SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número229Tipologia dos políticos de direita no Brasil: uma classificação empírica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.01 

ARTIGOS

A liberdade em Polanyi

The concept of freedom in Polanyi

António Baptista*

* Centro de Ética, Política e Sociedade, ilch, Universidade do Minho Campus de Gualtar - 4710-057 Braga, Portugal 


 

RESUMO

A liberdade em Polanyi. A Grande Transformação de Karl Polanyi é uma poderosa crítica da ideologia de mercado e dos seus pressupostos intrínsecos, que se baseia numa teoria política (implícita) da liberdade. Tenta-se aqui reconstruir e explicitar o conceito de Polanyi da “liberdade numa sociedade complexa”, à luz do seu compromisso com uma forma sui generis de socialismo e da sua oposição de longa data ao tipo de argumentos que se podem encontrar n’O Caminho da Servidão de Friedrich Hayek.

Palavras-chave: Polanyi; liberdade; socialismo; democracia; planificação.


 

ABSTRACT

The concept of freedom in Polanyi. Karl Polanyi’s The Great Transformation is a powerful criticism of free market ideology and its intrinsic assumptions that is based on an implicit political theory of freedom. The attempt is made here of reconstructing and making explicit Polanyi’s concept of “freedom in a complex society” in light of his commitment to a sui generis form of socialism and his lifelong opposition to arguments as found typically in Friedrich Hayek’s The Road to Serfdom.

Keywords: Polanyi; freedom; socialism; democracy; planning.


 

Porquê retornar a Polanyi hoje?

Como Piketty (2014) demonstrou, as desigualdades económicas, medidas tanto em termos de património (ou capital, na terminologia de Piketty) como de rendimentos, estão hoje num novo ponto alto, comparável ao pico atingido em 1913[1], depois de um longo período de diminuição e estabilização durante os períodos entre guerras e do pós-guerra. Elas recomeçaram a aumentar em 1970 e, significativamente, a partir dos anos 80, com a chegada ao poder de forças políticas (Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos eua) cujos programas se inspiravam diretamente no pensamento económico neoliberal (Block e Sommers, 2014, pp. 19 e ss). Thatcher, em particular, identificava-se profunda e explicitamente com o pensamento de Friederich Hayek, com quem sempre manteve uma relação cordial e de profundo respeito intelectual, e sobretudo com a sua obra The Road to Serfdom, que reputava de crucial importância e fonte inspiradora da sua carreira (Thatcher, 1993, pp. 12-13). Este movimento de reformas anti-socialistas[2] foi fortemente acelerado a partir da queda da urss, que abriu as portas à globalização económica e ao enfraquecimento do movimento operário e sindical, bem como à compressão da crítica socialista ao capitalismo e à subsequente conquista dos partidos tradicionais do centro-esquerda pelas ideias da terceira-via, pela mão de dirigentes como Tony Blair, Gerhard Schröder ou Bill Clinton (Leys, 2001, pp. 63-80, Heath, Jowell, Curtice, 2001, pp. 2-7 e 101-110).

Pode-se dizer, então, que esta evolução representou, em grande medida, um movimento ideológico contrário ao que Karl Polanyi sonhara para a sociedade do pós-guerra: houve um reforço de uma “mentalidade de mercado” (afinal, não tão obsoleta como este imaginara), encaminhando-se os partidos e intelectuais socialistas e social-democratas (Giddens, 1998; Le Grand, 2003) para a aceitação da legitimidade e superioridade, não apenas técnica ou económica, mas moral, dos mercados desregulados ou pouco regulados. O papel do Estado recuou para a de um regulador cada vez mais distante, passivo e secundário de um sistema económico cada vez mais “autorregulado”, pondo-se em causa, assim, na prática, algumas das mais básicas instituições social-democratas[3] A própria ideia de progressão rumo a uma qualquer forma de socialismo foi praticamente abandonada e tida como, ela sim, obsoleta e mesmo perniciosa em virtude das suas supostas tendências autoritárias.

Do mesmo passo, as crescentes desigualdades económicas têm vindo a converter-se ou a traduzir-se, como desde pelo menos Rousseau se cria inevitável, em desigualdades políticas cada vez mais marcadas (Verba, Schlozman, Brady, 2004, p. 660), levando a uma progressiva deriva oligárquica ou plutocrática dos sistemas representativos atuais. Este facto é atestado pela ciência política contemporânea (Jacobs and Skocpol, 2005, p. 11; Bartels et al., 2005, p. 113) e pode ajudar a explicar o surgimento de movimentos designados de “populistas de esquerda” que contestam a natureza elitista dos sistemas políticos e a sua falta de representatividade real, traduzida numa ausência de resposta aos reais anseios e necessidades das populações. Finalmente, as reformas económicas levadas a cabo não só não trouxeram a resolução dos problemas económicos que se haviam identificado em momentos anteriores, sob a vigência do “keynesianismo vulgar” do pós-guerra, como ainda os agravaram e geraram novos problemas. As crises económicas severas, frequentes na segunda metade do século xix e até ao surgimento do Estado Social - quando praticamente desapareceram - ressurgiram em força na sequência da queda do socialismo e da extensão das novas políticas neoliberais: a crise asiática, as crises na Rússia e Argentina, e, mais recentemente, a partir de 2007, a crise do sub-prime americano que, por sua vez, se transformou numa grande recessão europeia e mundial, da qual ainda se busca sair. Nem as tradicionais liberdades civis e políticas parecem, de resto, a salvo, com o crescimento da vigilância e espionagem eletrónica e a vulgarização do recurso a medidas típicas de um estado de exceção (Greenwald, 2014; Bamat, 2017). Socialismo, democracia e liberdade, portanto, como práticas concretas e como ideais parecem estar crescente e simultaneamente sob ameaça, enquanto o fenómeno do populismo parece enquadrar-se na ideia do contramovimento de autoproteção teorizado em 1944 por Polanyi em A Grande Transformação. Justifica-se, pois, inteiramente, retornar a um autor e a uma obra que teorizou a ideia do “duplo movimento” e que, procurou discutir aqueles três desideratos (socialismo, democracia e liberdade) como interligados e interdependentes, respondendo às críticas que Hayek, pai intelectual das políticas dos últimos 40 anos, formulara quanto aos riscos inerentes ao socialismo e à planificação.

Polanyi e o contexto político dos seus escritos

Após a revolução russa e subsequentes revoluções de carácter socialista na Europa central e de leste, como a república dos conselhos na Baviera em 1918 ou o governo de Béla Kun na Hungria - que Polanyi presenciara in loco até ao seu derrube violento pela direita, facto crucial na sua decisão de se dirigir a Viena -, a discussão em torno da possibilidade e (in)desejabilidade de um sistema económico socialista tornou-se mais acesa e áspera perante a nova e instável realidade que este ambiente político trouxera. Se, num campo, o dos partidos socialistas e comunistas, se abrira uma janela de oportunidades excitante, no outro o medo predominava e incitava reações hostis. O debate científico na fervilhante “Viena a vermelha” entre partidários (como Polanyi e Otto Bauer, secretário geral do partido social-democrata) e críticos do socialismo (sobretudo a escola marginalista liderada por Von Mises) sobre a possibilidade da contabilidade numa sociedade socialista era um reflexo e, de certo modo, a continuação da luta política e económica que se processava quer no plano nacional, quer no plano internacional. Na Áustria, em particular, esta luta extremava-se entre, por um lado, o partido social-democrata austríaco que realizava reformas experimentais de cariz “socialista”, ainda que de âmbito meramente municipal, na capital e, por outro, a maioria conservadora que ainda dominava o parlamento e governo nacionais. A “guerra fria”, poder-se-ia dizer, começara já com a revolução russa (e não em 1945) e tinha “contaminado” ou tinha sido transposta para os debates entre economistas, sociólogos e demais cientistas sociais. Polanyi posicionara-se nesse debate apresentando-se como um socialista não marxista, crítico do bolchevismo, e defensor de um modelo económico de socialismo sem direção centralizada da economia, diretamente influenciado pelo socialismo cristão de Tawney e pelo “guild socialism” de G. D. Cole (1920). Com o avanço do fascismo na Europa, e, no caso da Áustria, do golpe e ditadura de Dolfuss (1933), Polanyi iria exilar-se em Inglaterra, onde entraria em contacto com os autores socialistas que o haviam influenciado, embora, como documenta Tim Rogan (2013), estes não se tenham mostrado particularmente recetivos às suas ideias, nem Polanyi tenha encontrado as oportunidades que esperara. Ainda assim, com a entrada na guerra, a aliança entre urss, eua e Grã-Bretanha contra as forças do eixo, bem como o desenvolvimento, na prática, de planificação e intervenção económica extensas nos países capitalistas envolvidos, produziria um ambiente, na política e na academia, bastante mais aberto e favorável ao socialismo e à planificação do que existira algumas décadas antes. A morte de Roosevelt, em 1945, iria marcar o fim desta abertura e a transição para a dura hostilidade da guerra fria. No ano imediatamente anterior, contudo, vão publicar Hayek e Polanyi (posteriormente) as suas mais famosas obras. Tal como sucedera nos anos 20 a propósito da contabilidade numa sociedade socialista, este debate científico é também um debate político, um reflexo e parte dessa mesma luta política que incide sobre o modelo de economia e sociedade que se pretende que triunfe.

A liberdade em Polanyi: o confronto com Hayek

Para entender a teoria política e a noção de liberdade de Polanyi, mantida sempre na penumbra da sua obra, importa contrastá-las com os argumentos que se podem encontrar na obra de Friedrich Hayek, The Road to Serfdom, uma vez que os capítulos finais do livro a Grande Transformação devem ser lidos como uma resposta direta aos argumentos utilizados por Hayek (Block e Somers, 2014, p. 224) Embora inicialmente mal recebido pela crítica, o manifesto de Hayek viria a ser visto como “premonitório” e como um diagnóstico preciso dos problemas latentes no socialismo e, no fundo, em qualquer tentativa de planificação social extensa e com objetivos igualitários. Esta obra em particular pretende contestar o ideal do socialismo essencialmente a partir da sua pretensa incompatibilidade com os ideais de liberdade e felicidade humana. Ainda que sejam abundantes as referências negativas às experiências concretas de implantação do socialismo, o argumento de Hayek pretende-se fundar numa incompatibilidade mais geral, de natureza principiológica, entre o socialismo como sistema, abstraindo de episódios históricos concretos, e o liberalismo.

Pese embora as conceções clássicas de liberdade do liberalismo clássico serem frequentemente acusadas de algum formalismo, convém precisar que, no caso de Hayek, esta não é, pelo menos em The Road to Serfdom, integralmente formal como fora, por exemplo, a conceção mecanicista de liberdade de Hobbes, e isto precisamente porque Hayek se detém, com insistência e detalhe, nos efeitos psicológicos causados pelo mero facto de alguém se encontrar em situação de relativa precariedade ou vulnerabilidade face ao poder de outrem (governantes, sobretudo), mesmo na ausência de qualquer pressão explícita, ameaça ou uso iminente de força coerciva. Em Hobbes, por contraste, a liberdade é a capacidade para o movimento, sendo que só não é livre um corpo que esteja fisicamente impedido de mover-se. “Liberty or freedome, signifieth (properly) the absence of Opposition; (by Opposition I mean externall impediments of motion” (Hobbes, 1968, p. 261). Se apenas os impedimentos externos ao movimento são incompatíveis com a liberdade, resulta daí que, quando alguém se vê sujeito à ameaça do ladrão armado que lhe grita “a bolsa ou a vida”, esta vítima permanece livre: são-lhe oferecidas duas alternativas e, ao entregar a bolsa para preservar a vida, exerce uma livre opção por uma delas. Para Hobbes, é relevante apenas que a última volição se possa concretizar mecanicamente, que o corpo se mova segundo essa última volição, pouco importando se esta foi o produto de uma emoção como o medo e se, na ausência do medo, tal opção não seria tomada.

Os defensores da liberdade republicana, contra os quais Hobbes escrevia, como Milton, - explicitamente referido como inspiração por Hayek (1976, pp. 13-15) - pelo contrário, insistem em que a mera existência de uma prerrogativa ilimitada ou muito extensa por parte do monarca cria imediatamente uma situação de não-liberdade que opera a nível interior, psicológico, ao criar uma dependência extrema face ao monarca, de quem se espera o favor e se teme a represália, pelo que é de fundamental importância mostrar-se-lhe solícito e grato (Skinner, 2008, p. 215). Ora, um dos principais pontos que Hayek sublinha constantemente é o de que a liberdade é também uma independência psicológica face ao Estado e que, quando o Estado controla grande parte da economia e da vida, automaticamente essa independência individual é minada. A liberdade dos cidadãos é diminuída quando - mesmo na ausência de qualquer ato de coerção do Estado - se gera internamente nos agentes uma mudança psicológica que os torna servis ou cautelosos face ao titular do poder.[4] Logo no prólogo de a The Road to Serfdom, e a propósito dos 6 anos de governo trabalhista na Inglaterra no imediato pós-guerra, durante os quais este se autoconcedeu poderes de requisição civil, Hayek relembra-nos justamente que a liberdade pode ser minada - e normalmente é minada - no longo prazo, precisamente por uma gradual transformação da psique coletiva, e que a não extinção da liberdade de forma imediata e brutal por medidas coercivas de um governo socialista não significa que ela não esteja já em perigo. A propósito da legislação relativa à requisição civil, uma forma praticamente de trabalho forçado, Hayek argumenta que é apenas a possibilidade do seu exercício, mais do que o seu exercício efetivo, que diminui a liberdade, automaticamente, por melhores que sejam as intenções dos governantes, porque “if it is known that the authorities have power to coerce, few will wait for actual coercion” (Hayek, 1976, p. xi).

Esta conceção de liberdade está intimamente ligada aos seus pressupostos individualistas. As principais características deste individualismo são, não qualquer apologia do egoísmo desenfreado, mas antes “the respect for the individual man qua man, that is, the recognition of his own views and tastes as supreme in his own sphere, however narrowly circumscribed, and the belief that it is desirable that men should develop their own individual gifts and bents (p. 14)”. Nada há aqui de novo em relação à tradição liberal do século xix, na qual Hayek se insere explicitamente: há que reconhecer uma “soberania” dos indivíduos sobre uma parcela significativa da sua vida, uma esfera pessoal de ação, em que os seus gostos e preferências governem sem interferência dos demais homens (Hayek, 1976, p. 59). Na verdade, Stuart Mill já há muito que sintetizara este projeto liberal numa fórmula clássica e profícua:

That principle is, that the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively, in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection. (…) The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign [Mill, 1998, p. 14]. O que então ficara por determinar fora o que constitui um dano (“harm”)[5], propriamente dito, ou um risco de dano, a outras pessoas que autorize a comunidade ou o Estado a cercear a liberdade dos homens em nome da preservação de uma liberdade igual para todos. Todos os liberais reconhecem a necessidade de uma determinada esfera em que o indivíduo deverá ser independente dos demais e todos reconhecem, por isso, a necessidade de estabelecer limites à ação do Estado e das coletividades, entre outros. Todos, ou quase todos, reconhecem também, porém, que a liberdade está dependente de algum grau de coerção daqueles (privados) que possam querer, ilegitimamente, interferir com o que constitui a esfera de liberdade legítima dos outros.[6] A liberdade não existe sem a repressão dos que possam querer violar a liberdade dos outros - trate-se dos titulares do poder do Estado, ou não. Tal repressão “defensora da liberdade” requer a existência de um Estado que garanta a igual liberdade de todos face aos riscos intoleráveis.[7] A extensão e limites do poder concedido ao Estado para garantir de forma legítima essa liberdade, depende, em última análise, da extensão e tipos de ameaças ou riscos à liberdade que se reconheçam existir e a definição destes riscos depende, por sua vez, da própria ideia do que constitui a liberdade desejável e possível na prática.

Em todo o caso, independentemente do modo como se devam conceber os limites dessa esfera de autonomia, o que é certo é que, para Hayek, há uma oposição radical entre o modo como a liberdade é concebida por liberais e socialistas:

To the great apostles of political freedom the word had meant freedom from coercion, freedom from the arbitrary power of other men, release from the ties which left the individual no choice but obedience to the orders of a superior to whom he was attached [Hayek, 1976, p. 26]. Contra esta conceção original de liberdade, teria surgido, com o movimento socialista, uma nova conceção de liberdade: [t]he new freedom, however, was to be freedom from necessity, release from the compulsion of the circumstances which inevitably limit the range of choices of all of us, although for some very much more than for others (…) Freedom, in this sense, is, of course, merely another name for power or wealth. O expoente máximo dessa “confusão” entre poder e liberdade, segundo Hayek, seria John Dewey, “according to whom ‘liberty is the effective power to do specific things’ so that ‘the demand for liberty is demand for power’” (Hayek, 1976, p. 26).

A conciliação dos textos de Hayek acima transcritos (reivindicando, por um lado, uma tradição individualista para a qual é desejável que os homens “should develop their own individual gifts and bents” mas rejeitando, por outro, qualquer identificação da liberdade com “the effective power to do specific things”) coloca-nos perante dois problemas. Em primeiro lugar, o de saber se é possível evitar a confusão entre poder e liberdade, a partir do momento em que se identifique, como Mill, esta última com uma capacidade para o autodesenvolvimento. Em segundo lugar, o de que modo haverá que interpretar a desejabilidade desse autodesenvolvimento para evitar essa confusão. Com efeito, a ausência de coerção, mesmo que essa coerção seja definida, à maneira de Hayek, como dependência em relação à vontade arbitrária de outrem, portanto de forma menos estrita do que Hobbes ou Rothbard (1998, pp. 219-229), constitui apenas uma condição necessária, mas não suficiente, do autodesenvolvimento, o qual requer igualmente a libertação da “compulsão das circunstâncias que inevitavelmente limitam o leque de escolhas” e o “poder efetivo de fazer coisas específicas”, sem o qual os talentos individuais não podem ser desenvolvidos de forma autónoma. É neste ponto que as conceções de Mill e de Hayek começam a divergir.[8] Enquanto este último parece defender uma conceção eminentemente negativa da liberdade (se bem que, como vimos, Gray pense ver nela alguns aspetos que poderão levar a integrá-la numa tradição positiva), que não depende da existência de um leque adequado de opções disponíveis e da capacidade efetiva para as materializar, já Mill, neste aspeto mais próximo de Polanyi, insere-se claramente numa tradição positiva. A redação do “harm principle”, pela sua insistência na ideia da manutenção de uma esfera livre de interferências coercitivas por parte do Estado e sociedade, pareceria inscrever Stuart Mill na categoria dos defensores de uma conceção eminentemente negativa de liberdade. E, com efeito, Isaiah Berlin assim o considera (Berlin, 2002, pp. 170-171). Contudo, em Mill, a liberdade é vista essencialmente como uma capacidade para o autodesenvolvimento idiossincrático dos indivíduos através da experimentação de modos de vida diversos. Esta liberdade como autodesenvolvimento remete, pelo menos potencialmente, para uma dimensão positiva, na medida em que autoriza, ou exige mesmo, a realização das condições materiais necessárias para que todos, por igual, possam usufruir desse “experimentalismo” ativo de modos de vida e desenvolver-se plenamente. Não obstante toda a desconfiança de Mill face ao governo, este encara a liberdade como “capacidade (externa e interna) para “realizar certos fins (“freedom to”) e não apenas como ausência de interferências deliberadas (“freedom from”), que requer a ação positiva da sociedade para promover a autonomia dos indivíduos. Daí a sua crítica heterodoxa às desigualdades sob o capitalismo e dos seus efeitos deletérios sobre os trabalhadores, bem como a sua abertura para a alteração das normas sobre a organização da propriedade privada (Mill, 1976). Daí, também, a sua defesa intransigente da universalização da educação como tarefa imprescindível da sociedade e como direito fundamental de todos os homens (Mill, 1998, pp. 116-117) - ainda que excluindo qualquer monopólio estatal sobre o sistema educativo que, pela sua tendência excessivamente uniformizante e centralizadora, poderia ser perigoso para a individualidade dos alunos. Esta preocupação seria difícil de entender senão à luz do objetivo central de conceder a todos os cidadãos, independentemente da sua origem, os instrumentos necessários ao pleno desenvolvimento das suas capacidades humanas, nomeadamente dando-lhes a oportunidade de conhecer aqueles modos de vida e prazeres de tipo “superior” de que, de outro modo, poderiam ser privados em virtude das desigualdades socioeconómicas. A liberdade em Mill é, de resto, uma liberdade que implica também a ideia de “self-mastery” ou plena autonomia face a tudo o que é exterior ao próprio indivíduo, o “desejo” que subjaz à essência da liberdade positiva nos termos da definição dada pelo próprio Isaiah Berlin (2002, p. 178). A inserção de Mill na tradição “clássica” e negativa de liberdade é, pois, incorreta (Gray, 1991b, pp. 62-63; Habibi, 1995).

Pelo contrário, na perspetiva de Hayek, incluir nas condições da autonomia, para além da ausência de subordinação à vontade de outrem (“freedom from coercion”), a libertação da necessidade (“freedom from necessity”) é abrir a porta para a tentativa da sociedade, sob a direção de um governo, usar todos os mecanismos possíveis, sobretudo o seu poder coercitivo, para nivelar os graus de poder, ou de “capacidade para fazer coisas específicas” (para usar a expressão de Dewey), segundo uma conceção substantiva e particular de justiça. Surge assim a necessidade de planificar toda a vida económica de uma sociedade para que ela se conforme com esse objetivo. Porém, essa planificação, ou a sua execução, pelo menos, seria incompatível com a manutenção daquela esfera de autonomia que, nos termos do velho ideal liberal, se deve reconhecer aos indivíduos para que eles moldem a sua vida segundo os seus próprios planos e as suas conceções do que constitui uma vida boa. O pecado original e inevitável do socialismo seria o de requerer uma planificação económica total da sociedade e esta planificação económica total pressupõe, por sua vez, a necessidade de definir e implementar, em nome dessa mesma sociedade, um “código moral completo” (Hayek, 1976, pp. 57-59) válido e obrigatório para todos os cidadãos, usando a violência, se necessária, contra eventuais resistências movidas por quem possa ter preferências contraditórias com os objetivos económicos traçados, em virtude das suas visões do mundo e valores fundamentais.[9] Atendendo, porém, à diversidade existente - e inelutável - de perspetivas numa sociedade complexa, os conflitos entre o código moral da sociedade e o dos indivíduos ocorrerão sistematicamente e não haverá, pois, forma alguma de conciliar a realização do “plano económico socialista”, por um lado, com o objetivo liberal fundamental de reservar aquela esfera ou espaço próprio de ação livre dos seres humanos, nem, por outro, com o objetivo democrático de preservar a igualdade política das minorias. E, com a ausência desse espaço de autoconformação da vida privada, é removido um dos elementos fundamentais da felicidade humana, que é justamente a possibilidade de atingir os seus fins específicos, os fins que cada um autonomamente se propôs realizar.

Hayek aceita que os governantes, em toda a sua boa-fé, possam querer oferecer aos governados o que de melhor e mais importante há no mundo. Contudo, fá-lo-ão de acordo com as suas visões particulares do que constitui uma vida boa, uma vida bem vivida, plena de sentido - que não serão, naturalmente, as de todos os demais. Ao passo que, para uns, a vida ideal será uma de natureza mais passiva e contemplativa, alheada dos principais debates públicos e comunitários, para outros apenas a vida de dedicação ativa e intensa à comunidade, nomeadamente pela participação política, poderá ser vista como digna de ser vivida. Ao impor escalas de valor comunitárias por meio do plano, os governantes (legitimados ou não por uma maioria democrática) estarão a impor, com efeito, o seu ideal de uma vida boa a todos os outros, impedindo-os de prosseguir as suas próprias escalas de valor e preferências.

Hayek insiste em que não pretende, com os seus ataques à ideia de socialismo e planificação, defender um laissez faire do passado. Aceita como razoável a necessidade de alguma “planificação” na vida comunitária, no sentido de enquadrar a atividade humana por meio de normas jurídicas imperativas como as constantes de códigos civis e penais[10], e argumenta que não é incompatível com a manutenção do princípio competitivo um sistema alargado de serviços sociais ou normas laborais e ambientais destinadas a impedir determinados excessos ou incúrias (ibid, p. 37), mas tenta precaver os seus leitores contra os perigos da visão que dela têm os socialistas, para os quais não é suficiente “to design the most rational permanent framework within which the various activities would be conducted by diferent persons according to their individual plans” (Hayek, 1976, p. 35). Na verdade, sob o termo aparentemente inofensivo e consensual de “planificação”, o que eles exigem é uma “central direction of all economic activity according to a single plan, laying down how the resources of society should be ‘consciously directed’ to serve particular ends in a definite way” (ibid).[11]

A planificação seria ainda problemática pela sua incompatibilidade com o “rule of law” ou Estado de Direito. O Estado, ao procurar produzir a igualdade económica ou de “resultados” entre os cidadãos e realizar os objetivos de produção, teria que deter o poder de fazer alterações ad hoc constantes e não ser regido ou limitado por prazos, e regras legais prévias (Hayek, 1976, pp. 73 e ss.). Desta forma, seria minada toda a previsibilidade do Direito, tudo estando dependente das eventuais alterações erráticas de objetivos pela entidade central, o que implicaria que a planificação do Estado tornaria impossível a planificação por parte das pessoas da sua própria vida, segundo os seus próprios critérios (ibid, p. 76). A falta de previsibilidade dos poderes públicos destrói assim a liberdade das pessoas que, não sabendo com o que podem contar - o que será permitido e proibido, o que lhes será retirado e dado - também nada podem estruturar além do mínimo: de que adianta formular determinados objetivos pessoais prevendo, da parte das autoridades, que tais condições e tais comportamentos, que antes se verificaram, continuem a verificar-se, se estes podem, a todo o momento, ser redefinidos ilimitadamente, ao sabor dos caprichos dos “planificadores” comunitários?.[12]

A Grande Transformação

A Grande Transformação é uma tentativa de demonstrar, por meio de uma análise histórica e antropológica, como o projeto de uma sociedade de mercado autorregulado é uma utopia simultaneamente irrealizável e profundamente perigosa. Ao escrever esta obra, porém, Polanyi está claramente não apenas a desenvolver um projeto de investigação académica, mas pretende, com a sua crítica aos argumentos dos defensores do liberalismo clássico, participar numa batalha de ideias contemporânea, buscando influenciar as políticas económicas do presente e do futuro próximo, exatamente como sucedia com Hayek. Para tal, em primeiro lugar, Polanyi busca demonstrar que, ao contrário do que sugeriam muitos liberais, ainda que os mercados tenham existido desde longa data, o seu papel e extensão no conjunto da sociedade foram, durante a maior parte da história humana, estritamente limitados por instituições sociais, pelo papel do Estado, dos costumes e das ideias morais prevalecentes na comunidade.[13] Os mercados foram um elemento subordinado e a “economia” manteve-se “incrustada” na sociedade, ambos firmemente regulados por normas morais e instituições sociais, laborais, religiosas, etc. De resto, a construção de mercados de âmbito nacional (por oposição aos mercados locais e regionais da Idade Média, altamente regulados e anti-competitivos) e, posteriormente internacional (Block e Somers, 2014, p. 49) e, por último, a tentativa de dar forma a sociedades caracterizadas por um mercado integralmente “autorregulado”, necessitou de um impulso vindo “de fora”: isto é, não resultou de pressões internas, geradas pela própria dinâmica dos mercados, mas sim da ação deliberada do Estado, de políticas coercivas dirigidas a realizar este objetivo (Polanyi, 1944, pp. 193-208 e p. 461).

Polanyi procura demonstrar ainda que nenhuma sociedade poderia, sob pena de dissolução, “desincrustar” a economia para lá de um certo ponto. Em última análise, mesmo a operação de suposta “emancipação” do mercado face à sociedade e às suas regulações, não foi realmente uma “desincrustração” total do mercado, mas, como explicam Fred Block e Margaret Somers (2014, p. 9), uma “reincrustação” do mercado noutros arranjos políticos legais e culturais, arranjos esses, contudo, que resultavam em desvantagem óbvia para os segmentos sociais mais pobres e em vantagem para as classes sociais privilegiadas. Os riscos da desincrustação são particularmente elevados no caso do que Polanyi designa de “mercadorias fictícias”, a saber, o trabalho, a moeda e a terra. Por isso, mesmo no auge da popularidade do laissez faire, os responsáveis políticos, independentemente da sua inabalável fé no credo liberal, viram-se obrigados a estabelecer proteções e regulações; a usar o poder do Estado para limitar e absorver alguns dos impactos que uma economia “livre”, de outra forma, produziria (Block e Somers, 2014, pp. 93-94). Esses riscos sociais aumentariam com o aprofundamento da integração dos mercados nacionais num verdadeiro mercado mundial, para o qual teria sido requerida a trágica camisa-de-forças do padrão-ouro. Aumentando, contudo, os riscos - em dimensão e em termos de grupos sociais afetados -, aumentou do mesmo passo a necessidade de os conter, de onde resultariam tanto o protecionismo social e aduaneiro, como uma interferência progressivamente maior do Estado na economia que se verificaram a partir do último quartel do século xix. Estes fenómenos não seriam, como argumentavam muitos liberais, produto de qualquer conspiração “antiliberal”, mas o inevitável e espontâneo contramovimento de autoproteção da sociedade (Polanyi, 1944, p. 317).

Polanyi e a “liberdade numa sociedade complexa”

É apenas no capítulo final de a Grande Transformação que Polanyi aborda o tópico da “liberdade numa sociedade complexa”. Em momento algum, porém, chega a oferecer uma definição do que entende por liberdade. Este facto, embora lamentável, não deve surpreender. A Grande Transformação não é uma obra de teoria política, mas antes uma reflexão, a partir do ponto de vista da história económica e antropologia, em torno de uma utopia, a do mercado autorregulado, e dos efeitos distópicos da mesma sobre a sociedade. Este facto, contudo, não nos deve impedir de procurar resgatar a conceção de liberdade subjacente ao pensamento de Polanyi nesta sua acerba crítica ao liberalismo económico. Importa, contudo, deixar desde logo claro que parecem faltar muitos passos argumentativos, que ficam ocultos ou implícitos, na exposição de Polanyi e que isso vai obrigar a um esforço de reconstrução interpretativa, algo que, naturalmente, está sempre aberto a contestação ou a interpretações alternativas.
Não obstante a ausência em A Grande Transformação de uma definição de liberdade, numa conferência datada de 1949, meros 4 anos depois, proferida perante o “Graduate Public Law and Government Club” diz-nos o autor que:

I mean by freedom concrete institutions, civic liberties - freedoms (in the plural) - the capacity to follow one’s personal conviction in the light of one’s conscience: the freedom to differ, to hold views of one’s own, to be in a minority of one, and yet to be an honored member of the community in which one plays the vital part of the deviant. It is freedom to follow what the Anabaptists - and the Quakers after them - called the “inner light” or in terms of political theory, to be in safe possession of the priceless achievement of John Stuart Mill’s century [Polanyi, 2014a, p. 39]. Nesta citação algo enganadora, o significado atribuído à ideia de liberdade tem como foco, aparentemente, apenas as tradicionais “liberdades civis”, como a liberdade de consciência, de pensamento, eventualmente a de imprensa, e poderia parecer, assim, que o autor húngaro procura filiar a sua definição na longa tradição das conceções negativas e formalistas de liberdade, o que seria algo contraditório, como veremos, com a sua defesa, em A Grande Transformação, da necessidade de integrar estas, cronologicamente mais antigas, com as liberdades “efetivas”, de modo a propiciarem a emergência de uma liberdade mais plena. Com efeito, como se verá, uma tal leitura seria precipitada já que, no texto desta mesma conferência, Polanyi deixa claro que o objetivo (quer da conferência, quer da definição) é tão-só o de romper o vínculo que autores como Hayek, repetindo outros mais antigos, haviam buscado estabelecer entre as “liberdades do liberalismo económico” e as liberdades fundamentais (civis e políticas), fazendo das primeiras condições necessárias das segundas. Para tal escuda-se em Stuart Mill, que nunca entendera as liberdades de comércio e empresa como estruturalmente relacionadas quer com as liberdades “realmente fundamentais”, quer com o objetivo ético primordial de dar aos homens a real oportunidade de se autoconformarem de acordo com a referida “luz interior”, ou os ditames da sua consciência. Na verdade, a invocação de Mill - embora tal não seja explicitado - indica a aproximação em relação ao seu ideal de liberdade como autonomia e autodesenvolvimento dos homens, que, só uma vez emancipados de todo o tipo de constrições governamentais e societais, poderiam ser os “autores” ou “criadores de si próprios” e dos seus idiossincráticos ideais de vida. Esta conceção milliana de liberdade como “autodesenvolvimento” e “experimentalismo” com modos diversos de vida surge como relativamente heterodoxa ou “revisionista” na tradição liberal ao permitir - ou, eventualmente, até exigir - uma atitude de natureza positiva, da sociedade e do Estado, no sentido de criar ou fomentar as condições necessárias para esse autodesenvolvimento. Não por acaso, Mill, tal como Polanyi, mostrara-se sensível às críticas de autores socialistas, mostrando simpatia tanto pelos seus princípios éticos como pelas experiências do cooperativismo socialista (1976).[14] Esclarecido este ponto, e para progredir algo mais na compreensão da ideia de liberdade em Polanyi, importa retornar agora aos capítulos finais de A Grande Transformação.
Polanyi começa por relembrar, no capítulo xxi, um ponto óbvio a que já se havia feito referência: a liberdade depende de regulação e nenhuma teoria liberal minimamente realista pode dar-se ao luxo de ignorar que atribuir qualquer liberdade em termos iguais a todos implica necessariamente restringir outras liberdades. Não poderá existir nunca uma liberdade irrestrita, constituída pela inação do Estado e das instituições, pois essa inação redundaria num insustentável estado de natureza hobbesiano onde todos os direitos são precários, vulneráveis à ação arbitrária dos homens. O erro de muitos liberais[15] teria sido o de olvidarem que não pode existir sociedade, nem muito menos liberdade, sem coerção e regulação: A economia liberal imprimiu uma falsa direção aos nossos ideais. Dir-se-ia que procurou realizar esperanças intrinsecamente utópicas. Não é possível a existência de uma sociedade sem poder e sem coerção, como não é possível um mundo em que a força não desempenhe quaisquer funções. A imagem de uma sociedade moldada exclusivamente pela vontade e aspirações humanas não passa de uma ilusão. Todavia, tal era a conceção da sociedade na perspetiva do mercado, em cujos termos a economia se reduz a um conjunto de relações contratuais, ao mesmo tempo que as relações contratuais são identificadas com a liberdade [ibid, p. 471]. A regulação terá de existir sempre. O que se pode discutir, portanto, é o tipo de regulação que se pretende fazer, através de que tipo de instituições e, por fim, qual o saldo final entre as liberdades ou direitos perdidos face às liberdade ganhas e garantidas: Ao nível institucional, a regulação expande e ao mesmo tempo restringe a liberdade. Tudo o que importa aqui é a comparação entre as liberdades perdidas e conquistadas. O que vale tanto para as liberdades jurídicas como para as liberdades efetivas [ibid, p. 466].

O que se perspetiva, na visão então otimista de Polanyi, é que, com o fim da economia de mercado autorregulada e com a progressão do socialismo, a nova regulação das liberdades iria, finalmente, redistribuir direitos e liberdades de uma forma mais igualitária, o que implicaria, pelo menos temporariamente, uma contenção dos níveis anteriores de liberdade gozados pelas elites. Mas é a própria enunciação do conteúdo desses direitos que mostra bem a oposição entre a sua conceção de liberdade (ou do que ele considera serem as pré-condições indispensáveis para o gozo das liberdades) e a conceção de Hayek:

As classes abastadas gozam da liberdade que lhes é conferida pelos seus ócios em condições de segurança - sentem-se, por isso, naturalmente, menos ansiosas para alargar a liberdade no conjunto da sociedade do que aqueles que, com escassos rendimentos, têm de se contentar com um mínimo de liberdade. Este aspeto torna-se transparente assim que se põe a questão da imposição compulsiva de uma distribuição mais justa dos rendimentos, dos ócios e da segurança. Embora as restrições por ela implicadas sejam universais, os privilegiados tendem a senti-las como se fossem dirigidas exclusivamente contra eles. Falam de servidão, quando, na realidade, se trata apenas de tornar extensiva aos demais a liberdade adquirida de que eles próprios gozam. Num primeiro momento, é bem possível que os seus ócios tenham de ser reduzidos, reduzindo também a sua liberdade, de modo a tornar mais elevado o nível da liberdade existente no conjunto do país. Mas tal transformação, redefinição e extensão das liberdades não justifica que se afirme que as novas condições serão necessariamente menos livres do que as anteriores [Polanyi, 2012, pp. 466-467].
Os rendimentos, os ócios e a segurança são, portanto, condições necessárias da liberdade. Estamos perante uma conceção de liberdade essencialmente positiva. Se, para Hayek, a liberdade era “freedom from coercion, freedom from the arbitrary power of other men, release from the ties which left the individual no choice but obedience to the orders of a superior to whom he was attached”, Polanyi responde que sem os “rendimentos, os ócios e a segurança” ninguém está armado para resistir ao poder arbitrário de outros homens. Polanyi não o diz explicitamente, convém sublinhá-lo, mas a inclusão destes elementos na sua conceção de liberdade parece fundar-se neste argumento implícito: estes elementos são uma componente da liberdade humana porque permitem aos indivíduos que deles gozam, em primeiro lugar, “fazer mais coisas” - como diria Dewey -, mas também porque, em segundo lugar, a liberdade face ao poder arbitrário de outros homens depende da vulnerabilidade relativa face aos mesmos e esta vulnerabilidade, por sua vez, depende da assimetria de capacidades entre uns e outros. A liberdade de cada homem é inversamente proporcional ao poder (enquanto capacidade para dominar) dos outros. Polanyi implicitamente está a atacar, como todo o pensamento socialista o fizera, um dos pressupostos da utopia liberal do mercado: a de que o poder reside apenas, ou predominantemente, no Estado, no exercício do poder político (Block e Somers, 2014, pp. 101-105). O poder reside na esfera económica também, entre privados, mesmo sem coerção ou ameaça dela, e opera pelos meros desequilíbrios e desigualdades estruturais que ali operam, sem interferência da vontade dos atores.

Concretizando, e começando pelos “ócios” - ou melhor, a possibilidade de gozar de algumas “bolsas de tempo” que não sejam obrigatoriamente despendidas na “luta pela sobrevivência” através do trabalho -, estes foram sempre vistos, ao longo da história, como um dos principais requisitos do conhecimento e este, por sua vez, como fonte de legitimidade para o acesso ao poder. Aristóteles, no livro vii de A Política, enquanto crítico da democracia, defendia que, no melhor regime político possível, os cidadãos não deveriam ter ocupações mecânicas ou comerciais, nem dedicar-se à agricultura, gozando de amplos meios de subsistência, pois os cidadãos deveriam ser virtuosos e o desenvolvimento da virtude (aretê) e das atividades do cidadão requerem o lazer (Aristotle, 1992, pp. 1328b33 e 1329a17). Igualmente, quando os liberais tentavam justificar o sufrágio censitário, justificavam-no argumentando, como Sieyès (1994, p.236) ou Barnave (1989, p. 15) o fizeram, que a grande maioria dos homens, particularmente os não proprietários, eram “máquinas de trabalho”, sem tempo nem condições para adquirir as “lumières” necessárias à boa reflexão e decisão. Mas os próprios democratas e socialistas eram sensíveis a este argumento, invertendo-o: se o exercício do poder depende dos conhecimentos e este da educação e de uma “reserva de tempo” não dedicada ao trabalho, generalize-se essa condição para todos. E assim estava encontrado um dos fundamentos éticos para a garantia pelo Estado de uma educação universal, obrigatória e gratuita para todos, bem como para a legislação que proibiria, entre outros, o trabalho infantil e que imporia limites nos horários laborais. Também parece ser este, essencialmente, o argumento democrático e socialista, implícito na definição de Polanyi.

Uma lógica similar preside à inclusão dos “rendimentos” e da “segurança” na conceção de liberdade do autor. Na tradicional crítica socialista, a liberdade do não-proprietário era ilusória precisamente na medida em que, embora legalmente não estivesse obrigado a aceitar qualquer contrato de trabalho, nem estivesse sob coação ou risco de coação, a sua incapacidade de obter rendimentos suficientes, de forma autónoma, deixava-o, objetivamente, numa situação de dependência estrutural face àqueles que tivessem, eles sim, uma fonte autónoma de rendimentos assegurada. Antes mesmo da solução “socialista” ser imaginada, já fazia parte do pensamento social jacobino e girondino - inspirado em Rousseau (1964, pp. 391-392 e 405) - a ideia de que os desequilíbrios estruturais na distribuição da riqueza e propriedade levavam à corrupção do regime republicano pela subserviência a que condenavam os mais fracos (Gross, 1997). A insegurança (económica e jurídica) leva à dependência estrutural face àqueles que possam oferecer um remédio, ainda que parcial, a essa mesma insegurança. Não é necessário, por isso, uma vontade de dominar no dominante, para que esse poder se concretize e manifeste, constrangendo a margem de liberdade do elo mais fraco.[16] Assim, as medidas que reforcem a segurança (económica e jurídica) dos que estão inseguros - subsídio de desemprego, proteções contra o despedimento arbitrário, legalização e reforço legal dos poderes dos sindicatos[17], etc. -, aumentam o âmbito da liberdade destes, ainda que isto restrinja o poder dos que, pela sua posição estruturalmente superior no sistema económico, conseguiam antes “realizar mais coisas”, precisamente através do seu poder sobre os que dele dependiam.

Polanyi está a tentar responder, também, a uma fundamental incompletude na teoria liberal, particularmente à teoria do “dano” de John Stuart Mill, que referimos anteriormente. Segundo Mill, a intervenção da sociedade sobre os indivíduos - pelos instrumentos repressivos do Estado ou da opinião - para os constranger ou impedir de realizar o que poderiam desejar, só seria legítima quando as ações destes pudessem gerar um dano noutrem, mas não quando as ações dessas mesmas pessoas tivessem efeitos preponderantemente sobre si próprias, quando, na terminologia anlgo-saxónica, fossem self-regarding. Contudo, em muitos casos, será difícil encontrar uma ação que não tenha efeitos substanciais sobre os demais, pelo que, o que importaria seria destrinçar quando é que a coerção do Estado seria mais “agressiva” dos direitos ou da esfera de ação individual do que os efeitos expectáveis decorrentes da inação do Estado. Outro problema, relacionado com este, é o de que, sob o véu da utopia do mercado autorregulado, com demasiada facilidade se perde a noção dos efeitos perversos das nossas ações sobre terceiros que são, muitas vezes, muito indiretos. É difícil, pois, identificar a causa e o responsável individual para os efeitos graves que depois se vêm a verificar na esfera de homens concretos. Nomeadamente, as abstratas e impessoais transações que ocorrem numa economia de mercado tornam difícil identificar quem ou o quê é responsável pela situação difícil e injusta de determinadas pessoas. Isto autoriza, também, cada homem a esquivar-se aos seus deveres éticos face aos demais, caucionando um isolacionismo moral radical. Se a sociedade se organiza por meio de trocas “livres” e voluntárias entre indivíduos livres e nenhum busca prejudicar especificamente outro nessas operações, como justificar a legitimidade da intervenção e da regulação da sociedade? Os males que ocorrem são vistos apenas como subprodutos das más escolhas de homens responsáveis sob um regime de liberdade. Porque há-de, então, cada um de se preocupar com o que sucede aos demais? Polanyi dedica um apaixonado argumento em A Grande Transformação contra esta ilusão que, ao ocultar e impossibilitar a assunção da responsabilidade, impediria também a fruição de uma genuína liberdade:

Alimentava-se assim a radical ilusão de que, na sociedade humana, nada há que não seja determinado pela vontade dos indivíduos e que não possa, por conseguinte, ser removido também pela sua vontade. Estamos perante uma conceção que se limita à perspetiva do mercado, enquanto este “fragmenta” a vida em setor do produtor- que termina quando o produto chega ao mercado - e setor do consumidor, para o qual todos os bens têm origem no mercado. O primeiro extrai “livremente” o seu rendimento de mercado, o outro despende-o “livremente”, também no mercado. A sociedade, considerada no seu todo, mantém-se invisível. O poder de Estado não entrava em linha de conta, uma vez que, quanto mais fraco fosse, melhores condições teria o mercado para funcionar sem atrito. Nem os eleitores, nem os proprietários, nem os produtores, nem os consumidores podiam ser tidos por responsáveis pelas brutais restrições de liberdade acarretadas pelas situações de desemprego e privação. Um indivíduo decente podia assim imaginar-se isento de quaisquer responsabilidades pelos atos de coerção de um Estado que pessoalmente rejeitava - ou pelo sofrimento económico que se fizesse sentir na sociedade, mas do qual ele, pessoalmente, não tirara qualquer benefício. Era um indivíduo que se bastava a si próprio, não devia fosse o que fosse a ninguém e não tinha a ver com os males associados ao poder ou ao valor económico [ibid, pp. 471-472].
Como explica Paula Valderrama (2013, pp. 94-95), baseando-se nos escritos da juventude do autor, nomeadamente “Über die Freiheit” de 1927, a liberdade humana em Polanyi está intimamente ligada ao tema da responsabilidade: a liberdade genuína dos homens depende da capacidade de fazer opções com a consciência plena das consequências das mesmas sobre si e sobre os demais. O mercado obscurece os efeitos das ações individuais e não permite que os homens tomem as suas decisões com plena responsabilidade, reconhecendo os deveres que os vinculam aos demais homens.[18] “To be free, states Polanyi (ibid, p. 147), is not to be free from responsibility, but to be free through responsibility” (Valderrama, 2013, p. 95). O socialismo de Polanyi vai surgir como a oportunidade de restaurar a transparência nas relações sociais, de retirar o véu enganador do mercado, que os isola e atomiza, para revelar a verdadeira dimensão da interdependência (reforçada pela sociedade industrial) e correspondente responsabilidade moral que une todos os homens (Dale, 2010, pp. 37-38).

A expansão das liberdades através do socialismo em Polanyi

Em Polanyi, tal como em Hayek, a arquitetura do sistema económico tem implicações sérias sobre a liberdade dos cidadãos, embora as conclusões de Polanyi sejam em tudo opostas às do economista austríaco. Felizmente, e ao contrário do que sucede com a liberdade, Polanyi dá-nos uma definição de socialismo. O contraste é, de resto, marcado, face ao conceito de Hayek:

O socialismo é, essencialmente, a tendência imanente de uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução natural dos operários industriais que não encontram qualquer razão para que a produção não seja diretamente regulada em termos políticos ou para que os mercados sejam mais do que um elemento útil, mas subordinado numa sociedade livre (…) Do ponto de vista do sistema económico, corresponde (…) a uma rutura radical com o passado imediato, na medida em que recusa a tentativa de tornar os ganhos monetários privados o incentivo geral das atividades produtivas, e na medida em que não reconhece o direito dos indivíduos a disporem a título privado dos principais instrumentos da produção [Polanyi, 2012, p. 440].

A primeira diferença notável em relação à definição de Hayek é a apresentação do socialismo como “uma tendência”. Em A Grande Transformação, Polanyi entende o socialismo não como um sistema económico acabado, mas antes como um movimento num determinado sentido: o de mais regulação consciente e exógena sobre o sistema económico. Resulta daqui que o socialismo é suscetível de vários graus de realização e, possivelmente também, de várias formas ou meios de realização. Nesse sentido, para Polanyi, já será “socialista” qualquer sistema económico que não pretenda abolir o capitalismo, isto é, abolir integralmente a divisão entre capital e trabalho, mas que apenas coloque limites mais ou menos estritos à operação livre dos mercados[19] Isto seria coerente com o entusiasmo com que Polanyi parece saudar quer o New Deal rooseveltiano (Block e Somers, 2014, p. 57), quer o socialismo municipal na “Viena, a vermelha” dos anos 20 (Block e Somers, 2014, p. 123; Polanyi, 2012, pp. 524-526): estes seriam um socialismo de baixo grau ou intensidade. Ainda assim, cabe referir que essa “tendência”, por mais elástica que seja, no fundo “tende” para um sistema em que, como Polanyi diz, não se reconhece aos indivíduos “o direito (…) a disporem a título privado dos principais instrumentos de produção”. Assim, o socialismo tende, em última análise, para a coletivização dos meios de produção e para a igualdade económica.[20] Muito aqui estará dependente do que se entenda como sendo “os principais” instrumentos de produção, por contraste com os “secundários”, ou qual a linha de demarcação entre uns e outros. Em todo o caso, nada há aqui que permita dizer que o socialismo é apenas um sistema em que todos os meios de produção estão coletivizados e em que a planificação económica (quanto mais a planificação da sociedade num sentido lato) é “integral” ou carece de uma qualquer definição e imposição autoritária de um “código moral completo”, como sugere Hayek. Esta definição, por si só, já é uma resposta implícita e incompleta, decerto, a muitos dos argumentos de Hayek: o economista austríaco dirigia as suas mais duras críticas ao socialismo, identificando-o com uma planificação total e centralizada da economia e, indiretamente, da sociedade, ao passo que Polanyi, com a sua definição, torna claro que tanto o socialismo como a planificação são suscetíveis de uma realização com variados graus de intensidade e por meio de diferentes instituições.

Outro ponto que merece destaque nesta definição e que novamente vai colocar Polanyi em oposição a toda a argumentação de Hayek, é a relação estreita e positiva que o primeiro estabelece entre o socialismo e a democracia. Para Polanyi, o socialismo é uma tendência que se caracteriza por “superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática”, algo que é repetido novamente quando diz que o mercado, ainda que “útil”, deve ser um elemento “subordinado” numa “sociedade livre”. Esta relação, em que o socialismo é o modo de introduzir a democracia na sociedade e na economia, careceria de maior explicitação argumentativa que fica aqui, uma vez mais, na penumbra. O socialismo surge, para Polanyi, como o assumir pela sociedade, democraticamente organizada, e por meio do instrumento do plano, das rédeas sobre a economia. Até aqui é possível chegar, sem grande esforço interpretativo, mas ainda parece faltar algo. Sugere-se um possível caminho que poderia ter estado na mente de Polanyi: a democracia, se a entendermos como o ideal da igualdade política, implica que a sociedade, ou a maioria dos cidadãos decisores, deva ter o poder efetivo (e não apenas formal) de escolher o rumo a dar à sociedade, nomeadamente que tipo de distribuição e redistribuição de recursos pretende fazer, de que direitos as pessoas devem gozar e a que deveres devem estar adstritos. Mas nenhuma política, nem nenhum direito, é “autoexecutável”. Todos carecem de recursos, e quanto mais igualitária ou quanto mais interventiva ou transformadora for a política, mais é necessário que essa maioria disponha dos recursos necessários, que possa manejá-los em função dos seus propósitos democraticamente sufragados. Ora, a manutenção do poder económico, dos principais recursos e meios de produção, na mão de uma minoria constitui um “poder de facto” que pode servir, na prática, como força de bloqueio, como um produtor de “vetos” sobre as políticas votadas.[21] Ou seja, o capitalismo tende a criar direitos de influência política superiores para a minoria possidente e isto seria contrário à igualdade política. Este é, na essência, o tradicional “argumento democrático” a favor do socialismo, tal como o encontramos, por exemplo, em G. H. Cole (1921, pp. 12-16) e Harold Laski (1943, pp. 187-188 e p. 306). Na verdade, a influência destes socialistas britânicos sobre Polanyi é manifesta em artigos de 1934, nos quais, perante o descalabro da economia liberal, defende, como única alternativa da humanidade ao fascismo, um socialismo que busque realizar a “democracia funcional”, aproximando-se, assim, como veremos em seguida, das propostas e terminologia da corrente do “guild socialism” de Cole (Polanyi, 1934, pp. 128-129; Block e Somers, 2014, p. 76).

Um outro argumento comum e que pode também estar mais ou menos implícito no texto de Polanyi, relaciona-se com o modo como a dominação, a um nível mais “micro”, no quotidiano da vida, poderia ser exercida sobre os mais fracos, nomeadamente os desprovidos de capital, pelas minorias possidentes e que resultaria automaticamente dos desequilíbrios ou assimetrias de recursos resultantes da pura “autorregulação” dos mercados. Neste cenário de assimetrias permanentes e autorreprodutoras, as capacidades de resistência e de autodeterminação dos trabalhadores são diminutas, funcionando a insegurança do mercado laboral, a possibilidade do desemprego e da fome, como fatores constrangedores da livre escolha e da possibilidade de crescimento intelectual autónomo dos trabalhadores. Constituindo estes a maioria democrática nas sociedades industriais, eles só poderiam recuperar as rédeas da sua vida e da sua autonomia, a sua capacidade de autodeterminação, ao controlarem conscientemente, através do plano, os fatores que, de outro modo, controlam e determinam a sua vida a partir do exterior.

O modelo de socialismo de Polanyi nos anos 20

Como se explicou mais acima, no contexto posterior à revolução russa, em que o socialismo - instituído por via revolucionária ou eleitoral - se apresentava como uma possibilidade real, muitos académicos e intelectuais, particularmente nos círculos vienenses, envolveram-se nos vívidos debates que se travavam sobre a viabilidade e potencialidades de uma futura economia socialista. Nos anos 20, a problemática da “contabilidade racional” sob o socialismo estava na ordem do dia e Polanyi envolver-se-ia na mesma, sobretudo através do seu artigo “Sozialistische Rechnungslegung” (ou “contabilidade socialista”) na revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik. De algum modo, Von Mises (1935 [1920]) abrira as hostilidades contra o socialismo com o seu artigo “Die Wirtschaftsrechnung im sozialistischen Gemeinwesen”, no qual alegara a impossibilidade do socialismo, porquanto, para poder ocorrer uma contabilidade racional, seria sempre indispensável um sistema de preços que agregasse informação e coordenasse as várias avaliações subjetivas individuais (preferências) dos consumidores e isto, por sua vez, exigiria a existência de um mercado nos bens de consumo e meios de produção. Este seu argumento inicial, como vem a explicar mais tarde, era dirigido contra as economias centralmente planificadas e não contra o que designa de sistemas de “sindicalismo”(Keizer, 1987, p. 114), que não considera como verdadeiramente socialistas, por requererem ainda mercados, e entre os quais inclui a proposta de Polanyi, tal como a de Oskar Lange e Fred Taylor ( 1964 [1938]). Aquela obra de Polanyi (2016 [1922]), que se pode entender como uma resposta a Von Mises e outros economistas antissocialistas, embora tenha como foco o problema da possibilidade da contabildade numa sociedade socialista, ao dar-nos uma ideia mais clara do modelo de socialismo e modo de organização que Polanyi tem em mente, pode ajudar-nos a entender como é que este sistema económico contribuiria, no entender do autor, para a promoção da liberdade individual e, assim, indiretamente, para a própria compreensão do conceito implícito de liberdade com que este trabalha em A Grande Transformação.[22]

O sistema de socialismo funcional de Polanyi aproxima-se bastante do sistema proposto por G. D. H. Cole (1920). Os meios de produção seriam propriedade da sociedade como um todo, embora o direito de uso dos mesmos não coubesse ao governo ou à “comuna” - o equivalente órgão “político”, do qual emanaria a vontade “política” da comunidade e que representaria “the higher goals of the community” - residindo, antes, nas “associações de produção” que se organizariam de forma democrática, num sistema de conselhos, em cada oficina, escritório e “agência administrativa” (Polanyi, 2016 [1922] p. 414) do país. Estas associações individuais reunir-se-iam em associações regionais e, finalmente, no topo da pirâmide deste sistema representativo, aglomerar-se-iam sob a forma de um “congresso” nacional de associações de produção. O sistema assenta na ideia de que as pessoas devem ser representadas simultaneamente enquanto detentoras de diferentes tipos de interesse que correspondem a diferentes tipos de funções sociais ou produtivas, e, desde logo, como produtoras e como consumidoras. O sistema económico e político-representativo, note-se, não seria “estanque”, mas interligar-se-ia um ao outro, ou entrelaçar-se-ia de tal modo que as pessoas apareceriam representadas simultaneamente na sua função de produtores nas associações de produtores (cooperativas de produção) e enquanto consumidores e cidadãos (tanto por meio da “comuna” como das “associações de consumo”). Estes órgãos representativos, sobretudo as associações de produção e a comuna, envolver-se-iam em negociações e acordos e seria desta forma que definiriam os preços. A definição do valor dos salários ocorreria também por negociação entre as associações de produção e a comuna. Já os preços dos bens (de consumo) seria estabelecido pelos acordos entre as associações de produção e as associações de consumo (ibid, p. 416). Neste sentido, neste sistema, o negociado parece prevalecer sobre o determinado unilateral e centralmente, pelo que Polanyi anuncia, desde o início, que “in a certain sense buying and selling at negotiated prices, and therefore if you will a ‘market’ also exists in the guild socialist economy” (ibid, p. 398). Porém, como explica, ainda na mesma página, algumas linhas abaixo, tal não deve ser visto como contraditório, pois the opposition of socialism versus capitalism is no longer reduced to the stereotype of the marketless economy versus the market economy. After all, one should no more accept that contemporary capitalism represents a free exchange economy than believe that a large-scale economy can exist without some exchange. In fact, the distinction between socialist and capitalist economies lies elsewhere.

Na verdade, como sustenta Gareth Dale (2010, p. 27), é preciso não esquecer que, ao contrário do que sucede num sistema capitalista, os meios de produção são propriedade da sociedade no conjunto; não é possível a apropriação privada do sobreproduto sob a forma de lucro[23]; e a palavra final sobre os salários, principais matérias-primas e bens essenciais é definida “politicamente” e não num mercado anónimo por forças impessoais e incontroladas. Através destas negociações e discussões entre vários corpos representativos dos interesses, os cidadãos ficariam com uma ideia clara dos verdadeiros “custos totais”, tanto “naturais” como sociais (aquilo que normalmente origina as “externalidades” num sistema capitalista), dos seus ideais; do que optar por cada alternativa significaria em termos de distribuição de fardos e vantagens. Esta transparência ou supervisão dependeria igualmente da manutenção de um sistema de contabilidade, no seio das associações de produtores, que operasse uma separação rigorosa entre os custos propriamente técnicos ou naturais e os custos sociais, imputáveis à comuna. Assim, ficaria claro aquilo que é imposto ou limitado pela “natureza” e pelo grau de desenvolvimento técnico-tecnológico e aquilo que é imposto ou limitado pela vontade política e normas morais da comunidade. Portanto, o sistema económico-político, por si próprio, pela sua dinâmica decisória, tornaria transparentes os custos sociais, os riscos morais de cada opção e convidaria os seus membros a supervisionar e decidir o seu destino coletivo de forma realmente livre, ou seja plenamente informada e socialmente responsável.[24]Restaurar-se-iam também, sob esta forma de socialismo, relações sociais transparentes, conscientes e imediatas (Dale, 2010, p. 38), e não dominadas por forças impessoais (“procura e oferta”), mediadas pelo mercado e pelas relações de troca entre mercadorias.[25] Eliminar-se-ia também o estímulo inerente à sociedade de mercado para cada ser-humano se orientar para o seu benefício (exclusivamente) pessoal em detrimento dos demais.
Numa nota de rodapé, Polanyi sustenta que a ideia fundamental, subjacente à arquitetura constitucional destas formas de organização funcional, é a de que distinct functional representative organs (associations) of the same individuals can never fall into irresolvable conflict with one another. For case-by-case resolution of conflicts, provision is made for either a common committee of the commune and the production association, or a kind of higher constitutional court - coordinating organs, which, however, do not have legislative authority and have only limited executive authority (adjudication, security service, etc) [ibid, p. 414].

Naturalmente, não se exigiria, quando o objetivo deste seu artigo era o de defender a possibilidade de uma contabilidade racional sob o socialismo, que o autor desenhasse em detalhe os mecanismos de resolução de conflitos de interesse na sua sociedade de socialismo funcional. Contudo, o que já parece mais problemático é presumir a relativa “raridade” e inocuidade dos conflitos de interesse, até porque tais conflitos poderiam ter consequências em termos do ideal de liberdade defendido por Polanyi. Com efeito, se se afigura compreensível presumir que alguns tipos de conflito desapareceriam com a abolição do capitalismo e da propriedade privada dos meios de produção, os interesses defendidos pelos vários órgãos representativos poderiam, ainda assim, divergir grandemente e o principal problema que poderia advir daqui - algo que se poria mais tarde em relação ao socialismo de mercado - é o de alguns desses órgãos - e os interesses seccionais ou “particulares” (por comparação com os da comunidade como um todo) que eles representariam - poderem, por circunstâncias várias, vir a adquirir um poder negocial muito desigual, ou uma capacidade para fazer a sua vontade predominar de forma indevida e até, eventualmente, arbitrária sobre os demais. Isto, por sua vez, seria suscetível, potencialmente e pelo menos no longo prazo, de levar a situações de “dominação” e constrição de liberdade da maioria por uma minoria poderosa (por exemplo: os trabalhadores de um ramo de produção absolutamente central na economia nacional, da qual todas as demais associações de produção estivessem dependentes). E, inversamente, também se manteria, como em qualquer sistema democrático, a possibilidade de uma maioria, de forma egoísta ou pouco solidária, em virtude de estereótipos negativos, colocar fardos injustamente pesados sobre uma minoria - os quais, no limite, poderiam novamente criar desiguais grau de liberdade. A resposta de Polanyi, não muito satisfatória, seria provavelmente a de que essas tensões entre diferentes interesses e órgãos refletiriam tensões existentes dentro dos próprios indivíduos (pois todos seriam simultaneamente consumidores e produtores) que, de resto, participariam enquanto membros nas organizações representativas dessas mesmas funções e interesses (Dale, 2010, p. 27).

Os riscos da planificação e da não planificação

Polanyi vê no socialismo uma derradeira reação à anterior tentativa de desincrustração da economia - e portanto, parte do “duplo movimento” -; como um modo de reincrustação da economia e do mercado na sociedade humana, resgatando o controlo da moeda, da terra e do trabalho, as mercadorias fictícias, das mãos do mercado e devolvendo-o à sociedade (Polanyi, 2012, pp. 462-463). Partindo de um ponto de vista marcadamente individualista, Polanyi sustenta, ainda, que esta reincrustação deverá assumir uma feição democrática e igualitária, aproveitando os legados valiosos que a evolução histórica ofereceu à humanidade - em particular as preciosas liberdades civis e políticas que foram sendo conquistadas à medida que o projeto liberal-capitalista avançava por meio de revoluções e reformas políticas.

As liberdades e direitos, parece pressupor Polanyi, entrelaçam-se entre si, formando um verdadeiro sistema, em que cada um serve como garantia dos demais: como nenhum direito é “autoexecutável”, nem imune às resistências e boicotes que lhes sejam movidos por fortes interesses, mesmo as liberdades civis, por exemplo, dependem do acesso igualitário a um sistema de justiça independente[26] - o que implica a mobilização de recursos económicos substanciais. Ainda que, por exemplo, um direito à liberdade de expressão esteja consagrado, bem como um direito ao não encarceramento arbitrário, perante uma instância concreta em que estes direitos sejam violados por um governo, não haverá como impedir esta e subsequentes violações desse direito se não existir forma de contestar esta atuação do governo judicialmente, perante um tribunal, de iure e de facto, independente do poder político, que poderá decretar a ilegalidade do encarceramento e pôr fim ao mesmo. Isto, por sua vez, depende de garantias institucionais: da constituição de um poder judicial independente, capaz de resistir às pressões de governos e interesses poderosos, e de uma arquitetura do sistema de justiça - incluindo o ministério público, polícia criminal, e outras instâncias - que seja propícia à efetividade deste direito ao acesso à justiça. Contudo, as coisas não terminam aqui, uma vez que este controlo de última instância pode falhar. Os tribunais - ainda que independentes dos governos - podem, autonomamente, violar, por meio de interpretações inadequadas ou arbitrárias, direitos consagrados. A resistência, ainda neste caso, é possível, até certo ponto, se se puder recorrer à denúncia e à indignação coletiva, o que remete para a relevância do pluralismo político e da liberdade de expressão, numa dimensão não apenas negativa, mas também positiva. Da mesma forma, a autonomia dos homens depende da sua capacidade de resistência aos poderes existentes “no mercado” e esta dos direitos sociais e económicos que lhes confiram a necessária segurança económica (fontes autónomas de rendimento) e jurídica. Este ponto, embora importante, permanece essencialmente implícito em Polanyi. Na economia e sociedade do século xix, diz-nos, “[a]s liberdades civis, a empresa privada e o sistema salarial fundiram-se num padrão de vida favorável à liberdade moral e à independência de espírito. Aqui, uma vez mais, as liberdades jurídicas e efetivas misturaram-se num fundo comum, cujos elementos não se deixam separar nitidamente”. (Polanyi, 2012, p. 467). No entanto, apenas alguns destes direitos (as liberdades civis) “pertenciam às tradições mais preciosas do Renascimento e da Reforma” e, quanto a esses, e apenas a esses, “[t]eremos de [os] tentar salvaguardar por todos os meios no nosso poder” do soçobrar da economia de mercado (ibid). E tratar-se-á não apenas de salvá-los desse descalabro, destacando-os do seu lastro pernicioso[27], mas de recombiná-los, deliberadamente, com novos direitos (sociais, económicos e culturais) e instituições, por forma a produzir um sistema de liberdades mais alargado e mais justo. Isto só ocorrerá se houver um esforço consciente, deliberado, de atingir esses fins, de uma maior liberdade e paz, no contexto de um movimento rumo ao socialismo:

O fim da economia de mercado poderá tornar-se o início de uma era de liberdade sem precedentes. A liberdade jurídica e efetiva poderá tornar-se uma condição mais geral do que nunca; a regulação e o controlo poderão realizar a liberdade não só para uns quantos poucos, mas para todos - uma liberdade que não será um privilégio (…), mas um direito imperativo que irá muito mais longe do que a simples esfera política (…) Assim, as antigas liberdades e antigos direitos cívicos combinar-se-ão com o fundo da nova liberdade engendrada pelos ócios e pela segurança que a sociedade industrial poderá pôr ao alcance de todos [ibid, p. 469].

Os perigos, contudo, abundam, na centralização de poder que inevitavelmente ocorre com a planificação e Polanyi está plenamente consciente dos avisos de Hayek e de outros:

quanto à liberdade pessoal, esta existirá na medida em que criarmos novas salvaguardas que garantam e, na realidade, assegurem a sua extensão. O indivíduo tem de ser livre de seguir a sua consciência sem recear os poderes que tenham a seu cargo tarefas administrativas em certos campos da vida social. A ciência e as artes deverão ser confiadas sempre à guarda da república das letras. A imposição coerciva não deverá ser jamais absoluta: ao ‘objetor’ deverá ser assegurado um nicho para onde se possa retirar -, ou uma ‘segunda escolha’ que lhe permita viver a sua existência. O direito à não-conformidade deverá ser o selo que autentica uma sociedade livre. Cada passo no sentido da integração da sociedade deveria ser também acompanhado por um aumento da liberdade - os passos no sentido do plano deveriam incluir assim um reforço dos direitos do indivíduo na sua existência social. Os seus direitos imprescritíveis devem ser garantidos pela lei até mesmo frente aos poderes supremos, sejam estes pessoais ou anónimos. A verdadeira resposta frente à ameaça da burocracia enquanto fonte de abuso do poder é criar espaços de livre-arbítrio protegidos por leis inabaláveis. Pois por mais generosa que seja a devolução do poder praticada, terá lugar um reforço do poder ao nível do centro, acarretando, portanto, riscos para a liberdade individual. O que vale até mesmo para os órgãos das próprias comunidades democráticas, bem como para as associações profissionais e sindicatos, que têm por função proteger os direitos dos seus membros individualmente considerados. Com efeito, a sua dimensão pode ter por resultado fazer com que o indivíduo se sinta impotente (…) Uma simples declaração de direitos é insuficiente - são necessárias instituições que tornem os direitos eficazes. O habeas corpus não deve ser o último dos dispositivos constitucionais a implantar na lei a liberdade pessoal. É necessário acrescentar à Bill of Rights outros direitos dos cidadãos ainda por reconhecer. Os direitos proclamados deverão prevalecer sobre quaisquer autoridades - estatal, municipal, ou profissional. A lista das novas garantias deveria ter à cabeça o direito do indivíduo - independentemente das suas convicções religiosas ou políticas, bem como da sua raça ou cor - a um posto de trabalho nas condições estabelecidas pela lei. O que implica também garantias contra a perseguição, ainda que em formas ínvias [pp. 467-469].

Se a centralização de poder político e económico gera potencial vulnerabilidade para o cidadão individual, importa reforçar a independência desse cidadão individual por meio de direitos que o tornem “invulnerável” ou, pelo menos, suficientemente capaz de sobreviver e resistir às pressões dos titulares do(s) poder(es). Daí o exemplo - um apenas dos muitos que Polanyi poderia ter imaginado - de um direito universal a um emprego (poder-se-ia imaginar, alternativamente, um direito incondicional a um rendimento) a que nenhum poder pudesse resistir e a importância dada às associações de classe e à “República das Letras” como instâncias de defesa do indivíduo, mas também instâncias contra as quais importa defender o indivíduo. Daí o facto de, como se pôde ver na secção anterior, Polanyi, sem nunca demonstrar qualquer preconceito anti-estatista (bem pelo contrário), sempre ter mostrado especial interesse pelas formas de socialismo que buscavam descentralizar e democratizar a posse e gestão dos meios de produção em pequenas unidades como sucedia nas propostas do “guild socialism”. Daí também fazer do cooperativista Owen - remetido para a categoria desdenhada do “socialismo utópico” pelo marxismo - o seu improvável herói do socialismo novecentista, um autor realista e capaz de compreender os desafios criados pela sociedade industrial. Como antes se referiu, Polanyi vê num socialismo profundamente comprometido com a democracia e os direitos a oportunidade para realizar de uma forma genuína o projeto individualista de emancipação e florescimento humano, em que a liberdade (ou as liberdades) de cada um assenta na sua corresponsabilização pela(s) liberdade(s) e direitos dos demais.[28]

Naturalmente, os direitos e instituições imaginados por Polanyi como garantias do indivíduo perante os planos da coletividade e o reforço das autoridades surgirão sempre como normas legais ou costumeiras, e todas as normas escritas e todas as instituições podem ser violadas quando contra elas conspirem interesses e ideologias contrárias às mesmas ou se verifique uma mera indiferença. Mas Polanyi provavelmente objetaria que este não é um problema ou vulnerabilidade de uma sociedade socialista ou social-democrata apenas, mas de qualquer tipo de sociedade. Nenhum direito que afronte algum interesse ou poder (privado ou público) resistirá à falta de vontade política ou indiferença social em defendê-lo. Por isso mesmo é que Polanyi insiste no carácter voluntário deste processo, na necessidade da planificação dirigida deliberadamente, conscientemente, para a obtenção dessa “nova liberdade” e para a preservação de antigos e novos direitos. Sem esse compromisso ideológico, qualquer projeto sucumbirá.[29] Com ele, pelo contrário, a liberdade seria sempre assegurada.[30] Neste ponto, aliás, coloca-se contra qualquer ideia de um estrito determinismo económico e histórico que criticava no marxismo da sua época: o socialismo não viria, nem muito menos as liberdades que ele prometia, inevitavelmente, pela dinâmica das forças históricas, sem a vontade determinada dos homens em realizar este ideal emancipador na sua plenitude. Qualquer quietismo ou passividade intelectual como os que identificava em Kautsky seriam reprováveis, portanto (Dale, 2014, pp. 40 ss).[31] O seu livro pretende mostrar o poder gerador (para o bem e para o mal) das ideias. O que é preciso deixar de lado é a ilusão de que as coisas se “compõem” por si mesmas. No fundo, A Grande Transformação é um contributo apaixonado no sentido de tentar modelar, pelo poder das ideias, um pouco da sociedade do futuro. O seu militante antideterminismo e otimismo poderão ser acusados de ingénuos. As suas conceções de socialismo e liberdade podem, por certo, ser consideradas imprecisas, e vagas quanto à especificação das instituições que os realizariam e à sua interligação. Neste mesmo contexto, é igualmente censurável a ausência ou elipse de passos argumentativos importantes e a linguagem por vezes francamente obscura. Contudo, ainda assim, a sua tentativa de síntese e interligação dos valores do socialismo, liberdade e democracia, aliada à crítica da “utopia da sociedade de mercado autorregulado” como incapaz de realizar os elevados ideais do próprio liberalismo mantêm validade e relevância na atualidade, particularmente perante o contínuo agravamento dos problemas gerados pelo triunfo do capitalismo neoliberal.

Hayek, pelo contrário, embora centre corretamente a sua conceção de liberdade nos efeitos psicológicos, invisíveis, mas profundos e eficazes, que constrangem a ação dos homens, mesmo na ausência de atos de coerção, ignora os poderes arbitrários que resultam da “natural” concentração de recursos económicos em determinadas classes[32] e da ausência de autonomia económica dos não proprietários. Do mesmo modo, ao mesmo tempo que identifica corretamente a ameaça à liberdade individual - isto é, à capacidade individual de estabelecer e realizar objetivos próprios no contexto de um determinado plano pessoal de vida - que decorreria de um Estado que dispusesse da prerrogativa de agir de forma imprevisível, ad hoc e ilimitada, sobre a economia e sociedade para realizar os seus propósitos, o economista austríaco revela-se incapaz de reconhecer como a imprevisibilidade proveniente dos riscos das operações de um mercado pouco ou nada regulado tem idênticos efeitos sobre a capacidade dos homens em prever e realizar os seus planos de vida. Como diria Polanyi dos liberais em geral, Hayek optou por se recusar a reconhecer a realidade da sociedade e essa postura revelar-se-á sempre perigosa para a liberdade que pretendia defender.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTOTLE (1992), The Politics, Londres, Penguin.         [ Links ]

BAMAT, J. (2017), “France’s Macron ‘to end state of emergency’, but keep its anti-terror powers”. France 24. Disponível em http://www.france24.com/en/20170609-france-state-emergency-macron-police-powers-civil-liberties-terrorism

BARNAVE, A. (1989[1791]), “Discours sur la révision du cens électoral ”. In Orateurs de la Révolution Française, Paris, Gallimard, pp. 42-50.

BARTELS, L. M. et al. (2005), “Inequality and American governance”. In L. R. Jacobs and T. Skocpol (eds.), Inequality and American Democracy, What we Know and What we Need to Know, Nova Iorque, Russell Sage Foundation, pp. 88-155.

BERLIN, I. (2002), Liberty, Incorporating Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

BLOCK, F., Somers, M. (2014), The Power of Market Fundamentalism, Karl Polanyi’s Critique, Cambridge (Mass), Harvard University Press.

DAGGER, R. (2006), “Neorepublicanism and the civic economy”. Philosophy, Politics and Economics, 5, pp. 151-173.

COLE, G. D. H. (1920), Guild Socialism Re-stated, Londres, Leonard Parsons.         [ Links ]

DALE, G. (2010), Karl Polanyi, the Limits of the Market, Cambridge, Polity Press.         [ Links ]

DALE, G. (2014), “Karl Polanyi in Vienna, guild socialism, Austro-Marxism and Duczynska’s alternative”. Historical Materialism, 22(1), pp. 34-66.

FRIEDEN, J. (2006), Global Capitalism, its Fall and Rise in the Twetieth Century, Nova Iorque, W. W. Norton & Company.         [ Links ]

GIDDENS, A. (1998), The Third Way: the Renewal of Social Democracy, Cambridge, Polity.         [ Links ]

GRAY, J. (1991a), “Hayek on liberty, rights and justice”. In Essays in Political Philosophy, Londres, Routledge, pp. 89-102.

GRAY, J. (1991b) “On negative and positive liberty”. In Essays in Political Philosophy, Londres, Routledge, pp. 45-68.

GRAY, J. (1991c), “J. S. Mill and the future of liberalism”. In Essays in Political Philosophy, Londres, Routledge, pp. 1-9.

GREENWALD, G. (2014), No Place to Hide: Edward Snowden, the NSA, and the US Surveillance State, Nova Iorque, Metropolitan Books.         [ Links ]

GROSS, J.-P. (1997), Fair Shares for All, Jacobin Egalitarianism in Practice, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

HABIBI, D. (1995), “The positive/negative liberty distinction and J. S. Mill’s theory of liberty”. ARSP: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 81(3), pp. 347-368.

HAYEK, F. (1976), The Road to Serfdom, Chicago, The University of Chicago Press.         [ Links ]

HEATH, A., Jowell, R., Curtice, J. (2001), The Rise of New Labour, Party Policies and Voter Choices, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

HOBBES, T. (1968), Leviathan, Londres, Penguin Books.         [ Links ]

JACOBS, L. R., Skocpol, T. (2005), “American democracy in an era of rising inequality”. In L.  R. Jacobs, T. Skocpol (eds.), Inequality and American Democracy, what we Know and what we Need to Know, Nova Iorque, Russell Sage Foundation, pp. 1-18.

KEIZER, W. (1987), “Two forgotten articles by Ludwig von Mises on the rationality of socialist economic calculation”. The Review of Austrian Economics, 1, pp. 109-122.

LANGE, O., Taylor, F. M. (1964 [1938]), On the Economic Theory of Socialism, Nova Iorque, University of Minnesota Press.         [ Links ]

le GRAND, J. (2003), Motivation, Agency, and Public Policy. Of Knights and Knaves, Pawns and Queens, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

LEYS, C. (2001), Market-Driven Politics, Neoliberal Democracy and the Public Interest, Londres, Verso.         [ Links ]

MILL, J. S. (1976), On Socialism, Bufallo, Prometheus Books.         [ Links ]

MILL, J. S. (1998), On Liberty and Other Essays, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

PEART, S. (ed.) (2015), The Collected Works of F.A. Hayek. Hayek on Mill, The Mill-Taylor Friendship and Related Writtings, vol. XVI, Chicago, Chicago University Press.         [ Links ]

PETTIT, P. (1997), Republicanism, a Theory of Freedom and Government, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

PIKETTY, T. (2014), O Capital no Século xxi, Lisboa, Temas e Debates.         [ Links ]

POLANYI, K. (1934), “Fascism and Marxian terminology”. New Britain, 20, pp. 128-129.

POLANYI, K. (1935), “The essence of fascism”. In J. Lewis et al. (ed.), Christianity and the Social Revolution, Nova Iorque, Ayer Co. Pub., pp. 359-394.

POLANYI, K. (1944), The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time, Nova Iorque, Farrar & Rinehart.         [ Links ]

POLANYI, K. (1947), “Our obsolete market mentality”. Commentary, 3, pp. 109-117.

POLANYI, K. (2012), A Grande Transformação, Lisboa, Edições 70.         [ Links ]

POLANYI, K. (2014a), “Economic history and the problem of freedom”. In G. Resta, M. Catanzariti (eds.), For a New West, Essays 1918-1958, Cambrigde, Polity, pp. 39-46.

POLANYI, K. (2014b), “Economics and the freedom to shape our social destiny”. In G. Resta, M. Catanzariti (eds.), For a New West, Essays 1918-1958, Cambrigde, Polity, pp. 33-38.

POLANYI, K. (2016 [1922]), “Socialist Accounting” by Karl Polanyi: with preface “Socialism and the embedded economy”. Theory and Society, 45(5), pp. 385-427.

ROGAN, T. (2013), “Polanyi at the margins of English socialism, 1934-1947”. In Modern Intelectual History, 10 (2), pp. 317-346.

ROTHBARD, M. (1998), The Ethics of Liberty, Nova Iorque, New York University Press.         [ Links ]

ROUSSEAU, J.-J. (1964), “Du contrat social ”. In Du contrat social, écrits politiques, Paris, Gallimard, pp. 347-470.

SIEYÈS, E.-J. (1989), ”Préliminaire de la constitution, reconaissance et exposition raisonnée des droits de L’homme et du citoyen”. In F. Furet e R. Halévi (eds.), Orateurs de la révolution française, tomo 1, Les Constituants, Paris, Gallimard.

SIEYÈS, E.-J. (1994), “Dire sur la question du veto royal”. In Écrits Politiques, Le Mesnil sur L’Estrée, Paris, Editions des Archives Contemporaines, pp. 229-244.

SKINNER, Q. (2008), Hobbes and Republican Liberty, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

STREECK, W. (2013), Tempo Comprado, a Crise Adiada do Capitalismo Tardio, Coimbra, Conjuntura Actual Editora.         [ Links ]

THATCHER, M. (1993), The Downing Street Years, Londres, Harper Collins Publishers.         [ Links ]

THOMAS, A. (2017), Republic of Equals: Predistribution and Property-owning Democracy, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

VALDERRAMA, P. (2013), “Planning for freedom, Hayekian and Polanyan policies in Latin America”. International Journal of Polical Economy, 41, pp. 88-105.

VERBA, S., Schlozman, K. L. and Brady, H. E. (2004), “Political equality: what do we know about it?”. In K. M. Neckerman (ed.), Social Inequality, Nova Iorque, Russell Sage Foundation, pp. 635-666.

von MISES, L. (1935), “The economic calculation in the socialist commonwealth”. In F. A. Hayek (ed.), Collectivist Economic Planning, Londres, Routledge & Keegan.

 

Recebido a 30-11-2016.

Aceite para publicação a 27-04-2018.

 

[1] Possivelmente até superior, devido aos conhecidos problemas de opacidade causados pelos paraísos fiscais que, segundo um autor, levariam a que ativos financeiros no valor de cerca de 10% do pib mundial não estejam registados nem se saiba quem são os seus proprietários (Piketty, 2014, p. 695).

[2] Wolfgang Streck considera este movimento como expressão de uma “revolta do capital” contra a economia mista (mixed economy) do período pós-guerra” (Streeck, 2013, p. 28). O capital procurou sair do “contrato social” do pós-1945 que fora obrigado ou coagido a aceitar e que representava um conjunto de concessões muito limitadoras dos seus lucros e das desigualdades: “O capitalismo após 1945 encontrava-se numa posição defensiva em todo o mundo. Tinha de se esforçar em todos os países do Ocidente (…) para conseguir prolongar e renovar a sua licença social, face a uma classe trabalhadora fortalecida na sequência da guerra e da concorrência de sistemas” (ibid, p. 56). Suprimido, em 1990, o sistema rival com que competira, derrotada a resistência sindical (pelas reformas neoliberais dos anos 80 e 90), foram removidos todos os contrapesos ao poder do capital.

[3] Wolfgang Streeck dá a esse processo de “desdemocratização da economia” e de “deseconomização da democracia” o sugestivo nome de “hayekização do capitalismo europeu” (Streeck, 2013, pp. 160-161), assinalando o papel instrumental desempenhado pelas estruturas da União Europeia, nomeadamente o tjce, no acelerar e consolidar deste mesmo processo, ao permitir suplantar as veleidades de governos nacionais que se sentissem tentados a ceder às pressões igualitárias dos seus eleitorados - uma ideia que já havia sido aventada pelo próprio Hayek em 1939 (Streeck, 2013, pp. 153 e ss.).

[4] Neste ponto, pelo menos, Hayek, aproxima-se das conceções republicanas de liberdade. John Gray (1991a, pp. 89-92) já assinalara que Hayek, mesmo em The Constitution of Liberty, não se atinha a uma conceção estritamente negativa de liberdade. Liberdade, em Hayek, é o estado em que se encontra aquele que não é coagido por uma “vontade arbitrária”. Naturalmente, como não basta a coerção (deliberada) para instituir a não-liberdade, tudo girará em torno, portanto, de definir o que constitui uma vontade arbitrária ou o que significa estar sujeito, ou não, a tal vontade arbitrária. Uma pessoa pode escapar a uma sujeição à não-liberdade se, e apenas se, obedecer apenas a um conjunto de leis gerais e abstratas iguais para todos. Muito do seu The Road to Serfdom passa por tentar explicar de que forma alguns tipos de planificação social - algo que sempre existirá - implicam a violação desta condição enquanto outras não. Apesar deste formalismo (já que se pode facilmente conceber um regime baseado no “rule of law” e em normais gerais e abstratas que seja violador de liberdades e direitos fundamentais) não parece incorreto dizer que o critério da “sujeição à vontade arbitrária” e a importância dada, pelo menos na sua obra de 1944, aos efeitos restritivos da liberdade que operam ao nível psicológico, interno, implicam alguma aproximação às conceções de liberdade republicanas (Gray fala mesmo, quiçá exageradamente, de um “libertarianismo positivo” em Hayek), por oposição às mais limitadamente negativas.

[5] O grande problema aqui é que aquilo que vai poder e deve ser contado como um dano, ou um dano relevante, é, em última análise, a lesão de um interesse fundamental da pessoa em causa. Isto indica-nos, pois, que a noção de “harm”, ou dano, pressupõe uma prévia operação de definição do que deve contar como constituindo um interesse fundamental e legítimo dos seres humanos. Esta definição, porém, dificilmente poderá ser feita em termos puramente “subjetivos”. Isto é, os interesses fundamentais não se podem resumir apenas e só às preferências atuais das pessoas em causa.

[6] “All that makes existence valuable to any one, depends on the enforcement of restraints upon the actions of other people. Some rules of conduct, therefore, must be imposed, by law in the first place, and by opinion on many things which are not fit subjects for the operation of law” (Mill, 1998, p. 9).

[7] Em 1789, na Assembleia dos Estados Gerais, Sieyès fazia questão de sublinhar, naquela que foi a sua proposta de declaração de direitos do homem e do cidadão, que: “la garantie de la liberté ne sera bonne que quand elle sera suffisante et elle ne sera suffisante que quand les coups qu’on peut lui porter, seront impuissants contre la force destinée à la defender. Nul droit n’est complètement assuré, s’il n’est protégé par une force relativement irrésistible” (Sieyès, 1989, p. 1010). A liberdade é “plus pleine et plus entière”, afinal de contas, “dans l’ordre social”, isto é, sob a proteção de um Estado com os meios para reprimir os que queiram ultrapassar os limites legítimos da liberdade individual para atingir a liberdade de outrem. O contrato social e o Estado que dali emerge não constituem uma perda de liberdade; significam antes, na realidade, o ganho de liberdade, da liberdade possível e legítima (Sieyès, 1989, pp. 1008-1010).

[8] Hayek revelou um intenso e contínuo interesse na obra e biografia de Stuart Mill a ponto de ser considerado, a dado momento, um dos especialistas no tema. A sua frustração com a simpatia progressivamente demonstrada por Mill face ao socialismo e a autores “continentais” levaram Hayek a explorar a influência determinante que Harriett Taylor, sua companheira, teria tido sobre o liberal inglês na sua obra biográfica de 1951 John Stuart Mill and Harriet Taylor e em várias obras subsequentes (compiladas em Peart, 2015). Não obstante não negar a filiação de Mill numa respeitável tradição liberal, Hayek considerou que este teria aberto as portas à perversão da ideia de liberdade ou à sua contaminação, na Inglaterra, por elementos “coletivistas”.

[9] “The common features of all collectivist systems may be described (…) as the deliberate organization of the labors of society for a definite social goal (…) The various kinds of collectivism, communism, fascism, etc, differ among themselves in the nature of the goal toward which they want to direct the efforts of society. But they all differ from liberalism and individualism in wanting to organize the whole of society and all its resources for this unitary end and in refusing to recognize autonomous spheres in which the ends of the individual are supreme” (Hayek, 1976, p. 56). E, conclui o autor: “It presupposes, in short, the existence of a complete ethical code in which all the different human values are allotted their due place” (Hayek, 1976, p. 57).

[10] “It is important not to confuse opposition against this kind of planning with a dogmatic laissez faire attitude. The liberal argument is in favour of making the best possible use of the forces of competition as a means of co-ordinating human efforts, not an argument for leaving things just as they are. (…) It does not deny, but even emphasizes, that in order that competition should work beneficially, a carefully thought-out legal framework is required and that neither the existing nor the past legal rules are free from grave defects. Nor does it deny that, where it is impossible to create the conditions necessary to make competition effective, we must resort to other methods of guiding economic activity” (Hayek, 1976, p. 36).

[11] É de notar que no prefácio de 1976 à sua obra, Hayek, “emancipado” do ambiente algo hostil em que escrevera originalmente a obra, vai considerar que também a social-democracia fortemente redistributiva, como praticada nos países escandinavos, padecia dos mesmos riscos antiliberais do antigo socialismo: “(…) socialism has come to mean chiefly the extensive redistribution of incomes through taxation and the institutions of the welfare state. In the latter kind of socialism the effects I discus in this book are brought about more slowly, indirectly, and imperfectly. I believe that the ultimate outcome tends to be very much the same, although the process by which it is brought about is not quite the same as that described in this book” (Hayek, 1976, pp. xx-xxi).

[12] A autoridade encarregue da planificação económica, segundo Hayek, “(…) cannot tie itself down in advance to general and formal rules which prevent arbitrariness. It must provide for the actual needs of people as they arise and then choose deliberately between them. When the government has to decide how many pigs are to be raised, or how many buses are to be run (…) these decisions cannot be deduced from formal principles or settled for long periods in advance”.

[13] Da mesma forma o “motivo económico”, ou um tipo de racionalidade humana centrada no interesse individual e utilitarista dos homens, típica das sociedades capitalistas (e sobretudo dos modelos económicos da economia contemporânea), é tudo menos “natural” ao homem, mas apenas o produto deste tipo de sociedade e das instituições que pressupõem tal “racionalidade” e a estimulam (Polanyi, 1947, pp. 111 e 114).

[14] A organização capitalista da economia segundo Mill, era condenável pelas desigualdades injustas - injustas porque não tendo origem em qualquer mérito dos seus beneficiários (Mill, 1976, p. 70) - que gerava e pelo perigo que o poder económico concentrado poderia implicar para a liberdade. Contudo, era-o também e fundamentalmente por não conceder reais oportunidades aos trabalhadores para exercerem qualquer poder de escolha sobre o seu trabalho e vida, obstaculizando o seu autodesenvolvimento como seres plenamente autónomos e responsáveis (Gray, 1991c, p. 5).

[15] Convém reconhecer que esta crítica de Polanyi não é inteiramente válida em relação a Hayek como tentámos demonstrar e como a leitura do capítulo iii de The Road to Serfdom cremos demonstrar (Hayek, 1976, pp. 35-40).

[16] Mais contemporaneamente, assiste-se a um reviver de similares preocupações entre alguns defensores de uma teoria republicana da liberdade, assente nas ideias de não-dominação (ausência de um poder de interferência arbitrário) (Dagger, 2006). A teoria original de Pettit (1997), no entanto, parece algo restritiva quanto ao grau de igualdade económica necessária para realizar o ideal republicano (Pettit, 1997, pp. 113-119 e 158-170).

[17] No âmbito do republicanismo atual, tem vindo a ser veiculada a ideia de que um rendimento básico universal poderia desempenhar a mesma função (e de modo mais eficaz e menos paternalista) das medidas atrás referida, a saber, a de constituir uma base material para a não-dominação dos indivíduos, particularmente daqueles que, sendo desprovidos de capital, de outro modo estariam dependentes do mercado de trabalho e das instáveis relações de força entre capital e trabalho. Esta ideia, contudo, está longe de ser pacífica, mesmo entre os autores que se inscrevem genericamente na corrente do republicanismo (Thomas, 2017).

[18] O capitalismo, ou a sociedade de mercado, desumanizaria e alienaria os homens e as relações sociais, subsumindo-as a mercadorias, a operações de mercado e categorias puramente económicas. Como diria em “Über die Freiheit”, na tradução de Gareth Dale: “[capitalism] deprives human beings of direct, personal relationships with other individuals, unmediated by exchange or money, [a] ‘fictitious commodity’ which reduces them into abstract, functional units (…). Useful goods are objectified into commodities; tools into Capital; human needs into demand; creative human activity into labour power; the personal relationship of individuals co-operating with one another into the impersonal exchange-value of the goods produced by them… The laws governing the exchange relationship of commodities dominate man” (Dale, 2010, p. 35).

[19] “ (…) o fim da sociedade de mercado de modo nenhum significa a ausência de mercados. Estes continuarão, sob várias formas, a assegurar a liberdade do consumidor, a indicar as modificações da procura, a exercer a sua influência sobre os rendimentos do produtor e a servir de instrumentos de contabilidade, embora deixando por inteiro de ser órgãos de um autorregulação da economia” (Polanyi, 2012, p. 463).

[20] O programa socialista, portanto, não começa nem termina na coletivização dos meios de produção (muito menos todos, como o adjetivo “principais” deixa transparecer). Contudo, não será correto afirmar que Polanyi entende por socialismo apenas, ou que apenas reconhece legitimidade ou validade ética, a formas económicas social-democratas. A Grande Transformação, neste aspeto, pode induzir em erro, apontando para uma visão muito moderadamente social-democrata, que não corresponde ao radicalismo real do autor. Na verdade, em 1935, Polanyi revelava-se muito mais assertivo, concluindo que “[t]he extension of the democratic principle to economics implies the abolition of the private property of the means of production, and hence the disappearance of a separate autonomous economic sphere: the democratic political sphere becomes the whole of society. This is socialism” (Polanyi, 1935, p. 392). De resto, como se verá mais adiante, podemos ter uma ideia mais clara da sua variante preferida de socialismo “funcional” ou descentralizado num artigo publicado na Áustria, ainda em 1922 (Polanyi, 2016 [1922]).

[21] Pelo contrário, “[t]he hegemony of a self-regulating economy free of government ‘meddling’ is, in the end, an assertion that the preferences of voters in democratic politics must be ignored when they conflict with the logic of a self-correcting market economy” (Block e Somers, 2014, p. 41).

[22] Convém alertar, todavia, que, não tendo Polanyi posteriormente escrito com similar detalhe sobre o seu modelo (normativo) de socialismo ou sociedade preferido, e atendendo aos termos bem mais vagos empregues em A Grande Transformação, é muito provável que o seu pensamento também aqui tenha sofrido mutações posteriores, tendo em conta até todas as modificações posteriores no cenário político e nos sistemas económicos (socialistas e capitalistas) que se verificaram depois dos anos 20, e que, portanto, numa fase mais tardia da sua vida, pudesse ter em mente um modelo de sociedade e economia bastante diferente ou pelo menos algo modificado por comparação com o que podemos encontrar neste escrito de juventude.

[23] O excedente produtivo, aquilo que supera os custos de produção, seria dividido entre a comuna e as associações de produtores. Estas últimas teriam direito a usar este sobreproduto, para efeitos de reinvestir na produção do período seguinte, mas apenas após ser deduzido deste valor a chamada “renda da produção” que seria devida inteiramente à comuna para esta financiar, segundo o seu critério exclusivo, as despesas relativas à “justiça social em sentido alargado” (serviços de saúde, educação, justiça, etc). O sobreproduto restante seria dedicado à “direção” ou “orientação” da produção que, também ele, se dividiria em duas parcelas, uma dizendo respeito apenas ao elemento técnico-económico (o progresso da produtividade) cuja definição caberia apenas às associações de produção e outro respeitante à determinação da produção em função da sua utilidade social, necessitando do acordo entre a comuna e a associação de produção. → (Polanyi, 2016, p. 416). Cada tipo de “custos” se ligaria a um tipo de função e requereria órgãos próprios (ou pactos entre órgãos específicos). Todas as “externalidades” típicas do capitalismo seriam suscetíveis de ser “internalizadas”.

[24] “Humanity will only be free when it understands what it must pay for its ideals. Only then will humanity come to recognize that the realization of these ideals depends exclusively on humanity itself (…) For only when the connection between the sacrifices to be made and the progress we hope to achieve along the path to the realization of our ideals becomes visible in a direct, verifiable form, specifiable down to the minutest quantities, can we as humans develop the drive to walk the upward path unwaveringly, to adapt this path to our capacities, and to proceed with joy and satisfaction (Polanyi, 2016, p. 422).

[25] Cabe notar com Gareth Dale (2010, p. 39) que, tal como a sua conceção mais “gradativa” de socialismo em A Grande Tranformação, a sociedade “transparente” que daí resultaria constitui essencialmente um ideal “regulador”, não algo que exista, tenha existido ou que possa sequer vir a ser alcançado na sua plenitude, mas essencialmente um ideal para o qual se deveria tender e face ao qual se poderia avaliar os sucessos ou insucessos (aproximação ou distanciamento) das sociedades reais.

[26] Os exemplos que se seguem, sublinhe-se, não se encontram em Polanyi, embora se creia que estariam em consonância com o argumento que ele constrói e ilustrá-lo-iam corretamente.

[27] “That the freedom to exploit one’s fellows, or the freedom to make inordinate gains without commensurable service to the community, the freedom to keep technological inventions from being used for the public benefit (…) may disappear, together with the free market, is all to the good” (Polanyi, 1947, p. 116).

[28] “(…) in a truly democratic society, the problem of industry would resolve itself through the planned intervention of the producers and consumers themselves. Such conscious and responsible action is, indeed, one of the embodiments of freedom in a complex society” (Polanyi, 1947, p. 117).

[29] Como diria numa conferência posterior à publicação de A Grande Transformação: “Now free institutions, I submit, are nothing but expressions of persuasive principles such as cooperation and competition, which, until proof to the contrary, should be deemed independent of the technological and organizational aspects of the economy. Freedom finds its institutional expression in the prize set on personality, integrity, character and non-conformity. Free institutions depend upon the valuation set on civic liberties. And, as John Stuart Mill wrote, the organization of trade and business have little to do with the valuation of the freedom of conscience and its institutional safeguarding. The latter is a matter of the total culture of a society, and where emphasis lies in such a culture is not determined by economic factors. It is not for the economist, but for the moralist and the philosopher to decide what kind of society we should deem desirable. An industrial society has one thing in abundance, and that is material welfare more than is good for it. If, to uphold justice and the freedom to restore meaning and unity in life, we should ever be called upon to sacrifice some efficiency in production, economy in consumption, or rationality of administration, an industrial civilization can afford it” (Polanyi, 2014b, p. 38).

[30] “in truth, we will have just as much freedom as we will desire to create and to safeguard. There is no one determinant in human society. Institutional guarantees of personal freedom are compatible with any economic system” (Polanyi, 1947, p. 117).

[31] A relação entre Polanyi e o marxismo (bem como com várias correntes socialistas e com o próprio socialismo da urss) é extremamente polémica e parece, em todo o caso, ter variado subtancialmente ao longo do tempo. Gareth Dale (2014) faz um bom resumo de várias interpretações alternativas deste percurso intelectual e sugere a sua própria, original e persuasiva.

[32] O que, na realidade, é coerente, pois, para Hayek, o que realmente releva é se há dependência face a um indivíduo (o monopolista) e não face a classes sociais.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons