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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.232 Lisboa out. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019232.14 

RECENSÃO

Carmo, Renato Miguel do

Matias, Ana Rita

Retratos da Precariedade - Quotidianos e Aspirações dos Jovens Trabalhadores,

Lisboa, Tinta-da-China, 2019, 182 pp.

ISBN 9789896714789

José Castro Caldas*
https://orcid.org/0000-0001-8224-2254

* Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. josecaldas@ces.uc.pt


 

Possivelmente por estar em todo lado e em muitos lugares ao mesmo tempo, a precariedade é difícil de enquadrar. Daí a dificuldade de “um retrato” singular e sintético e a necessidade de recorrer a representações plurais, obtidas com instrumentos variados a partir de ângulos diversos - dados estatísticos, testemunhos instantâneos dos sujeitos e pequenos filmes de experiências de vida que se desenrolam em intervalos temporais com início e termo definido.

Sabemos o que é a precariedade, mas só enquanto não nos pedem para a definir. É nova, ou antiga? Vemo-la antiga quando evocamos o passado pré-industrial do trabalho à jorna e de ausência, na maioria das formas de assalariamento de algo que se assemelhe a um contrato de trabalho. Surge-nos como novidade, quando a vemos submergir domínios até há bem pouco tempo protegidos por normas que conferiam segurança à relação laboral a trabalhadores - como os qualificados com diplomas do ensino superior que são objeto de investigação neste estudo - cuja experiência de vida profissional se caracterizava por carreiras contruídas numa ou algumas empresas ou na administração pública.

É aceleração da rotação entre empregos e sucessão de contratos de curta e curtíssima duração? Também o é. Mas encontramo-la sobretudo em formas de emprego que, à falta de melhor, designamos de informal, e além disso em longos períodos de permanência na mesma empresa e na mesma função, mesmo com contratos “sem termo”, feita neste caso de insegurança quanto à estabilidade da empresa ou à possibilidade de despedimento.

É rejeitada pelos sujeitos, ou por eles consentida? Os testemunhos são por vezes ambivalentes. Nuns casos, ou em certos momentos, os sujeitos inquiridos referem-na como uma aberração a erradicar, noutros como um novo normal, uma inevitabilidade que requer adaptação por parte dos indivíduos. Seja como for, a precariedade tende a ser experimentada, mesmo pelos que se procuram adaptar, como uma fonte de mal-estar.

De perguntas como estas e dos respetivos ensaios de resposta é feito este livro, onde se reúnem resultados da investigação dos autores no CIES-ISCTE e do Observatório sobre Desigualdades, eles próprios em condições precárias no momento em que os estudos decorriam.

Disso mesmo - de uma precariedade observada, vivida pelos próprios observadores, e da empatia que de aí resulta com os sujeitos que são objeto da própria investigação - decorre, porventura, a vivacidade destes retratos. Eis, pois, um exercício de conceptualização da condição precária, construído sem pretensões de “distanciamento” ou “neutralidade”, a partir da experiência da própria precariedade, capaz de proporcionar, sobretudo aos não precários, o acesso a uma experiência a que está a ser sujeita toda uma geração.

Um breve capítulo de “contextualização estatística”, logo a seguir à introdução, serve sobretudo para dar conta da dificuldade em caracterizar a precariedade a partir de contagens e medições baseadas nos instrumentos estatísticos disponíveis.

Nas estatísticas encontram-se indícios de que a taxa de emprego, mais baixa entre os jovens, tem vindo a declinar e que isso não resulta apenas do aumento da escolarização, já que a taxa de desemprego aumentou muito e continua a ser particularmente elevada nos mesmos grupos etários. Encontram-

-se também marcas de uma incidência particularmente vincada do trabalho temporário e do trabalho a tempo parcial involuntário entre os mais novos, particularmente insidiosa em Portugal, como resulta de comparações com a média da União Europeia.

Mas a precariedade é mais do que atrito no acesso ao mercado de trabalho, maior propensão ao risco do desemprego, ou contratos de trabalho involuntariamente temporários ou a tempo parcial. Cada vez mais é trabalho assalariado (emprego) disfarçado de prestação de serviços, sob a forma do que em Portugal se convencionou chamar “falso recibo verde”, ou outras que por ignorância designamos como “atípicas”. Esse arquipélago das novas formas de trabalho dependente, sem contrato e “à peça”, em expansão nas redes digitais, pouca ou nenhuma expressão encontra nas estatísticas, da mesma forma que nelas não se encontram as marcas do mal-estar pessoal e social associadas à insegurança.

Para conhecer as dimensões da precariedade que as estatísticas ignoram ou ocultam é preciso, como bem sabem os sociólogos, dar voz aos sujeitos da precariedade e interpretar os seus testemunhos.

Invariavelmente, desses relatos a condição precária emerge não como uma escolha, mas como um fruto da necessidade. Para os jovens ouvidos nos diversos estudos reunidos no livro, a precariedade surge entretecida com projetos de vida ancorados em apostas de qualificação académica, que se constroem e desconstroem por força de vicissitudes que se apresentam efémeras, mas tendem a eternizar-se. Estágios que serviriam para abrir portas a carreiras, mas que acabam por resultar em nada mais do que antecâmeras de novos estágios. Bolsas que qualificariam para a investigação, mas se eternizam, depois de doutoramentos, em sucessivas bolsas, sob a complacência de uma academia envelhecida que julga beneficiar com fragilidade profissional dos jovens talentosos que põe ao seu serviço.

No processo, as próprias palavras adquirem novos significados. Carreira não significaria já compromisso com uma profissão e progressão em conhecimento e responsabilidade ao longo de uma vida. Seria antes acumulação de experiências e de “competências”, num formato manta de retalhos, tecida em permanências efémeras, escrita e reescrita recursiva de currículos que querendo ser evidência de “adaptabilidade” resultam em geral para quem os vive e para quem os lê em roteiros de errâncias desprovidas de sentido.

Nos interstícios dessas errâncias questionam-se as qualificações adquiridas, mesmo quando não se enjeita o valor intrínseco do saber. Considera-se a emigração. É fora, no exterior, o lugar onde é dado o devido valor às competências. Existem também abismos no lugar a que outros chamam transições. Períodos de desemprego sem proteção que obrigam a regressos não desejados a casa dos pais. Depressões com ou sem apoio terapêutico.

A avaliar pelos testemunhos recolhidos, da vivência da condição precária parece resultar sobretudo uma modificação da relação com o tempo, presente e futuro. O presente não é mais, como foi em gerações precedentes, um tempo de preparação e maturação de projetos de vida autónoma, tornando-se um contínuo estéril, imposto pela necessidade. O futuro, pessoal ou social, deixa de ter sentido como horizonte de esperança, dando lugar a antevisões desesperadas da condição pessoal ou distópicas do destino coletivo.

Melhor do que os depoimentos de diversas pessoas recolhidos num momento crítico de crise de emprego, o capítulo que reporta entrevistas desfasadas no tempo (2016 e 2018), dá conta da persistência da precariedade entre os jovens escolarizados, apesar da recuperação do emprego.

Numa pequena amostra encontramos João, 34 anos (arquiteto no ateliê do pai em 2016, tempo de trabalho dividido em 2018 entre uma assessoria a uma Câmara Municipal, trabalho no ateliê e atividade de freelancer); Mónica, 24 anos, (mestre em Ciências de Educação, bolseira de investigação em 2016, candidata a bolsa de doutoramento e prestadora de serviços a recibos verdes); Carlos, 28 anos (licenciado em História, desempregado em 2016, na mesma condição em 2018); Fernando, 32 anos (engenheiro civil, explicador de matemática em 2016, emigrante em 2018); Carolina, 26 anos (bióloga desempregada em 2016, trabalhadora de call-center em 2018); Mafalda, 26 anos (mestre em Arte, estagiária do IEFP em 2016, emigrante em 2018); Manuel, 31 anos (geógrafo, trabalhador em part-time em 2016, trabalhador a termo certo em 2018). Em todos os casos, entre o estado inicial de precariedade e o estado final semelhante, múltiplas “transições”, sempre fora da “zona de conforto”. Dir-se-ia que nestas vidas pouco ou nada mudou entre crise e “pós-crise”. Aparentemente. Diz-nos um depoimento destacado pelos autores na conclusão do livro: “são coisas que nos matam um bocadinho cá dentro, e também nos tornam mais maleáveis e mais permeáveis para fazerem connosco aquilo que querem, porque perdemos forças para conseguir resistir. Ficamos um pouco abertas e abertos àquilo que nos aparecer… porque nos sentimos tristes… separados de outras pessoas… Isto individualiza, separa-nos, fragmenta-nos, e isso facilita a nossa exploração”.

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