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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.223 Lisboa jun. 2017

 

ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

Teoria social e estética sobre o desígnio interdisciplinar 1

Social and aesthetic theory: on interdisciplinarity.

 

Gil Fesch*

*Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras,Universidade do Porto Via Panorâmica Edgar Cardoso, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: gilfesch@gmail.com

 

RESUMO

 

Teoria social e estética sobre o desígnio interdisciplinar. O presente ensaio problematizará a relação entre teoria social e estética, tomando como ponto de partida a evolução do diálogo entre o complexo das ciências sociais e a arte. Se a intensa reconfiguração teórico-metodológica das últimas décadas é hoje amplamente reconhecida, enfatizando a origem sociocultural da arte e vinculando-a ao comportamento humano, autores há também que vêm denunciando os efeitos de um progressivo acantonamento subdisciplinar decorrente do processo de autonomização dos projetos teóricos. É com este pano de fundo que nos propomos refletir sobre importantes pontos de contacto e oportunidades teóricas.

Palavras-chave: teoria social, estética, interdisciplinaridade, sociologia.

 

ABSTRACT

 

This essay addresses the relationship between social and aesthetic theory, starting from the evolution of the dialogue between the social sciences and art. If the intense theoretical and methodological reconfiguration of the last decades is now widely recognized, emphasizing the sociocultural origin of art and linking it to human behavior, some authors have also denounced the effects of a progressive sub-disciplinary entrenchment resulting from the process of autonomization of theoretical projects. It is with this background that we propose to reflect on important points of contact and theoretical opportunities.

Keywords: social theory; aesthetics; interdisciplinarity; sociology.

 

Os opostos da clivagem a que aludimos são por demais conhecidos, portanto não mais faremos do que caricaturá-los: de uma parte, a insistência de uma certa tradição estética na ideia de que a arte não tem qualquer ligação direta com a realidade social, e que aliás deve estabelecer-se como um seu contrapeso utópico; de outra, o argumento, avançado pelo composto das ciências sociais, de que não poderia senão ser entendida deiticamente, por relação com o seu contexto. E, não por acaso, à música tem cabido papel de destaque nesta discussão: falamos de um terreno em que estas tensões são porventura mais salientes ainda, porquanto se trata de uma esfera particularmente racionalizada, orbe por natureza mais convencido da sua autonomia. Como nos diz Kivy (2010), Schopenhauer estava certo ao entender que a música pura era diferente do conjunto das artes, e das Belas Artes em específico (ainda que possamos corrigir-lhe o alcance). As demais artes representam ideias; a música representará, antes de mais, a vontade. Não se trata, claro está, de recusar, liminarmente, à música absoluta, instrumental, a capacidade de representação, mas tão-somente de reconhecer que, em termos gerais, nos referimos a uma arte a-representativa e afigurativa (Lopes-Graça, 1978, p. 33); em que há conflitos, tensão e resolução, mas conflitos, esses, que não têm dono ou rosto – uma linguagem que pode ser descrita em termos puramente técnicos, mais capaz de se encerrar em si mesma. É por isto que a obra musical vem sendo tomada como sítio privilegiado para analisar estas divergências.

Há, no entanto, aspetos não menos importantes que nos convidam a alargar a discussão ao conjunto das formas artísticas. São, aliás, variadíssimos os exemplos de uma espécie de multimodalidade que se vai criando, de um   aprofundamento do diálogo inter-artes. Schönberg e Kandinsky convergem num projeto comum, de renovação artística pela via expressionista, abstrata; Pasolini serve-se de Bosch para a cenografia de filmes como Os Contos de Canterbury; Manoel de Oliveira encontra o teatro, entre outros, de José Régio; pensemos na regular colaboração entre John Cage e Merce Cunningham; e o que seria de uma certa renúncia à narrativa tradicional, em Kubrick, sem a música de Ligeti?; há até tradição de pensadores clássicos que se debruçaram tanto sobre fenómenos acústicos como visuais (não só Schopenhauer, mas Helmholtz também) — prova de que há vantagens bastantes em situar o debate no plano das artes, tomadas genericamente, e, assim, abarcar uma série de desafios que lhes são transversais.

O que as duas posições que começámos por enunciar descuidam é, antes de mais, a abordagem comprometida do encontro entre arte e sociedade. Enquadrar o conhecimento sensível do objeto estético assume relevância, sim, porque pode mobilizar temas de interesse social e político, mas principalmente porque as transformações históricas consubstanciadas na nossa postura perante aquilo que consideramos arte representam uma projeção vibrante da nossa imagem coletiva. A deliciosa ironia da frase atribuída a Schönberg, recorrentemente mobilizada em discussão – “a música tem tanto que ver com a sociedade como um jogo de xadrez” –, reside na forma evidente como a estratificação social da era medieval se encontra plasmada no tabuleiro de xadrez (Paddison, 2010, p. 259).

Gracejos à parte, o certo é que o afastamento que agora descrevemos se subsume num processo de autonomização de esferas de atividade que ditou a separação dos projetos científico, de um lado, e estético ou artístico, do outro. A questão do gosto passa, então, a ser enfrentada de formas distintas. Se a teoria social se vem empenhando na desconstrução de verdades absolutas, integrando os procedimentos de controlo inerentes ao estabelecimento do discurso científico, no campo da estética assume-se o objetivo de encontrar objetividade na subjetividade, partindo do interior de uma formação discursiva (Ferry, 2012). Eis, pois, como se colocou a discussão na roda de Ixion, numa tensão irresolúvel entre a vinculação da experiência estética à deixis e a necessidade de atender ao nexo artístico. Ganha-se em acuidade, perde-se em abrangência; desempoeira-se o debate, mas as esferas autónomas resistem como nunca à propícia integração conceptual.

É por isso que ultrapassar a cisão implica, em primeira instância, regressar ao momento da separação, i.e., ao tempo histórico e aos seus protagonistas. Com Teoria Estética, mas sobretudo com Minima Moralia, abre-se a fenda e concebe-se Auschwitz como “corte e fractura incurável da história da civilização”. Quando Adorno sentencia – “Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro e isto corrói também o conhecimento das razões pelas quais hoje é impossível escrever poemas” –, tal foi, diz-nos Günter Grass (2008, p.19), “erroneamente tomado como sinal de proibição”. A tão prezada liberdade parecia, naquele instante, estar sob vigilância, pelo que o mandamento adorniano depressa causou frémito. Todos regiam em defesa das recentes conquistas, mas a abertura de horizontes por ele condenada acabava por se mostrar, em parte, paralisante. O abalo que as convenções ou artificialismos que definiam as práticas artísticas sofreram, para usar os termos de Lopes-Graça, fazia com que não mais fosse possível defender, com talento suficiente, as premissas iniciais do(s) género(s) – o “alargamento das possibilidades revela[va]-se em muitas dimensões como estreitamento” (Adorno, 2008, p. 11).

Mandamento ou proibição, ficavam os revérberos: foi de uma áspera e auto-decretada estreiteza que muitos retiraram a sua regra (não só Grass, mas Stockhausen, Nono e Lachenmann, com repercussões que se estendem até Heiner Müller ou Rainer Werner Fassbinder). Abdicava-se do “hedonismo castrado de Kant” (Adorno, 2008, p. 27), da Ars poetica de Horácio, da estética da época idealista, das atmosferas “arilkeadas”, dos maneirismos, e de todas “aquelas intemporalidades líricas dos místicos da natureza que, nos anos cinquenta, construíram os jardinzinhos deles e […] prestaram o seu serviço à neutralidade de valores dos manuais escolares” (Grass, 2008, p. 25). Em resposta a Adorno, Grass versejava: “E na parede, onde antes/o quadro verde ruminava o verde sem parar/deves escrever, com o teu lápis afiado/ascese, escreve: ascese./É assim que diz o gato: escreve ascese”. Ao sujeito criativo não mais se lhe permitia o refúgio na intemporalidade, exigia-se-lhe que se comprometesse com o momento; abandonava-se a cor pura, prescrevia-se o cinzento e suas gradações. O lápis afiado, o gato como a ratazana: cinza.

Por isso, foi a sentença lesta: a Adorno condena-se o determinismo, o discurso teleológico e etnocêntrico. Tomamo-lo – não sem razão – por homilista, catastrofista, voz de um Armagedon cultural por vir, mas, e ainda que a crítica seja ampla e sustentada, surpreende que nos mantenhamos reféns de um certo anacronismo, filípica até, com que insistentemente é enfrentado, levando a que o potencial de desenvolvimento ali entreaberto nos seja tão distante. Não será, certamente, este o espaço para uma avaliação ex professo, mas importa relembrar que, em Adorno, o próprio registo é multiforme, variando de acordo com a natureza dos escritos: o texto musicológico é preponderantemente analítico, o que é sociológico faz uso de tom crítico, o que é estético prescritivo. Ou seja, encerramo-nos na condenação das incongruências e, assim, perdemos a sua subtileza, e a obra de arte continua a esquivar-se-nos.

Mas nem só por reação a Adorno – leia-se grande parte da teoria crítica – se fazia a separação. Sendo certo que este corpo teórico responde a um período histórico em que a exploração ideológica era, de facto, uma possibilidade – motivo pelo qual parte considerável do seu pensamento se mantém datada –, talvez tenhamos exagerado no papel que lhe consagrámos. Seria, aliás, profundamente redutor encerrar assim a análise numa espécie de causalidade mecânica que pouca justiça faz à complexidade dos fenómenos sociais. A desagregação dos projetos inscreve-se, antes de mais, num processo de desenvolvimento científico bem mais vasto – a desavença entre, por um lado, o aglomerado das ciências sociais (sociologia, antropologia, história, economia, política, etc.) e, por outro, as ciências encarregadas dos fenómenos simbólicos (referimo-nos, entre outros, à linguística, semiologia, teorias estéticas, literárias, etc.). Lahire (2012) não hesita: esta oposição é hoje obstáculo decisivo à compreensão quer dos fenómenos sociais, quer dos fenómenos simbólicos – uma divisão, por si só, artificial, resultado de uma também artificial divisão do trabalho científico, e a que não serão alheias as crescentes exigências de mensurabilidade da produção intelectual (indicadores bibliométricos, entre outros).

A organização do universo científico vem, assim, abrindo caminho a um cada vez mais evidente acantonamento subdisciplinar que, de alguma forma, culmina no parcelamento da realidade social: separam-se as “ciências dos contextos sociais de enunciação ou das propriedades sociais dos enunciadores e as ciências da linguagem ou das formas simbólicas”, ou, dito de outra forma, “entre as ciências que têm a cargo o estudo das condições sociais de produção das obras (ou dos discursos) e as ciências que se consagram ao estudo das obras (e dos discursos)”. Com o que se institui uma rutura quase ontológica entre sociologismo e formalismo, entre sujeito e objeto, externo e interno, social e simbólico – no fundo, entre elementos que não constituem senão aspetos diferentes de uma mesma realidade, como se os acontecimentos ou factos sociais pudessem, ad absurdum, ser desmembrados em “substâncias heterogéneas” (Lahire, 2012, p. 326).

Quer isto dizer que a ameaça de totalitarismo científico, por um lado, e o crescente etnocentrismo disciplinar (causa e efeito do processo de autonomização da esfera científica), por outro, nos vêm conduzindo a um estado de hiperespecialização científica com consequências concretas. Alguma da nossa relação com o pensamento clássico é disso exemplo: aquilo que em Durkheim tantas vezes tomámos por “imperialismo sociológico” pode igualmente ser entendido como uma invulgar capacidade de ver, nestas múltiplas abordagens, aquilo que têm de comum; talvez nos tenha escapado também o alcance de Norbert Elias, que funda aquilo a que Lahire chama uma quase “ciência do homem” (Lahire, 2012, p. 324); ou tomemos A Arqueologia do Saber, de Foucault – um pensamento com uma tal abrangência é algo cada vez mais alheio aos nossos tempos. Importa, contudo, relembrar que os grandes esquemas mentais que ainda correntemente nos permitem enquadrar mutações ­históricas importantes (capitalismo, burocratização, processos de racionalização ou de civilização), ou até noções de natureza sintética (como sistema ou campo), têm justamente esta capacidade de pôr em evidência “grandes propriedades ou as tendências mais significativas das nossas formações sociais” (Lahire, 2012, p. 342). Se estes autores nos desafiam ainda – e talvez o façam mais do que nunca – é porque a clareza e precisão com que os fenómenos sociais passaram a ser retratados elide, em idêntica proporção, o fundo de problemas comuns, impedindo-nos, com isso, de aceder ao domínio das grandes regularidades – por excelência, a área de atuação da sociologia.

Vemo-nos, então, votados à tautologia, forçados a regressar àquele que é o problema de base da disciplina: como ultrapassar tendências antinómicas da produção sociológica – a escolha paralisante entre determinismo minaz e total relativismo? Não havendo récipe ou prescrição em que nos possamos apoiar, isso de modo algum nos deve demover. O momento insta-nos à reflexão teórica, ao denodo metodológico, massobretudo a um esforço especulativo que dificilmente estaremos em condições de recusar. Por isso se abre o desafio: uma possibilidade a considerar passaria pela adequada integração da teoria da linguagem – um abraço controlado à série discursiva, por um lado, e, por outro, um retorno, também ele devidamente enquadrado, ao projeto crítico que foi, desde então, abandonado pela sociologia. Se um ensinamento devemos a Benjamin, será, porventura, a ideia de que a linguagem não só anima os mais diversos domínios e manifestações do espírito humano – aqui naturalmente considerado na sua versão secularizada, esvaziando aquilo que, no autor, é ainda fruto do seu judaísmo –, mas abrange a totalidade do nosso ser. E é por isso que não devemos hesitar na necessidade de pensar, antes de mais, as formas artísticas enquanto linguagens. A tarefa acarreta riscos a que ninguém passará despercebido, mas seria, talvez, importante que nos detivéssemos na finura da conceção proposta por Benjamin.

Insiste que a linguagem não se restringe à transmissão daquilo que é comunicável; é igualmente símbolo de algo não suscetível de comunicação. Fala-nos, portanto, de uma essência espiritual que se distingue da própria língua, mas que se comunica na língua e não por meio dela – i. e., que não se identifica, “a partir de fora, com a essência de linguagem”. Ponto notável, que autores como Žižek vêm sinalizando, na medida em que revoluciona a forma como encaramos o processo de tradução: assim entendido, é o original também tradução (exemplo ligeiro: o célebre título Sunday Lazy Book, da série Calvin & Hobbes, de Bill Watterson, que, em português, se traduz por Plácidos Domingos; exemplo grave: a auto-tradução, em Beckett, verdadeiro aparato teatral em que não cabem as noções de obra original e tradução, versão definitiva e variante, “espaço de emancipação da linguagem relativamente ao seu fim”) (Silva, 2014, p. 20). Não parece, pois, haver motivo para atribuir, a priori, superioridade ontológica à figura do original – conclusão que se une a posições desenvolvidas em A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Daqui resulta que a linguagem veicula a essência-de-linguagem das coisas; no fundo, que se comunica a si mesma, pelo que aquilo que é comunicável numa essência espiritual é a sua linguagem.

Importa insistir: a “equivalência entre essência espiritual e de linguagem tem, do ponto de vista da teoria da linguagem, um alcance metafísico tão grande porque conduz […] [ao] conceito de revelação” – ou de aparição sensível, do momento estético. É neste ponto que os caminhos se começam a cruzar. Intrínseco ao trabalho sobre a linguagem está o “conflito entre o expresso e o exprimível, de um lado, e o inexprimível e o inexpresso, do outro”; ou seja, na esfera do inexprimível encontramos a “última das essências espirituais” (­Benjamin, 2015, p. 16). Espaço privilegiado para a arte: aludindo a Adeus à Linguagem, pintamos o que não vemos, dir-nos-ia o aí citado Monet, ou, insistiria Godard, o cinema mostra-nos aquilo que não vemos, o incrível. Relaciona-se, então, o aspeto simbólico da linguagem “com a sua ligação ao signo, mas estende-se também, por exemplo, em certos aspectos, ao nome e ao acto de julgar” (Benjamin, 2015, p. 28).

A noção de revelação traz, claro está, ecos de algo tão insistentemente atacado em Adorno – a ideia de verdade ou autenticidade. Não será decerto o momento para repassar uma tal discussão, mas, isso sim, o de encadear a análise n’A Ordem do Discurso. Como compatibilizar as tradições de pensamento que por ora nos ocupam? Segundo Foucault, “as grandes mutações científicas podem ser lidas, por vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como o aparecimento de novas formas de vontade de verdade” (Foucault, 1997, p. 14, ênfase acrescentada). Tal como aqui é concebida, esta vontade de verdade tem contornos precisos – enquanto “sistema de exclusão, sustenta-se num suporte institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda a espessura das práticas” (Foucault, 1997, p. 15). A atenção está, por isso, concentrada nos princípios de controlo da produção do discurso, de que a disciplina é exemplo, e que demarcam as fronteiras identitárias através “de uma reactualização permanente das regras”. Será evidente que Foucault não deixa de consagrar a possibilidade de “dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reactivar em cada um dos nossos discursos” (Foucault, 1997, p. 28).

Recomecemos, então, de olhos postos tanto na teoria social como na estética: o sujeito fundador – figura-pivô do processo criativo – está “investido da função de animar […] as formas vazias da linguagem; é ele que, ­atravessando a espessura ou a inércia das coisas vazias, reapreende, na intuição o sentido que aí se encontra depositado; é igualmente ele que, para além do tempo, funda horizontes de significação que a história não terá senão de explicitar em seguida”. É, pois, este peso excessivo da ideia de uma quase mediação universal, de uma verdade latente por descobrir, que talvez nos cumpra fazer ruir. Se, por um lado, nos habituámos a ver “na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários e no desenvolvimento de uma disciplina, outros tantos recursos infinitos para a criação dos discursos”, não devemos, com isso, deixar de notar que são, em idêntica medida, uma forma de pressão, que constituem “princípios de coerção”. É por isso que Foucault propõe um princípio de inversão: “aí onde, segundo a tradição, se crê reconhecer a fonte dos discursos, o princípio da sua fusão e da sua continuidade, […] é preciso reconhecer, pelo contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefacção do discurso”. Dito de outra forma, «é provável que não se possa explicar [tal] papel positivo e multiplicador, se não se tomar em consideração a sua função restritiva e coerciva». Relembre-se, a este propósito, a necessidade que a arte sentiu, durante séculos, de alicerçar a sua legitimidade no “natural, no verosímil, na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro” (Foucault, 1997, pp. 15-39). É o caso da literatura oitocentista; é também o do teatro de Stanislavsky, que, reagindo aos nacionalismos e ao jeito poético (em especial à dramaturgia elizabetana), dava passos rumo a um estilo naturalista; a pintura escapa à moldura; há Duch Russuolo e os futuristas incorporam o ruído na música.

O novelo começa então a desvelar-se. O discurso, segundo Foucault, não deve ser enfrentado como um feixe de significações prévias, que – à imagem de erros passados – nos caberia decifrar, mas antes deve conceber-se como “uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio da sua regularidade”. Isto é, não devemos avançar do discurso rumo àquilo que nele está oculto, mas antes, partindo do próprio discurso, “passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e cria as suas fronteiras” (Foucault, 1997, p. 40). Eis, pois, a tarefa que se nos impõe: analisar o aspeto genealógico – i.e., a constituição dos discursos, dentro dos limites da disciplina ou na tal exterioridade selvagem, ou, mais comummente ainda, nos dois lados. Se a separação, como temos vindo a constatar, é uma artificialidade, ao projeto crítico cumpre, em simultâneo, analisar os já referidos processos de rarefação, assim como o estabelecimento e recomposições dos discursos; encontrar, na descontinuidade, regularidades.

Rematando: “a tarefa crítica, pondo em questão as instâncias de controlo, deve analisar ao mesmo tempo as regularidades discursivas através das quais elas se formam; e toda a descrição deve tomar em consideração os limites que estão em jogo nas formações reais” (Foucault, 1997, p. 48). Nada, como nos diz Hegel, é sem mediação. Mas a mediação, em todo o seu dinamismo, apaga as suas pegadas, desaparece no próprio processo de mediação, escapa-se-nos por entre os dedos – é por isto que a fase a-ideológica (ou pós-ideológica) é, por excelência, o momento da ideologia. Assim se torna explícita a necessidade de um retorno a Benjamin: consagram-se-nos duas tarefas: 1) a constituição das coisas no “Agora da possibilidade de conhecimento”, a que se junta 2) a “limitação do conhecimento no símbolo” (Benjamin, 2015, p. 39). E é aqui que a sociologia assume particular relevância: inscrevendo a análise contextualmente, situando possíveis tensões, acedendo in loco às representações e apropriações criativas, consagrando aspetos complementares, mas sem nunca deixar de apontar a uma certa redução da complexidade social – sem abdicar do movimento abdutivo. Reconhecer singularidades, sim, mas sempre projetadas sobre um pano de fundo de regularidades.

Desengane-se, por isso, quem no descrito vir resquícios de um discurso passadista ou uma apologia do regresso a episódios negros – abaixo a ideia de uma espécie de litania a destempo. O que aqui se propõe, para que fique claro, não é uma descaracterização das respetivas disciplinas, e em especial da sociologia – é, aliás, crucial conservar um espaço idiossincrático. Mas isso em nada obsta a que se aprofunde o diálogo interdisciplinar, a que se estabeleçam protocolos colaborativos; no fundo, a que se reconheça o enorme potencial da abordagem comprometida ao discurso estético, enquanto elemento descodificador, porta de entrada a que não devemos renunciar. Violando as palavras de José Gil (2009, p. 59): “Adquirir uma percepção de longo alcance, sentir ao longe prolongamentos da nossa existência local exige um esforço doloroso”, que implica “abrir portas ao desconhecido, a encontros inesperados, a emoções e afectos excessivos”.

Numa tal empresa crítica, apoiada no discurso, nas suas singularidades e regularidades, poderá, então, estar a chave de uma maior permeabilidade entre estas duas tradições de pensamento, mas, igualmente, uma ponte importante entre conceções abstratas e a necessária sustentação na empiria, entre visões estruturalistas e individualistas da arte. Só assim estaremos em condições de perceber o que nestas formações – diferentes, é certo – há de compatível ou até de complementar.

Tendemos a esperar da arte a concretização do salto utópico e da ciência a explicação do real. Mas não há nisto algo de redutor também, que nos tem impedido de realizar o tão prometido diálogo interdisciplinar? Se as duas têm espaços de locução próprios, meios distintos, objetivos até, há, outrossim, muito de comum, sobretudo se recuperada a dimensão crítica. Bem dizia Buñuel, com o seu humor mordaz, que O Fantasma da Liberdade resultara de uma sua colaboração com Karl Marx…

Muito do que a uma e outra se impõe na atualidade tem, aliás, natureza comum. A uma e outra se exige crescente comunicabilidade, a uma e outra se vem pedindo um esforço de aproximação ao público – com prováveis raízes ainda no processo de autonomização das esferas de atividade –, que traz consigo o perigo de uma certa “sensocomunização” dos respetivos discursos. Mais: nas duas áreas se consagrou a absoluta interdição do erro – a figura do especialista, de que falava Lahire, encontra aqui pontos de contacto com a do moderno instrumentista virtuoso, de exemplar fidelidade ao texto, mas cuja inspiração não raro tem perna curta.

E assim se tem abdicado, cremos, de uma parte essencial à produção do conhecimento. Não terá boa parte das descobertas que marcaram a ciência moderna partido da imaginação livre, do voo especulativo – o evolucionismo, a teoria psicanalítica, a teoria da relatividade, a teoria das cordas ou a teoria dos sistemas? A boa ciência, como a arte, nem sempre será a mais exata, mas a que mais possibilidades abre, a que mais pontas soltas deixa, a que mais suscita o espírito crítico. Deste ponto de vista, Adorno, Bourdieu e outros que tanto (e bem) criticámos não deixam de ser grandes impulsionadores do nosso conhecimento. Antes até do estabelecimento da ciência (e, em particular, das ciências sociais enquanto área de conhecimento de plenos direitos) – talvez nos tenhamos esquecido –, arte, literatura e conhecimento científico andaram de braço dado (lembremo-nos de Goethe…).

Por isto se explica o repúdio com que Adorno olhava a tal clareza (relembre-se o seu autor-chave, Beckett, e a habitual preferência pelos surrealistas e absurdistas); por isto se explica a firme negação da mensagem concreta na obra artística, que, no fundo, impedia que o teórico (da arte como da ciência) se distanciasse dos factos, tornando-o refém da estreiteza das circunstâncias. Se, com Lahire, concordarmos que toda a teoria da ação e do ator tem inevitáveis correlativos sociopolíticos, daí decorrerá a imprescindibilidade de sustentar a reflexão no exercício dialético, na crítica, negociando equilíbrios entre a necessária identificação com o que nela é retratado e a não-reconciliação com a situação social presente.

É neste sentido que Shakespeare pode ser modelo: “o seu objectivo é sempre sagrado, metafísico, mas sem nunca cometer o erro de ficar durante muito tempo nas alturas. Ele sabia o quão difícil era acompanhar o absoluto – e, por isso, atira-nos constantemente para o chão” (Brook, 2011, p. 89). Em peças como O Cerejal, O Tio Vânia ou muitas outras da lista de Tchékov, faz-se uma leitura intertextual da sociedade, em que não há reconciliação geracional, histórica ou interclassista, sem nunca haver rutura também. Com Manoel de ­Oliveira, uma vez mais, testam-se estes equilíbrios por meio de artifícios estéticos apurados: quando a ação é terrena, o tom é dramático, eloquente, formal, a espaços sustentado até pelo expressionismo de algumas escolhas musicais (é o caso de Benilde ou a Virgem Mãe); se, pelo contrário, o plano da narrativa é alegórico (como em A Divina Comédia), avança a coloquialidade, aproxima-se o registo, juntam-se, num mesmo caldeirão, Jesus Cristo, Lázaro, Nietzsche, personagens de Dostoiévski e Maria João Pires.

Vemos agora exposto o ponto tenso: ambas sentem a necessidade de se distanciar das “determinações categorialmente impressas na empiria e, no entanto, encerra[m] na sua própria substância um ente empírico” (Adorno, 2008, p. 17), assumindo, assim, um jogo frágil de equilíbrios entre verosimilhança e transcendência, distanciamento sem perda de identificação, entre caráter autónomo e de comodidade, nem osmose com a realidade, nem completa abstração – a obra de arte enquanto sociomorfismo estético (Lopes-Graça, 1978, p. 41).

Pensemos no movimento em Kalatozov (ou, mais precisamente, na cinematografia de Urusevsky): em não raros momentos incomodamente próxima, deformando até a nossa envolvente, a câmara de pronto nos brinda com uma teleperspetiva que abre horizontes de significação; esconde-se atrás das mais inusitadas barreiras, logo galgando-as em busca de um plano que tudo questiona. São estes os conflitos que se nos apresentam irresolúveis, mas talvez assim se devam manter. Parafraseando Peter Brook: precisamos da proximidade da realidade e da distância do mito, porque sem distância não nos maravilhamos, e sem proximidade não nos emocionamos. Algo de semelhante podemos esperar da ciência também. “Em Shakespeare, temos Brecht e Beckett irreconciliados. Identificamo-nos emocionalmente, subjectivamente – e, no entanto, fazemos ao mesmo tempo uma avaliação política e objectiva em termos sociais. Porque aquilo que é mais profundo transcende a esfera do quotidiano, uma linguagem enobrecida e a utilização ritualística do ritmo revelam-nos aspetos da vida que estão escondidos por trás da superfície” (Brook, 2011, p. 126). E terminamos voltando a Benjamin, ao lado oculto da realidade, com a crença de que, assim entendido, e uma vez cauterizadas as feridas do passado, o projeto da Aufklärung mantém, no essencial, a sua pertinência, enquanto promessa do esclarecimento por vir, importante porque irrealizável, norteadora, espaço que vai do Agora de possibilidade ao Estado-de-mundo perfeito benjaminianos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Recebido a 11-02-2016. Aceite para publicação a 23-02-2017

 

NOTAS

 

1 Este trabalho contou com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, através da bolsa de doutoramento com a referência SFRH/BD/98528/2013 – projeto realizado sob a orientação científica do Prof. Dr. João Teixeira Lopes e da Prof.ª Dr.ª Paula Guerra.

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