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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.230 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019230.02 

ARTIGOS

A moeda na Restauração: da prática à política monetária em Portugal (1640-1642)

Currency during the Restoration: from practice to monetary policy in Portugal (1640-1642)

Pedro Puntoni*

*Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Avenida Professor Lineu Prestes, 338 - CEP 05508-000, São Paulo, SP, Brasil, puntoni@usp.br


 

RESUMO

A moeda na Restauração: da prática à política monetária em Portugal (1640-1642). A alteração do valor da moeda foi utilizada, desde o primeiro momento da Restauração, como instrumento de financiamento da guerra e da monarquia. Ausente no período filipino, quando se verificou uma estabilidade do padrão monetário português, a prática mutacionista era vista como indesejada, perigosa e imoral. Não obstante, as necessidades do tempo levaram a monarquia a delegar as experiências nas alterações do sistema monetário para o Conselho da Fazenda, onde o pensamento sobre a moeda estava não só adequado às necessidades dos jogos do poder, mas ajustado também às novas ideias, sobretudo aquelas com origem na chamada Escola de Salamanca. Estudar as primeiras iniciativas mutacionistas (1640-1642) permite-nos perceber como evoluíam as práticas monetárias em Portugal para uma política de ajuste e ressurgimento do sistema monetário nacional.

Palavras-chave: história monetária; Restauração; fiscalidade; política monetária.


 

ABSTRACT

Changing the value of money was used, from the first moment of the Restoration, as a means of financing war and monarchy. Absent in the Philippine period, when there was stability in the Portuguese monetary standard, the mutationist practice was seen as unwanted, dangerous, and immoral. Nevertheless, the needs of the time led the monarchy to delegate its monetary policy to the Conselho da Fazenda (Treasury Council), where thinking about the currency was not only adequate to the needs of power games, but also adjusted to the new ideas, especially those originating from the so-called Salamanca School. Studying the first mutating initiatives (1640-42) allows us to understand how monetary practices evolved in Portugal to a policy of adjustment and resurgence of the national monetary system.

Keywords: monetary history; Restoration; fiscality; monetary policy.


 

O movimento da moeda e da sua significação social tem sido objeto de grande interesse para a história da vida económica e do capitalismo na época moderna. Materializada em metal, ou representada no papel ou na promessa de um pagamento, a moeda é dinheiro (unidade de conta), meio de pagamento e reserva de valor. Como símbolo do poder do Estado e da sua interferência direta na dimensão produtiva ou reprodutiva da vida social, ela desempenhou um papel decisivo na construção e expansão da moderna economia-mundo.

Para o historiador da época moderna, há duas formas de pensar o fenómeno monetário: de um lado, a busca pela compreensão da sua formação e implicação nos processos históricos e, de outro, a história do pensamento económico sobre a moeda (pensamento monetário ou teoria monetária). Sobre a história da prática monetária, e sua relação com os processos económicos, a literatura tem privilegiado a materialidade da moeda (o seu fabrico, o seu desenho e difusão) e a formação dos sistemas monetários, com enfoque, na maior parte, marcado pelo recorte nacional. É possível perceber, contudo, que o pensamento sobre a moeda, a consciência de que sua manipulação poderia resultar em ganhos fiscais diretos, no reordenamento dos contratos régios, ou mesmo na gestão do mundo económico (no sentido da nascente economia política), levou à formulação de um conjunto de decisões, de orientações que podem definir o que entendemos modernamente como uma “política monetária”. A mutação das moedas não pode ser dissociada do processo do seu fabrico. Pelo contrário, a moeda, como mercadoria ou símbolo do valor, está sempre em transformação. A engenharia constante de fabricar e refabricar a moeda colocava, nas mãos dos seus senhores, a possibilidade e a necessidade de manipular a relação entre a moeda mercadoria e o seu padrão de conta. É por isso que, apesar da crítica, ou melhor, da repreensão de Oresme e de tantos dos seus seguidores nos séculos que seguem, a alteração do valor da moeda é mesmo parte da sua forma social. A moeda não é o produto do poder, mas é o seu fazer, como atividade constante da sua afirmação como relação social (Desan, 2014, pp. 58-61).

Com efeito, segundo Rita Martins de Sousa, podemos sim falar em “políticas monetárias” para períodos anteriores ao século XIX, mesmo considerando que “as manipulações monetárias são os únicos instrumentos monetários à disposição do Estado”, uma vez que a moeda fiduciária e escritural ainda não caracteriza o regime monetário. Para a autora, o “regime monetário” é a tradução legal desta política: “este inclui todo o corpo legislativo que determina o funcionamento e as características dos instrumentos monetários”; ou seja, “define, entre outros elementos, as espécies monetárias em circulação, o preço dos metais na Casa da Moeda, o poder liberatório dessas mesmas espécies, o valor extrínseco ou nominal, a lei e o toque, ou o talhe e o peso, no caso de as espécies serem metálicas” (Sousa, 2003). A definição de Michel Bordo e Forrest Capie para “regime monetário” pode ser útil, na medida em que atenta às suas dinâmicas. Para estes autores, um regime monetário é “um conjunto de disposições que governam o sistema monetário”, em dado momento. Definição que precisa de ser complementada com a perceção pública destas disposições “em termos da sua operação e possível impacto, assim como a sua desejável durabilidade” (Bordo e Capie, 1993, p. 4). Como notam estes autores, um regime monetário pode ser definido ao nível nacional ou internacional, a depender de como as regras são fixadas por diferentes Estados. A dimensão bimetálica do sistema monetário, nesta fase em que predomina a moeda mercadoria, é um aspeto central de um regime monetário que ganha a escala do mundo. O ratio entre a moeda de ouro e a de prata, que se altera em cada contexto, acaba - ao longo dos séculos XVII e XVIII - sendo elemento importante de uma política monetária e que conduz a uma certa convergência dos regimes monetários na Europa; ou, pelo menos, a busca de um equilíbrio que orienta as políticas monetárias nacionais, interessadas na manutenção da massa monetária no seu espaço soberano. A grande alteração será, de facto, a adoção do padrão ouro pela Inglaterra em 1717, ainda que de jure isto tenha ocorrido apenas em 1821. A consolidação das moedas fiduciárias inglesas seria a base do fortalecimento deste regime monetário, que influenciaria todos os outros sistemas monetários nacionais (Redish, 1990 e Eichengreen e Flandreau, 1985).

Uma política monetária pode ser definida como uma forma racional e ordenada de gerir o regime monetário e, portanto, de interferir nas práticas monetárias, isto é, na maneira como a moeda é vivida e utilizada pelos indivíduos e instituições (empresas, grupos sociais e corporações). Neste artigo, pretendemos compreender como é que, no contexto da Restauração (isto é, na crise social, económica e política que abala Portugal nos Seiscentos), a intervenção da monarquia nas práticas monetárias acabou por consolidar uma política, influenciada pela circulação de um conhecimento sobre os mecanismos de manipulação da moeda e pelo uso do regime monetário como instrumento de uma orientação mercantilista do Estado.

No caso português, o regime monetário no início do século XVII era formado por um conjunto de espécies monetárias estáveis, com o valor da moeda de conta (o real) praticamente fixo em relação à prata e ao ouro desde o final do reinado de D. Sebastião. As violentas alterações monetárias, praticadas no contexto da crise do final do século XIV, eram já assunto para os cronistas. Na verdade, durante a União da Coroas, o meio circulante propriamente nacional seria atrofiado com a forte presença das peças cunhadas em Castela e na América. As peças cunhadas com a prata peruana intoxicavam o sistema monetário português. Esta estabilidade ira alterar-se com a rutura política de dezembro de 1640. Entre 1641 e 1688 foram praticadas seis desvalorizações no valor das moedas de ouro e cinco nas de prata. O sistema monetário português foi então profundamente transformado. Em 1640, às vésperas da Restauração, o marco de ouro amoedado valia 29$971 réis e o de prata 2$800 réis. Quando a lei de 4 de agosto de 1688 estabeleceu a última alteração monetária do século XVII, o marco de ouro passou a valer 102$400 e o de prata 6$400; ou seja, o ouro foi valorizado em 241,7 % e a prata em 128,6 %. A lei de 1688 deve ser considerada um marco para a política monetária portuguesa, uma vez que estabeleceu, de maneira agora estável, a relação entre a moeda de conta (real) e a base bimetálica. As alterações no valor da prata amoedada em 1734 e em 1747 seriam as últimas, mantendo-se a relação entre o real e o peso dos metais até ao ano de 1822 (Sousa, 2006; pp. 86-90). O ratio bimetálico, que era de 1:10,75 em 1640, seria alterado para 1:16 em 1688 (adequando-se ao padrão de outras nações europeias), para adquirir estabilizar em 1:13,75 em 1747, quando a oferta abundante de ouro passa a ser utilizada para tentar atrair prata para o sistema monetário português.

Neste artigo vamos apenas observar o movimento inicial das primeiras propostas de alteração da moeda nos anos de 1640 até 1642. O nosso objetivo é justamente entender de que modo a opção pela intervenção no sistema monetário - então prática condenada pela tradição e pela interpretação que se fazia dos poderes régios - será um instrumento utilizado pela monarquia face às dificuldades de financiamento da guerra e conduzirá à consolidação de uma política monetária. Destaca-se, neste processo, o papel do Conselho da Fazenda como espaço do debate sobre o papel da moeda e como formulador desta política.

DINHEIRO PARA A RESTAURAÇÃO

Executado o golpe a 1 de dezembro de 1640, e aclamado D. João como rei de Portugal no dia 15, o seu governo tinha de preparar as condições da sua própria existência. A guerra, que já aparecia no horizonte, não seria fácil e exigiria muitos recursos. Muito dinheiro. Assim, quando o Conselho da Guerra já cuidava da nomeação de oficiais, do alistamento de tropas, da fortificação da fronteia, era preciso que houvesse rendas para tanto. Como mostrou Joaquim Romero Magalhães, “montar uma defesa capaz era a imediata e principal das preocupações do novo monarca”, mas “os recursos anteviam-se escassos” (Magalhães, 2004). Alguns orçamentos, prevendo manter um exército de pelo menos 20 000 infantes e 4 000 cavalos, já falavam em 1 800 000 cruzados, chegando a 2 400 000 cruzados (Hespanha, 1993, p. 233). O Conselho da Fazenda, ainda não recomposto, mantinha o seu funcionamento com os três membros que eram de nacionalidade portuguesa e permaneceram fiéis ao Duque de Bragança: Rodrigo Botelho de Morais, António das Póvoas e Francisco de Carvalho. A eles se dirigiu o Duque, antes mesmo da aclamação, pedindo propostas para aumentar a receita pública. Apesar da expectativa de que os impostos criados no tempo dos Filipes fossem de pronto abolidos, o tributo da meia-anata, um dos motivos da revolta, foi mantido. [1] Além de garantir a segurança para que os mercadores estrangeiros continuassem a atuar em Portugal [2] , o novo governo procurou impedir a fuga de pessoas e bens, entenda-se também dinheiro, para Castela. A lei de 19 de dezembro era clara em determinar, que “nenhuma pessoa de qualquer qualidade, condição e estado que seja, sob pena de morte e confiscação dos bens, se possa passar dos lugares destes reinos [Portugal e Algarve] para os de Castela e nem levar a eles bens alguns sem especial licença minha”. [3] Já os bens dos que resolveram ficar em Castela seriam confiscados (Costa e Cunha, 2006, p. 90). A rutura implicava também a suspensão do crédito fácil. Como mostrou Rafael Valladares, neste ano de 1640, Portugal não tinha a “experiência bancária madrilena” e tampouco poderia oferecer aos seus credores os rendimentos da prata americana. Pior ainda, a derrogação dos impostos - um dos móbiles do apoio popular à causa dos Braganças - afligia ainda mais a Fazenda real. Neste quadro, a coroa iria buscar apoio entre os negociantes lusos, a maioria deles de origem cristã-nova (Valladares, 2006, pp. 94 e ss). O que era assunto polémico. Segundo Stuart Schwartz, nesse momento talvez dois terços da comunidade de mercadores portugueses tivesse origem cristã-nova. D. João IV não se afastou do apoio necessário da Inquisição e da nobreza portuguesa, mas também procurou abrir espaço para a colaboração dos mercadores e, como mostrou o historiador, “foi portanto sob condições adversas que a rede comercial dos cristãos-novos garantiu o capital e os contatos indispensáveis à sobrevivência não apenas do grupo, mas do reino” (Schwartz, 2008, pp. 207 e ss.). A venda de padrões de juros, de assentos ou mesmo de bens da Coroa foi também utilizada para ajudar a resolver os défices (Hespanha, 1993, p. 234).

Um mecanismo pouco notado pela historiografia, mas de grande impacto e importância, foi o recurso à mutação da moeda. A intervenção no sistema monetário logo seria invocada como uma solução rápida e eficiente para conseguir os fundos necessários para a monarquia. A pax monetária vivida desde as reformas de D. Sebastião em 1558-1560, com a estabilidade da relação entre o valor intrínseco e o extrínseco das moedas metálicas, e a presença elevada de peças cunhadas em Castela na oferta monetária portuguesa, daria condições para que propostas de mutação fossem de pronto aventadas. As Cortes deveriam reunir-se a 20 de janeiro, de modo que, a 2 de janeiro, uma consulta do Conselho da Fazenda sugeriu que seria conveniente tratar nelas “da nova fábrica e valor da moeda”. Para tanto, o Conselho revela que iria visitar a Casa de Moeda de Lisboa para “reconhecer o modo da fábrica, suas oficinas e as mais coisas que para boa disposição deste negócio forem necessárias”. [4] No mesmo sentido, no dia 9 de janeiro de 1641, el-rei ordenou que o Conselho da Fazenda levantasse todas as informações “dos reis meus predecessores passados sobre a lavra da moeda e a qualidade dela”, para que estivessem preparados para tratar desta matéria quando fosse necessário. [5] Pelo que entendemos, o assunto não foi efetivamente discutido nas Cortes, que tiveram início apenas no dia 28. Nos seus capítulos apenas está anotado o pedido dos povos para “que se batesse moedas de cobre em quantidade”. [6] Assunto de interesse local, referente à dificuldade do pequeno comércio ou dos pagamentos ordinários serem realizados. A monarquia mudara de posição. Nas urgências dos tempos, e com apoio nas novas ideias, decidiam que o assunto da moeda não era para o escrutínio dos representantes dos Estados. Os homens do Conselho da Fazenda agiram, então, como se a mutação da moeda fosse regalia e não sujeita ao consentimento dos povos, já distantes que estavam do pensamento oresmiano. Propunham, nos termos do historiador John Munro, uma desvalorização “agressiva”, objetivando um ganho rápido (Munro, 2012, pp. 15-32). [7]

A mudança do valor das moedas, não obstante ser condenada por diversos estudiosos e homens práticos desde há muito tempo, era prática de que não se escusavam os monarcas e príncipes no medievo e na aurora da modernidade (Gárcia Guerra, 2000 e Desmedt e Blanc, 2010). No contexto da crise do feudalismo, a alteração da moeda foi um instrumento importante para redução dos déficits do Estado, para a limitação do entesouramento e a baixa circulação monetária, estimulando o comércio (Génicot, 1966, pp. 699 e ss.). Mas esta não era uma atividade pacífica. Muito pelo contrário, a manipulação do dinheiro é, por excelência, um espaço do conflito, da disputa pela riqueza e o controlo do poder. De um lado, quem detinha o protagonismo na fabricação da moeda defendia, ou agia, no seu manejo. Os que se viam feridos, com as suas rendas e obrigações dissipadas, reagiam. Desta forma, para Le Goff, que estudou o papel da moeda no espaço medieval francês, “as mutações monetárias foram uma das principais causas das revoltas populares e das complicações políticas do século XIV” (Le Goff, 2015, p. 173). Desde que em meados do século XIV o bispo de Lisieux, Nicole Oresme, redigiu o seu “Tratado da primeira invenção das moedas” (Tractatus de origine, natura, jure et mutationibus monetarum), tem-se construído uma interpretação da impossibilidade moral da gestão do valor da moeda, porque ato contra a natureza e, portanto, contra Deus. A sua conceção era fundada em Aristóteles, que tinha a moeda como convenção: uma unidade de medida, que serve como meio de troca, porque é estável. [8] Neste sentido, o dinheiro seria estéril para a produção de riqueza. A mutação da moeda, como forma de realizar um ganho, era comparada, então, à usura; além de configurar-se como uma ação contra os povos, os contratos e a propriedade privada.

No século XVII, contudo, os interesses dos mercados e as necessidades da Fazenda, tornaram a prática mutacionista aceite e mesmo recorrente. A manipulação do valor da moeda, que era um dos principais instrumentos dos monarcas para reduzir os custos das dívidas do Estado e resultava, também, em ganhos de natureza fiscal (De Boyer, 2003, p. 4; Spufford, 1989), era vista como perigosa e imoral, mas necessária. Era perigosa porque capaz de interferir na distribuição da propriedade, de ampliar tensões sociais, fazendo crescer a insatisfação dos povos e dos corpos sociais. Era imoral, porque atentando contra a natureza, podia implicar o soberano em erro ou pecado, e macular as consciências dos que propunham a prática. Mas os tempos exigiam grandes riscos. E a consolidação da monarquia não se faria sem enfrentamento e cinismo. E a moeda, apesar do que se pensava, era território do poder.

Uma nova história monetária tem proposto justamente recolocar o poder na génese das práticas monetárias, na formulação de políticas para a moeda e construção dos regimes monetários. Com efeito, devemos notar que, na história monetária, a narrativa dominante reitera a visão de que é o mercado que cria a moeda. Que o sistema monetário se constitui para exercer as funções necessárias do dinheiro - unidade de conta, meio de pagamento e meio de troca - que a troca das mercadorias exige. De alguma forma, é preciso inverter esta visão. E introduzir o poder neste processo. Christine Desan (2014, p. 38 e pp. 58-61) procurou demonstrar como “menos do que emergir do comércio, o dinheiro, ao contrário, torna o comércio possível”. Sendo assim, uma nova narrativa deve mostrar como cada uma dessas funções do dinheiro é, em sua base, “um modo de governo”. [9] Moeda e poder não podem estar assim separados. De forma que é a sua fabricação contínua, a sua engenharia, que produz o mercado e permite que o poder faça uso da riqueza social, ao mesmo tempo que a compartilha com outros protagonistas e engenheiros do dinheiro.

1641: MUTACIONE PONDERIS MONETARUM

Naquele ano de 1641, as Cortes eram ainda imaginadas como o espaço para a discussão dos novos impostos, a renovação das obrigações comuns para com a Fazenda e com os seus gastos. Porém, a guerra justificaria tudo e um pouco mais. E os Estados reunidos cederam o que lhes pedia o seu novo rei. Como mostrou Pedro Cardim, foi nesse momento que “começava a ser delineado o programa fiscal da coroa brigantina”, com a aprovação da “décima” e a criação da Junta dos Três Estados (Cardim, 1998, p. 100). Em substituição ao levantamento dos impostos filipinos era preciso reaver novas fontes para a Fazenda. De forma excecional, as Cortes aceitaram a criação de um novo tributo que previa a entrega da “décima parte do que valessem os rendimentos das fazendas dos vassalos”, de todos os vassalos, não importando a sua condição. Como mostrou Joaquim Romero Magalhães, “era um tributo geral que incidia sobre todos os vassalos e tendencialmente proporcional aos rendimentos de cada um”, algo que não fora nem imaginado pelo “odiado conde de Olivares”. A “Junta dos Três Estados e Provimento das Fronteiras” foi então criada com o sentido de orientar os trabalhos de lançamento e recolha do tributo (Magalhães, 2004, pp. 160-162). Mas a cobrança não era simples e os seus rendimentos demoraram a aparecer. A coroa já preparava, nessa situação, outras formas mais efetivas e fáceis de obter dinheiro.

A mutação do sistema monetário seria decidida no seguimento das Cortes. Em sala fechada do paço, onde se reuniam os conselheiros da Fazenda. Como vimos, ousava-se pensar, ao arrepio do senso comum orasmiano, que o assunto não deveria ser deliberado pelos estados reunidos. Inicialmente, uma alteração apenas na forma e figura das moedas nacionais - que haviam sido mantidas pelos Filipes, ainda que pouco presentes no meio circulante português ocupado pelas peças de Castela - parecia mais do que razoável. Mesmo necessária em consonância com a dimensão política da rutura dinástica. Em Alvará de 14 de fevereiro de 1641, el-rei resolveu que fossem feitas novas moedas com a prata que “algumas pessoas zelosas do meu serviço e do bem público trazem à arca do tesoureiro mor”. Estes tostões (100 réis) e meio-tostões (50 réis), seriam feitos de forma a que de um marco da prata amoedado seriam representados 2$800 réis. As novas moedas seriam, então, lavradas com o nome d’el-rei [JOANNES QUARTUS DEI GRATIAE REX PORTUGALIAE], no lugar do Habsburgo [PHILLIPUS]. [10] Raúl da Costa Couvreur (1943) via neste ato a “afirmação da nova soberania”; bater moedas com o nome de João IV tinha um caráter de “propaganda política”, na medida em que, notava Orlando da Rocha Pinto, como “um precioso veículo de informação, a moeda, comunicava aos descrentes um facto consumado, apelando aos indecisos a sua colaboração” (Pinto, 1989, p. 153). [11] Pode até ser que tal instrução tivesse, também, este fim propagandístico. Mas certamente não era o mais importante. Ou, ao contrário, serviria esta necessidade de afirmar a imagem do rei como um pretexto para uma intervenção no sistema monetário. Que era o que se preparava.

Com efeito, uma proposta de alteração do valor das moedas de prata e de ouro foi discutida no Conselho da Fazenda em 27 de junho de 1641. [12] Sabemos que no dia 12 de junho, el-rei havia encaminhado para apreciação um papel sobre um meio “de se fazer dinheiro pronto, subindo o valor da prata” e do ouro. O alvitre recomendava que, reunindo uns 100 ou 120 mil cruzados em prata, fossem cunhadas novas moedas com o mesmo valor extrínseco, mas com “20 por cento menos do que agora pesam”. Enviados para todo reino, editais obrigariam -“sob gravíssimas penas” -“que toda pessoa que tiver dinheiro amoedado o traga logo à [casa da] Moeda desta cidade; e os que estiverem longe dela que o levem às câmaras das outras cidades em cujo termo forem moradores”, para que suas peças fossem trocadas. Uma vez recolhidas, novas peças poderiam ser feitas e, ao final, todo o meio circulante poderia ser substituído por estas peças mais leves. Para as moedas de ouro, o arbítrio propõe uma quebra de 12 ou 15 por cento do seu peso. Estimava-se que a oferta monetária (de peças de prata) em Portugal fosse de 12 milhões de tostões, ou seja, 1 200 000$000 réis (3 milhões de cruzados). O ganho imaginado seria de pelo menos 200 000$000 (500 mil cruzados), descontados os gastos para a sua fabricação. Além deste ganho direto, o autor do papel acredita que a medida iria inibir os mercadores de levarem as moedas para fora do reino, já que mais proveito teriam com elas em Portugal. Além disso, esperava-se que fossem atraídos metais, sobretudo de Castela, uma vez que “não deixará o inimigo de, por todas as via possíveis, de o meter neste reino, para haver de gozar do dito avanço”, isto é, da valorização do metal em moeda de conta (réis). A apreciação do Conselho foi positiva. O Procurador da Fazenda encaminhou a sua posição por escrito. Sem discordar da necessidade de alterar-se a moeda, disse que era “muito vulgar, e nem por isso pior, o arbítrio de subir preço da prata, sem corromper o intrínseco valor dela”. Era algo já conhecido e notório: “tem-se feito dele tantas vezes inculcar aos reis de Castela, que há naquele reino dois ou três livros impressos que não tratam de outra coisa”. [13] A referência era ao momento em que, em Salamanca, o dogma aristotélico da esterilidade do dinheiro estava a ser abandonado. [14] O procurador aponta que os particulares, sobretudo os homens de negócio, poderiam queixar-se do seu prejuízo; além disso, era esperado um aumento dos preços e mantimentos. Este poderia ser contido com leis proibindo a mudança dos preços. Quanto à queixa dos particulares, o procurador considerava-a infundada já que “por o preço ao dinheiro e aos metais seria uma regalia de Vossa Majestade que, em mais que em muitas, consiste na soberania do seu justo poder”. Note-se que a sua opinião está bem afastada das restrições oresmianas. Por fim, o conselheiro Henrique Correia da Silva recomendava que a quebra fosse feita com a refundição da moeda, porque se fosse apenas cunhada com uma marca haveria grande oportunidade de fraudes, afinal “era facílimo furtar-se o mesmo cunho e ficar sem o proveito que se espera”. [15]

Alguns dias depois, a 1 de julho de 1641, uma nova lei estabelecia uma importante desvalorização da moeda metálica em Portugal, o que se faria por meio da sua refabricação. Ao longo de todo o século XVII, o marco de prata amoedado valia 2$800 réis. O período filipino havia conseguido manter de forma muito estável a relação entre a moeda de conta (o real) e as peças de prata no sistema monetário português, isto apesar da sua pouca presença no meio circulante, dominado pelas espécies cunhadas em Castela ou nas colónias (México e Peru). De toda a forma, a decisão de D. João IV era de refundir a prata existente e, aproveitando a ocasião, desvalorizar o real. A monarquia estabelecia que se daria “a nova moeda de prata de lei de onze dinheiros o valor de 20 por cento a mais do que pesar”. Com a prata recolhida à Casa da Moeda deveriam ser feitas novas moedas na talha de 34 tostões por marco, ou seja, com um marco de metal seriam cunhadas 34 peças de um tostão (100 réis cada uma), o que resultava numa desvalorização do real de 21,4 %. Aos donos da prata, que tinham a obrigação de entregá-la na Casa da Moeda, seriam devolvidos apenas 29 tostões por marco, significando uma cobrança de 500 réis pelo direito de senhoriagem. [16] Deveriam ser cunhadas moedas de “tostões, meio tostões, quatro vinténs, dois vinténs, vinténs singelos, meio vinténs e cinquinhos”, acrescentando o ano da sua fabricação “ao pé da cruz com que se cunham” - medida que imitava a de Filipe II, que ordenou em 1588 que as moedas fossem produzidas com a data junto à cruz de Jerusalém “por letra de guarismo”. [17] A lei, com alteração de uma provisão de 19 de julho, dava um prazo de um mês, em Lisboa, e seis meses para os outros lugares do reino para que os donos do metal gastassem ou trocassem as suas peças, dai a importância da data. [18]

Desde o início do governo dos Braganças, ficou definido que a política monetária seria um assunto para o Conselho da Fazenda, organismo encarregado de projetar as intervenções na economia mercantil e zelar pelo funcionamento da estrutura fiscal do Estado. O tribunal já existia há quase um século, e fora criado (pelo regimento de 20 de novembro de 1591), com o objetivo de converter num só tribunal as vedorias da fazenda do reino, da Índia e da África e Contos. [19] O seu Regimento pouco esclarece sobre as competências do novo tribunal (Sousa, 1783, tomo I, pp. 1-161). Isto deve ser buscado justamente nos Regimentos e ordenações da Fazenda, que haviam sido dados por D. Manoel no começo do século XVI, em 17 de outubro de 1516 (Frazão, 1995, p. 12). O Conselho da Fazenda, quando criado, deveria ficar apenas com o expediente voluntário, sendo que o contencioso já havia passado para a Casa da Suplicação, quando a lei de 24 de outubro de 1568 havia criado os Juízos dos Feitos da Fazenda e o dos Feitos da Coroa. Ao longo do século XVII, algumas decisões administrativas irão comprometer esta distinção. A criação do Conselho da Índia (1604) e do Conselho Ultramarino (1642) irá interferir nas competências do Conselho da Fazenda (Frazão, 1995, pp. 17 e ss.). Logo após a Restauração, a Coroa ampliou (decreto de 07-01-1641) o número de vedores para três, tendo nomeado D. Miguel de Almeida (carta régia de 21-01-1641) e Henrique Correia da Silva (carta régia de 01-03-1641). Quando, em 13 de fevereiro de 1642, foi nomeado o Marquês de Montalvão para o lugar do terceiro vedor, esclareceu-se, pela primeira vez, que os assuntos “da moeda” seriam da sua competência e de responsabilidade do Conselho (Peres, 1959, pp. 7-8). No que nos interessa, neste contexto da Restauração e de crise financeira, o Conselho irá desempenhar um importante papel de coordenador das intervenções no sistema monetário, subordinando a Casa da Moeda de Lisboa e outras demais oficinas - o que consolidava o monopólio régio na emissão das moedas - e organizando o diálogo entre os especialistas na matéria, representantes dos comerciantes e cambistas portugueses e a própria monarquia, tendo em vista os objetivos fiscais e de ordenamento que se buscava. [20] Observando-se o processo de tomada de decisões, pode-se perceber que as propostas encaminhas pelo rei, ou por meio da ação do rei, eram inicialmente discutidas em sessões ordinárias do Conselho ou em “juntas”, onde se ouviam pessoas “práticas” no assunto, para formar-se uma opinião fundada. A decisão final, que era do monarca (como sempre) era então comunicada ao Conselho que cabia expedir as ordens para a Casa da Moeda.

1642: MUTACIONE APPELLACIONIS MONETE

De toda forma, eram tempos incertos e, como não era possível recolher, rápida ou cabalmente, todo o dinheiro circulante para refundi-lo, a monarquia teria de decidir pelo levantamento do valor de face das peças existentes. O Conselho da Fazenda, reunido em 9 de janeiro de 1642, ponderou sobre a dificuldade de recolher e fazer novas moedas, como previsto na lei de julho de 1641. A demora na sua produção era motivo (justo) para queixa dos particulares que nessa altura faziam o seu sacrifício pela monarquia. Colocar nas moedas que já circulavam marcas com um cunho, parecia algo mais exequível, afinal esta “obra não tem mais manufatura que dar uma só martelada em cada moeda”, como ponderou D. Miguel de Almeida, vedor da Fazenda. O argumento de que seria fácil falsificar os cunhos foi por ele contestado, alegando que a oferta monetária - cuja estimação correta ele acreditava era de menos de 5 milhões de tostões - estava dispersa e não haveria instrumentos disponíveis para este crime. O Doutor António das Póvoas recomendava que a solução era mais conveniente, porque mais rápida; o que demandava a guerra na fronteira. Nas suas palavras, “nenhum outro remédio pode haver com que tão apressadamente se possa acudir ao pagamento dos exércitos senão com este, quando estão em estado de fugirem das fronteiras os soldados por falta de pagamento”. [21] Assim, na névoa da guerra, as decisões precisam de ser tomadas rapidamente, quase sempre à sombra, ainda que não se tenha a certeza das suas implicações. A mutação da moeda era procedimento que deveria garantir algum dinheiro em caixa para a Fazenda, permitindo uns tantos pagamentos e, com isso, a contratação de fornecedores e tropas para a luta pela independência.

Decidia-se por alterar o valor extrínseco das moedas (mutacione appellacionis monete), já que não havia condições materiais para recolher todo o metal circulante e fazer novas moedas com menor valor intrínseco (mutacione ponderis monetarum). [22] Ouvido o Conselho da Fazenda, em 9 de janeiro de 1642, o rei determinou, em lei de 3 de fevereiro, que como um tostão novo (dos que teriam sido refabricados) tinha agora o peso de 4 vinténs, mas valia 5, que os tostões antigos que ainda circulavam passassem a valer 6 vinténs, isto é, 120 réis: “que com dar à moeda antiga o valor a este respeito, fica toda em um mesmo estado igual”. Para tanto, um cunho deveria marcar as moedas antigas com um algarismo. Isto valeria para toda a série de moedas de prata. Sendo assim, os meio tostões passavam a valer três vinténs, as moedas de 80 réis, 100 réis, e as de 40 réis valiam agora 50 réis. [23]

Estas marcas em algarismo, e não em números “romanos”, eram uma inovação -“para se diferenciarem de todos os mais cunhos, assim antigos como modernos de maneira que possam conhecer com certeza uns e outros” - que revela, de alguma maneira, a confusão que já poderia haver com peças sendo marcadas e remarcadas. Para realizar esta marcação, foi preparado um regimento muito detalhado de como proceder. A operação seria feita - além da Casa da Moeda em Lisboa - em oficinas em várias regiões do reino: Porto, Coimbra, Évora e Tavira. [24] No capítulo 14, o Regimento “concedia” aos donos das moedas um “prémio” de 2 % do valor nas trocas, o que era imaginado como um possível incentivo. Mas, no capítulo seguinte, definem-se castigos duros para as pessoas, “de qualquer qualidade ou condição que seja”, que mantivessem escondidos em casa dinheiro velho, sem apresentá-lo para ser marcado: “seja condenada em perdimento dele e no tresdobro [isto é, em três vezes o seu valor] e dez anos de degredo para o Brasil”. Uma preocupação evidente, no caso de qualquer marcação por cunhos de moedas antigas, era com a possibilidade de fraudes. Daí o cuidado, anotado no Regimento, com o segredo sobre os cunhos, a necessidade de estarem bem guardados e serem de pouco conhecimento, assim como de punir as contrafações dos cunhos e selos, o que seria considerado crime de falsificação da moeda. O capítulo 19, com excesso de zelo, mandava ainda que fossem sempre revistados os “oficiais que hão de cunhar”, para que não pudessem levar moedas antigas em “algibeiras ou em outras partes escondidas” e, usando dos cunhos, fizessem suas peças valerem 20% mais. [25] O Alvará de 19 de fevereiro, ampliava o escopo do capítulo 15 do Regimento, considerando fraude manter moedas antigas e premiando os denunciantes com um terço do valor que fosse confiscado e o seu tresdobro (a ser pago em multa). [26] Em março de 1642, um outro regimento foi escrito especialmente para a cunhagem das moedas de prata nas ilhas da Madeira e dos Açores. O capitão general Antonio de Saldanha, do Conselho da Guerra, ia com o exército da Ilha Terceira e os recursos necessários para o seu sustento e para a reparação da fortaleza do Brasil nos Açores, seriam obtidos com a troca destas moedas. [27] Como vimos, todos os ganhos esperados na Casa da Moeda eram então destinados aos esforços de guerra. Antes mesmo de começar a troca das moedas, já se autorizava os gastos do que se supunha arrecadar. Uma determinação régia de 8 de fevereiro de 1642 já mandava que dos “avanços da Casa da Moeda [de Lisboa] se pague a folha de 1 324$600 réis para os socorros dos capitães e soldados da armada e outra de 288$000 réis para pagamento dos salitres”. [28] Não sabemos exatamente como funcionaram estas oficinas e casas da moeda, que seriam, desde então, entregues a “assentistas”, isto é, à gestão de particulares que contratavam com a Coroa a fábrica das novas moedas. [29] Para fiscalizar o contrato foi nomeado novo juiz conservador da Moeda. [30]

Em março de 1642, a monarquia prosseguia na sua intervenção no sistema monetário. O ajuste seria feito agora de forma violenta sobre as moedas de ouro. Segundo o Conselho da Fazenda, tendo-se cunhado no reino “imenso número de moedas de quatro cruzados, há hoje tão poucas que não se acham facilmente, e ainda há muito menos de outras moedas portuguesas”. Percebia-se que as peças que circulavam em Portugal estavam a desaparecer, em função do desequilíbrio do seu valor intrínseco: se o ouro amoedado valia 468 réis, a oitava (uma moeda de um cruzado de ouro, cunhada até então, tinha 61 e 7/12 grãos), “em metal” estava a ser cotado entre os ourives entre 600 e 640 réis. Em marcos, os valores são de 29$952 réis o metal amoedado, enquanto o ouro era mercadoria comercializada em valores de até 40$960. Assim sendo, mais valia derreter as peças de ouro cunhadas em Portugal ou levá-las para fora do reino do que usá-las como moeda. [31] A lei de 29 de março de 1642 determinou a maior desvalorização da moeda de ouro na história de Portugal (se não consideramos a alteração introduzida por D. António, quando na Guarda). As moedas de ouro de 22 quilates que valiam 4 cruzados (1$600 réis) deveriam ser novamente lavradas e, sem alterar o seu peso (que manteriam os 246 grãos), passariam a valer 3$000 réis. Um aumento de 87,5% no valor extrínseco da moeda de ouro. A lei ainda determina um alto valor para a troca das peças. Os donos de moedas de quatro cruzados trocariam as suas peças não por novas moedas de 3$000, mas pelo equivalente à de 2$500 réis. A diferença (senhoriagem) de 500 réis ficaria para a Fazenda real, subtraídos os custos da casa da moeda (“que serão os menores que for possível”). Aqueles que levassem o metal em outras formas (“em barras, peças [estrangeiras] ou pastas”) receberiam apenas 660 réis por oitava, ou seja, 42$240 réis pelo marco. Ora, como as moedas de 3$000 réis tinham os mesmos 246 grãos, o marco amoedado passava a ter um valor de 56$195 réis. A diferença, de 13$955 réis (quase 25 %), era bem superior ao que se determinava obter pela senhoriagem das peças de cruzados (9$366 réis por marco que se amoedasse, já que era possível cunhar 18 e 47/64 moedas com cada marco). Fazendo as contas, a lei de março de 1642, além de valorizar em 87,5 % as moedas sob o seu controlo, permitiu à Coroa (ao obrigar à sua re-fabricação) apoderar-se no processo de importante quantia com a senhoriagem. [32]

UM “ÚLTIMO SUSPIRO” ORESMIANO

A alteração da moeda era pensada como um importante, mas perigoso, mecanismo de financiamento da monarquia. O principal ganho não vinha da senhoriagem, ou seja, da parte que era retida no processo de fabricação da moeda, mas sobretudo da alteração da relação do valor intrínseco do metal (moeda-mercadoria) com a moeda de conta (o real). A desvalorização do real (com a consequente valorização da prata) era uma forma de aliviar os pagamentos dos contratos, entregas e obrigações da coroa - entre os quais se destacavam as rendas e juros, que resultavam do crescente endividamento da Fazenda. O perigoso de uma política monetária mutacionista era que ela, além de representar uma transferência abrupta de renda (em direção ao Estado, soberano da moeda), poderia também produzir um deslocamento generalizado de todos os preços. A inflação, contudo, seria sentida em alguns setores da economia, já que esta não era indexada. Os ganhos do trabalho, como salários e pagamentos de serviços, os soldos e ordenados, manter-se-iam, como se pode imaginar, nos limites já dados. A quebra da moeda era sentida como danosa e era pensada, nos termos da ética económica aristotélica, como imoral e invasiva dos direitos particulares. É a posição crítica em relação ao mutacionismo, que ecoa na Europa desde o Tratado da Invenção da Moeda de Oresmes (1355), para quem a manipulação do valor da moeda era uma prática perigosa - porque imoral e também capaz de ampliar tensões sociais, fazendo crescer a insatisfação dos povos e dos corpos sociais. [33]

Neste sentido, é interessante perceber que a determinação na Coroa de quebrar a moeda de prata em 1642 não se fez sem alguma resistência - o que demonstra a insatisfação com a forte mudança no valor da moeda. Com efeito, apoiando-se no seu regimento [34] , o chanceler-mor, Fernão Cabral, recusou-se inicialmente a assinar e mandar selar o diploma régio de fevereiro de 1642. Cabral alegava que a lei que fora enviada sobre a desvalorização das moedas de prata era contra os direitos do próprio rei, contra o povo, a clerezia e as pessoas comuns. A sua opinião era clara e evocava uma posição oresmiana: “não negamos que pode tudo vossa majestade, mas dar o preço ao dinheiro deve ser em Cortes, com os três estados juntos”. Cabral interpretava a definição das Ordenações (livro 2, tit. 26, § 3): se era certo que o rei tinha “autoridade para fazer moeda”, o que era um direito seu, não teria para definir o seu preço. [35] Cabral já havia encaminhado, em julho de 1641, um parecer sobre o assunto. Nele, historiava, com base nos documentos da Torre do Tombo, como se definiram tais limites ao poder dos reis. Nas cortes de 1261, D. Afonso, que havia batido moedas novas, alterando o seu valor sem o consentimento dos povos, fora repreendido. Cita então a Crónica de Fernão Lopes (Lopes, 1895-1896 [1436-1443], vol. 1, caps. 56 e 57) e outros momentos da história, para concluir: “donde se vê que obedeceram os reis a lei e juramento de seus avós que se não pode bater moeda, senão com seu intrínseco valor, e com consentimento dos povos o que faça juntos em cortes”. [36] O chanceler-mor denunciava as “seguras confusões” de viriam de conselhos afobados de pessoas próximas ao rei, desejosas de rápidas soluções para fazer dinheiro para a guerra. Confrontando, assim, a política monetária que ia sendo desenhada no Conselho da Fazenda. Num outro papel, argumentava longamente como o remédio era equivocado, porque facilitaria a ruína do comércio e traria prejuízos aos interesses dos portugueses. [37] Este episódio revela a postura de uma elite apegada às prerrogativas do sistema corporativo da monarquia e que via com maus olhos as mudanças aceleradas que se iam praticando no sistema monetário, com grandes consequências para a economia do reino. A sua posição, um pouco desconfiada da nova dinastia, era já conhecida. O chanceler-mor, com efeito, havia surpreendido na ocasião do juramento de D. João, como rei de Portugal, dizendo a alguns fidalgos presentes que deveria ser feito “com cláusula, até a vinda de D. Sebastião”, o que foi respondido pelo rei que o faria, já que “não sou tirano que, que lhe tome o reino, que é seu” (Vasconcelos, 1643, parte 2, cap. IX, p. 305).

A posição oresmiana, contrária a mutação da moeda pelo monarca e que reconhecia apenas nas cortes e nos povos o direito à alteração desta relação entre a moeda de conta e o valor do metal, parecia então muito difundida em Portugal. Será avocada nos próximos anos, mesmo quando a política monetária avançar, de forma violenta e sem consideração por estas questões de uma “economia moral”. Cabral não era, portanto, uma voz isolada. Um papel anónimo “sobre a moeda que fez no tempo da sujeição à Castela e do governo de Filipe IV, ano de 1636”, guardado nas estantes da Biblioteca da Ajuda, representa bem estas conceções avessas às políticas monetárias. Com efeito, o anacronismo do título explica-se por se tratar de considerações escritas a Filipe IV, mas que foram então reapresentadas à D. João IV, passado o “tempo da sujeição à Castela” [38] . O documento tem um enorme valor, pela disposição erudita com que pretende defender a posição oresmiana (e aristotélica) pela preservação do valor da moeda, negando o direito ao príncipe de poder manipulá-la.

Mas, nestes tempos de guerra, não era a prudência a guiar as políticas monetárias da Coroa. A posição de Cabral não surtiria nenhum efeito. É ainda incerto se a influência da chamada Escola da Salamanca, com a sua reflexão mais avançada e regalista, defendendo uma formulação intervencionista do príncipe no universo do económico, era já corrente em Portugal. Os trabalhos de Martín de Azpilcueta (1492-1586) e Tomás de Mercado (1523-575), com as suas primeiras reflexões sobre o dinheiro e sua estimação, buscaram, de alguma maneira, afastar-se do debate moral e procuraram enfrentar as questões práticas resultantes da expansão económica e da injeção de liquidez, com a inflação geral dos preços (Baeck, 1998, pp. 169 e ss.). O livro de Alonso Carranza, publicado em 1629, é certamente um marco fundamental e, podemos imaginar, era já conhecido no início do governo de D. João. O seu tratado sobre o ajustamiento de las monedas defendia uma política de desvalorização da moeda, como forma de enfrentar a crise espanhola e estimular a produção de metais na América (Carranza, 1629). Em certo sentido, podemos entender que o que se gestava em Salamanca era, de alguma forma, uma antecipação da economia política que, nos mesmos anos iniciais do século XVII, começa a desenhar-se na obra de Antoine de Montchrestien (1575-1621). No seu Traité de l’Économie Politique (1615), o dramaturgo e huguenote, procurava superar a dimensão familiar da atividade produtiva e de consumo, inserindo a economia no espaço da política. [39] Não encontramos registo claro disto em Portugal. Sabemos que o pensamento económico acompanhava, em terras lusitanas, alguns dos caminhos propostos pelos textos de Salamanca. O Tratado do Cambio de Fernão Rebelo, publicado parcialmente em 1608, era, na definição de Armando Castro, um “misto de análise jurídica e económica à luz dos princípios teológicos, éticos e filosóficos da Escolástica”. Rebelo abordava a moeda não como a representação da riqueza, mas como a sua manifestação mesma. Desta maneira, o valor da moeda poderia alterar-se como o valor de outra qualquer mercadoria. [40] Esta conceção mercantil da moeda era um elemento central para a sua autonomização da esfera moral e, portanto, a sua sujeição às práticas mercantilistas, ou seja, a construção de políticas monetárias. Este entendimento, mais pragmático e desimpedido da monarquia, ocorria desde os tempos de Avis, quando a prática mercantil impôs a sua lógica e a sua forma de ver o dinheiro (como mercadoria) à esfera do poder. Naquele momento, já se assistia em Portugal à emergência de uma política monetária - superando o que chamamos de “práticas monetárias”, isto é, iniciativas pouco coordenadas, não planeadas e orientadas por um impulso único. A reação à política monetária de D. João IV é, assim, compreensível nos quadros mentais de uma hegemonia ainda oresmiana do pensamento monetário em Portugal, mas já arcaica e, neste sentido, derrotada. [41]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido a 05-12-2017.

Aceite para publicação a 27-11-2018.

 

[1] “Carta Régia de 14-12-1640”, Silva (1854-1859, pp.10-11). Doravante citado como CCLP.

[2] “Decreto de 24-12-1640”, CCLP, 1640-1647, p. 12.

[3] “Lei sobre se não ir nenhuma pessoa deste reino para o de Castela sem licença de Sua Majestade, com pena de morte”, Lisboa, 19-12-1640, BNP, reservados, 84 n.º 79.

[4] Consulta do Conselho da Fazenda, Lisboa, 02-01-1641, AHU, códice 30, fls. 3-43v.

[5] ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642), fl. 6v.

[6] “Capítulos gerais oferecidos pelos povos nas cortes que o dito senhor [D. João IV] convocou em Lisboa no ano de 1641”, veja em Santarém (1828, 2.ª. parte, p. 94).

[7] A sua leitura deriva do trabalho de Spufford (1989).

[8] “Ora, esta unidade é na realidade a procura, que mantém unidas todas as coisas (porque, se os homens não necessitassem em absoluto dos bens uns dos outros, ou não necessitassem deles igualmente, ou não haveria troca, ou não a mesma troca); mas o dinheiro tornou-se, por convenção, uma espécie de representante da procura; e por isso que se chama ‘dinheiro’ (nomisma), já que existe não por natureza, mas por lei (nomos) e está em nosso poder de mudá-lo e torná-lo sem valor” (Aristóteles, 1984, livro V, 1133 25, p. 128). Veja também Burns (1927, pp. 468-471). Para uma leitura atenta da posição de Aristóteles, veja o artigo de Zelmanovitz (2012).

[9] Segundo esta autora, a unidade de conta surge quando alguém ou um grupo - uma parte interessada e com capacidade (stakeholden) - marca algo não fungível como um símbolo de valor. Este mesmo grupo é que pode criar este símbolo como meio de pagamento, convidando todos a utilizá-lo já que garante a sua função como tal. Por fim, o que permite que o dinheiro possa servir de meio de troca, como crédito e garantia de futuros pagamentos, é, ao final, o compromisso de que o seu criador irá novamente aceitá-lo.

[10] “Alvará de 14-02-1641”, AHCM, Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 201 e 201v.

[11] Da mesma forma, depois de ascender ao trono da Inglaterra, Elizabeth resolveu, em 1560, recunhar todo o meio circulante, aproveitando para realizar uma desvalorização da moeda (Potter, 1994, pp. 69-67).

[12] ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642), fls. 45-46; e AHU, códice 30, fls. 82-87.

[13] Consulta “sobre se subir o valor da prata” do Conselho da Fazenda, Lisboa, 21-06-1641, AHU, códice 30, fls. 82-87. O despacho d’el-rei, de 27 de junho, foi então para que assim fosse feito com relação à prata, dando aviso ao Desembargo do Paço para que fosse preparada uma lei geral.

[14] Como bem observou Louis Baeck, neste contexto onde o “dinheiro trabalha”, considerava-se lícito o ganho resultado de um mecanismo de mercado, isto é, quando o dinheiro atuava como uma mercadoria, para além das suas funções necessárias - unidade de conta, meio de pagamento e meio de troca - tornava-se capital (Baeck, 2014, p. 735). No início do século XVII, o pensamento mercantilista iria propor justificações teóricas e condições jurídicas para a “mudança da moeda”. De uma prática conduzida pelo governo das monarquias, a interferência no fenómeno monetário acabaria sendo objeto de reflexão e de formulações académicas. Salamanca, neste momento, é um dos centros mais importantes para este debate. O livro de Alonso Carranza, publicado em 1629, é certamente um marco fundamental. Este seu tratado sobre o ajustamiento de las monedas, defendia uma política de desvalorização da moeda, como forma de enfrentar a crise espanhola e estimular a produção de metais na América. Carranza afirma que “o principe soberano no tiene libre i absoluta potestade (como ensenã Sancto Thomas) de quitar, o mudar a moneda corriente, movido de solo su gusto i voluntad, i que lo puede hazer por justa causa, que para ello sobrevenha”. Não obstante, como ele demonstra cuidadosamente, as justas causas eram muitas, incluindo-se as “naturais”, isto é, a moeda (porque desvalorizada) merecia ter seu valor alterado (Carranza, 1629, pp. 146-147). Sobre o pensamento económico em Salamanca, veja o clássico estudo de Grice-Hutchinson (1953); mais recentemente, o livro organizado por Gómez Camacho e Robledo Hernández (1998). Veja também, para a influência da Escola da Salamanca em Portugal, o texto de Cardoso (2014).

[15] Consulta “sobre se subir o valor da prata” do Conselho da Fazenda, Lisboa, 21-06-1641, AHU, códice 30, fls. 82-87. O despacho d’el-rei, de 27 de junho, foi então para que assim fosse feito com relação à prata, dando aviso ao Desembargo do Paço para que fosse preparada uma lei geral.

[16] Senhoriagem é o nome que se dá ao direito de-rei de receber a diferença entre o valor do metal e do metal amoedado. Os custos da fábrica da moeda e a remuneração dos moedeiros (braceagem ou braçagem) poderiam ser descontados desta diferença ou pagos de outra forma, por contrato ou antecipação.

[17] Lei do ano de 1641 sobre o acrescentamento da moeda de prata, Lisboa, 1-07-1641 in Sousa (1738, tomo IV, pp. 348-351). Doravante citado como HGCRP. Veja-se também o registo do Arquivo Histórico da Casa da Moeda (AHCM), Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 201v e 202.

[18] “Provisão de 19-07-1641”. In Peres (1959, p. 71).

[19] Segundo António Frazão, “com o referido regimento não se reformam apenas os procedimentos a verificar no despacho dos negócios da Fazenda, retirando-se da jurisdição individual de magistrados superiores e entregando-os a uma assembléia, para decisão colegial, mas reforma-se também o próprio quadro da magistratura da Fazenda. A composição do Conselho, aí estabelecida, passa a integrar um ‘vedor da fazenda, que será o presidente’, e ‘quatro conselheiros’, destes sendo dois juristas (‘letrados’)”. Para além , haveria quatro escrivães, cada um responsável pelos papéis de uma “repartição”: (1) negócios do Reino; (2) “Índia, Mina e Guiné, Brasil e ilhas de São Tomé e Cabo Verde”; (3) “mestrados, Ilhas dos Açores e da Madeira”; (4) “África, Contos e terças” (Frazão, 1995, p. 12).

[20] Por vezes, outros tribunais tentava interferir, o que levava o Conselho da Fazenda a duras reações. É o que se viu na reunião de 24 de março de 1657, quando o Conselho reclamou da interferência do Desembargo do Paço na interpretação das determinações monetárias, assuntos exclusivos deste Conselho que considerava a Casa da Moeda a ele subordinada. Registo da Consulta do Conselho da Fazenda de 20-03-1657, ANTT, Ministério do Reino, livro 164 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1656-1660), fls. 6-6v.

[21] Consulta “sobre os novos cunhos que se deve por na moeda” do Conselho da Fazenda, Lisboa, 09-01-1642, AHU, códice 30, fls. 138-143.

[22] Nos termos definidos por Oresme (2004 [1355], p. 62). O texto do Tractatus brevissimus optimis tamen sententiis refertissimus de mutatione monetarum ac variatione facta per reges aut principes foi escrito provavelmente no ano de 1358. Há várias edições disponíveis desde que foi primeiramente impresso por volta do ano de 1511.

[23] ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642), fls. 94v-95. Lei do ano de 1642 para que se cunhem novamente as moedas de prata com maior preço, Lisboa, 03-02-1643. HGCRP, IV, pp. 351-354.

[24] Um registo do Conselho da Fazenda (12-02-1642) fala sobre a “nomeação de pessoas para assistentes das nove casas em que pelo reino se há de fazer cunho da moeda”. ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642, fl. 96).

[25] “Regimento de Sua Majestade para se marcarem os tostões, os meios tostões velhos, e moedas de quatro vinténs e dois vinténs portugueses”, Lisboa, 01-02-1642, AHCM, Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 212v e 215.

[26] “Alvará que Sua Majestade mandou acrescentar sobre o Regimento do novo cunho”, Lisboa, 19-02-1642, AHCM, Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 215v e 216.

[27] “Alvará sobre a forma em que se há de cunhar a moeda nas Ilhas dos Açores e da Madeira”, Lisboa, 10-03-1642, AHU, códice 432, fls. 156-159v.

[28] ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642, fl. 97); e AUH, códice 30, fl. 152.

[29] Como se pode notar no breve registo feito pelo Conselho da Fazenda em 11-04-1642. ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642, fl. 117v).

[30] Em 11-04-1642. ANTT, Ministério do Reino, livro 161 (Livro de Registo das Consultas do Conselho da Fazenda, 1640-1642, fl. 118).

[31] Consulta “sobre a nova fábrica das moedas de ouro” do Conselho da Fazenda, Lisboa, 18-03-1642, AHU, códice 30, fls. 168-169v.

[32] “Lei do ano de 1642 sobre o valor que há de ter o ouro e que as moedas de ouro valham 3$000 réis”, Lisboa, 29-03-1642, HGCR, 354-356. Há um registo desta lei no Livro do AHCM. No entanto, ela está copiada com um preâmbulo que foi descartado na publicação da HGCR. Nesta introdução, justifica-se a mudança do valor em função desta diferença do preço do metal. Cf. AHCM, Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 217v e 218. Cf. também “Ordem de Sua Majestade sobre o ouro que há de lavrar em moedas”, Lisboa, 30-05-1642, AHCM, Livro 1 de registo geral da correspondência recebida e expedida (1551-1687), fls. 219 e 219v.

[33] “Em primeiro lugar, toda a alteração de moeda, exceto os raríssimos casos citados anteriormente, incorpora e contém nela tanta fraude e falsidade que não compete ao príncipe fazê-la, como foi provado anteriormente; do que decorre que se o príncipe usurpa injustamente uma coisa em si injusta, é impossível que ele, dessa forma, obtenha ganho justo ou rendimento honesto. Além disso, na medida em que o príncipe obtém esse tipo de ganho, disso resulta necessariamente igual prejuízo para a comunidade. Qualquer coisa, diz Aristóteles, que o príncipe faça em prejuízo ou dano da comunidade é injustiça e fato tirânico, não digno de um rei” (Oresme, 2004 [1355], p. 62).

[34] Código Filipino (1603), livro 1, tit. 2, § 4.

[35] Carta de Fernão Cabral, Chanceler-mor, ao rei d. João IV sobre o valor da prata. Lisboa, 12.02.1642, BPA, 51-VI-1, fls. 167-167v.

[36] Parecer de Fernão Cabral, Chanceler-mor, como se não poder mudar a moeda neste reino sem consentimento dos Estados juntos em cortes, Lisboa, 16.07.1641, BPA, 51-VI-1, fls. 168-169.

[37] Inconvenientes que se seguem da mudança da moeda, escrito por Fernão Cabral, Chanceler-mor, Lisboa, [1641]. BPA, 51-VI-1, fls. 170-171v.

[38] “Papel sobre a moeda que fez no tempo da sujeição à Castela e do governo de Filipe IV, ano de 1636”, Biblioteca do Palácio da Ajuda (BPA), 54-XIII-9 (43).

[39] “Tout cela revient à ce point qu’en l’Etat aussi bien qu’en la famille c’est un heur mêlé de grandissime profit de ménager bien les hommes particulière et propre inclination. Et sur la considération de ce rapport qu’ils ont ensemble, en ce concerne le point de l’utilité, joint avec plusieurs raisons qui seraient longues à déduire, peut fort à propos maintenir, contre l’opinion d’Aristote et de Xenophon, que l’on ne saurait diviser l’économie autres on de la police sans démembrer la partie principale de son Tout, et que la science d’acquérir des biens, qu’ils nomment ainsi, est commune aux républiques aussi bien qu’aux familles”. Montchrestien, Antoine de (1889 [1615], p. 31). Sobre Montchrestien veja o estudo de Duval (1868).

[40] O Tratado do Cambio, de Fernão Rebelo, foi impresso parcialmente em Lyon no ano de 1608. Foi reimpresso por Rau (1961). Sobre Rebelo, cf. as considerações de Almodovar e Cardoso (1998, pp. 19-20); e também o estudo de Castro (1978, pp. 38 e ss). Sobre a escolástica em Portugal, veja-se o capítulo de Coxito (2001).

[41] “Moeda e Império: o sistema monetário português e a economia colonial no século XVII”, apoiada pelo CNPq e pela Fapesp. Foi desenvolvido durante de minha estadia com o investigador visitante no ICS-UL, entre 2016-2017. Agradeço aos colegas, em particular a Nuno Gonçalo Monteiro, pelo diálogo e pelas críticas recebidas.

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