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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

RECENSÃO

LOUÇÃ, António

Varela Gomes: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”,

Lisboa, Parsifal, 2016, 392 pp.

ISBN 9789898760241

 

Ivo Veiga*

* Instituto de História Contemporênea, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa. E-mail:ivo.veiga@uclmail.net

 

“Que outros triunfem onde nós fomos vencidos” é a expressiva e ajustada citação inscrita no título da obra de ­António Louçã, que apresenta a trajetória biográfica de João Maria Paula Varela Gomes. Essa citação denota, desde logo, a presença do biografado em vários momentos de inflexão, ou de potencial transformação, da história portuguesa contemporânea, entrecruzando um percurso militar com os caminhos dos processos políticos.

Basta a evocação dessa presença para mostrar como o livro contribui para o campo de estudos dos golpes militares, processos revolucionários e das alternativas ao modelo democrático ocidental. O autor pretende, justamente, resgatar o biografado da galeria de atores esquecidos da história contemporânea. Tentando contornar o carácter fragmentário e discreto das fontes, António Louçã consultou periódicos, arquivos público e pessoais, examinou memórias, realizou entrevistas e analisou inúmeras fontes secundárias. Conseguiu tornar inteligível um percurso cheio de “contradições” mas também de “determinação” (p. 14), e, assim, oferecer um importante complemento a uma historiografia muitas vezes focada em atores vinculados à institucionalização dos regimes políticos – nas suas palavras, fixada na “história dos vencedores”. Como refere o autor, o objetivo não é “reconstituir factualmente os episódios em que Varela Gomes teve participação decisiva”, mas em examinar o seu papel nos mesmos. Deste modo, procura-se, por um lado, mapear e examinar as suas “ideias, palavras e acções” e, por outro, “situá-lo em relação às suas referências históricas” (p. 13).

António Louçã dividiu a biografia em duas partes, centrando-se em primeiro lugar na “Militância Revolucionária”, detendo-se acima de tudo nas ações e na trajetória pessoal e cívica do biografado, e em seguida nas “Referências Políticas e Ideológicas”, nas quais tenta delinear os “quadros de referência” no “­pensamento” e na “escrita” (p. 277). Se na primeira parte, ao longo de três capítulos, o autor consegue traçar um percurso pessoal bastante singular e autónomo na relação com diversas forças políticas, na segunda parte, igualmente dividida no mesmo número de capítulos, incide sobre os princípios orientadores de João Varela Gomes, focando-se num regime – “1.ª República” –, num partido político – “O Partido Comunista Português” –, e sobre a sua participação na revista ­Versus.

Logo no primeiro capítulo sobressai o papel de João Varela Gomes em diversos eventos políticos e ações militares ­contra o Estado Novo. Não ficou esquecido o exame da sua adesão, ainda que crítica, ao movimento delgadista, o que lhe trouxe então o desterro para os Açores em finais de 1958, ou o seu envolvimento na Revolta da Sé (12 de março de 1959) e posteriormente, num registo muito enérgico, na campanha eleitoral de 1961. Mas é à Revolta de Beja (1 de janeiro de 1962) que são dedicadas múltiplas páginas, com a adição de novos dados a uma literatura que já contém diversos trabalhos e variados testemunhos. O percurso de João Varela Gomes, num sentido também interpretado pelo autor, manifesta uma coerência de posição relativamente ao problema colonial, ficando demonstrado que desde 1960 denunciava a teimosia e a incapacidade do regime para arranjar uma solução, num quadro ­internacional de grande desgaste. Curiosamente, para essa denúncia serviu-se da sua inserção na instituição militar, ­disseminando informação em redes sociais que partilhavam as mesmas ideias e objetivos, ou até no âmbito das suas funções de ­instrução.

Ressalta do texto o impacto das ações do biografado quer junto dos movimentos civis e militares que procuravam a transformação política, quer junto da opinião pública, designadamente na forma como eram descritas as mesmas na imprensa internacional. Para mais, o cruzamento de diversos dados permite-nos entrar no universo dos presos políticos e das suas famílias – e são inúmeras as referências a Maria Eugénia Varela Gomes, mulher do biografado –, o que contribui para um conhecimento comparado dos opositores aos regimes autoritários.

Cerca de um terço do livro, correspondente ao segundo capítulo, situa-se no intervalo de tempo 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975, durante o qual João Varela Gomes aparece profundamente associado às práticas e ao programa da 5.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas. Na leitura de António Louçã, seguir a trajetória de João Varela Gomes a partir do 25 de Abril permite-nos intuir que, mais tarde ou mais cedo, a interação entre os distintos grupos militares redundaria numa rutura insanável. Percorre-se o esquecimento a que os “militares antifascistas da velha guarda” foram votados e a política ambígua da Junta de Salvação Nacional e personalidades militares sobre as instituições do Estado Novo, nomeadamente a PIDE, ou sobre a nova orientação política. A conflitualidade e a incerteza sobre o rumo político, é, nesse sentido, também fruto das redes de relações que não foram cortadas apesar do golpe militar. Mas poderemos afirmar que Varela Gomes irá igualmente beneficiar dos seus conhecimentos nas redes dos circuitos militares e nas de oposição ao Estado Novo – nomeadamente no momento da sua breve detenção em maio de 1974 –, sendo centrais para mobilizar apoiantes e criar alianças. Depreende-se que esses laços, importantes em momentos de aceleração do tempo revolucionário – 28 de setembro, 11 de março, 25 de novembro –,
ultrapassavam o núcleo da 5.ª Divisão, e foram sendo fortalecidos no âmbito das atividades exercidas na Assembleia do MFA e tarefas militares.

O autor debruça-se longamente sobre a atuação da 5.ª Divisão, intersetando várias fontes de natureza primária e secundária, e explora a sua rota de colisão num campo de poder fragmentado. Na indagação dos conflitos deste órgão militar com diversas instituições e poderes, como o Conselho da Revolução ou a Presidência da República, é dada uma particular atenção ao contexto em que se movem os diversos atores, pontuando-se o texto com episódios nos quais João Varela Gomes não está presente. Se, por vezes, esta opção se traduz num desvio ao objeto de estudo, noutras, porém, como na observação da interferência internacional no processo revolucionário, permite que se explore melhor o impacto da 5.ª Divisão e do biografado no contexto alargado da Guerra Fria, visível na atenção que os agentes e decisores políticos dos Estados Unidos da América deram aos mesmos. A análise de António Louçã sugere-nos, ainda, que a trajetória de João Varela Gomes neste período se fez sob o signo da autonomia e que a sua orientação gonçalvista não teve paralelo no campo partidário.

No último capítulo da primeira parte ficamos a conhecer melhor a realidade de João Varela Gomes no período pós-25 de novembro, justapondo-se aos testemunhos já publicados informação nova, apoiada em entrevistas e correspondência. Encontramos aqui a perceção dos exilados nos países anteriormente colonizados, revelando-se, por um lado, as tensões internas do mundo pós-colonial, e por outro, como o biografado, e porventura outros membros dessa restrita comunidade, procuravam ressonância nos processos políticos que aí eram experimentados.

Depois do interregno no exílio, João Varela Gomes retomou a sua participação na política nacional. Chegaria mesmo a ser candidato ao Parlamento Europeu pelas listas da Frente da Esquerda Revolucionária, em 1987. O autor regressa neste capítulo a um período em que acompanhou de perto o biografado, no âmbito da revista Versus. Traz-nos, assim, uma leitura pessoal mas detalhada da história de alguns grupos de extrema-esquerda num momento fundamental de alterações estruturais e geo-políticas, antes de mais manifesto no mundo pós-89. Tal como na secção referente aos “exílios africanos”, encontramos aqui um balanceamento de escalas diferentes. Regista-se alguma inclinação de João Varela Gomes para as posições trotskistas, que se projeta em colaborações internacionais. Ao mesmo tempo, enuncia-se que esses grupos olhavam para as transformações ocorridas como uma oportunidade de renovação e de anulação definita das burocracias de molde soviético, o que se articula, no entendimento de António Louçã, com a visão do biografado ao longo de vários anos.

As considerações tecidas nas páginas da Versus, que procuram também conceptualizar os processos políticos contemporâneos, surgem novamente na segunda parte do livro. Discutir a génese, direção e natureza das revoluções não se esgotava na experiência do espaço nacional nem num tempo histórico limitado. Por isso, como é bem sublinhado pelo autor do livro, a revolução portuguesa aparece como uma condição necessária para a derrota do colonialismo. Em bom rigor, João Varela Gomes sempre manterá um olhar atento sobre a política interna de Angola e Moçambique, mas irá, gradualmente, demarcar-se das práticas partidárias destes dois países. Até porque, no seu entendimento, para se atingir o objetivo socialista é fundamental uma interação robusta e inquebrável entre o partido proletário e as massas. Assim, o caso português reconhece-se nessa transversalidade espacial e temporal dos processos revolucionários, com o PCP a não assumir este papel. Nesse sentido, o capítulo dedicado a este partido é particularmente importante pois permite clarificar a posição de João Varela Gomes face ao mesmo, num muito longo arco temporal. Permite, desde logo, invalidar a hipótese, tão bem refletida nas fontes citadas, de que este militar era um instrumento daquele partido.

Poderemos encontrar outros atores com intensa participação em momentos de transformação da história contemporânea portuguesa, no entanto João Varela Gomes destaca--se pela continuidade dessa presença em revoltas e processos de mudança em dois regimes políticos distintos. Assim, foi durante o Estado Novo, por exemplo, no movimento delgadista ou na Revolta de Beja, e novamente no período pós-25 de Abril, ao tomar parte nos episódios do 11 de março e do 25 de novembro. Este trabalho, no fundo, alcança aquele que talvez fosse o seu maior objetivo: recuperar a centralidade do biografado nesses, e em outros, contextos de transformação. Se António Louçã convoca para o exame desta trajetória múltiplas fontes, poder-se-ia, porém, apontar a necessidade de dar maior espaço a perspetivas divergentes, principalmente para o período do processo revolucionário. Esta questão em nada diminui o valor do livro, antes pelo contrário mostra como vários caminhos de investigação podem ser explorados na sua sequência.

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