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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.227 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.08 

ARTIGOS

"Imãos de armas": o CEP no cinema de propaganda da Primeira Guerra Mundial

“Brothers in Arms”: the Portuguese Expeditionary Corps in World War I propaganda films

Maria do Carmo Piçarra*

*Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho e Centre for Film Aesthetics and Cultures, University of Reading. Campus de Gualtar - 4710-057 Braga, Portugal. carmoramos@gmail.com


 

RESUMO

Embarques de tropas portuguesas, exercícios militares, a visita de Bernardino Machado à frente de batalha em Verdun e ao Reino Unido. No que se refere à participação na Primeira Guerra Mundial, resume-se a pouco mais do que isto o retrato dos "bravos soldados portugueses" no cinema. A exceção que confirma a regra é a do filme amador alemão, Afundamento do Augusto Castilho, que documenta como a brutalidade deste primeiro conflito mundial não obstou a que ainda fosse sendo observado um código de honra militar e a bravura exigida aos combatentes portugueses para suprir a falta de meios de combate.

PALAVRAS-CHAVE: Primeira Guerra Mundial; propaganda; Portugal; cinema.


 

ABSTRACT

We address the shipment of Portuguese troops, undertaking of military exercises, and the visits of Bernardino Machado to the Western Front (Verdun) and to the United Kingdom during the World War One. The cinematic portrait of the "brave Portuguese soldiers" is examined. An alternative view is that of the German amateur film, Afundamento do Augusto Castilho (The Sinking of the Augusto Castilho), which documents how the brutality of the First World War coexisted with a code of military honor and the bravery required from Portuguese fighting men to make up for their lack of modern weaponry.

KEYWORDS: World War One; propaganda; Portugal; cinema.


 

Em Portugal, onde as primeiras sessões de cinema aconteceram meia dúzia de meses após a sessão histórica dos Lumière, em 1895, a natureza documental dos filmes foi preponderante no início da produção nacional. Só em 1911 estreia a primeira longa-metragem de ficção, Os Crimes de Diogo Alves, de gosto popular e inspirada pelo teatro. A ficção chega tarde, portanto, a um cinema que começou muito cedo, por iniciativa de fotógrafos curiosos, e elegeu como temas preferidos os da literatura de inspiração popular e melodramática (Grilo, 2006). O investimento no cinema como forma de expressão artística é contemporâneo da República, sendo que a principal produtora de cinema do período, a Invicta Film – que veio a apostar na produção de filmes ficcionais "tipicamente portugueses" –, é criada a par do novo regime e mantém uma atividade importante no campo das atualidades filmadas e dos documentários.[1]

Segundo Piçarra (2006), as atualidades filmadas nasceram com o cinema – fixadas pelos "caçadores de imagens" a soldo dos Lumière ou recriadas em estúdio por Méliès. Curtas-metragens mostravam acontecimentos políticos, económicos, desportivos, culturais, etc. e integravam os programas cinematográficos, sendo mostradas antes das longas-metragens de ficção. O aproveitamento do potencial propagandista das atualidades foi uma prática generalizada internacionalmente, sustentada por modelos mais ou menos informativos.

Na conceção e finalidade eram comparáveis à imprensa escrita – constituiu-se uma imprensa cinematográfica que chegou a ser alvo de um estudo pela UNESCO em 1951 – e as atualidades eram, geralmente, editadas e mostradas semanal ou bissemanalmente. Porém, dado o poder do cinematógrafo, foram veículo recorrente de propaganda e é isso que explica que, além das majors – que optaram por manter este formato, caro e pouco rentável, por uma questão de prestígio –, muitos países tenham optado pelo apoio à produção de atualidades estatais, que projetavam a nação através da divulgação das notícias do regime.

A representação cinematográfica da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial devemo-la quase exclusivamente aos jornais de atualidades filmadas e aos documentários. E se é um facto que, como afirma Tiago Baptista (2011), a Primeira República não se interessou particularmente pelo cinema – o que é comprovável pela escassa produção legislativa e pela inexistência de apoios diretos ao cinema – há, porém, que assinalar o recurso ao potencial propagandista do cinema para gerar unidade nacional em torno da participação na guerra. É certo que tal não foi uma originalidade da Primeira República Portuguesa. A sucessão de governos terá dificultado a conceção de um plano mais geral de apoio ao cinema e a atenção que lhe foi dada, através do seu uso, deliberado, como arma de propaganda, terá decorrido das necessidades de legitimação por parte do regime e da produção de um consenso quanto à participação na guerra. Por outro lado, quer em Inglaterra quer em França aconteceram então os primeiros esforços organizados pelo Estado para a divulgação de doutrinas usando os noticiários cinematográficos, o que terá servido certamente de modelo. Importa, porém, analisar o uso que foi feito do cinema pela Primeira República durante a Primeira Guerra Mundial. Foi o ministro da Guerra Norton de Matos (1867-1955)[2] o responsável pela criação da Secção Fotográfica e Cinematográfica do Exército (SFCE), através de despacho de 12 de janeiro de 1917, duas semanas antes da partida para a Flandres da 1.ª Brigada do CEP. Dada a sua experiência cinematográfica e os serviços já prestados, será o capitão Carlos Nogueira Ferrão (1871-1938) – militar que em 1911 filmara, para a Lusa Film, Exercícios do Grupo de Baterias a Cavalo de Queluz, então já reformado, mas entretanto chamado ao serviço militar ativo por Norton de Matos – a organizar a secção criada por despacho, o que faz sob as ordens do tenente-coronel Desidério Bessa (1868-1920), e a produzir Embarque das Tropas Portuguesas.[3] Posteriormente, já após o final da guerra, a SFCE é transformada na Direção dos Serviços Gráficos do Exército, através do Decreto n.º 5 935, de 28 de junho de 1919[4], e logrou sobreviver a duas mudanças de regime: da Primeira República para o Estado Novo, na sequência do golpe militar de 1926, e deste para a democracia parlamentar, após a revolução de 25 de Abril de 1974.

O "MILAGRE" DA REPÚBLICA: PRELÚDIO DE UM CINEMA OFICIAL DE PROPAGANDA

Antes da criação da SFCE, o Ministério da Guerra subvencionou a produção de um filme de longa-metragem – 2500 metros de película, cerca de 90 minutos – que, com grande notoriedade, fixou a parada militar que decorreu em 22 de julho de 1916, em Montalvo, perto de Tancos. Parada da Divisão em Montalvo e Divisão da Instrução em Tancos, título com o qual foi distribuída uma versão mais curta, de pouco mais de meia hora[5] – que, por sua vez, foi relançada posteriormente, colorida com tintagens, com o título Exercícios de Infantaria, Cavalaria e Artilharia pela Divisão Militar de Tancos –, foi manivelado por Ernesto de Albuquerque (1883-1940). Albuquerque já era então conhecido por Cultura do Cacau (1909), filmado em S. Tomé e Príncipe, e realizado por si e pelo Capitão Ferrão (Piçarra, 2015).

Estreada no Coliseu dos Recreios de Lisboa a 8 de agosto de 1916 e a 29 de agosto no Porto, esta produção consagrou a empreitada da criação e organização, em pouco tempo, de uma unidade militar de grande dimensão – o Corpo Expedicionário Português (CEP) –, à qual foi ministrada instrução no polígono de Tancos. O processo ficou conhecido – não obstante o laicismo da República – como "milagre de Tancos".

Apesar de Albuquerque ter sido o único operador com liberdade total para fixar a parada – da filmagem há um registo fotográfico de Arnaldo Garcez (1885-1964) –, assinale-se que a parada de 20 mil soldados também foi filmada pela Invicta Film, resultando na produção A Mobilização Portuguesa em Tancos, com cerca de 40 minutos. Estreado ainda antes do filme oficial, a 3 de agosto, no cinema Passos Manuel, do Porto, este título terá sido visto por centenas de pessoas que esgotaram a sessão. Entusiasmado, o Primeiro de Janeiro afirmou tratar-se do melhor filme português feito até então, mostrando que o soldado "de hoje" em "nada desmerece das tradições gloriosas do guerreiro antigo nosso". Como refere Helena Pinto Janeiro (2013, p. 8) a propósito da estreia do documentário da Invicta, a imprensa local antecipou a estreia no Porto – no Salão da Trindade e no High Life (futuro Batalha) – do filme oficial, apresentado como:

"A copia fiel das ultimas Manobras militares", "admiravel 'film' feito por incumbencia especial do Ministerio da Guerra, dirigido e fiscalisado por um distincto official do Exercito […].

A sua divulgação foi autorizada pelo respectivo Ministro, como meio de propaganda dos progressos militares realisados pelos nossos exercitos" [O Primeiro de Janeiro, 11-08-1916, p. 2].

Ambas as produções – estatal e privada – relativas às manobras de Tancos estão perdidas. Do filme da dupla Ferrão/Albuquerque subsistem 1' 41'' de imagens que "migraram" para Contigent portugais, incluído no Journal Actualité distribuído pela Gaumont[6], mais um minuto integrado na atualidade Lisbon Recruits das British Pathé News (1917, 35'').[7] Estes arquivos privados lograram preservar, pois, o que em Portugal não foi possível. Mostram-se soldados a atravessar uma ponte em Vila Nova da Barquinha, marchando depois pelo planalto de Montalto. Fixa-se a construção de trincheiras, seguindo-se imagens da cavalaria, primeiro desfilando em formação e depois em exercícios no terreno. Finalmente, filmam-se a marcha para estação de comboio, acompanhada por populares, e a despedida na estação, em que os soldados acenam lenços brancos a partir das carruagens. Um intertítulo em inglês explica que "A jovem República está a dispensar a sua quota parte de homens aos exércitos Aliados e centenas de recrutas preparam-se para cumprir a sua missão".

Portugal na Grande Guerra: Divisão Naval Portuguesa foi a produção oficial – a segunda, agora para o Ministério da Marinha – apresentada de seguida, tendo estreado no Salão Central de Lisboa, a 21 de setembro, e em dois cinemas do Porto, a 4 de outubro. Longa-metragem, em seis partes, da qual se desconhece o paradeiro de qualquer material, mostrava o quotidiano militar nos navios da marinha portuguesa, assim como exercícios navais tendo sido filmada por Albuquerque sob a direção de Ferrão.

Porém, ainda antes da criação da SFCE e da encomenda da fixação quer do "milagre de Tancos", quer da atividade da Divisão Naval, a documentação do esforço de guerra português já teria sido iniciada. Segundo a filmografia estabelecida, esta documentação foi feita predominantemente pela Invicta Films e pela Gaumont, embora haja títulos de filmes perdidos cuja produção não é conhecida e que podem ter uma origem não comercial, mas sim estatal.

Assinale-se, em 1914, a produção de nove títulos[8] cujo enfoque se reparte entre o registo da partida das tropas portuguesas para Angola, sobretudo, e Moçambique e a realização de exercícios militares. Destes títulos apenas dois – O Embarque de Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique e Exercícios de Artilharia em 1914 – têm uma produtora conhecida: a Invicta Film. Desconhece-se quem assegurou a produção de As Expedições Portuguesas em África, Grandes Manobras de Artilharia da Serra do Pilar antes da sua Partida para Angola, Partida da Segunda Expedição Portuguesa para África, o ainda existente Partida do Regimento de Infantaria 19 de Chaves para Lisboa e Embarque para Angola[9] [cf. Castelo de Chaves (1915)], Portugal na Guerra Europeia ou Os Portugueses e os Alemães em África e Tropas Portuguesas. Em 1915, o registo de partida de tropas para as colónias continua a dominar as atualidades sobre a participação portuguesa na guerra, sendo assegurado pela Invicta e pela Gaumont: O Castelo de Chaves Formação do 19.º Regimento de Infantaria e a Cruz Vermelha (Gaumont) [cf. com Chegada do Regimento de Infantaria 19 a Chaves, de 1913, filmado por Alfredo Nunes de Matos, Invicta Film]; A Expedição a Angola (Invicta); Grandes Manobras de Tancos (Alfredo Nunes de Matos, Invicta); Navios de Guerra Escoltam as Tropas Destinadas a Angola e Moçambique (Gaumont) e Le Portugal envoie ses troupes en Angola envahie par les alemands (Gaumont).

Como já foi assinalado, o ano em que a Alemanha declara guerra a Portugal, 1916, é aquele que, cinematograficamente, se destaca pela filmagem das manobras de Tancos e dos referidos exercícios navais. Sabe-se que pelo menos a primeira filmagem foi uma iniciativa de Norton de Matos, que quis que o cinema documentasse o acontecimento. Para quê? Não só para fazer a propaganda da ação da jovem República internamente junto ao público civil – que, como vimos, se interessou pela reorganização do exército – mas também para dispor de filmes que servissem para a propaganda junto das próprias tropas, que, através da projeção – cinematográfica, mas também de cada soldado na sua unidade –, eram animadas a cumprir o que a nação lhes "pedia".[10] Finalmente, os filmes serviam ainda, e talvez acima de tudo, para a projeção internacional do esforço português cujo novo regime, não obstante a sua recente imposição, apesar da sucessão de governos e das difíceis condições de vida em Portugal, mostrava assim ter força, legitimidade e capacidade para organizar um exército e participar na luta pela defesa das suas fronteiras e do seu estatuto de potência colonial.

Helena Pinto Janeiro (2013, p. 12) apurou que o filme da SFCE sobre Tancos foi exibido a individualidades estrangeiras, como o major-general Barnardiston (1858-1919), o chefe da missão militar franco-britânica que chegou a Portugal a 30 de agosto para negociar os termos da participação portuguesa no esforço de guerra da frente ocidental. Dois dias após uma sessão de projeção de cinema sobre a instrução ministrada em Tancos, a que assiste com Norton de Matos, Barnardiston escreve, num relatório oficial para o War Office, ter tido pouco tempo ainda para ter uma opinião definitiva sobre o exército português. Afirma, porém, que as impressões são favoráveis e que não vê motivo para o CEP, após treinos, não ser de utilidade considerável. Acrescenta ainda que tanto ele como o colega francês estão bem impressionados com a energia e organização com que as autoridades militares portuguesas estão a investir no fortalecimento e desenvolvimento dos seus recursos.

Os filmes Parada da Divisão em Montalvo e Portugal na Guerra – Divisão Naval Portuguesa não figuram sós na filmografia da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. O jornal filmado francês Actualidades 14 incluiu um apontamento de cerca de dois minutos sobre Os Delegados de Portugal à Conferência dos Aliados, e também a Gaumont fixou O Embaixador de Portugal em Paris, J. Chagas, na Conferência dos Aliados. Ernesto de Albuquerque filmou, provavelmente para o Ministério da Guerra, Partida dos Portugueses para a Guerra, sendo-lhe também atribuído Manobras Navais Portuguesas, para a Invicta. Também a Gaumont se interessou pela marinha portuguesa, produzindo – ou exibindo (era comum a migração de imagens através de intercâmbio entre produtoras ou cedência pela propaganda estatal. É possível que o Ministério da Marinha tenha cedido imagens de propaganda da divisão naval portuguesa em Marinha Portuguesa – Portugal após a Declaração de Guerra) – Partida de Marinheiros para Angola e África do Sul e Os Portugueses nas Forças Militares e Navais que partem para a África do Sul.

Em suma, além das manobras do exército em Tancos cumpre destacar a fixação das manobras navais protagonizadas pela marinha portuguesa, em ambos os casos mandadas filmar pela República a Albuquerque. Quanto às iniciativas privadas, mantém-se os registos de partidas para África (Expedição Militar a Angola, Alfredo Nunes de Matos, Invicta Film; Partida de Marinheiros para Angola e África do Sul e Os Portugueses nas Forças Militares e Navais que Partem para a África do Sul, produzidos pela Gaumont); e continuam os exercícios militares – Cavalaria Portuguesa em Treinos (Gaumont) – agora com a novidade de haver reportagens daqueles feitos fora de Portugal como A Escola de Instrução dos Oficiais Portugueses na Inglaterra (produção desconhecida). A Gaumont documenta Portugal após a Declaração de Guerra e, numa versão mais curta, de apenas 2 partes, Exército Português – Portugal após a Declaração de Guerra, além de Demonstração Patriótica dos Portugueses a favor dos Aliados, enquanto a Invicta filma o Corpo Expedicionário Português, assim referido pela primeira vez no título de um filme.

SFCE E PRIVADOS FILMAM A "GUERRA POSSÍVEL"

Com o início da atividade da SFCE – cujo regulamento define ter como propósito "registar, para serem utilizados na projecção fixa e animada, todos os assuntos relativos à educação e preparação do exército, na paz e na guerra […]"[11] –surgem vários filmes manivelados frequentemente pelo tenente Augusto Seara.[12] A primeira produção conhecida da SFCE é Festa no Instituto de Odivelas, obra curiosa, em que no colégio interno para filhas de militares se antecipam as comemorações da vitória aliada na Primeira Guerra Mundial. A "Feira da Vitória" aconteceu no 10 de junho, dia de Portugal, e, atestando a importância mobilizadora que lhe foi dada, contou com a presença do presidente da República Bernardino Machado.

Entre os títulos filmados por Seara estão Provas Finais dos Alunos da Escola de Guerra, Participação de Portugal na Guerra (com pouco mais de três minutos) e Lançamento da Canhoeira "Bengo". Segundo Tiago Baptista (2014), um conjunto de filmes de Seara para a SFCE estreou num evento em Lisboa, em 22 de outubro de 1917: Transporte de Tropas para França, Escola de Aviação em Vila Nova da Rainha, Escola de Oficiais Milicianos em Queluz e Entrega da Bandeira da Cidade de Lisboa ao Cruzador "Vasco da Gama".

Refira-se que, produzido pela Pathé, mas também com referência à SFCE, conhece-se ainda Tropas Portuguesas no Front, estreado a 24 de julho de 1917 e promovido como tendo sido o primeiro a mostrar imagens das tropas portuguesas em França (Baptista, 2014).

A Invicta documenta então Expedicionários em Campanhã e, entre outros títulos, destaquem-se os filmes, de produção francesa e inglesa, que documentam a visita de Bernardino Machado ao Front. Em Participação de Portugal na Guerra – Regresso do Presidente da República da sua Viagem ao "Front" portuguez, a SFCE limita-se a fixar o regresso do presidente da República, filmado sempre a grande distância, talvez para evidenciar a forte organização militar, a presença popular e a receção ordeira.[13]

Em 1918, a SFCE estreou novos filmes de exercícios militares, Colégio Militar (também designado como Exercícios no Colégio Militar com a Assistência do Presidente da República) e um título que subsiste, Manobras do Campo Entrincheirado de Lisboa, uma produção da SFCE e da Lusitânia Film, que só veio a estrear a 11 de janeiro de 1919 no Coliseu dos Recreios.

O fim da guerra foi fixado pela secção em Como foi Recebida pela População de Lisboa a Notícia do Armistício, após o que é filmada Parada Militar de 5 de Dezembro de 1918 (também registada pela Gaumont), com que se pretende assinalar um ano da revolução sidonista, escassos dias antes do assassinato de Sidónio Pais.

A SFCE limitou-se a filmar em território nacional. Afirmou-se que terá sido a ditadura sidonista a impedir que Ernesto de Albuquerque se juntasse a Arnaldo Garcez para filmar, tendo este partido com o CEP para documentar fotograficamente a participação portuguesa na guerra. Segundo a biografia de Albuquerque publicada pela Cine Revista a 15 de novembro de 1920, "Quando da nossa entrada na Grande Guerra, o general Norton de Mattos convidou-o a seguir para o front, e ei-lo prompto a seguir, para, embora arriscando a vida, fazer cinema! Mas o 5 de dezembro não deixou e Albuquerque não partiu" (1920, p. 2). Porém, esta justificação, avançada por uma revista de cinema, não me parece ter fundamento. Passa-se quase um ano desde a partida dos primeiros contingentes do CEP – em Janeiro – até à ditadura presidida por Sidónio. Responsabilizá-lo pelo cancelamento da ida de Albuquerque não faz sentido, sobretudo depois do estadista ter mantido a SFCE em atividade. Terão sido dificuldades técnicas e financeiras – os serviços de cinema do Exército eram muito recentes, por um lado, e, por outro, os custos da realização de filmes eram elevados – a obstar à documentação cinematográfica da presença do CEP na frente? Ou terá sido a censura exercida pelos "Aliados" – que não permitiu a filmagem da guerra pelos serviços do exército português? É preciso não esquecer que o CEP esteve sob o comando britânico e o CAP sob o comando francês. A Primeira Guerra Mundial reforçou o poder dos estados aliados quanto à imposição da censura, que andou de mão dada com a propaganda não só para manter as unidades nacionais, mas para um efetivo controlo da informação que poderia prejudicar a estratégia militar. Em Portugal, o estado excecional de guerra permite ao Ministério da Guerra propor que Bernardino Machado decrete[14], a 10 de setembro de 1917, a censura militar. Assim, fica assente que "Nenhuma fita cinematográfica, de qualquer natureza ou proveniência, que contenha assuntos militares, ou que direta ou indiretamente faça alusão aos exércitos beligerantes ou à grande guerra, poderá ser exibida nos territórios da República sem previamente ser sujeita à censura militar". Os importadores ou proprietários de filmes passam, por isso, a ser obrigados a pedir o seu exame prévio ao Ministro da Guerra, prevendo-se sanções caso isso não seja observado.

Outro dado a ter em atenção é que, estando o CEP e o CAP sob o comando dos exércitos inglês e francês, naturalmente que, em termos de registos das operações militares, estas divisões estariam sujeitas à censura severa estabelecida nestes países. Com direito a designação – "Defense of the Realm Act (DORA)"– no Reino Unido, entrou em vigor neste país logo em 8 de agosto de 1914, assumindo, entre outros propósitos, o de assegurar a segurança das forças e navios de Sua Majestade e prevenir a disseminação de falsos rumores ou notícias passíveis de interferir com o êxito das operações militares. Já em França, a censura é instaurada logo a 30 de julho e prevê, como no caso inglês, a interdição de disseminação de informação que ponha em causa a relação com os países aliados ou neutros e de visar negativamente os oficiais ou reproduzir artigos saídos na imprensa estrangeira. Mesmo a disseminação de fotografias dos soldados franceses na frente de combate foi muito controlada e sabe-se que durante muitos meses não foram mostradas quaisquer imagens dos soldados ou publicadas notícias sobre como se vivia nas trincheiras (foram os soldados ou pessoal auxiliar de saúde que, progressivamente, divulgaram as difíceis condições em que fazia a guerra). Os civis eram mantidos na ignorância quanto ao que se passava e só no fim da guerra muitas das imagens conhecidas foram sendo divulgadas.

No caso português, a secção de fotografia dispunha de apenas um fotógrafo, Arnaldo Garcez, que documentou os exercícios de treino em Portugal e, posteriormente, o quotidiano do CEP na frente de batalha. Dado que o CEP estava sob o comando britânico, as fotografias tiradas por Garcez foram sujeitas à censura militar britânica, o que motivou reiteradas e mal sucedidas objeções pelo Exército Português. Embora não sejam conhecidos documentos que o comprovem, é provável que a inexistência de filmes da SFCE se deva também à sujeição à censura militar, britânica e também francesa.[15]

A PROJEÇÃO DOS SOLDADOS PORTUGUESES PELA PROPAGANDA ALIADA

Que propaganda e censura andaram de mãos dadas no que respeita à informação veiculada sobre a Primeira Guerra Mundial é ponto assente. Tendo a noção que, genericamente, a imagem projetada das tropas portuguesas foi controlada (leia-se que foi proibido aos particulares, civis mas também militares, fotografar e filmar a guerra) pelos Ministérios da Guerra Aliados – particularmente, o francês, o português, mas sobretudo o inglês – interessa então fixar qual a representação proposta. Esta, parece-me, terá correspondido a uma imagem e conteúdos definidos pelos Aliados, e sobretudo pelo Ministério da Guerra Britânico.

O acervo disponibilizado online pelo Imperial War Museum (IWM) é o mais importante para fazer esta análise. Se o SFCE não pôde acompanhar a visita de Bernardino Machado à frente de batalha em França, o certo é que o programa oficial foi registado pelo operador inglês autorizado para o efeito. The Visit of President Bernardino Machado of Portugal to the British and Portuguese Forces on the Western Front, October 1917 mostra o presidente português a sair do castelo de Montreuil, onde ficou alojado, perante uma guarda de honra britânica. Assinala-se que, às quatro da tarde de 11 de outubro, Machado e o Marechal de Campo Haig inspecionam a Guarda de Honra da Rainha (Royal West Surrey Regiment) na estação de Lillers. O Brigadeiro-general John Charteris, responsável pelos serviços de informação de Haig, é um dos acompanhantes da visita, que é registada pelo fotógrafo oficial do exército britânico, John Warwick Brooke. Esta atualidade mostra ainda a condecoração, no dia 13, de 4 oficiais portugueses, os primeiros a receberem a Cruz de Guerra (aos 3' 45'').

Annales de la guerre, a principal série francesa de atualidades de produção estatal, preservada e disponibilizada pelo Établissement de Communication et Production Audiovisuelle de la Defense, também filmou, segundo um filme disponível no site do IWM, a visita de Machado a França, mas a sua edição n.º 31 centrou-se apenas na homenagem deste à determinação mostrada pelos franceses em Verdun. Neste registo, Machado inspeciona tropas antes de impor a Ordem Militar da Torre e da Espada ao presidente da câmara de Verdun. Segue-se uma viagem de carro pela cidade e arredores (Aisne, quinta Quennevières e ruínas de Chauny, do castelo de Ham e de Nesle). Assiste-se depois a um desfile de tropas. O filme mostra ainda aspetos da vida dos soldados franceses nas trincheiras pós-batalha de Verdun.

O IWM tem em linha talvez o mais interessante filme sobre o CEP em França: With the Portuguese Expeditionary Force in France. Produzido pela Topical Film Company para o War Office Cinema Committee, mostra o General Sir Henry Horne, comandante do Primeiro Exército, a ser saudado pelo General Tamagnini, comandante do CEP, antes de inspecionar a guarda de honra, que depois desfila. De seguida mostra-se a deslocação de um batalhão português, e o que transporta, e o treino de uma bateria de tiro, equipada com peças de artilharia francesas de 75 mm. Apresentam-se imagens, filmadas em Junho de 1917, de um campo de treino em Marthes, onde os soldados aprendem a escavar trincheiras e como posicionar-se nelas com as armas. É nesse alinhamento que um soldado do 15.º Batalhão Português pousa para a câmara, mostrando o uniforme e o equipamento. Prossegue o registo de treinos com material militar, surgindo então um grupo de oficiais a pousar para a câmara. Imagens de treinos com morteiros antecedem outras de oficiais ingleses a pousar com congéneres portugueses. Surgem imagens de formação ministrada, em que os instrutores ensinam a ler mapas e a disparar armas usando a mira telescópica. Uma segunda bobina mostra portugueses na frente de batalha – o descritivo diz que é provável que se trate da 2.ª Divisão, a 21 de maio. Explica-se ainda que alguns dos soldados são do 22.º Batalhão. Apontamento ao gosto britânico (e da sua propaganda, também): mostra-se o comandante do batalhão a tomar chá com os oficiais britânicos. Exercícios de fogo. É depois filmado o General Gomes da Costa, comandante da 2.ª Divisão, a falar com um general britânico. Mais exercícios de fogo. Em ação: um vagão português de transporte puxado por mulas. O filme sustenta que o mais antigo aliado inglês é um excelente aliado. Segue-se plano aproximado de soldado. Este pousa durante mais de 30''. Ri-se e exibe-se, claramente a pedido.

Este filme, exemplo do que a propaganda britânica pretendia evidenciar, revela três preocupações: a de mostrar que os soldados portugueses estão equipados, que estão a ser treinados devidamente e que tudo é supervisionado e mantido sob a ordem dos ingleses. A gentileza para com os portugueses – afinal velhos aliados porque bons aliados – quer mostrar à opinião pública britânica, sobretudo, que esta aliança é benigna e contributiva para o bom sucesso do esforço de guerra.

Imagens raras são fixadas em A Portuguese Training Camp in England – Roffey Camp, Horsham. Com produção de H. C. Raymond e patrocínio do Ministério da Informação britânico, foi filmado a 18 de agosto de 1918 e mostra portugueses em exercícios. Um descritivo do filme em linha informa que um excerto desta atualidade foi exibida em França. Começa com uma pose dos oficiais portugueses junto aos congéneres e instrutores britânicos. Fixa-se então um desfile da artilharia portuguesa. Passa-se à filmagem do treino dos soldados por um instrutor britânico. Finalmente, mostra-se a assistência, por civis e oficiais, aos exercícios. Entre eles está o ministro de Portugal no Reino Unido, Augusto de Vasconcellos. A imagem da assistência alterna depois com outras de uma corrida. Inclui-se um apontamento mais pitoresco, com a exibição do Jogo do Pau[16] (6' 10'' até aos 7'), antes de novo exercício. O filme termina com imagens do General Rosado, que, em julho de 1918, por decisão de Sidónio Pais (proclamado presidente da República a 9 de maio), substituíra o general Tamagnini no comando do CEP.[17]

Em 1918, numa fase em que o prestígio do CEP está bastante afetado devido à derrota em La Lys, a Topical Film Company volta a produzir um filme para o Ministério da Informação Britânico, sobre a artilharia pesada e a artilharia de campo portuguesa. O IWM escreve, no descritivo da obra, que Portuguese Troops in France 1918, inacessível em linha, terá sido filmado no verão desse ano. Vive-se então, como já referido, uma fase de mudança de comando das tropas portuguesas, marcada pelas negociações encetadas pelo General Rosado com o Reino Unido no sentido de reorganizar as tropas portuguesas e voltar a ter uma força de combate ativa.

Outro arquivo, privado, fundamental numa filmografia da participação portuguesa na guerra é o da Gaumont Pathé. Embora muitos dos filmes não estejam acessíveis em linha, confirma-se, pelos descritivos disponíveis, que a Gaumont fixou desde cedo as partidas de tropas para Angola. Le Portugal intervient en Angola envahie par les troupes allemandes (1915, 55''), mostraria um embarque, "repetido" em Le Portugal envoie des troupes pour sa colonie en Angola (1920[18], 5'), visionável, em que a câmara fixa soldados com fardamento "colonial" num cais de embarque, passando de seguida a fixar o seu embarque e, finalmente e demoradamente, o afastamento do navio "Portugal" no Tejo. Do navio, os soldados acenam lenços brancos. Antes do filme terminar mostram-se imagens do desfile de soldados – os que embarcaram? Mais soldados? – num entroncamento de ruas, sob o olhar dos civis, pouco efusivos, e entre os quais há poucas mulheres.

Além do já referido Contingent portugais (1917, 1' 41''), composto com imagens filmadas pelo Capitão Ferrão e por Ernesto de Albuquerque, o Journal Actualité mostrou, com o mesmo título, no mesmo ano e com menos de um minuto (1917, 52''), o desembarque de tropas portuguesas em França. Segundo a ficha do filme, trata-se de um novo contingente de tropas – provavelmente o de 23 de fevereiro. Após o desembarque dos soldados, fixa-se o desembarque de materiais de guerra e, finalmente, o desfile de tropas no cais.

Castillo de Chavez[19] (Portugal). Formation du 19eme regiment d'infanterie (1915, 35''), não acessível, mostra a formação do regimento de infantaria 19. Com intertítulos em inglês, a atualidade Le president Machado en France (1917, 1' 07'') repete imagens de Annales de la guerre n.º 31.

Outro arquivo privado com imagens únicas da participação portuguesa na guerra é o da British Pathé, com acesso livre do acervo em linha.

Idênticos, Great Review of Portuguese Troops in England 1917 (54'') e Portuguese Troops in England (50'') mostram desfile das tropas portuguesas, planos de soldados com máscaras de gás, além da revista das tropas. Estas voltam a desfilar enquanto a câmara fixa um homem de barba e cabelo branco – quase seguramente Bernardino Machado, que assistiu à parada de Montalvo – que saúda as tropas tirando-lhes o chapéu. Esta atualidade pode ser um excerto sobrevivente de Parada da Divisão em Montalvo (1916), não só devido à presença de Bernardino Machado, mas por via do confronto das imagens em movimento com fotografias disponíveis no Arquivo Histórico Militar do Exército (a arborização do local parece idêntica numas e noutras).

Portugal's Army 1914-18 retoma o tema dos embarques/desembarques. Inicia-se com imagens de soldados portugueses a desfilar num porto, seguindo-se sequências que fixam o desembarque de militares e de um canhão. Portuguese Horse Artillery 1914-1918 (s. d., 41') é a versão mais curta de outra atualidade intitulada Portuguese Expedition – General Battery Firing 1914-1918 (s. d., 2' 13''). Abre com uma sequência mais geral, da artilharia e obuses puxados por mulas subindo uma encosta, seguindo-se sequências mostrando exercícios de fogo com peças de artilharia. Finalmente, a 48 segundos do fim, fixa-se novo movimento da artilharia a cavalo – agora em colina mais rochosa. Num campo, à vista de uma casa apalaçada, fixam-se mais exercícios de fogo com obuses. Não é prestada informação sobre o local das filmagens. É uma hipótese, a de que se tratem, também neste caso, de imagens dos filmes que fixaram o "milagre de Tancos". Por via da comparação com fotos existentes, e devido às características do terreno e arborização do mesmo, a hipótese é extensível a Portuguese Troops Training 1914-1918 (s. d., 56'). Na primeira sequência mostra soldados a puxar, de uma construção coberta, uma peça de artilharia a qual é depois preparada para disparar. Segue-se uma panorâmica da assistência, predominantemente militar, em que pontuam alguns civis, entre os quais Bernardino Machado, e encerra com desfile de soldados.

Nota-se o esforço para, através dos filmes, mostrar a organização e modernidade do exército português. Há até um apontamento britânico que sustenta que o soldado português e o tradicional aliado do Reino Unido são de confiança. Pelo meio há uma outra sequência, mais pitoresca, que parece sublinhar a subalternização do exército português no seio dos Aliados, genericamente, e da velha aliança luso-britânica. Numa sessão de treinos, a que assistem o ministro de Portugal no Reino Unido, Augusto de Vasconcellos, e o general Rosado – apontado, durante o Sidonismo, para substituir o comandante da Primeira República, general Tamagnini –, exibe-se o Jogo do Pau. Tal sucede quando as tropas portuguesas, num derradeiro esforço organizativo, e após a derrota em La Lys, querem recuperar, sob o comando de Rosado, a dignidade militar de uma força de combate.

OS "BRAVOS MARINHEIROS PORTUGUESES" NUM FILME AMADOR ALEMÃO

Nas escassas imagens existentes analisadas, o único registo de guerra conhecido é o do Afundamento do Augusto Castilho (1918, 5' 20''). Trata-se de um filme amador que não foi objeto de censura militar nem usado como instrumento de propaganda. Segundo informação de Joana Pimentel, da Cinemateca Portuguesa (2014)[20], o registo chegou a Portugal nos anos 30, pela mão do armador Carlos Bensaúde, a quem terá sido oferecido pelo oficial alemão Kurt Von Pistor. Terá sido o próprio Von Pistor, capitão-tenente do submarino U139 que afundou o Augusto Castilho, a manivelar quer este filme, quer outro, também oferecido por si: O Afundamento do Lugre Rio Cávado[21], depositado no ANIM. Pimentel teve acesso a esta informação através de "um antigo funcionário do SPN que mais tarde se tornou antiquário, o Sr. Alberto Cutileiro, com loja aberta na zona da Furnas em Benfica".[22] A lata do filme, depositado em 2000 pelo Ministério da Marinha, "que continha o elemento mais antigo que se conhece destas imagens, o internegativo em suporte de nitrato Zeiss Ikon Agfa", descreve o conteúdo como: "Combate entre o submarino alemão U139 e o caça-minas Augusto de Castilho em 14 de outubro de 1918. Imagens colhidas pelo imediato do submarino Von Pistor. Informação proveniente do antigo rótulo do internegativo nitrato (31644)".

Em 20 de junho de 1936, na revista Animatógrafo, Fernando Fragoso refere a projeção deste filme, no Gimnásio, em Lisboa, num espetáculo em honra da Falange Espanhola, especificando tratar-se de uma obra pertença de um particular. Não se sabe como o filme ou o internegativo do mesmo foi para a posse da Marinha que, segundo Pimentel, "talvez nos anos 50", pediu apoio à Cinemateca para tirar novas cópias do mesmo, o que terá sucedido efetivamente.[23]

Primeiro comentário: no filme fixa-se um episódio que atesta a observância do código de honra militar. O segundo comentário é que a versão alemã deste episódio da participação portuguesa na guerra documenta a história da coragem dos marinheiros que lutaram até à morte para cumprir a sua missão.

O filme mostra o Augusto de Castilho[24] já após a rendição e a morte do capitão, Carvalho Araújo. O primeiro intertítulo explica: "O barco-patrulha português Augusto de Castilho derrotado após um longo bombardeamento pela artilharia". Apresentam-se imagens da tripulação, sendo revistada por um oficial alemão. Este procura armas e documentos secretos. Surgem imagens de um salva-vidas, com um oficial alemão a bordo conversando com a tripulação portuguesa. O segundo intertítulo explica: "A tripulação é mandada embora". Nova imagem do oficial alemão no salva-vidas com a tripulação portuguesa. O terceiro intertítulo assenta: "Os feridos são tratados pelo nosso médico de bordo". Vê-se um médico militar a ligar a perna de um ferido. Noutro plano, um marinheiro português segura a perna do ferido enquanto o médico prossegue o tratamento. "O comandante vai a bordo do Augusto de Castilho. Está içada a bandeira branca", lê-se no intertítulo seguinte. Sucedem-se planos do Augusto de Castilho, enquanto homens sobem a bordo, vindos de um bote. O quinto intertítulo descreve: "o nosso submarino ao lado do Augusto de Castilho. Atividade de artilharia das nossas armas de 15 cm". As imagens ilustram as consequências do ataque ao navio português, evidenciando as perfurações feitas pelo armamento alemão. Sexto intertítulo: "A arma na proa do caça-minas", com breve imagem ilustrativa. De seguida, mostra-se "Provisões e munições do Augusto de Castilho" sendo retirados do navio pelos marinheiros alemães. Finalmente, o intertítulo nove e seguintes explicam como se processam os disparos contra o Augusto de Castilho sendo as imagens ilustrativas.

Assinale-se que este filme amador não adota um registo de propaganda. O comandante do U-139, Von Arnauld de la Perière (1886-1941), era um herói da Marinha alemã, que veio a morrer num acidente de viação durante a II Guerra Mundial. Responsável pelo afundamento de 194 navios, dois dos quais de guerra, dele dizia-se ser também um cavalheiro pois nunca afundava navios sem conhecer o manifesto de carga e colocar as tripulações a salvo ou dar-lhes meios para tal. O filme existente na Cinemateca Portuguesa confirma a fama de la Perière, mas atesta sobretudo a pobreza dos meios defensivos à disposição da Marinha Portuguesa e a coragem exigida aos marinheiros e soldados portugueses para combater numa guerra que também foi, para a República, a da tentativa de afirmação de um poder que não tinha e de demonstração de recursos inexistentes.

Que fique ainda assinalada a única longa-metragem ficcional inspirada na participação portuguesa na guerra. Foi preciso que outra guerra mundial eclodisse para que, agora num Portugal neutral e sob uma ditadura, estreasse a longa-metragem de ficção João Ratão (1940). Uma produção da Tobis Portuguesa, teve realização de um dos realizadores mais reconhecidos de então e nacionalista assumido, Jorge Brum do Canto (1910-1994), que, posteriormente, veio a realizar Chaimite, um filme dedicado ao exército e sobre as campanhas de África do final do século XIX, em que foram "heróis" Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro. Quanto a João Ratão, inspirado numa opereta, foca sobretudo as intrigas em que se vê envolvido um soldado recém-chegado da Flandres, usando a guerra apenas como pano de fundo.

De resto, embarques e desembarques de tropas portuguesas, exercícios militares – em Portugal, França ou Reino Unido. As visitas de Bernardino Machado à frente ocidental de batalha, junto a Verdun, e ao Reino Unido. A pouco mais do que isto se resume a fixação dos "bravos soldados portugueses", se usarmos o cinema como fonte exclusiva no que se refere à participação na Primeira Guerra Mundial. A exceção que confirma a regra é, como referido, a do filme amador alemão manivelado pelo Capitão Von Pistor, que documenta duas coisas: como a brutalidade deste primeiro conflito mundial não obstou a que ainda fosse sendo observado, em certas situações, um código de honra militar – como a dupla Michael Powell (1905-1990) e  Emeric Pressburger (1902-1988), fixou no extraordinário A Vida e a Morte do Coronel Blimp (1943) – que desapareceu por completo na Segunda Guerra Mundial; e a bravura exigida aos soldados portugueses para suprir a falta de meios de combate.

Que fique escrito que outros arquivos, por explorar, mostrarão outras imagens dos soldados portugueses – porventura mesmo daqueles que foram feitos prisioneiros em La Lys. Dificuldades linguísticas, na pesquisa, e a morosidade com que se têm digitalizado e disponibilizado os arquivos, o facto de haver documentos classificados, e que só em 2018 passarão a ser do domínio público, são alguns dos motivos para que esta seja uma filmografia provisória da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

Álbum de Ernesto de Albuquerque (http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=31979&type=Imagem).

Cine-revista, 7, 15-09-1917.

Cine-revista, 8, 15-10-1917.

Cine-revista, 30, 15-09-1919.

Cine-revista, 49, 15-04-1921.

Diário do Governo, I série, 99, 09-05-1918, p. 670.

Diário do Governo, I série, 130, 04-07-1919.

"Films Nacionaes". Cine-revista, 9, 15-11-1917.

O Primeiro de Janeiro, 11-08-1916, p. 2.

 

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BAPTISTA, T. (2014), "Film/Cinema (Portugal)". In U. Daniel, et al. (eds.) 1914-1918-online. International Encyclopedia of the First World War. Berlim, Freie Universität Berlin. Disponível em http://encyclopedia.1914-1918-online.net/article/filmcinema_portugal [consultado em 10-05-2017].         [ Links ]

CUTILEIRO A. (1976), O Combate do Caça-minas"Augusto de Castilho" com o Submarino Alemão "U. 139" visto através do Relatório do 1.º Oficial Encarregado da Artilharia, Capitão-tenente Kurt Von Pistor, Lisboa, Cento de Estudos de Marinha.         [ Links ]

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Recebido a 11-05-2017. Aceite para publicação a 20-04-2018.

 

[1]       O portuense Alfredo Antunes da Mata fundou, em 1910, uma pequena empresa de produção de cinema que, em 1912, se chama Nunes de Matos & Cia – (Invicta Film). Inicialmente produz documentários de propaganda comercial e industrial além de atualidades filmadas, que exibe tanto nacional, como internacionalmente. O êxito dita que passe a fornecer atualidades às sociedades Pathé e Gaumont. Terá sido o caso da atualidade Manobras Navais Portuguesas, Manobras de Tancos, ambos de 1916, e Naufrágio do Veronese, de 1917.

[2]       Ministro da Guerra de 22 de julho de 1915 a 8 dezembro de 1917 e responsável pela formação e instrução do CEP.

[3]       Ferrão foi um dos sócios proprietários do Salão Central. Raul Lopes Freire, cinéfilo e dono do Salão Chiado, inaugurou este novo salão, no Palácio Foz, e, em 1908, constituiu a "Sociedade Animatográfica, Lda", que geriu, mas da qual Ferrão foi, durante algum tempo, um dos associados. Quanto ao filme, Janeiro (2013) diz que fixa o primeiro embarque a 26 de janeiro, ou o seguinte a 23 de fevereiro.

[4]      Diário do Governo (1919), I Série (130), 4 de julho.

[5]       Segundo o Prontuário do Cinema Português (Matos-Cruz, Ferreira e Pina, 1989), este título é atribuído à Invicta Film. Porém, e dado que o realizador é Ernesto de Albuquerque, tal poderá ser engano.

[6]       Visionável, mediante registo, em http://www.gaumontpathearchives.com.

[7]       Curiosamente e apesar do título, as imagens são relativas a Tancos.

[8]       Nove conhecidos. Poderão ter existido mais.

[9]       Com pouco mais de 4', é visionável em: http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=4979&type=Video.

[10]      Exercícios de Cavalaria em Torres Novas, Curso de 1911, estreado pela Empresa Portuguesa Cinematográfica em 18 de Setembro de 1911, foi exibido nas linhas franco-belgas em 1917. Consultar http://cvc.instituto-camoes.pt/cinema/cronologia/cro013.html.

[11]      Decreto n.º 4 214 de 13 de abril. Diário do Governo. I série (99) 8 de maio de 1918, p. 670.

[12]      Desconheço datas de nascimento e morte. Ter-se-á iniciado como realizador na SFCE. Mais tarde, em 1929, ainda no âmbito da sua atividade no Exército, dirigiu a missão cinematográfica a S. Tomé e Príncipe e Guiné, iniciativa do Agente Geral das Colónias Armando Cortesão. A sua filmografia conhecida inclui: Entrega da Bandeira da Cidade de Lisboa ao Cruzador "Vasco da Gama", Escola de Aviação em Vila Nova da Rainha, Escolas de Oficiais Milicianos em Queluz, Provas Finais dos Alunos da Escola de Guerra, Transporte de Tropas para França, todos de 1917. Trechos de uma Exploração Agrícola em Borba (1927) e S. Tomé Agrícola e Industrial, Por Terras do Ébano e Guiné – aspectos Industriais e Agricultura (1929) – estes últimos três no âmbito da missão colonial promovida por Armando Cortesão – são os restantes títulos que lhe são atribuídos.

[13]      Em linha em http://www.cinemateca.pt/CinematecaDigital/Ficha.aspx?obraid=2121&type=Video.

[14]     Decreto n.º 3354.

[15]      Após o Armistício, note-se que o filme mais relevante produzido pelo SFCE e relativo ainda à Grande Guerra é Glorificação dos Soldados Desconhecidos Mortos na Grande Guerra, estreado a 21 de abril de 1921, que registou as cerimónias fúnebres dos dois soldados desconhecidos sepultados no Mosteiro da Batalha.

[16]      O Jogo do Pau era um exercício da Cavalaria Portuguesa. Dragões de Moçambique (1934), filmado por Fernandes Tomás para a Agência Geral das Colónias, regista detalhadamente o Jogo do Pau, entre outros exercícios.

[17]      O decreto da sua nomeação é de 10 de julho e a 15, quando chegou a França, iniciou então negociações com os ingleses para melhorar as condições das forças que chegava para comandar. Nessas negociações foi auxiliado por Vasconcellos. Não obstante a desconfiança britânica relativamente ao governo sidonista, conseguiu que o então Marechal Haig aprovasse um projeto de reorganização do CEP, nomeadamente da 1.ª Divisão Portuguesa, nela agrupando os efetivos ainda existentes em França. É preciso lembrar que o prestígio do exército português estava então completamente afectado e Rosado queria organizar uma força de combate ativa, que afirmasse perante os aliados o prestígio português.

[18]      Coloca-se a data que consta no site, relativa à primeira exibição. Este filme, ao contrário de outros existentes no arquivo, não tem a ficha de produção original e é possível que tenha sido fornecido por alguma produtora portuguesa.

[19]     Conforme ficha existente. O uso do castelhano terá que ver com a origem do material (é mais provável que tivesse sido a Invicta Film a fornecê-lo, na realidade)? Terá sido eventualmente distribuído em Espanha? Ou será mera confusão?

[20]      Informação por e-mail, a 27-10-2014.

[21]      Segundo Pimentel: "O Afundamento do Lugre Rio Cávado foi filmado em 2 de outubro de 1918: 'navio afundado em 02-10-1918, pelo submarino U-139, classe Kreuzer, comandado por Lothar von Arnauld de la Perière', aos comandos deste desde maio de 1918". Pouco tempo depois, em 24 de novembro, o U-139 rendeu-se aos franceses. O Rio Cávado era um veleiro que transportava vinho do Porto para Bristol. "Chegaram às 11 horas da noite de ontem os tripulantes do veleiro 'Rio Cávado'. O navio naufragou às 6 horas da manhã do dia 2, a 290 milhas do Cabo Prior. Era a primeira viagem que fazia, tendo sido lançado ao mar em julho último e transportava vinho do Porto para Bristol." O Século, de 7 de outubro de 1918. Existe uma cópia do filme na Cinemateca Portuguesa. Regista o afundamento do lugre e as tentativas para resgatar parte da carga de vinho do Porto. Há uma sequência relativa a um barco com cerca de duas dezenas de homens a bordo que poderá ser da tripulação do "Rio Cávado", mas as imagens deste filme amador fixam sobretudo a alegria da tripulação do submarino alemão enquanto iça barricas de vinho do Porto para o convés.

[22]      Autor de O Combate do Caça-minas Augusto de Castilho com o Submarino Alemão U139 visto Através do Relatório do 1.º Oficial Encarregado da Artilharia, Capitão-Tenente Kurt von Pistor (1974).

[23]      No fundo da CP existem duas cópias em 35 mm e existiam duas em 16 mm, uma no Museu da Marinha (até 2000) e outra na Biblioteca Central da Marinha, tendo o primeiro organismo depositado no ANIM o respetivo internegativo em 2000.

[24]      Originalmente chamado Elite, este arrastão de pesca (a partir de 1909 foi usado na pesca do bacalhau) foi transformado em barco patrulha de alto mar. Em 8 de outubro de 1918 zarpou de Lisboa sob o comando do Capitão Carvalho de Araújo escoltando o vapor Beira até à Madeira, onde chegaram a 11. Recebeu então nova missão: a de escoltar o vapor S. Miguel, com destino a Ponta Delgada, nos Açores, o qual transportava mais de 200 passageiros. A 14 de outubro, o S. Miguel foi atacado pelo U-Boot alemão U-139, comandado por Lothar von Arnauld de la Perière. O Augusto de Castilho acabou por investir diretamente contra o submarino alemão, permitindo desde modo que o vapor de passageiros se afastasse. O Augusto de Castilho rendeu-se passadas duas horas de combate, quando perdera as comunicações, gastara quase todas as munições e, entre os feridos, se contava o capitão, que acabou por morrer. Os sobreviventes conseguiram chegar aos Açores no salva-vidas e bote do navio. Consultar http://www.momentosdehistoria.com/MH_02_06_Marinha.htm.

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