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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa dic. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.16 

RECENSÃO

Fukuyama, Francis

Identidades: a Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento,

Lisboa, D. Quixote, 2018, 230 pp.

ISBN 9789722066181

Digo Ramada Curto*

* Departamento de Estudos Políticos, IPRI, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Av. de Berna, 26-c - 1069-061 Lisboa, Portugal, dcur@fcsh.unl.pt


 

Pelo menos num ponto, Fernando Rosas e Vasco Pulido Valente estiveram, muito recentemente, de acordo. Para ambos, a ciência política, enquanto disciplina de análise dos processos sociais e políticos, é irrelevante. O consenso é inesperado e intrigante. Como é que dois dos mais conhecidos historiadores e intelectuais públicos portugueses - com posições políticas diferentes, expressas, respetivamente, numa conferência na Biblioteca Nacional (15-11-2018) e numa entrevista ao Público (21-10-2018) - convergiram no mesmo desprezo por uma disciplina não sei ao certo explicar.[1]

Inveja corporativa dos historiadores em relação aos politólogos? Denúncia de uma disciplina que impõe os seus métodos comparativos e arrisca análises em grande escala, em detrimento do estudo do facto único ou das particularidades históricas? Desconfiança, um tanto ou quanto provinciana, por parte de quem pouco circulou internacionalmente, desconhecendo os campos universitários norte-americanos, que se afiguram hegemónicos na produção da ciência política?

Porventura mais interessante seria perceber como é que um historiador que se diz marxista e defensor de uma história económica e social, embora na sua prática se tenha concentrado sobretudo na análise do político, acabe por estar tão próximo de um outro que tem vindo a reduzir a história a uma arte de bem narrar os acontecimentos. Depois, seria talvez possível perceber melhor por que razão a história política - tanto à esquerda, como à direita - se mostra tão avessa à ciência política, no particular, e às ciências sociais, no geral.

Todas estas questões respeitantes à desconfiança suscitada pela ciência política, por parte de dois historiadores e intelectuais públicos portugueses, vêm à baila no momento da publicação em português do novo livro do politólogo norte-americano Francis Fukuyama da Universidade de Stanford, Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento, numa esmerada tradução para português de Miguel Freitas da Costa (D. Quixote).

Quem adotar o ponto de vista de Rosas e de Pulido Valente nem sequer se dará ao trabalho de ler este livro de ciência política. Ou seja, haverá com certeza muitas pessoas que se irão identificar com a bandeira da história política, quer à esquerda, quer à direita, e não irão ter qualquer curiosidade por este livro. Mais: a força do ressentimento dessas mesmas identidades levará muito provavelmente a esquerda a desprezar o livro de um autor conotado com a celebração do modelo liberal norte-americano, desde a publicação do seu best-seller, intitulado

O Fim da História e o Último Homem (Gradiva, 1.ª ed., 1992, que retoma argumentação exposta em artigo de 1989).

Um dos modos de ultrapassar a intolerância ou o desprezo em relação a Fukuyama (atitudes que mais parecem uma caricatura das políticas de identidade a que ele próprio se refere no seu novo livro), será o de procurar perceber a trajetória intelectual das suas ideias, no seu contexto de origem e do ponto de vista das intenções do autor. Escusado, pois, assobiar para o lado, com a justificação de que mais importantes são as epistemologias do Sul.

Assim, ao seu anúncio acerca do Fim da História, no ano da queda do muro de Berlim, respondeu Samuel Huntington, um outro cientista político, que tinha sido seu professor na Universidade de Harvard. Esta resposta, que teve tantas implicações nas tomadas de decisão da política externa norte-americana, surgiu sob a forma de um outro tipo de anúncio: os novos tempos, longe de imporem a difusão do modelo único das democracias liberais, caracterizavam-se como sendo de choque de civilizações (Gradiva, 1.ª ed. do artigo de 1993, depois transformado em livro). Uma profecia que o 11 de setembro de 2001 pareceu confirmar. Por sua vez, Fukuyama desenvolveu todo um programa de investigação, a meio caminho entre a ciência política e a sociologia histórica, numa obra em dois grossos tomos, sobre os quais escrevi noutro lugar (Público, 25-06-2015): As Origens da Ordem Política: dos Tempos Pré-humanos até à Revolução Francesa, trad. de Ricardo Noronha, e Ordem Política e Decadência Política: da Revolução Industrial à Globalização, trad. de Miguel Mata (D. Quixote, 2012-2015).

tendências autoritárias e disparidades crescentes

Segundo Fukuyama, há no presente uma tendência, percetível a uma escala mundial, de difusão de nacionalismos populistas, associados à criação de regimes autoritários. O slogan de Trump acerca da “America first” representa bem o modo como os líderes populistas procuram estabelecer ligações diretas com o “povo”, ultrapassando os limites impostos pelas instituições dos Estados democráticos: tribunais, parlamentos, meios de comunicação independentes e burocratas independentes. Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, Kaczynski na Polónia e Duterte nas Filipinas correspondem à categoria de líderes populistas.

Tal tendência pode ser considerada como uma recessão a uma escala global desde o início de 2000, em relação à denominada, pelo já referido Huntington, terceira vaga de democratização. Concretamente, existiam apenas 35 democracias eleitorais em 1970. Nas três décadas seguintes - com particular intensidade entre 1989 e 1991, quando se assistiu ao fim do comunismo na Europa de Leste e ao fim da antiga URSS - atingiu-se o número de 110. Porém, desde 2000, a tendência inverteu-se, com o número de países autoritários a crescer.

Como explicar essa recessão democrática, a que correspondem novas tendências autoritárias e nacionalismos populistas? O que equivale a perguntar: o que correu mal nas democracias liberais e no mundo que possa explicar o seu abandono. Fukuyama argumenta que as democracias modernas não conseguiram resolver, nem satisfazer o desejo que existe de reconhecimento da nossa dignidade. É certo que nelas se encontram as bases para esse mesmo reconhecimento, tal como sucede com o respeito encarnado nos direitos humanos, no primado da lei e no direito de voto. Mas “o que isto não garante é que numa democracia as pessoas sejam respeitadas igualmente na prática, em particular os membros dos grupos com um historial de marginalização” (p. 15). O mesmo se passa a uma escala das relações entre Estados. Existem países que, por não se sentirem respeitados, exacerbaram uma espécie de nacionalismo agressivo. Seguiram um padrão de comportamento paralelo ao dos crentes religiosos que, ao sentirem a sua fé ameaçada, procuram afirmá-la de um modo que pode revestir formas de violência.

Se as democracias modernas conseguiram criar as condições para o bom funcionamento de sociedades pacíficas e com prosperidade, dificilmente foram além da satisfação dos desejos de consumo. Valores mais altos, que vivem de ações heróicas e excecionais ou de combates e sacrifícios, capazes de suscitar o respeito e a dignidade, parecem arredados do seu horizonte. Ora, a exigência do reconhecimento de uma identidade própria “é um conceito matriz que unifica muito do que se está a passar na política mundial de hoje em dia” (p. 17).

A partir do início de 2000, não foi só apenas a tendência para nacionalismos populistas e regimes autoritários que cresceu, existiram dois outros indicadores que importa ter em conta, pois ambos correspondem a desigualdades e disparidades crescentes. Por um lado, entre 2000 e 2016, metade dos norte-americanos viu os seus rendimentos estagnarem e, entre 1974 e 2018, a percentagem do que vai para 1% da população passou de 9% do pib, para 24%. Por outro lado, a globalização produziu, cada vez mais, disparidades, representadas por populações que são deixadas para trás pelo crescimento geral. Neste mundo de pobres e ricos, a classe média tende a esvaziar-se. Nos Estados Unidos, segundo o fmi, as pessoas com salários 50 a 150 por cento o salário mediano caíram de 58 para 47% da população, no período compreendido entre 2000 e 2014.

a busca da dignidade e a expressão do ressentimento

Não são só os regimes autoritários que crescem, ao lado de nacionalismos populistas, e as disparidades que aumentam, há igualmente mudanças de orientação nas lutas políticas. Estas têm vindo a acentuar-se, segundo Fukuyama, desde o início da segunda década do século xxi. Mais precisamente, ao longo do século XX, a esquerda lutou pela igualdade, na defesa dos trabalhadores, dos seus direitos sindicais e em modos de regulação que permitissem uma melhor redistribuição da riqueza, isto é, uma sociedade mais igualitária. Enquanto a direita procurou reduzir o intervencionismo estatal, ao mesmo tempo que promoveu a iniciativa privada.

Porém, com a entrada no século xxi, uma nova tendência se impôs. A esquerda parece ter abandonado a luta pela igualdade económica, concentrando-se na defesa das minorias ou dos grupos considerados marginais: “negros, imigrantes, mulheres, hispânicos, a comunidade lgbt, refugiados e outros parecidos” (pp. 24-25). Enquanto a direita reorientou, então, as suas lutas para a proteção da identidade nacional tradicional, que surge muitas vezes associada à raça, à etnicidade e à religião. Em ambos os casos, que definem uma oposição no interior de um espectro político, são as políticas de identidade que importam. Porém, esta luta pelo reconhecimento de uma identidade própria não pode ser reduzida ao que se passa no campus universitário, nem à defesa do nacionalismo branco, enquanto símbolos do que à esquerda ou à direita, respetivamente, se defende; é que as políticas identitárias são extensivas a fenómenos mais amplos que estão a conduzir ao renascer de novos nacionalismos e a um Islão politizado. Sendo ainda de acrescentar que as lutas pelo reconhecimento da identidade de grupos ressentidos, porque marginalizados, pode derrapar numa exigência pelo reconhecimento da superioridade do grupo. É o que se constata, sobretudo, na história da identidade nacional e das formas de extremismo religioso.

Sistematizando, a política identitária, segundo Fukuyama, envolve a nação, a religião, a etnicidade, a orientação sexual ou o género. Os seus praticantes tanto lutam pela imposição de respeito e pela sua dignidade, como exprimem ressentimentos pelo facto de não estarem a ser reconhecidos. As identidades em causa envolvem, pois, motivações e comportamentos que escapam ao espírito utilitário de defesa dos interesses, da maior parte das teorias económicas. E não foi por acaso que, nas duas últimas décadas, se assistiu a uma maior colaboração entre economistas comportamentais e psicólogos, tendo em vista ultrapassar o paradigma existente da escolha racional, sem contudo se chegar a encontrar uma alternativa satisfatória nas teorias da economia comportamental.

nacionalismos, fundamentalismos e esquerda enfraquecida

Os motivos que sustentam o terrorismo jihadista estão relacionados com questões psicológicas de identidade e não tanto com questões religiosas. Se fosse a religião a determinar os comportamentos ditos terroristas, como seria possível explicar o não envolvimento no terror de mil milhões de muçulmanos? Nem as questões religiosas, nem as da pobreza, pois muitos terroristas são oriundos da classe-média, podem explicar os comportamentos dos jovens jihadistas. Apanhados, geralmente, entre duas culturas - a dos pais que rejeitam e a do país de adoção em que se vêm alienados - é no Islão radical que encontram “uma comunidade, aceitação e dignidade” (p. 92).

Quanto ao nacionalismo e populismo, ele não se tem limitado aos líderes já indicados. O Brexit do Reino Unido aponta na mesma direção. De igual modo, os primeiros-ministros da Índia e do Japão, respetivamente Modi, Shinzo Abe, e Xi Jinping, presidente da China, partilham a mesma agenda. Será, também, de acrescentar que a politização da religião não se limita ao Islão, o partido de Nodi na Índia (BJP) assenta na compreensão hindu da identidade indiana. Por sua vez, um modo militante de budismo tem-se difundido no Sudeste Asiático e no Sri Lanka, provocando confrontos com grupos hindus e muçulmanos.

Em face de nacionalismos populistas e de fundamentalismos militantes, Fukuyama coloca a questão de um enfraquecimento da esquerda. A ideia que pretende generalizar é a de que “a velha esquerda de base classista […] tem estado num declínio de longo prazo no mundo inteiro” (p. 98). Trata-se de um argumento que, em boa medida, confirma as conclusões do seu livro de 1992, sobre O Fim da História. Mas o que se afigura, acima de tudo, como um dado paradoxal é que a fraqueza global da esquerda corresponda a um aumento das desigualdades sociais, no momento em que a esquerda parece negar a sua cultura de luta pela igualdade e de uso do poder do Estado para redistribuir a riqueza entre pobres e ricos.

Frente à incapacidade da esquerda, a direita nacionalista tem sabido aproveitar-se da onda de ressentimento social que afeta os mais pobres. Fukuyama considera não se tratar de um dado novo, pois há mais de 100 anos que os partidos de esquerda perdem para os nacionalistas. Porquê? Porque “ser pobre é ser invisível aos olhos dos nossos semelhantes e, muitas vezes, a indignidade da invisibilidade é pior do que a falta de recursos” (p. 103).

o caso da classe operária

A classe operária norte-americana, desde a década de 1970, não tem tido uma vida fácil. Os seus rendimentos têm diminuído. Conforme se constata nos grupos de afro-americanos que, após a Segunda Guerra Mundial, migraram para cidades tais como Chicago, Nova Iorque ou Detroit, para trabalhar nas indústrias da carne, do aço ou do automóvel. A desindustrialização dessas áreas criou enormes bolsas de pobreza (as taxas de criminalidade e o consumo de drogas subiram e a vida familiar desestruturou-se, com um aumento significativo de crianças a crescer em famílias monoparentais).

Este mesmo padrão passou também a caracterizar a classe operária branca, pelo menos desde a última década. O ressentimento desta última fez-se sentir em relação aos mais pobres, a começar pelos imigrantes, e às elites. Os primeiros foram acusados de não merecerem nada e estarem a ser favorecidos, por isso a imigração constituiu-se numa ameaça à identidade cultural e numa questão central não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro; enquanto as elites políticas passaram a ser vistas como incapazes nos seus jogos corruptos e, sobretudo, inábeis para reconhecer e respeitar os grupos empobrecidos. Mais concretamente, a gente de província, que são a base dos movimentos populistas nos Estados Unidos e não só (Reino Unido, Hungria, Polónia, etc.) sentem que as elites citadinas e cosmopolitas ameaçam os seus valores (p. 144).

O nacionalismo populista de Trump surgiu, em grande parte, desse ressentimento. Segundo o autor, a capacidade para perceber “a ligação entre rendimento e estatuto ajuda a explicar por que razão grupos nacionalistas e religiosos conservadores têm sido mais atraentes para muita gente do que os tradicionais grupos de esquerda baseados na classe económica” (p. 113). Não por acaso, Trump fez gala, durante a sua campanha e na presidência, de atacar o politicamente correto - enquanto sinónimo de um certo entendimento das políticas de identidade -, mas fê-lo em nome da “ética de autenticidade que define a nossa era” (p. 143). Nesta operação, deslocou “o foco das políticas de identidade da esquerda para a direita”, o que equivale a dizer que ajudou a valorizar “a etnicidade europeia (branca), a religiosidade cristã, viver no campo, a crença nos valores tradicionais da família e categorias relacionadas com tudo isto” (pp. 143-144).

Segundo Fukuyama, o problema não está só na capacidade do nacionalismo populista dar visibilidade, reconhecer ou reconstituir a dignidade dos grupos ressentidos, oriundos de áreas desindustrializadas ou de grandes bolsas de pobreza. Uma das grandes questões reside nas responsabilidades que devem ser atribuídas à esquerda, por ter abandonado a defesa da solidariedade da classe operária ou dos explorados economicamente, para se focar “em grupos cada vez mais pequenos que são marginalizados de maneiras específicas” (p. 114). Tal como se a esquerda tivesse renegado as suas próprias tradições universalistas, em benefício do reconhecimento de grupos particulares.

Paralelamente, as políticas da esquerda - tanto na sua variante marxista como na social-democrata - foram deixando para trás a classe operária e as lutas pelo aumento da igualdade económica. Fukuyama argumenta que, ao decréscimo das ambições de reformas socioeconómicas correspondeu, progressivamente, a “adopção pela esquerda de políticas identitárias e do multiculturalismo nas décadas finais do século XX” (p. 137). Continuando, “o programa da esquerda mudou para a cultura: o que precisava de ser desfeito não era a presente ordem política que explorava a classe operária, mas a hegemonia da cultura e dos valores ocidentais que reprimia as minorias em casa e nos países em desenvolvimento no estrangeiro” (p. 137).

identidades: histórias no tempo longo

Uma história da identidade, a começar pela capacidade de empreender uma viragem subjetiva, corresponde a uma modernidade situada algures entre Lutero e Rousseau ou Adam Smith. E só foi tornada possível com a autonomia dos indivíduos face às comunidades aldeãs e agrárias que fixavam os papéis sociais, no interior de estruturas hierárquicas. Mas foi na geração seguinte a Rousseau, com Kant e Hegel, que o alargamento e universalização da dignidade privada se transformou num projeto político, fundado na vontade humana. Com Kant, a moralidade deixou de ser produto de um cálculo utilitário, capaz de maximizar a felicidade humana, para se referir a um ato de escolha. O que equivale a dizer que, segundo Kant, “a dignidade humana gira em torno da vontade humana, de que os seres humanos são verdadeiras identidades ou causas não causadas” (p. 59).

Por sua vez, Hegel também considerou que os acontecimentos desencadeados pela Revolução Francesa foram, no essencial, lutas pela dignidade. A vaga democrática que se seguiu à Revolução, que Hegel chegou a interpretar, em 1806, depois da vitória de Napoleão em Iena, como o fim da história, “foi conduzida por povos que exigiam o reconhecimento da sua personalidade política” (p. 60). Assim, o reconhecimento da dignidade levou tanto ao respeito universal pelos direitos individuais, como ao reforço da identidade coletiva, que incluía o nacionalismo e a religião politizada (p. 77).

É certo que as democracias modernas, na formulação de Tocqueville, se debatem com a compatibilidade entre igualdade e liberdade. Esta última favorece situações de desigualdade, “enquanto esforços para igualizar reduzem a liberdade” (p. 69). Porém, as democracias liberais reconhecem a vontade individual e consideram que os cidadãos são capazes de empreender as suas próprias escolhas. Em contraste, os governos autoritários não reconhecem a mesma dignidade aos cidadãos: “as pessoas são olhadas como crianças que precisam da protecção de um pai sábio, o Estado; não se pode confiar nelas para governarem os seus próprios assuntos” (p. 70).

De facto, ao longo do século xix, o modo de entender a dignidade bifurcou-se: por um lado, estiveram as identidades coletivas, sobre as quais Herder se pronunciou; por outro, um individualismo liberal, associado à criação de uma ordem política que “encorajasse activamente a completa realização do eu íntimo” (p. 116). É no quadro desta atenção contemporânea que somos levados, pela mão de Fukuyama, a pensar em conjunto tanto a aproximação das igrejas evangélicas a uma linguagem abertamente psicológica, como a assunção por parte do Estado, em todas as democracias liberais, de políticas sociais que passaram a incluir serviços terapêuticos, aconselhamento psicológico e serviços de saúde mental (p. 125). As universidades também acabaram por assumir o denominado modelo terapêutico, ao considerarem que determinadas formas de ensino, insistindo num cânone branco e ocidental, estavam a “esmagar a psique” de alunos de minorias ou das mulheres. Neste sentido, não foi por acaso que “a ascensão do modelo terapêutico foi a parteira do nascimento das modernas políticas identitárias nas democracias liberais avançadas”

(pp. 126-127). Seria, aliás, neste ponto que importaria estabelecer a ligação aos trabalhos de Erik Erikson, citado no livro em relação à década de 1950, bem como de Henri Tajfel e John Turner, da década de 1970. Mas o importante é perceber essa “viragem terapêutica”, assumida por escolas, universidades, centros de saúde e outros serviços sociais (p. 135).

Num ensaio de 1939, lembrado por Fukuyama, Walter Benjamin sustentava que a vida moderna era constituída por uma série de “experiências de choque”, que impediam as pessoas de ver a sua vida como um todo. Para ele, tratava-se de uma nova barbárie, “em que a memória comunal se estilhaça numa série de experiências individuais” (p. 133). Ora, já Rousseau valorizara o sentimento interior e subjetivo, colocando-o acima das normas e das relações sociais.

Um outro contraste é estabelecido a partir dos legados intelectuais do Iluminismo. É que o marxismo, que durante mais de um século influenciou a esquerda, era herdeiro de uma tradição iluminista. Porém, os valores do progresso da razão e da ciência e da superioridade das sociedades modernas sobre as tradicionais cederam o passo a uma “esquerda cultural mais nietzschiana e relativista, atacando os valores cristãos e democráticos em que se tinha baseado o Iluminismo” (p. 137). No interior das universidades norte-americanas, desde a década de 1980, chegou-se por esta via ao pós-modernismo e ao desconstrucionismo e, sobretudo, às manifestações das políticas de identidade.

Um inventário dos movimentos sociais da década de 1960 deveria incluir a luta pelos direitos civis encabeçada por Martin Luther King, assassinado em 1968; o seu alargamento às reivindicações do movimento feminista; a revolução sexual que quebrou os modelos da vida familiar; o início do movimento ambientalista; e o Maio de 1968 em França. Nos anos seguintes surgiram outros “movimentos de promoção de direitos de deficientes, nativos americanos, imigrantes, gays, lésbicas e, por fim, pessoas transgénero” (p. 129).

Mas as histórias da identidade contadas por Fukuyama são inseparáveis de dois outros processos bem contemporâneos. Por um lado, o contencioso que existe sobre o destino a dar aos 11 ou 12 milhões de imigrantes sem papéis que vivem nos Estados Unidos. Seria ridículo pensar na sua expulsão, a menos que se enveredasse por um projeto à escala da antiga União Soviética ou da Alemanha nazi. Por isso, políticas bem-sucedidas de assimilação poderiam ajudar a pôr em causa as formas de populismo que se desenvolveram a pretexto de construir muros e barreiras na fronteira. Por outro lado, é um facto que as redes sociais e a comunicação eletrónica favoreceram a criação de comunidades fechadas. Em ambos os casos, estamos em presença do desencadear do funcionamento de novas identidades, com conotações políticas de vária ordem.

que fazer?

De momento, constata-se que a direita adotou muitos dos elementos de uma política identitária de esquerda. Assim, cada qual declara que o seu grupo particular é vítima de um ataque, criando situações de sofrimento que se afiguram invisíveis e declarando guerra aos media e às elites políticas. Através desta reversibilidade, Fukuyama constata que “as políticas identitárias são o prisma pelo qual são agora vistas, na sua maioria, as questões sociais em todo o espectro ideológico” (p. 146).

Uma vez que existe uma situação de quase bloqueio e que é difícil negociar entre esta ou aquela identidade, sobretudo quando estas surgem associadas a aspetos biológicos, da raça, etnicidade ou de género, Fukuyama não recomenda abandonar a ideia de identidade.

“O remédio é definir identidades nacionais mais amplas e mais integradoras que tomem em conta a real diversidade das sociedades democráticas existentes” (p. 147). O projeto do autor é, então, o de procurar traçar um programa de reforço de uma identidade nacional democrática, integradora, contra todas as formas de etnonacionalismo que, ao longo do século XX, deram má fama ao nacionalismo. Tanto mais quanto a identidade nacional pode ser importante para definir a qualidade do governo, pois as políticas orientadas para a satisfação do interesse público podem suscitar desenvolvimento e ajudar a resolver questões na África subsaariana, no Médio Oriente e na América Latina.

Fundado em Pierre Manent (poderia ter recorrido a Benedict Anderson), Fukuyama procura traçar o diagnóstico das teorias nacionalistas, começando por constatar uma espécie de lacuna. De Hobbes a Stuart Mill, não existiu propriamente um pensamento elaborado sobre a nação, que foi deixado aos que definiram a nação na base da biologia ou da raça, formando o tipo de nacionalismo agressivo derrotado em 1945. No entanto, não se poderá fugir à nação e ao Estado nacional, pois até agora foi difícil criar “corpos internacionais democraticamente responsabilizáveis” (p. 162).

A União Europeia, por exemplo, não conseguiu criar uma entidade pan-europeia, talvez devido às suas pesadas estruturas burocráticas. Por isso, são as nações que a compõem que continuam a ser o elemento agregador (pp. 176, 191). Neste quadro, ganha sentido a ideia de um nacionalismo democrático, construído a partir de baixo (contrário ao nacionalismo agressivo ou populista), capaz de contrariar um pensamento em que as nações são entidades biológicas, existentes desde tempos imemoriais.

O projeto de Fukuyama clarifica-se, ainda, em função de duas referências: Tocqueville e Huntington. O primeiro considerou que a democracia requer cidadãos patriotas, ativos no seu envolvimento público e bem informados. O segundo foi mais longe, pois, na caracterização da identidade americana, sublinhou o papel da cultura “anglo-americana”, “uma cultura construída em torno da ética do trabalho protestante” (p. 183). Esta última foi crucial no funcionamento de uma democracia bem-sucedida. Ora, segundo Fukuyama, Huntington não pode ser considerado racista por tentar valorizar a cultura com origem nos colonizadores anglo-protestantes. Pois, “é a cultura que é importante, não as identidades étnicas ou religiosas daqueles que tomam parte nela” (p. 183). O certo é que, com base na inspiração de Tocqueville e Huntington, Fukuyama defende a criação de um nacionalismo doutrinal, o qual implica “civismo e o exercício de certas virtudes” (p. 184).

conclusão e críticas

A ideia segundo a qual o modelo que se projeta no futuro é o de um nacionalismo doutrinal e democrático, que se inspira em Tocqueville e Huntington para falar de virtudes cívicas e da vontade de cidadãos racionais, não anda longe do que Fukuyama anunciou, há muito, como sendo o fim da história. Vinho novo em odres velhos? Talvez. Porém, agora de uma forma mais vincada, em tempos de Donald Trump, contra as mais diversas formas de intolerância religiosa e de nacionalismo populista, este livro retoma a crença no bom funcionamento do Estado nacional, liberal e democrático. Mas, na sua visão equilibrada, que serve para atravessar tantos contrastes e dualismos, propõe uma espécie de reversibilidade. Isto é, da mesma forma que a direita se apropriou da linguagem das políticas identitárias da esquerda, será agora necessário reinventar uma nova agenda que desvie a esquerda de questões identitárias consideradas de nicho, tendo em vista a recuperação de um legado cultural mais inclusivo, feito em nome dos pobres e dos explorados. A localização desta operação terá de ser feita a partir da única instância que até agora deu provas de uma experiência democrática - o Estado-nação.

Podemos discordar de Fukuyama em muitos pontos, não lhe podemos negar uma enorme clareza argumentativa. Tão-pouco se lhe pode deixar de atribuir uma enorme capacidade para interpretar, a uma escala tão geral, as principais tendências da sociedade em que vivemos. Ou seja, pode apontar-se que, a respeito do denominado modelo terapêutico, se sente a falta de uma reflexão mais profunda que parta dos escritos de Michel Foucault. E que, a propósito dos diversos tipos de nacionalismo, Ernst Gellner seja citado, mas Benedict Anderson esteja ausente, sendo preferível tomá-lo como guia das lacunas teóricas do nacionalismo, em comparação com Pierre Manent. Também se podem levantar dúvidas sobre o tratamento em bloco dos movimentos sociais da década de 1960. Pois não será a luta de Luther King uma tentativa para fazer valer direitos a uma grande escala, bem distinta da questão dos nichos identitários fragmentados?

Por último, as nossas próprias bandeiras identitárias - à esquerda ou à direita - poderão ser postas em causa pela visão equilibrada, centrista, assumida por Fukuyama. Mas da mesma forma que, ao longo da leitura do livro, constatámos o modo como o autor recorre a contrastes e antinomias, para depois os ultrapassar, numa espécie de processo dialético, também será possível aprender que vale a pena pôr de lado as nossas certezas identitárias, para procurar conhecer um ponto de vista sobre a sociedade em que vivemos, mesmo que não o tomemos como cartilha única de análise social.

[1] Uma versão abreviada desta recensão foi publicada no Expresso de 24 de novembro de 2018.

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