão que eu falei social né, e a gente de consumir produtos mais saudáveis. (…) eu tenho muita simpatia e admiro muito o trabalho deles, eu acho que tem que ser muito valorizados sabe. Pra mim, a economia solidária é um projeto que beneficia o agricultor, aquele que não tem condição de ter seu próprio espaço, facilita, facilita bastante pra eles, porque imagina se eles tivessem que ter um lugar pago, alugar acho que ia encarecer muito, eu acho que isso é uma troca [consumidor C12].

 

Tais relatos parecem indicar que a noção de solidarismo que perpassa as justificações destes atores pode ser percebida como uma componente moral que estaria relacionada com o que Frère (2009) considera uma das bases da moral solidária, a fé cristã e seus ideais solidaristas. Assim, a noção de apoio aos pequenos produtores e a preocupação com suas condições de vida, aproxima-se em algum sentido dos ideais do solidarismo cristão destacados pelo autor. Esta noção de solidarismo e a fé cristã podem ser entendidas como uma das dimensões da ética da solidariedade aqui destacada.

Esta dimensão, apesar de em alguns casos não ser identificada de forma tão clara nas falas dos interlocutores, deve ser entendida como parte de um aspeto mais amplo e geral que diz respeito à normatividade presente no ideal de solidarismo contemporâneo, que conforme este autor é diretamente vinculado ao solidarismo cristão. Assim, mesmo não explícita, as suas influências podem ser sentidas nos discursos sobre práticas de compras na feira, quando os consumidores referem as suas motivações em torno da defesa dos pequenos produtores e do seu modo de vida. Desta forma, como se pode notar na fala dos entrevistados, a simpatia com a defesa dos meios de subsistência dos pequenos agricultores configura-se como um aspeto de destaque nas suas justificações. Assim, a valorização do seu modelo de produção tradicional, e do imaginário sobre o rural, que se relaciona com a ética da autenticidade, evidencia a composição da ética da solidariedade, numa dimensão de uma responsabilidade de cunho moral cristã perante os mais desfavorecidos.

Em contraste, nos discursos dos consumidores entrevistados foram poucas as justificações que remetiam de forma explícita para a constituição de uma lógica estratégica ou utilitária nas suas escolhas. Desta forma, são escassos os depoiomentos que mencionam, por exemplo, a noção de baixo custo. Em virtude disso, as justificações observadas que faziam referência ao custo-benefício, e os preços mais baixos, quando referidos, estavam posicionadas num grau hierárquico inferior às demais justificações:

 

E o que me motivou é a procura dos produtos sem agrotóxicos, produto mais natural, assim, essa foi a principal motivação, além do preço, mas o principal é o lado, é livre de agrotóxicos (…) As vantagens é que tu compra um produto saudável, bom para saúde e está ajudando o próprio produtor a se fixar né [consumidor C9].

 

Esta fala demonstra a existência de argumentos que indicam escolhas balizadas em parte por uma racionalidade utilitária, contudo, quando presente este tipo de racionalidade estava subordinada a imperativos ético-morais relacionados ao vínculo, à pertença, enfim, à solidariedade. Portanto, consideramos que no caso específico da nossa investigação, os componentes morais, como é o caso dos provenientes da fé cristã, e os seus ideais em torno do solidarismo, são fortes mobilizadores dos engajamentos dos atores focalizados.

Em consonância com os achados da nossa investigação, Cloke et al. (2011), destacam os vínculos existentes entre fé, crença e religião e as práticas de consumo consideradas alternativas como é o caso do comércio justo. Conforme os autores, apesar de se tratar de um fenómeno complexo e multifacetado, eles sugerem que esta conexão pode ser percebida em três diferentes dimensões significativas: a primeira diz respeito ao facto de o comércio justo se apresentar como um instrumento pelo qual os cristãos podem conformar aspetos da sua fé e assim expressar e praticar as suas crenças através do consumo. Portanto, o comércio justo funciona tanto como uma expressão simbólica da fé de forma mais ampla, e como um canal prático por meio do qual esta pode ser materializada e praticada. A segunda dimensão refere-se às oportunidades para as práticas de comércio justo serem comunicadas e demonstradas especialmente significantes dentro de determinadas redes sociais e, entre elas das igrejas, onde as oportunidades são oferecidas para a promulgação de virtudes éticas nas práticas quotidianas. Já a terceira relaciona-se com estas redes sociais que muitas vezes são alimentadas pelo que os autores consideram como “evangelistas” - indivíduos enérgicos e persuasivos que apresentam repertórios que podem potencialmente governar as práticas de comércio justo que, por seu turno, refletem as crenças e éticas através das redes de igrejas (p. 100). Tal perspetiva subjaz às fortes conexões entre os valores e a moralidade religiosa e as práticas de consumo alternativo, como no caso do comércio justo. Neste sentido, é possível depreender que tal relacionamento estreito entre a moral cristã e as práticas de consumo alternativas parece fazer parte de um movimento mais amplo ao qual Frére (2009) faz alusão, ou seja, o solidarismo cristão.

De modo semelhante, Thomas (2011) considera que as conexões entre a religiosidade e o consumo crítico podem ser percebidas como facilitadoras de novas práticas de consumo alternativas, como é o caso do comércio justo, nas quais as religiões podem ser consideradas como possíveis fontes de críticas às práticas de consumo guiadas pela lógica da razão instrumental, bem como motivadoras de abordagens mais responsáveis perante os recursos. O ideal do solidarismo cristão parece constituir-se como um ponto de apoio normativo que atravessa os discursos observados, e sustenta a gramática das práticas de consumo em questão.

Conectada ao solidarismo cristão, que está presente como um elemento da ética da solidariedade, pode-se notar a composição de relações baseadas na identificação dos consumidores com os produtores locais. Tal composição parece constituir-se a partir das sociabilidades comunitárias desenvolvidas no ambiente da feira, ou seja, esta identificação poderia ser relacionada com as interações face a face que muitas vezes criam relações de amizade, em alguns casos de longa data, as quais podem possibilitar a sedimentação de vínculos de pertença entre estes agentes. Os depoimentos elencados abaixo expressam este entendimento:

 

Tem a banca da Bernadete (…), eu não sei que cidadezinha ela é. Mas eu sei que faz anos que ela está ali. Eu me lembro que ela vinha, e tinha um filho pequeno daí ela pegava e trazia uma coberta sabe, um colchãozinho, uma esponja e botava ele dormir em baixo da mesa. Que legal! Agora o menino tá grande. Daí tem a banca da dona Maria também! Tem a banca, ai eu não me lembro como é que é, uns que são bem altão, fica bem lá no fundo! Bem no final lá! Só que eu não me lembro do nome dele. E tem a banca do Márcio né, mas eu compro sempre mais, a primeira banca que eu chego ali e procuro é a banca da ­Bernadete. E tem também que um que eu sempre comprava antes, que é a banca do seu Felício! Tenho uma relação próxima, assim sabe, assim eu já conheço eles, de amizade, até assim, quando eu vou com pouco dinheiro, eu pago no outro final de semana! [consumidor C8].

 

O produtor está vindo aqui e esta é uma cidade que tem potencial grande de consumo e ele tá conseguindo negociar o produto que ele está produzindo né isso é muito importante porque o pequeno produtor precisa isso, tá produzindo alimento de qualidade e tem que está comercializando. Exatamente eu frequento lá por essa solidariedade com os pequenos agricultores. Porque eu acredito que o pequeno agricultor, nós precisamos, não só quem mora na terra quem mora no interior, mas nós precisamos ajudar conservar o planeta, conservar a terra, conservar as matas, um pequeno produtor que mora lá na propriedade, que conhece seus matos, suas correntes de água, tem seus animais, aquele ambiente ali é parte da vida dele. Ele vai preservar aquilo ali, vai produzir alimentos aquele lugar ele vai preservar, ele jamais vai ter a intenção de destruir aquilo. Aquilo que é a casa dele. É parte dele, é parte da vida dele, então é por esses motivos que a gente consome os produtos para que ele também sobreviva, porque nós precisamos que ele sobreviva lá, que ele produza alimentos lá [consumidor C5].

 

Tais depoimentos, bem como os expostos anteriormente, evidenciam que a gramática utilizada pelos agentes em questão remete e mescla justificações mais amplas como a consciência ambiental e a preocupação com as gerações futuras, de auxílio aos pequenos agricultores e mais específicas, tais como as questões relacionadas com o cuidado. Deste modo, em consonância com os achados de Lockie et al. (2002), que investigaram as motivações de consumidores de orgânicos na Austrália, as práticas consumo crítico focalizadas evidenciam que os atores realizam as suas escolhas a partir de um processo intrincado de valorações e considerações sobre o quotidiano das suas famílias, como o cuidado com a saúde e diversos graus de consciência ambiental e das relações de produção e consumo pertinentes à produção agro-alimentar. ­Portanto, concordando com Littler (2009), o consumo crítico pode ser percebido como um conjunto de práticas e discursos que se constituiem como um local de luta por valores e moralidades. Nestes termos, a ética da solidariedade pode ser percebida como um componente normativo da gramática de consumo em questão, pautada principalmente a partir da moral derivada da ética do solidarismo cristão referida por Frére (2009).

 

CONCLUSÃO

 

A análise das práticas de consumo dos frequentadores de uma feira de economia solidária no sul do Brasil evidenciou que suas escolhas são plasmadas por uma racionalidade axiológica orientada a partir de uma gramática da ação articulada num tríplice registro valorativo, qual seja: uma eticidade do cuidado, uma eticidade da autenticidade e uma eticidade da solidariedade. Nesse sentido, constatou-se que o consumo tem sido um meio pelo qual as pessoas também expressam as suas obrigações morais. Assim, para além de uma racionalidade meramente marcada pela maximização do interesse e pelo cálculo utilitário, de uma racionalidade autocentrada, desengajada e desvinculada de tudo o que é capaz de informar a sua constituição, as práticas de consumo são orientadas por valores, cuja adesão pode ser justificada moralmente pelos atores. No caso estudado, deparamo-nos com uma gramática moral caracterizada primeiramente pela prevalência das solidariedades primárias. Ou seja, encontramos práticas de consumo, cujos discursos de justificação se caracterizaram pela observância de valores marcados pelo cuidado, zelo e atitude diligente em relação à alimentação.

Um segundo aspeto dessa gramática, caracterizou-se pela valorização da ideia de ruralidade como uma noção condensadora que evidencia a perceção afetiva relacionada com as formas de produção de alimentos tradicionais como autênticas e genuínas. Ou seja, a configuração de uma ética da autenticidade nos discursos analisados, revelou um dos aspetos centrais que compõe a gramática moral dos consumidores num mercado alternativo como uma feira de economia solidária: o imaginário sobre o ambiente rural e a alimentação natural. Tal imaginário, no caso específico dos consumidores entrevistados, parece remeter de modo proustiano para as reminiscências das vivências de outrora em pequenas comunidades rurais, ou ainda à composição de um quadro idealizado das relações rurais como mais autênticas.

Por fim, as entrevistas analisadas evidenciaram que a gramática moral utilizada pelos frequentadores da feira de economia solidária, remete e mescla justificações mais amplas através de uma consciência ambiental, tendo em conta desde a preocupação com o futuro do planeta até questões relacionadas a política agrícola, tais como o apoio e suporte aos pequenos agricultores, e, por fim, temas mais específicos e tangíveis como uma moralidade caraterizada pela relevância assumida pela eticidade concreta do grupo primário, isto é, uma moral do cuidado. Ou seja, a gramática moral em análise é configurada por justificações caracterizadas por um sucessivo descentramento moral, que ao coordenar e cotejar diferentes perspetivas na definição das suas escolhas operam do mais singular ao mais geral e evidenciam, sobretudo, um mercado encaixado40 na rede de relações sociais que envolvem as práticas de consumo. Algo muito distante, portanto, da elaboração proposta pela economia neoclássica de uma racionalidade atomista como um atributo característico daquilo que seria um consumidor. E, no caso investigado, estamos diante ainda de um mercado tanto mais moralizado por conta da sua vinculação à economia solidária, cujas práticas de consumo reclamam por uma reflexividade crítica assente numa racionalidade axiológica, cuja gramática moral ressaltamos ao longo deste trabalho.

 

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Recebido a 13-04-2015. Aceite para publicação a 21-09-2015.

 

NOTAS

1No artigo estamos privilegiando o uso do termo “consumo crítico” para nos referirmos ao consumo engajado em relação a valores e à política. Procuramos, dessa forma, evitar ambiguidades e possíveis confusões com o termo “consumerismo” que é utilizado no Brasil para caracterizar os movimentos em prol dos direitos do consumidor. Para aprofundar a discussão em torno do consumo crítico, v. Littler (2009), Sassatelli (2006), Hilton (2003), Micheletti (2003).

2A etimologia da palavra “boicote” tem a sua origem na reação dos camponeses irlandeses contra a exploração e abusos praticados por um administrador de terras da nobreza chamado Charles Cunnigham Boycott (1832-1897) em 1880. O protesto camponês consistiu em abandonar as negociações e/ou o trabalho para C. Boycott, relegando-o para uma espécie de “ostracismo social” (Dubuisson-Quellier, 2009a).

3O termo é utilizado no sentido de causação, como motivador de determinada ação.

4Para maiores detalhes v. Breen (2004).

5V. Dubuisson-Quellier (2009a).

6Na Inglaterra no século XIX, onde foram realizadas manifestações populares contrárias à Corn Law, uma lei vigente entre 1815 e 1846, que proibia a importação de grãos para proteger os grandes proprietários rurais ingleses. Em consequência, o preço de um produto básico como o pão elevou-se consideravelmente. Para maiores detalhes, v. Polanyi (2001, p.144), Hilton (2003, p. 34).

7Com especial destaque para a militante feminista Clementina Black (1854-1922), que buscava politizar o consumo promovendo campanhas de boicote a produtos, cujo processo de produção concorresse para aviltar a dignidade humana. V. Hilton (2003, p. 47) e Dubuisson-Quellier (2009a).

8Segundo Daniel Miller (1987), os bens de consumo não são apenas mercadorias. Depois de adquirido, aquilo que antes era apenas uma mercadoria, converte-se num bem particular capaz de assumir significados singulares a depender do uso e do destino que lhe será atribuído pelo seu comprador. O ato de compra de um bem específico não se resume a uma transação económica, mas encerra a possibilidade da sua ressignificação cultural, de modo que as práticas de consumo implicam um processo de redefinição e reconfiguração da utilidade e função de um bem material tendo em vista a adequação e adaptação inventiva aos novos contextos e circunstâncias que irão caracterizar o seu uso.

9Para maiores detalhes, ver a coletânea organizada por Daunton e Hilton (2001).

10V. Micheletti (2002, 2003), Sassateli (2006, 2007), Stolle, Hooghe e Micheletti (2005), Sorensen (2005), Hilton (2003), Canclini (1995), Dubuisson-Quellier (2009b), Portilho (2005, 2009a), Spaargaren e Oosterveer (2010).

11Como nos protestos ocorridos no cenário norte americano e inglês do século XIX, bem como na utilização dos bens como estratégias políticas materializados no processo de independência dos Estados Unidos e da Índia, como destacam Micheletti (2002, 2003) e Bayly (1991).

12Ao tratar a questão em termos de práticas de consumo, privilegiamos uma abordagem relacional em torno do fenómeno do consumo de modo a evitar perspetivas que, inadvertidamente, substancializam o fenómeno ao constituir sujeitos consubstanciados nas figuras de consumidores e produtores, o que de resto acaba concorrendo para a elisão de dimensões sociohistóricas fundamentais das relações sociais ligadas à sua natureza conflitiva.

13A respeito, v. Nicholls e Opal (2004).

14V. Boström e Klintman (2008).

15Para maiores detalhes, v. Andrews (2008). Maiores informações sobre as iniciativas de Slow Food também podem ser encontradas nos seguintes sitios: http://www.slowfood.com e http://www.slowfoodbrasil.com e ainda http://www.slowfoodfoundation.com/welcome.

16 V. Stjernø (2005).

17V. Boltanski e Thévenot (1991), Thévenot (2006), Nachi (2006), Lemieux (2009) e Yannick et al. (2013).

18Outros autores já se valeram desta noção em sentido lato nas suas teorizações: assim, por exemplo, Ferdinand Braudel (2004), utilizou-a na sua “Gramática das civilizações” (2004), ­Kenneth Burke (1969) recorreu à mesma noção na sua “gramática dos motivos”, e, mais recentemente, Axel Honneth (2003), também fez uso desta noção para analisar, contemporaneamente, as lutas por reconhecimento como uma nova gramática moral do conflito social. Não obstante, a noção de gramática também pode ser utilizada de modo a contemplar a noção de regras que orientam a ação. Para maior detalhe, v. Taylor (2000).

19Aqui a noção de gramática no seu sentido estrito ou forte torna possível a articulação entre uma sintaxe através da análise da estrutura actancial da ação; ou seja, trata-se da análise de uma relação social buscando-se revelar as relações que existem entre os participantes da relação, isto é, entre os chamados actantes. Essa última noção (“actante”) pretende dar conta das capacidades de agir dos agentes sem hipostasiar as suas identidades ou substancializar os seus atributos e qualidades. A premissa é que as qualidades de um indivíduo não podem ser vistas como algo que lhe é imanente, mas baseiam-se antes em qualificações sempre referidas a situações determinadas. Essa dimensão sintática da ação, pode ser articulada ainda com uma semântica (o sentido e significado da ação social) e uma pragmática (a justificação da ação social segundo o contexto de sua realização). Para maiores detalhes, ver o capítulo 3 de “El amor y la justicia como competencias”, no qual Boltanski (2000) explora a análise actancial para elaborar uma sociologia da denúncia pública. V. ainda, Boltanski e Thévenot (1991, p.11), bem como Nachi (2006, pp. 52-55).

20Para a caracterização detalhada destes pressupostos, v. Lemieux (2009; 2012), bem como Descombes (1996).

21Aqui, o pressuposto de uma ontologia social relacional (ou processual) busca superar possíveis fixações em torno de substancializações coletivas ou individuais que caracterizam as ontologias holistas e individualistas. Para aprofundar a discussão, v. Livet e Nef (2009).

22Do ponto de vista de seu modo de existência a realidade social não é única, mas plural. Ver Livet e Nef (2009, p.65) e Thévenot (2006).

23Esse pressuposto não deve ser confundido com a epistemologia de um realismo naïf, nem tãopouco com uma tentativa de “re-naturalizar” a vida social, mas antes como um distanciamento crítico em relação a uma versão radical do construtivismo, ou seja, uma conceção, cuja receção a-crítica o converteu num verdadeiro clichê nas ciências sociais contemporâneas. Mais especificamente, para essa conceção os fenómenos descritíveis, sejam eles sociais ou naturais, não existem anteriormente e exteriormente ao trabalho requerido para categorizá-los. O sentido do distanciamento crítico em relação a este pressuposto ontológico que diz respeito ao modo de existência dos fenómenos sociais procura advertir para o facto de que as ciências sociais não esgotam a compreensão da realidade e que essa não é apenas uma construção social. Uma tal compreensão concorre para a formulação de um construtivismo mais reflexivo acerca dos seus pressupostos. Para maior discussão sobre essa questão, v. Lemieux (2012), bem como Livet e Nef (2009), Elder-Vass (2012) e Vandenberghe (2010).

24Para uma caracterização sociológica do conceito de “prova”, ver Lemieux (2011); aqui nos limitamos à definição esquemática do conceito de “prova legítima” (ou “prova de grandeza”), pois são contempladas também no âmbito dessa teorização, as “provas de força” que prescindem de justificação moral baseada em algum princípio de justiça. Para maior detalhamento, ver também Nachi (2006, pp. 56-77).

25Nos baseamos aqui na conceptualização weberiana de ordem legítima, a saber: as ações sociais, assim como as relações sociais, são influenciadas pela crença dos agentes na existência e validade de ordens legítimas. A validade de tais ordenamentos para os indivíduos pode estar baseada na aceitação do costume, no respeito à tradição, na observância de convenções, na crença da legalidade de estatutos jurídicos, na defesa de valores e visões de mundo, etc. Mas, somente a probabilidade de que tais ordenamentos sejam, de facto, reconhecidos pelos agentes é que definirá a sua validade e legitimidade. Para maior detalhe, v. Weber (1992, pp. 27-30).

26Mohamed Nachi propõe a seguinte definição para esse conceito a partir da sociologia pragmática: uma gramática “est constituée d’un ensemble de règles permettant aux acteurs de faire converger leurs jugements et leurs actions en partant de leurs expériences et du rapport qu’ils entretiennent à l’expérience” (2006, p. 46).

27 Em tradução livre para o português: “um conjunto de regras a seguir para ser reconhecido em uma comunidade […] Uma gramática é o que permite aos membros de uma comunidade julgar corretamente, isto é, de ligar corretamente as descontinuidades que ocorrem no mundo (corpos, objetos, materiais, gestos, palavras), às descrições e experimentar ante algumas dessas descrições, um sentimento de evidência”.

28 V. Lemieux (2009, pp.56-7).

29Aqui a construção do juízo moral se atem às suas estruturas cognitivas sem referência à conteúdos e valores morais, para maior detalhamento ver Habermas (1989), cap. 4: “Consciência moral e agir comunicativo”, bem como Kohlberg (1992).

30 Sobre o conceito de disposições para ação, bem como sobre o programa de pesquisa em torno de uma sociologia das disposições, v. Lahire (2002 e 2013).

31O projeto Esperança/Cooesperança conta com 230 empreendimentos solidários organizados em grupos (de no mínimo 10 pessoas ou 4 famílias) que envolvem e beneficiam mais de 4500 famílias, em 30 municípios da região central do RS, beneficiando direta e indiretamente, segundo os organizadores, mais de 20 000 pessoas entre produtores e consumidores.

32Dom Ivo Lorscheister destaca-se como uma das figuras centrais da história e constituição da feira em questão. Durante a década de 1970 foi secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB), sendo reconhecido como uma liderança política na Igreja e fora dela, manifestando-se de forma crítica ao regime militar vigente no período. Data desta época a construção de uma estreita relação com Dom Helder Câmara, rotulado pelo governo militar de “Bispo vermelho” por suas posições contrárias aos interesses dos militares no poder. Neste período aproximou-se bastante de Dom Helder, visto que Dom Ivo permanecia muito tempo na cidade do Rio de Janeiro, assim possibilitando a constituição de um estreitamento de laços entre eles (Sarria Icaza e Freitas, 2006, p. 33).

33 Conforme Warde (2005), as práticas consistem tanto em “fazeres” e “dizeres”, que sugerem que a análise se deve relacionar tanto com a atividade prática como com as suas representações. Assim, a sua teorização considera a representação útil dos componentes que formam um “nexo”, que seria o meio através do qual ações e palavras se juntam e podem ser ditas e coordenadas.

34De acordo com o autor, as questões morais suscitadas pelo consumo, “têm uma natureza dupla (pelo menos), pois são ambas baseadas na experiência humana comum, a ‘razão prática’, e, ao mesmo tempo, são parte do discurso público sobre a moralidade, um discurso que tem um contexto cultural, simbólico e político, mais amplo” (2001, p. 255).

35 Daniel Miller (2002) chegou a conclusão semelhante ao analisar o consumo familiar num bairro londrino.

36 Rousseau e Herder guardam uma distância crítica em relação ao ideal iluminista de uma natureza humana suscetível de ser aperfeiçoada constantemente pelo uso da razão. Para aprofundar a discussão, v. Taylor (1997).

37 V. Johnston et al. (2011), Barnet et al. (2005), Sassatelli (2003), Murdoch e Miele (1999).

38 A autencidade é um elemento explorado pela propaganda de bens e serviços na produção de peças publicitárias endereçados ao consumo de massa. Ademais, mesmo as técnicas de produção inspiradas no modelo japonês ao viabilizarem a customização de produtos tornam possível a produção de produtos diferenciados segundo uma lógica de singularização, cujo princípio de autenticidade seria uma forma de justificação. Sobre essa discussão, v. Karpik (2007).

39 A noção de solidarismo aqui utilizada remete-se ao conceito de solidarismo cristão, compreendido enquanto uma ideologia que propõe o dever de ação dos cristãos em favor dos mais desfavorecidos economicamente. Esta noção não se refere ao conceito de solidariedade desenvolvido por Durkheim.

40 Aqui nos remetemos à noção de “embeddedness”, utilizada pela sociologia económica e que optamos por traduzir pelo particípio do verbo “encaixar”. A sociologia económica francesa utiliza majoritariamente o termo “encastrement”, muito embora também seja utilizado o termo “enchâssement”. Para mais detalhes v. Polanyi (2001), Granovetter (1992) e Le Velly (2002).

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