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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

RECENSÃO

FREIRE, André (org.),

O Futuro da Representação Política, Lisboa, Nova Vega, 2016, 205 pp.

ISBN 9789897500381

 

André Barata*

* LabCom.IFP, Universidade da Beira Interior, Convento de Santo António — 6201-001, Covilhã, Portugal. E-mail: andrebaratanascimento@gmail.com

 

O Futuro da Representação Política Democrática é um volume coletivo, com organização e introdução do politólogo André Freire. A obra conta com sete capítulos, na verdade sete dimensões onde a representação política democrática se constitui como realidade e arena política. A identificação das sete dimensões é, já de si, um interessante exercício que a Introdução do volume cumpre com grande clareza. Bem como o recorte histórico e conceptual, feito à cabeça, da democracia representativa face a outras expressões que se reclamam ou são reconhecidas como democracia.

Os sete capítulos da obra apresentam-se na seguinte ordem – primeiro, a democracia representativa, na verdade liberal e representativa; segundo, a representação parlamentar, primeira forma de expressão da democracia representativa; terceiro, o papel dos partidos políticos na democracia representativa parlamentar; quarto e quinto, o papel dos movimentos sindicais e sociais na representação sociopolítica; sexto, a questão particular, mas crucial, da construção europeia num contexto de globalização; e finalmente, sétimo, a questão de fecho que confronta as possibilidades da governação democrática com as consequências políticas do processo de globalização.

Metodologicamente, todos os setes capítulos se desenvolvem de acordo com uma sequência consentânea com o objectivo geral da obra. Assim, em primeiro lugar, caracteriza-se a representação política democrática na dimensão em consideração. Em seguida, expõem-se os aspetos de crise que possam caracterizar essa representação nessa dimensão na atualidade. Por fim, identificam-se as linhas evolutivas mais prováveis, dado o conhecimento disponível, para a representação política democrática por que se propõe avaliar o seu futuro. Daí que os títulos de todos os capítulos façam, sem exceção, menção ao futuro. E daí também o título da obra, que nada tem das bagatelas que a capa poderia sugerir se seguíssemos o sentido popular do título do álbum dos Sex Pistols que inspirou a capa do livro. Esta pode bem ser lida como um “statement” sobre toda a amplitude de consequências com que se concebe a democracia, ou o seu futuro, neste livro.

As razões para circunscrever o exercício de investigação ao futuro da democracia representativa e não da democracia pura e simplesmente são indicadas por André Freire, coordenador da obra, e autor do seu primeiro e mais desenvolvido capítulo, logo na Introdução – “as democracias modernas são ­democracias liberais e representativas” (p. 11) e de novo no início do capítulo de que é autor (p. 15). Uma revisão minuciosa da literatura distingue e equaciona relações entre democracia direta ou participativa e democracia representativa, mas sempre num quadro cujo núcleo é essencialmente representativo. No momento dedicado aos padrões evolutivos, André Freire começa por passar em revista as revoluções de tamanho (size), escala (scale) e de âmbito (scope) que Robert Dahl associou à longa tendência histórica de globalização da democracia, e as revoluções “pós-dahlianas” que Philippe Schmitter assinalou, duas já incorporadas – o alargamento da representação de indivíduos à representação de interesses por delegação e a profissionalização da política – e outras três que se prolongam pelos nossos dias. Estas três são, pois, particularmente relevantes para uma avaliação hodierna da democracia representativa. Primeiro, o “crescimento de autoridades não eleitas”, segundo, a governação/democracia multinível e, terceiro, o crescimento da prática da “governança” (pp. 30-31). Todas estas mudanças sucedem-se num quadro em que autores diversos identificam sinais de crise da representação política democrática, justificando menções a um “inverno da democracia” ou ainda à designação “pós-democracia” que Colin Crouch consagrou no seu título homónimo.

Diante deste quadro de tendências, e presumindo a sua sequência, Freire aponta quatro cenários possíveis para o futuro da representação política democrática. O primeiro deles, apresentado com maior probabilidade e em clara consonância com os alertas de crise, consiste numa degradação da representação política democrática, seja por via de um deslocamento de poderes para esferas supranacionais, em si mesmas com escassa base democrática, seja por via do investimento de poderes num crescente número de autoridades não eleitas. De acordo com Freire, este é também um traço que caracteriza o seu segundo cenário, de constitucionalização do modelo da boa governança e que traz problemas sérios de legitimidade democrática, seja por via do voto ou da representação. Nas suas palavras, está em causa “contemporizar com, e constitucionalizar, a crescente partilha de poder (na deliberação democrática e no policy-making) das autoridades democraticamente eleitas com organizações, instituições e agências de duvidoso pedigree democrático, para dizer o mínimo” (p. 53).

Os terceiro e quarto cenário correspondem menos a tipos de evoluções possíveis, mas aos âmbitos de evolução considerados, o terceiro em larga medida debatendo os diferentes cursos que podem seguir-se da tendência para uma maior federalização de poderes supranacionais, muito em particular a União Europeia (UE). E o quarto cenário referido “ao mundo além do Ocidente” (p. 63), muito em particular, o capitalismo autoritário, seja na versão asiática, seja na versão russa, modelo com ambições expansionistas que pode penetrar mesmo no espaço europeu, nem que seja sob formas híbridas.

Na realidade, não se contradizendo conceptualmente, estes quatro ­cenários podem bem constituir-se não como alternativas, mas como aspetos interdependentes de um cenário complexo. Esta observação suscita uma segunda, interrogativa, sobre qual ou quais serão os contornos de oposição e escolha que circunscreverão um cenário alternativo para a representação política democrática. No entender de Freire, as possibilidades alternativas são concentradas no cenário Europa, na forma de três subcenários verdadeiramente concorrenciais, onde se confronta a desintegração da UE com a sua continuidade e, neste caso, confrontando uma agenda de democratização da UE com uma compressão da representação política democrática. Neste quadro, são debatidas várias inovações que, levadas para o design democrático da União, poderiam colocar sobre melhores bases os desideratos de “democratizar a UE, reequilibrar o poder das minorias face às maiorias territoriais na UE, restaurar o poder da democracia face aos mercados domesticando a globalização liberal, ou seja, desglobalizando a hiperglobalização” (p. 64).

O segundo estudo da obra, a cargo de Cristina Leston-Bandeira e Tiago Tibúrcio, debruça-se sobre o aspeto parlamentar da representação política democrática, onde os sinais de crise se evidenciam na forma de uma desconfiança face aos políticos, com indicadores de baixa responsividade dos eleitos parlamentares aos eleitores. Como grande desafio para os parlamentos contemporâneos, os autores identificam a transição da representação parlamentar de um “paradigma de delegação” para outro de “­relação” e mediação entre representantes e representados. Se a delegação dispensava o cidadão, na medida em que este confiava no seu representante, a mediação convoca-o a partir de uma sua condição cada vez mais bem informada e preparada (de critical citizens) numa sociedade com grande circulação de informação. Apesar do enriquecimento que esta transição de paradigmas traz à representação parlamentar, os autores dão conta de riscos. A cedência de poderes de iniciativa parlamentar a cidadãos deve evitar que se convertam em mecanismos de democracia direta que comprimiriam a representação política democrática. E deve ainda evitar que se constituam como criação de efetivas desigualdades de oportunidades de participação política dos cidadãos.

O terceiro capítulo, da autoria de Marco Lisi, incide sobre os partidos políticos como atores de primeira grandeza dos parlamentos e da representação política democrática em geral. De novo, os sintomas de crise são reconhecidos, também na forma de um afastamento cada vez maior destas organizações face à sociedade civil, ao mesmo tempo que se acentua a sua dependência do Estado, dele tornando-se quase prolongamentos e assim deixando de ser “capazes de politicizar certos interesses da sociedade e agir como delegados”, “estruturando os conflitos políticos” (p. 95), como se esperaria da representação parlamentar. O declínio do número de filiados, o declínio da participação eleitoral e do modelo de “partido responsável” são outros ­sintomas da crise da ­representação ­parlamentar. Segundo o autor, esta é uma crise que abre oportunidades para os partidos contemporâneos pensarem os princípios da sua organização e do seu funcionamento. Por exemplo, flexibilizando as modalidades de filiação, introduzindo práticas deliberativas nos processos de escolha interna, interagindo com atores e organizações diversas da sociedade civil.

Os quarto e quinto capítulos tratam de dois aspetos mais voláteis, mas não menos decisivos da representação política democrática. Por um lado, a representação sociopolítica do sindicalismo, num capítulo trabalhado por ­Elísio ­Estanque, Hermes Augusto Costa e Manuel ­Carvalho da Silva; por outro, a representação sociopolítica dos movimentos sociais, aqui abordada por ­Britta ­Baumgarten. Independentemente de outras causas, o recuo da sindicalização na sociedade contemporânea é indissociável dos processos de desvalorização do trabalho assalariado, designadamente com a desregulamentação laboral por meio de alterações da legislação laboral e com a promoção da precariedade como modelo de relação laboral. Em face deste quadro, os autores enumeram um conjunto de tarefas principais que se colocam ao sindicalismo português, algumas delas autorizando um interessante paralelo com os desafios de maior interação, que também se colocam aos partidos políticos. Já os movimentos sociais não padecem dos problemas de corrosão da representação, e na verdade do diagnóstico de crise, que se verifica em todas as dimensões anteriormente consideradas. Nos movimentos sociais, a representação é em si mesma problemática dada a sua configuração não institucional. De acordo com a autora, a representação nos movimentos sociais ou é direta ou por via de mediadores, por regra não eleitos. Pode, contudo, constituir-se como força de pressão e inventiva para uma superação da crise da democracia representativa. Como bem frisa a autora, “os movimentos contribuem para o pensamento conceptual sobre a democracia” (p. 149).

Os capítulos derradeiros de certo modo fecham o circuito feito por este livro coletivo, retomando e desenvolvendo as problemáticas, já abordadas no capítulo inicial, da construção da democracia europeia e da governação democrática num contexto de globalização. O capítulo sobre a questão europeia, da autoria de José Pedro Teixeira Fernandes, apresenta dois cenários para o futuro da União Europeia, mas que, no entanto, do ponto de vista da afirmação de uma democracia representativa à escala continental, não se mostram especialmente promissores. Por um lado, um cenário de entusiasmo federalista, por exemplo de Cohn-Bendit e Verohfstadt, não só encontra resistências demasiadas entre os Estados-membros como, se avançasse, poderia redundar num diretório de potências. Por outro lado, um cenário de realismo construtivista tecnocrático, na linha de Vibert, tende, no entender do autor, a confrontar a União com “uma forma pós-moderna de despotismo iluminado” (p. 173). Estas dificuldades, se representam um grande desafio para o projeto comum ­europeu, não deixam de refletir a questão que atravessa todo o volume e que é esplendidamente enunciada por Emmanouil Tsatsanis no último capítulo – “Será que a globalização facilitou a disseminação e o triunfo da democracia numa escala global, ou escavou a democracia até ao ponto em que só a casca institucional permanece, desprovida de qualquer substância?” (p. 178).

Em síntese, este volume cumpre um abrangente e aprofundado levantamento dos sintomas de crise e dos sinais de evolução da democracia representativa no nosso tempo, não sem antes realizar caracterizações bastante cuidadas das dimensões consideradas, com ampla revisão da literatura. Como diagnóstico e prognóstico da representação política democrática é um documento e um instrumento de grande valor, aliás, com estas características, singulares na produção académica portuguesa sobre a problemática da crise da democracia representativa.

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