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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.235 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020235.03 

ARTIGOS

A mitologia do império na crónica de viagem colonial em Angola no século XX

The mythology of colonial empire in Angola travel writing of twentieth century

Isadora de Ataíde Fonseca1
https://orcid.org/0000-0001-9019-9794

1 Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa. Palma de Cima - 1649-023 Lisboa, Portugal. iataide@hotmail.com


 

RESUMO

A mitologia do império na crónica de viagem colonial em Angola no século XX. Género clássico, a crónica de viagem manteve-se nas páginas da imprensa colonial do século XX e propagou a ideologia e os mitos do império português. Este estudo é uma análise socio-histórica da ideologia imperial através da narrativa de viagem, revelando as elites que lhe deram forma. Numa leitura pós-colonial, o caso de Angola demonstra que a crónica do século XX atualizou e popularizou a mitologia império-colonial. Tais narrativas preservaram temas e estratégias do século XIX, numa retórica orientalista que serviu os propósitos das relações entre cultura e império com o intuito de manter o domínio colonial.

Palavras-chave: Ideologia; império-colonial; narrativas de viagem; Angola.


 

ABSTRACT

Travel writing, a classical genre, was a constant feature of the Portuguese-language colonial press during the twentieth century, and propagated the ideology and myths of the Portuguese empire. This study is a socio-historical analysis of imperial ideology through the travel writing. In a post-colonial reading, the Angolan case shows how twentieth-century travel writings updated and popularised imperial mythologies and developed an “orientalist-style” rhetoric that sought to exert and maintain Portuguese power in Africa.

Keywords: Ideology; colonial-empire; travel writing; Angola.


 

Introdução[1]

Depois de encontrar essa gloriosa gente do mato, tão afincada na transformação progressiva da terra, tornando-a cada vez mais afeiçoada à nossa maneira de ser; depois de ver o gentio definitivamente amoldado ao nosso domínio, ao mesmo tempo civilizado e generoso; depois da piedosa cerimónia a que assistimos e que foi como que um compromisso solene de imitar, quando isso se tornar necessário, os que bem souberam morrer - há o direito de dormir tranquilamente, embalados na confiança de que somos ainda capazes, como esses portugueses antigos, de tirar dos nossos desalentos as energias suficientes para bem defender, na hora própria, aquilo que tão legitimamente nos pertence!. [Sousa Dias, G., A Província de Angola, 15-08-1936]

“Defender o império”, esta era a promessa do militar, estudioso de Angola e escritor Gastão de Sousa Dias, em narrativa de viagem publicada no Suplemento de Domingo de A Província de Angola, em 15 de agosto de 1936.[2] O percurso da viagem, a paisagem africana, as travessias de exploração do continente, as lutas de ocupação e pacificação, o português do mato e a colonização de África e o africano são os temas centrais que atravessam a literatura de viagens publicada na imprensa de Angola no período colonial do século XX. A coragem dos primeiros viajantes, a ousadia dos exploradores, a bravura dos militares e a tenacidade dos colonos são exploradas nestas narrativas conferindo unidade ao projeto colonial: a pátria portuguesa e o seu feito passado e presente na edificação civilizacional de África a projetarem-se num futuro que é imaginado como “glorioso”.

As narrativas de viagem tiveram um espaço privilegiado na imprensa de Angola e Moçambique, ocupando as páginas noticiosas, opinativas e culturais dos periódicos durante o século XX.[3] Principal jornal diário da colónia desde a década de 1920 e até ao fim do império, A Província de Angola publicou centenas de narrativas de viagem nas suas páginas. Órgão dos interesses económicos da colónia, propriedade da Empresa Gráfica de Angola (com ações subscritas pelo Banco Nacional Ultramarino, pela Companhia do Amboim, pela Companhia do Cazengo e por outros particulares) e dirigido por Adolfo Pina, o jornal “inaugurou” o jornalismo industrial e profissional em Angola (Lopo, 1964, p. 99). Logo após o 28 de maio de 1926, o jornal alinhou-se à ditadura e mais tarde ao Estado Novo, inclusive pelas suas conexões diretas ao poder político e económico da colónia, tendo servido à propaganda ideológica do regime e à governação autoritária. A Província de Angola foi o único grande jornal generalista e noticioso regular. Na década de 1930, a sua tiragem rondava os 3000 exemplares, em 1948 os dados apontam para uma tiragem de 5000 exemplares, e na década de 1970 o jornal reproduzia entre 15 e 70 mil exemplares diários. Em 1935 o jornal lançou o Suplemento de Domingo (SD), o qual foi publicado até à independência de Angola. Este estudo identificou cerca de cinco centenas de narrativas de viagens publicadas no SD entre 1935-1974, numa frequência quase semanal. Entre estas contam-se périplos por África, Europa, América e Ásia, bem como inúmeras crónicas de viagens por Portugal - das vilas e aldeias à metrópole imperial. Nos textos sobre os países e cidades da Europa, os viajantes adotavam uma perspetiva cosmopolita e diletante, com ênfase na modernidade urbana e cultural europeia. Já nas narrativas sobre Portugal eram explorados os “mitos” da ordem salazarista (Rosas, 2001).

No entanto, são as viagens pela província de Angola as mais frequentes entre as crónicas publicadas no caderno. Cerca de 200 textos, entre 1935-1974, descreveram viagens realizadas em Angola, a base de análise deste estudo. Tais narrativas estruturam uma retórica que reconstitui, para legitimar, a história da ocupação e da exploração portuguesa na região, e, deste modo, a crónica de viagem transporta a ideologia império-colonial - a “mitologia histórico-sentimental”, na crítica de Lourenço (2014).

Especialista em literatura de viagens, Pinto-Correia assinala o “olhar ingénuo”, carregado de deslumbramento e horror e a projetar as suas fantasias, como característico da viagem de expansão, entre os séculos XV e XVI (2003, p. 17). Tal “ingenuidade”, embora presente, não subjugava os viajantes do século XX, os cronistas da “nova literatura de viagens” da África Portuguesa são funcionários públicos, a exemplo de chefes de posto e professores, militares, jornalistas e intelectuais, escritores e artistas. São um grupo de duas dezenas de homens radicados em África, onde dizem terem encontrado o seu lugar no mundo e no qual ocupam um papel de destaque na cena social, política e administrativa da colónia, que viajam por Angola e se dedicam ao seu estudo. Patriotas, louvam o passado português; imperialistas, defendem o império pluricontinental; colonialistas, revêem-se no programa colonial como estratégia para engrandecer Portugal e para a civilização de África; nacionalistas, estão empenhados na construção da nação e alinhados às políticas e ações do governo no que diz respeito ao ultramar.

Os jornais desempenharam um papel decisivo na dimensão cultural da sociedade colonial na medida em que incluíram a publicação de contos e novelas, resenhas e crítica de literatura e cinema, a divulgação de estudos históricos, etnográficos e antropológicos e informação de música e teatro. Através da imprensa, temas e conteúdos culturais tornaram-se populares na medida em que passaram a estar acessíveis à população letrada, sobretudo de origem europeia do espaço colonial. Género clássico, se a literatura de viagem ganhou uma estrutura breve nas páginas dos jornais, manteve os seus temas tradicionais e desempenhou um papel ideológico em relação à “epopeia” portuguesa.

A história social é um dos campos teóricos que tem explorado as narrativas de viagem para observar, interpretar e articular o desenvolvimento do imperialismo, a realidade colonial e a sua explosão no pós Segunda Guerra Mundial. A etnografia, a antropologia, a geografia, a literatura e os estudos de género são outras das disciplinas que, sobretudo desde os anos de 1960, elegeram as narrativas de viagem como fonte de estudo empírica e teórica (Campbell, 2002 pp. 261-278). O problema colonial também tem sido abordado pelos estudos da cultura e da literatura, da comunicação e do jornalismo, a exemplo dos trabalhos de Pratt (1992), Bongie (1991), Behdad (1994) e Spurr (1996), autores de referência nesta investigação.

O presente artigo traça uma análise socio-histórica da ideologia do império através da crónica de viagem difundida através da imprensa. No âmbito metodológico, identifica e discute representações de África e de Angola e as suas estratégias discursivas, revelando as elites (em especial dirigentes e intelectuais) da colónia que lhe deram forma e a propagaram. O estudo apresenta os seguintes argumentos: (1) credibilizadas pelo seu papel social e político na condução da colónia, estas elites estruturaram a ideologia império-colonial para os leitores do jornal, sobretudo colonos brancos (2) A literatura de viagens contribuiu para a constituição de uma “comunidade imaginada”, como concebida por Anderson (1981), pois reconstituiu o percurso colonial passado, narrou o presente da colónia e projetou o futuro africano de Portugal (3) entre os temas predominantes nas crónicas, e na sua forma discursiva, sobressaem dois polos de imagens, o “primitivismo” versus a “portugalidade” dos nativos e a “virgindade” versus a “modernidade” da paisagem, o que é revelador das conflitualidades - europeus e africanos, homem e espaço, e cultura e ideologia de um império que se afirma plurissecular. E (4) assinala-se que as crónicas de viagem são um contributo no estudo da ocupação e instalação dos portugueses no espaço colonial no século XX, partilhando informação sobre as vivências e dinâmicas económicas, sociais e culturais dos colonos.

As narrativas de viagem dentro do império português são uma constante na imprensa periódica colonial dos diversos territórios. Já o meio natural, o homem, as culturas locais e as características da ocupação colonial são específicos de cada uma das geografias do império. No entanto, o estudo de caso de Angola revela que a tónica de legitimação da “epopeia” portuguesa e da imaginação de um império multisecular e pluricontinental a projetar-se no futuro é uma tendência da literatura de viagens portuguesa da época.

Reviver as travessias de exploração e reconstituir a ocupação

Referência no estudo da literatura de viagens portuguesa, Cristóvão (2002) identificou a peregrinação, o comércio, a expansão, a erudição, a formação, os serviços e o imaginário entre os tipos temáticos da literatura de viagens, a qual entende como “subgénero literário que se mantém vivo do século XV ao final do século XIX, cujos textos de carácter compósito, entrecruzam Literatura com História e Antropologia, indo buscar à viagem real ou imaginária (por mar, terra, ar) temas, motivos e formas” (Cristóvão, 2002, p. 35). O autor acrescenta que desde a Conferência de Berlim as viagens reforçaram o seu carácter de “expansão política” em relação à “científica”. O século XIII é assinalado como o princípio de tal literatura, a qual ganhou fôlego a partir do século XV, sobretudo devido aos chamados “descobrimentos”. A impressão tornou o género “popular” a partir do século XVI e o ciclo da “narrativa tradicional de viagem” encerrou-se no século XIX, quando em simultâneo nasceu a “nova literatura de viagens”, etapas que encontram paralelo nas narrativas de viagem do império britânico e da literatura inglesa.[4] O positivismo e a afirmação da ciência, a industrialização e as suas consequências na vida social e o turismo foram fatores determinantes nos textos de viagem a partir de então, considera Cristóvão: “tendo como forma narrativa frequente a crónica, de fôlego mais curto, bastante ligado à publicação na imprensa”. Entre as tipologias da nova literatura de viagens, o historiador enumera viagens de conhecimento do país, de exploração colonial, de aventura, culturais e de reconstituição histórica, géneros identificados também neste estudo (Cristóvão, 2010, pp. 14-16).

O colonialismo moderno recorreu aos serviços da ciência para prospetar as riquezas africanas e organizar a economia local em seu proveito, tendo sido as viagens do século XIX fulcrais neste processo. Se as exigências da economia e da política não eliminavam “o gosto viril do risco, da aventura e da evasão”, as viagens de então serviam sobretudo “a vocação evangelizadora, a ética da ciência em fase de afirmação, a presunção de refinamento civilizacional que se dava por missão filantrópica levar até ao negro o bem-estar do século”, assinala Carvalho (2003, p. 154).

Em De Angola à Contracosta, Capelo e Ivens apresentam nos primeiros capítulos os valores da civilização europeia e fazem um histórico sociopolítico da região, seguindo-se as temáticas científicas e comerciais. Os cronistas portugueses que escrevem em A Província de Angola procuram repetir a estratégia dos exploradores. Ao serem recordadas as viagens, estabelecem o precedente português em África, articulando uma cadeia de acontecimentos que inclui as viagens dos século XV e XVI, a exploração, o comércio, as missões religiosas, as guerras de pacificação e a colonização, assim conferindo linearidade, lógica e unidade a um processo de quatro séculos de presença lusa em África - o qual, de facto, foi repleto de descontinuidades e conflitos. Este viajar pela viagem soa também como uma tentativa de resgatar o autêntico e o exótico dos novos mundos e do “outro”, o qual já não era possível para os viajantes do século XX. Como “belated travelers”, os cronistas reconstituem nos seus textos um “orientalismo tardio” no qual, em primeiro lugar, “one must describe the conditions of its possibility as a transformational force within the conflicted political field of colonialism”, para, num segundo momento, “specify the mediated structure of the desire for the Orient in connection with the power that regulates it”. No entanto, nos discursos dos viajantes portugueses publicados neste jornal não há as ambivalências e incertezas ideológicas sobre o colonialismo encontradas por Behdad em viajantes europeus da segunda metade do século XIX, mas apenas a afirmação do programa imperial (Behdad, 1994, pp. 13-15).

Em 21 de abril de 1946, no centenário do nascimento de Serpa Pinto, o escritor Castro Soromenho assinava um texto em sua homenagem intitulado “Símbolo do povo pioneiro”. Ao recontar e exaltar a viagem do explorador, Castro Soromenho aponta como “justo” evocar a “glória do Povo Pioneiro, que durante quatro séculos sustentou sobre os sertões o pavilhão que simbolicamente por ele foi entregue ao herói para o levar aberto a todos os ventos aos confins de África”.[5] O escritor assinala que a história das viagens de exploração africana está “cheia de nomes lusos”, nomes que se apagaram e fundiram-se no “Povo Pioneiro”. O encontro com as fontes do Nilo, a chegada às margens do Zambeze e a descida do Zaire, descobertas reclamadas por David Livingstone e Henry Morton Stanley, foram precedidas por “passos de portugueses”. No regresso das suas viagens, estes exploradores estrangeiros acusaram Portugal do tráfico de escravos: “Não era justa a acusação, e muito menos o dizer-se que Portugal se alheara das explorações do interior do continente”, argumenta Soromenho. Em resumo, o sucesso da viagem do herói português fez com que o país revivesse no seu feito “todas as glórias do passado e sentia que ele abrira um novo ciclo de grandeza reintegrando Portugal no movimento de expansão da Europa em África”.

No centenário do nascimento de Roberto Ivens, Cecílio Mimoso Moreira, funcionário público, estudioso de Angola e jornalista, revive a viagem do militar-explorador na companhia de Hermenegildo Capelo.[6] “Longa foi a jornada, com reconhecimentos vários, da foz do Cuanza e do Cuango, digressão por terras do Moxico e da Lunda; contactos com os povos dessas e de outras regiões” (02-07-1950), explica Moreira, numa síntese que evoca a viagem de Capelo e Ivens como uma viagem “total”. A coragem destes “portugueses de boa raça” é destacada, visto que “os percursos foram feitos na sua quase totalidade a pé, com precária segurança pessoal; deficiente defesa contra o clima; entre povos indómitos e selvagens”. A superar todas as dificuldades, os exploradores cumpriram a sua missão, visto que os relatórios e o livro publicados foram essenciais ao “depoimento e triunfo no jogo diplomático dos países que marcaram ambições sobre os territórios de África”, destaca Mimoso Moreira em referência à partilha de África na Conferência de Berlim (1884-1885).

Recontar as viagens do passado era decisivo para legitimar a presença portuguesa no presente. Relembrar servia também para os cronistas demonstrarem a obra feita e em progresso, que dos caminhos se passou à estrada, a terra infestada de feras foi transformada em cafezal; o orgulho do soba na bandeira das quinas a labuta dos negros na construção do império. Ou, como os padrões de Diogo Cão se transfiguraram em Gonçalo Bocarro à beira do Lago Tanganica, este em Capelo e Ivens na foz do Cuanza, dando lugar aos viajantes do século XX que encontram uma civilização lusa a “florescer” em África.

Ao analisar o discurso colonial nas narrativas de viagem da imprensa, David Spurr (1993, p. 28) assinala o processo de apropriação do continente, no qual “colonial discurse thus transfers the locus of desire onto the colonized object itself. It apropriates territory, while it also appropriates the means by which such acts of appropriation are to be understood”. O autor nota que os administradores coloniais veem os recursos e riquezas naturais dos povos colonizados como pertencendo à “civilização” e à “humanidade”. Se a ideia de “humanidade” passa a integrar os povos nativos, a civilização apenas os poderá alcançar e abranger através da ordem colonial e da exploração dos territórios, tornando o colonialismo um imperativo moral, político e económico.

Na literatura de viagens de Angola no século XX, o imperativo colonial afirma-se também no relembrar das viagens de ocupação, que justificam as guerras de pacificação em África. “Dormimos no Roçadas, à margem do Cunene, um rio feio e sujo que foi vida e sangue das ‘colunas’ e agora é guarda e barreira de condenados. Íamos no trilho das colunas de 1915, até N’Giva, em romagem de patriotismo e de saudade”, relata o jornalista J. Albuquerque Cardoso (28-08-1949).[7] O cronista descreve Môngua como lugar da morte de heróis, mas também como “clareira da vida da Pátria”. Na visão do viajante, a região é desoladora, destacando as ruínas do velho forte, o cemitério e os nomes dos heróis a apagarem-se nas campas. Na missa de homenagem aos militares estão os velhos colonos que participaram da luta. Narciso Machado, que vive há 53 anos no Cuanhama e nunca foi ao “reino”, participou de colunas em 1896, em 1905, 1907, 1914 e 1915, o homem é “um documento humano de um passado recente, que não tem farda nem medalhas, mas sabe como ‘aquilo’ foi por o ter vivido”, observa o cronista. Na memória do soldado, cerca de 5000 portugueses iriam enfrentar mais de 35 mil guerreiros do soba Mandume. São dias de confronto e o quadrado português seria asfixiado, não fosse o socorro do batalhão da marinha, que encontrou “fardas rasgadas nas espinheiras, gente ferida, sangrando, caras negras da pólvora, mas entrando em passo de parada, a cantar a ‘Portuguesa’ ”, recorda o soldado. Na viagem da coluna militar e na viagem de romagem de Albuquerque Cardoso, os factos repetem-se, a demonstrar a obstinação da pátria. “Trinta e cinco anos depois, naquela mesma chana, findo o último discurso, sem ninguém saber de onde partiu a primeira nota, um cento de brancos e dois milhares de pretos cantavam a ‘Portuguesa’”. A imagem de negros e brancos a cantarem o hino português é frequente nas crónicas de viagem e soa como a “invenção” da portugalidade dos africanos, processo que se articula na construção desta mitologia à colocação dos padrões no século XV e ao pavilhão português nos sobados nas viagens do século XIX (Ranger, 1983).

Em trânsito, o percurso e a paisagem

No fim da década de 1930, o que se destaca na narrativa de viagem são os elementos da modernidade no meio do cenário africano: o telégrafo, o vapor, o comboio e o comércio no Congo, modernidade que se afirma através da ação colonial. Cecílio Mimoso Moreira parte de Luanda rumo a Leopoldville e narra as suas “Impressões e divagações” (publicadas entre 23 de outubro e 13 de novembro de 1938). Além de descrever o percurso da viagem, as vilas e populações à beira rio, Moreira destaca um problema persistente na região do Congo, o da circulação da população indígena entre o espaço português e o belga, o que dá azo à apologia do império. “Se o nosso Congo não tem mais fundamente lesado o seu índice populacional é porque quatro séculos de ocupação em boa paz, de assistência e de ensino nos têm afeiçoado a essas populações indígenas e têm criado nelas um espírito de portuguesismo” (06-11-1938). O porto de Matadi surpreende o viajante pelos sete navios atracados e pelos números “astronómicos” do comércio do Congo belga por ali canalizado. Os caminhos-de-ferro belgas também são razão para o elogio, “diários, impecáveis, cronométricos”.

Embora os símbolos da modernidade industrial estejam presentes, o torpor da viagem, a febre e as alucinações provocadas pelo trajeto mantêm-se como constantes das narrativas dos viajantes do século XX. Também o major Ernesto Sardinha, na região de Quibala, experimentou tais sensações.

Como, na doença, ao vir da febre alta, se perde a noção nítida das coisas, o cérebro martelando, um dormitar de segundos que parece durar horas - assim conservo uma obscura recordação desse pesadelo, através de uma estrada sempre igual, ladeada da molemba planáltica, arvorecas e arbustos maltrapilhos e torpes, lembrando as fileiras de aleijados [26-01-1941].

Spurr (1993, p. 145) observa que a dinâmica de penetração do mundo físico no viajante, à qual este se submete, levando-o a momentos de alucinação ou loucura, é recorrente na escrita ocidental, fazendo com que o cronista apresente a natureza em termos de experiências visionárias.[8] Neste caso, o major, que se dirige ao Atlântico, consegue sair do “purgatório” da viagem, mas afirma que é no contexto desta experiência que tem “compreendido e sentido plenamente as glórias da nossa Pátria” (19-01-1941).

Em travessia do sertão, Alberto de Lemos - funcionário público, político e estudioso de Angola - recorda que antes do caminho-de-ferro havia um único meio de se viajar em África: “a pé ou de tipóia, esta conduzida pelo robusto dorso do preto”.<[9] Em trajetos longos e difíceis, muitas vidas se perdiam:

Nem a polícia do território existia em termos a impedir extorsões e massacres, nem os recursos da ciência dispunham de meios para colocar ao alcance destes pioneiros drogas medicinais eficientes e alimentos sãos [Lemos, 08-07-1945].

Na voz dos cronistas sobressai a admiração pelos viajantes de outrora, conjugada com uma certa melancolia. É como se os viajantes do século XX, como Lévi-Strauss confessa e problematiza em Tristes Trópicos, quisessem “ter vivido no tempo das ‘verdadeiras’ viagens, quando um espectáculo ainda não estragado, contaminado e maldito, oferecia-se a nós em todo o seu esplendor” (Lévi-Strauss, 2017 [1955], p. 36).

Enquanto o “esplendor tropical” foi característico das narrativas de expansão, a partir do século XIX a natureza passa a ser apreciada à luz da ciência (Cristóvão, 2002, pp. 186-212). O autor observa que o texto perde a “atitude de maravilhamento” e ganha a forma de tratado. Para os cronistas do século XX, para além de não existir o deslumbre da descoberta, não há espaço (no campo do conhecimento ou na dinâmica da imprensa) para o artigo científico. Dar a conhecer a colonização portuguesa e a nova paisagem por ela criada, tornou-se a prioridade dos viajantes do século XX.

Ao narrarem as suas viagens, os cronistas adotam uma posição de controlo e domínio. Na tipóia, no cavalo, no barco a vapor, no comboio, e mais tarde no carro, a visão do viajante abarca o todo, o mar e o deserto, o movimento dos astros e da vegetação, a ação do homem branco e do gentio. Em si, o facto de viajarem e narrarem dá-lhes uma posição de autoridade no contexto colonial, na qual o viajante-narrador acede ao espaço e ao homem colonizado, vive e controla este ecossistema, mas, em simultâneo, também se distancia por ser o colonizador.

Ao estudar a retórica do império, Spurr (1993, p. 27) encontra o cronista numa posição de vigilância, na qual a paisagem é primeiro estetizada, para depois ganhar densidade de significados que simbolize a sua riqueza, seguindo-se a subordinação da terra ao poder do narrador. Embora em movimento, a referência do viajante para interpretar o que vê e experimenta mantém-se fixa na civilização europeia, o que torna o espaço não-Ocidental num objeto de estudo e num campo de ação.

Esta é também a perspetiva adotada pelo artista, pintor e escritor, Albano Neves e Sousa, que narrou muitas das suas viagens por Angola nas páginas da imprensa.[10] “De Luanda a Nambuangongo” o cronista encontra a definição do continente: “A África, para mim, são estes momentos de incomodidade, acompanhados de uma sensação de liberdade sem limites e a beleza imensa, inenarrável” (Neves e Sousa, 26-10-1952). A busca do exótico - o Grand Tour, a viagem ao Oriente enquanto tentativa de resgate da individualidade perdida com o avanço da modernidade europeia - ressoa neste trecho de Neves e Sousa. Porém, para os cronistas de Angola, fugir às ameaças da homogeneização da sociedade de massas é “indissociable from the specifically modern form of territorial expansion” (Bongie, 1991, p. 11).

Em “Esboceto de uma paisagem”, a narrativa do pintor posiciona-o como um inspetor que avalia o desempenho do homem branco na transformação de África, sem descurar a continuidade da paisagem africana.

A distância, a cor da rija pedra toma tons duma delicadeza azul e violácea, a que África raras vezes nos habitua. Entre montes, um vale amplo e verdejante cortado de linhas de água em que se espelha o céu: aqui e além uma casinha branca por entre o arvoredo. O som, por cá pouco familiar, de sinos, põe nos ecos desdobrados um toque de saudosa surpresa.

É o colonato da Cela, “um pedaço de Portugal metropolitano”. A integração do homem na natureza africana, o trabalho do colono, a satisfação e o orgulho da comunidade sobressaem na narrativa. “Crianças brancas emprestam ao campo os seus risos”, enquanto “uns cavalheiros graves que de samarra à alentejana se propõem ir ao monte abrir covas para café”; ecoam “vozes europeias” cantadas por lavadeiras de trajo europeu e de raparigas que regressam das compras e “nos mimoseiam com um -“Salve-os Deus” (21-03-1954). O esboço do pintor contrariava, ou omitia, as dificuldades enfrentadas pelo colonato da Cela desde o seu início.[11] O texto de Neves e Sousa reproduz a estratégia dos viajantes do século XIX, designada por Pratt como “the monarch-of-all-I-survey”, na qual a paisagem é primeiro estetizada, para depois ganhar significado, seguindo-se a relação entre quem vê e o quê é visto. Ao combinarem estética e ideologia para descreverem à ação colonial, as narrativas aqui analisadas deram continuidade “a strategy the west has often used for defining others as available for and in need of its benign and beautifying intervention” (Pratt, 1992, p. 205).

Em 1966, em excursão ao deserto do Namibe, sobressaem no texto do pintor “o conforto moderno” (05-06-1966) nas viagens de então: os camelos foram substituídos por carros; a presença do guia e fiscal de caça; almoços em grutas, com mesas e cadeiras, marisco e bebidas frescas. Esta viagem de Neves e Sousa ao Namibe acontece depois da criação do Parque Nacional, em 1964, que desde 1937 era uma reserva de caça. Sobretudo a partir da década de 1950 começam a surgir na imprensa de Angola um conjunto de artigos sobre a necessidade de promover a província enquanto destino turístico, debate que ganhou incremento e iniciativas com a criação do Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA), em 1959. A viagem turística, por sua vez, ganhará relevo e tornar-se-á predominante nas crónicas da imprensa colonial a partir de meados da década de 1960. Ao estudar as narrativas de viagem sobre o Congo belga, Donovan destaca que as viagens de turismo, a partir de 1910, valorizavam a modernidade colonial de modo a reduzir as pressões políticas sobre a colónia (Donovan, 2006, pp. 37-54). A partir da década de 1950, quando se reforçam os movimentos anticoloniais e independentistas em África e o império português volta a estar ameaçado, também a promoção do turismo serve à retórica da modernidade colonial, o que se traduz nas narrativas de viagem.

O africano

No século XVI o retrato dooutro” africano iria contribuir para uma etapa do projeto colonial, na qual a exploração institucionalizada dos recursos ultramarinos exigia um conhecimento aprofundado do homem e do terreno, dando origem a uma produção textual que cresceu no século XVII. Embora o olhar sobre o africano variasse - para além das condicionantes regionais e sociais dependia dos propósitos dos textos e dos seus autores -, a maioria das narrativas incluía como “áreas de significação” o corpo, as crenças e os parâmetros civilizacionais (Horta, 2002, p. 279).

O corpo, os hábitos e as práticas dos africanos permaneceram como elementos centrais das narrativas de viagem das páginas da imprensa no século XX. Os cronistas também continuaram a contextualizar e a condicionar o protagonismo do africano ao projeto colonial. Se a nudez da mulher e o perfil “bárbaro” dos povos nativos já não espantam os viajantes, os seus ornamentos, condutas e hábitos mantêm-se na narrativa, bem como a classificação do africano (como primitivo, por exemplo) ou o seu rebaixamento (como desonesto ou preguiçoso).[12] Embora não desapareça, o “indígena selvagem” dará lugar à “portugalidade do africano”, mantendo-se nas narrativas os “povos bárbaros”, “indómitos” e “incivilizáveis”.

Em viagem de recenseamento pela Lunda, o funcionário Cândido Guerreiro da Franca, viajando de tipóia, observa:

Tenho que sujeitar-me a todo o desconforto, isolado no meio de criaturas que me detestam, já porque sou branco, já porque venho-lhes pedir o dinheiro de um imposto e recenseá-los para outro.

Na sanzala de Muanga, enquanto os homens são “latagões, novos hercúleos, cheios de vigor, pinchando e guinchando, estridentemente à minha volta”, as mulheres, novas ou velhas, são “todas miseravelmente imundas”. Os ídolos junto à residência do soba não escapam à descrição do funcionário, bem como as suas práticas conjugais: “dorme só com uma mulher, substituída por outra todas as noites”. Uma das mulheres do soba está grávida e na entrada da sua palhota tem “uma meia cabaça, enterrada no solo e cheia de água, que se destina a afugentar todos os maus-olhados” (02-08-1936).

Nas terras de Ngana-Ngola, no Guénje, “capital gentílica mais imponente e populosa”, Roberto Silva, administrador agrícola, fez-se soba africano com três dias de rituais. Sem precisar a data do feito, a memória de viagem foi publicada em 12 e 19 de junho de 1938 na qual o administrador narra uma expedição de resgate. O autor considera África sua “Angola de sonho que eu entrevi sulcada de arados, branquejante de casais onde cantasse o galo e crianças rubicundas brincassem com outras, as da Terra Mater, vendo ao longe a marcha crepitante dos expressos, e tudo isto envolvido nas dobras do pavilhão das quinas!”.[13] Com quatro homens armados, Roberto Silva liderava a expedição de resgate de braços: “por meio de golpes oportunos, detinha-se um velho ou uma mulher, por cada enxada sem braços, para assistir, depois, à engraçada mágica da substituição, das mulheres e dos velhos por quaisquer homens válidos”. No dia seguinte, “eu sentava-me no trono de Paquera, devidamente paramentado com todos os seus atributos de soberania, num ritual fantástico, especialmente decretado por mim”. Depois de três dias de festa e de dois dias de viagem, Roberto Silva entregou ao chefe do posto o soba Paquera, toda a sua corte e o harém, além de 100 prisioneiros e 30 espingardas. Ao colonizador, não bastava ocupar a terra, a ambição era transformar-se no seu soba.

Na crónica de viagem o africano aparece como “milhares e milhares de bárbaros que vão atravessar, com a afiada das suas azagaias, meia dúzia de soldados”, escreve o professor Costa Mendes ao narrar uma viagem a Magul (29-05-1938). Noutra viagem pela Lunda, “os camatapas incivilizados parecem pertencer aos últimos escalões do género humano”, no Moxico, “a luena, pervertida e sensual, pode nos perturbar”, seja qual for a região de Angola, “São sempre os mesmos indígenas desconfiados e matreiros”, sintetiza Cândido Guerreira da Franca (10-05-1942).

Em 1964, quando já não se distinguiam os indígenas e todos os africanos eram considerados cidadãos pela lei do império, Cecílio Mimoso Moreira descreve os grupos étnicos que viviam nas margens do Cunene. As etnias chimbas e cuissis não se tinham “dobrado” à força colonizadora: “Não lhes interessa uma nacionalidade certa, não lhes interessam as regalias de cidadania porque implicam no pagamento de impostos, desconhecem a identificação a não ser a sua maneira”. Já se trata de um homem, mas tão “primitivo”, que nem a igreja o alcança (11-10-1964). Apesar dos juízos morais sobre os chimbas e os cuissis, a crónica de Moreira dedica-se aos hábitos e práticas destas etnias - alimentação, habitação, vestuário, cultivo e pastorícia, entre outros. As crónicas de viagem incluíram um conjunto de observações de carácter etnográfico e antropológico, e, inclusive, tiveram o homem e a cultura indígena como temáticas privilegiadas (elemento que se relaciona com a introdução tardia da antropologia social e cultural no espaço colonial) (Roque, 2001). Nesta ótica, parece que os textos destes viajantes contribuíram para uma “antropologia-etnografia escrita nas margens”, como aconteceu com viajantes no império britânico, o que por sua vez disseminou e popularizou características do homem e da cultura africana, ainda que, em simultâneo, traduzam uma constituição do “outro” negro, servindo para os propósitos imperiais e coloniais[14]

As narrativas de viagem aqui estudadas esteticizam o homem africano promovendo o seu distanciamento da cultura europeia, e tornando-o, de facto, desprovido de cultura. O indígena patriota das colunas ou o negro que auxilia os brancos são seleções que deslocam pontualmente o africano do seu perfil “bárbaro”. O corpo das mulheres, a fala de um indígena em português e a conversão de um africano são imagens a serem consumidas pelos leitores, predominantemente europeus. Em suma, a transformação do homem africano é o culminar de um processo em andamento, a civilização de África pelo português e pela cultura portuguesa. Tais processos de esteticização implicam a tomada de posse da realidade social e, na medida em que esta posse do contexto social ocorre transfigura-se em modo de representação, e a cultura europeia apropria-se da cultura africana, ou seja, coloniza-a (Spurr, 1993, p. 59). Quando o africano larga a azagaia e toma a enxada e quando o homem branco é coroado soba e saudado pelo povo em rituais africanos, a colonização - estética e real - atinge o seu cume.

A colonização, 500 anos em viagem

“Um maciço verde-escuro impenetrável”, “as moscas tsé-tsé”; “a estrada monótona”; “impressão de virgindade”, “nada que ver e nada para fazer” e o “aspecto triste da paisagem”, são algumas das expressões aplicadas pelos cronistas para descrever o espaço e o cenário africano. Se por um lado há a perceção de infinito e virgindade da paisagem, sugerindo o vazio do espaço, há também a sua negação, inserida nas crónicas de viagem pelas doenças provocadas pelo clima e pela insalubridade, pela ausência do que comer, pela água contaminada. A “negação” é uma estratégia que rejeita a ambiguidade de uma experiência que não encontra parâmetro de interpretação. Visto que a história africana, na perspetiva do império, começava com a presença europeia, a primeira negação é a do passado, a qual, tornando o presente vazio, deixa o continente apto para a expansão colonial (Spurr,1993, p. 92).

Como chefe de posto em Luiana, no sudeste de Angola, J. Albuquerque Cardoso está em constante viagem - 27 dias para chegar ao seu posto; viagens de recenseamento na região; travessias para buscar mantimentos, périplos que narra no seu diário para combater a “solidão”. O funcionário pergunta-se o porquê de um posto e de um chefe na região, e na pátria encontra resposta para a sua missão:

Os alicerces da colónia assentam, precisamente, na camada granítica da nossa vontade e do nosso interesse: impostos que se cobram, estradas que se abrem, granjas que se rasgam e cultivam, hábitos que se alteram, tribos que se domam ao trabalho, rios que se drenam para fertilizar a terras, povoações que se erguem, a evolução da vida do branco e do preto, a civilização que vai caminhando com pés de lã e se instala de onde em onde [24-05-1942].

A missão dos chefes de posto conjuga-se com a “epopeia” do sertanejo, “homens notáveis”, “mensageiros da pátria lusa, de face tostada, afeitos à canícula dos trópicos”. A mulher portuguesa também desempenhou o seu papel, como assinala o jornalista José Manuel da Costa, a recordar viagens de ocupação do Moxico. O cronista considera a primeira “Mamã Chindere” (mãe branca) Ema Trigo Teixeira, mulher do comandante da colónia e que o acompanhou pelo sertão, é ela a metáfora da mulher no interior africano: “missionária abnegada, exemplo vivo do sacrifício de todas as horas, encarando o futuro para além das misérias do presente, sofrendo em silêncio” (07-09-1952).

A “heróica coragem e dedicação” dos funcionários públicos e dos sertanejos de Angola levou ao “sucesso” da colonização portuguesa em África, que se traduz nas cidades africanas, sempre comparadas às cidades portuguesas e europeias, indicador do sucesso do projeto civilizacional português. Higino Vieira narra a trajetória de Sá da Bandeira, “cidade mais tipicamente portuguesa de Angola”, desde a chegada dos primeiros colonos, na década de 1880.[15] Capital do distrito da Huíla, em 1948 a região “é o pomar de Angola; ensaia os primeiros passos, titubeantes, no luxo do turismo” (30-05-1948).

Na cidade do Lobito, é o presidente da câmara que guia o jornalista e exibe os feitos e os projetos em andamento. Na Praça Salazar estão a ser construídos os paços do conselho; o matadouro está em mudança e há um novo armazém do município; para os colonos planeiam-se bairros económicos, enquanto o bairro indígena é comparado a Addis-Abeba (05-08-1949).

Abundam as impressões e narrativas de viagem sobre Luanda e a sua ilha na imprensa de Angola e as belezas da capital da província são eloquentemente descritas até os últimos dias do império. Rocha Ramos, jornalista do Diário da Manhã de Lisboa, publicou as suas impressões em A Província de Angola em 20 de Maio de 1945: “digna capital da mais rica e portuguesa de todas as colónias do nosso Império. É, sem favor, uma das mais belas, com todas as características próprias das cidades portuguesas”. Depois de 15 anos sem visitar Luanda, a cidade agora estendia-se “a perder de vista”, pelas ruas e avenidas novas já não se veem os musseques, mas “graciosos jardins”, liceu, maternidade, palácio de comércio, missão católica. Rocha Ramos sente-se tomado de pasmo, o que o faz compreender

o dever de todos os portugueses em prestar homenagem ao esforço dos modernos pioneiros de África, àqueles que para aqui vieram, não com o intuito ganancioso dum lucro fácil e rápido, mas com o propósito firme de realizar uma obra construtiva, dando-lhe continuidade, com o maior patriotismo e com o único interesse de engrandecer o nome de Portugal.

Com o advento das viagens turísticas, a literatura de viagem transitou para o modelo do guia turístico e a descrição das cidades passou a dominar, argumenta Behdad (1994). Enquanto discurso moderno do colonialismo, o guia turístico é um texto disperso que abarca diferentes domínios da representação do Oriente: conhecimento histórico, informação geográfica, notas etnográficas, características arquitetónicas e reflexões filosóficas. O discurso turístico, ainda que seja acompanhado por informação histórica, apresenta o Oriente fora do seu contexto socio-histórico e nega aos indígenas o seu protagonismo, relegando e confinando o “outro” ao passado, o qual foi apagado pela realidade do presente colonial. Esta mudança de paradigma, que se identifica também na descrição das cidades aqui estudadas, apresenta a dissolução de África na complexa rede de poder do capitalismo e do colonialismo (Behdad, 1994, p.49).

Conclusões

A viagem mística da ideologia colonial

Em fevereiro de 1951 o jornalista J. Albuquerque Cardoso publica uma grande reportagem na qual narra a sua viagem de 20 dias à Lunda, um discurso que promove a Companhia de Diamantes (Diamang) como o ponto de chegada do projeto económico e político do império colonial português e ilustra as conclusão deste estudo. A célebre viagem exploratória de Henrique de Carvalho na Lunda, entre 1884-1888, serve de modelo para Albuquerque Cardoso, que faz diversas referências ao passado para a apologia do presente: “no tempo dos pombeiros e dos funantes desciam ao litoral cargas de cera e da borracha. Hoje desce algodão” (18-02-1951). O afeto do homem branco pela terra e a sua persistência em colonizá-la são demarcados: “topáramos com a casa de um branco que tem nada menos de 25 filhos […] português a povoar, com seu sangue, terras de Portugal”. Se as guerras de pacificação são recordadas, o momento é de valorizar a paz: “Agora, posto administrativo, em tempos velho fortim das colunas que avançavam sobre a Lunda, sentinelas postadas à espera das hordas negras”. O encontro com o preto Xarissoca - guia do militar Brandão de Melo no século XIX - é uma espécie de bênção africana para o empreendimento colonial português. Xaricossa afirma que “sempre fui amigo dos brancos, até agora, neste tempo da Companhia”.

Nos seus temas, conteúdos e abordagens, os textos aqui estudados enquadram-se no género da literatura de viagem portuguesa, remetendo, preservando ou adequando para o século XX muitas das características dos períodos anteriores. As estratégias retóricas - com destaque para a apropriação do espaço e a subjugação do homem - também coincidem com os recursos aplicados pela tradição da crónica de viagens imperial. Enquanto género literário, nas estratégias discursivas e no tom doutrinário, as crónicas de viagem publicadas na imprensa de Angola são um prolongamento da tradição da literatura de viagens do seculo XIX que se dedicou a legitimar, promover e exaltar os impérios coloniais. No entanto, tal releitura, não subestima o papel da crónica de viagem na literatura e cultura, bem como a sua inserção no contexto sociocultural do século XX enquanto herança oitocentista. Ainda, não descura a sua dimensão vivencial, temática, narrativa e simbólica a respeito da viagem, para além de estar atenta à comunicação e ao discurso em si também como atos não-intencionais.

Albuquerque Cardoso visita a Lunda para acompanhar a Festa Grande, evento anual realizado pela Diamang, travessia que lhe possibilita uma inspeção do empreendimento colonial português, através de um jogo de espelhos textual no qual se refletem a Companhia e o Império. Quando se entra nas terras da Diamang, as estradas são “ótimas”, as pontes “seguras”, e as jangadas “rápidas”. Os povoamentos dos empregados brancos parecem uma “vilazinha moderna de um condado da Grã-Bretanha”. A concessão do Dundo, “como as grandes cidades”, é o ideal do império e tem tudo: “água, luz, esgotos, jardins, armazéns, talho, hortas e pomares, limpeza, arborização, transportes, polícia, hospitais, postos de socorros, igreja, emissora”.

No Museu do Dundo, criado pela Diamang, Albuquerque Cardoso encontra o amigo José Redinha, etnógrafo e conservador do espaço que se dedica a preservar as “tradições do povo” da Lunda. Redinha explica ao jornalista as razões da Festa Grande, a qual homenageia (separadamente) europeus e indígenas que se destacam nas suas atividades laborais. Ao explicar o papel do Museu e o âmbito da Festa, o etnógrafo clarifica o projeto colonial:

Nenhuma ideia de carácter social vingará entre os nativos se não lançar raízes, pelo menos, no “clã”. O objetivo, neste caso, é o de criar entre os indígenas um culto nobre pelo trabalho; a consciência de que o trabalho não é um servilismo necessário e inferior, mas uma função elevada e distinta. No dia em que se conseguir enraizar no espírito nativo a ideia de que os trabalhos da colonização são tão dignos como os da caça, da pesca ou de artífices das artes indígenas, estará dado um passo do maior alcance social e económico” [18-02-1951].

A declaração do etnógrafo exemplifica a relação instrumental entre cultura e imperialismo. Conhecer a cultura africana é estratégico para a dominação do homem e do espaço. Publicadas ao longo do século XX, as crónicas da literatura de viagens da imprensa de Angola assemelham-se, na sua forma e conteúdo, ao discurso orientalista, “as a Western style for dominating, restructuring, and having authority over the Orient” (Said, 1995 [1978], p. 3). As narrativas de viagem pela província de Angola conferiram coerência histórica ao projeto imperial e justificaram a legitimidade do programa político e económico do colonialismo com o uso da apologia da missão pátria de civilizar, assim popularizando entre as camadas médias dos colonos europeus a ideologia do império.[16] Pela via das crónicas de viagem se constituíram as conexões entre a cultura imperial portuguesa, a mística ideológica do Estado Novo e o colonialismo, permitindo que o “imperialism acquires a kind of coherence, a set of experiences, and a presence of ruler and ruled alike within the culture” (Said, 1994, p. 11).

No arranque da viagem, Albuquerque Cardoso encontra um major e um gerente de banco, na missão do Saurimo tem larga conversa com o reverendo Bruyn e no Cacolo matabicha com o administrador. A exemplo do etnógrafo José Redinha, Albuquerque Cardoso revê amigos de longa data, com quem partilha os anos de África e a “mística imperial”. As personagens destacadas fazem parte da elite colonial de Angola e da elite intelectual na qual o próprio jornalista se insere. Composta por militares, quadros administrativos, professores, jornalistas, escritores e artistas, todos dedicados ao estudo de África e do império português, esta elite imagina uma terra que é por direito do homem branco, na qual lhe cabe o papel de explorar os recursos naturais e civilizar o homem africano.[17] O quadro pintado pelas crónicas de viagem apresenta uma comunidade imaginada e harmónica, na qual o homem branco e o negro ocupam os seus lugares e desempenham os seus papéis - o europeu domina e o negro é subjugado. O branco afeiçoou-se à terra e nela propaga, além dos seus valores e ideias (trabalho, catolicismo, pátria e nação), o sangue português. O conceito de “comunidade imaginada” no estudo pioneiro de Anderson (2006 [1983]) aplica-se às elites nativas que se apropriaram da imprensa para defender a sua independência do jugo colonial e conceber nações africanas livres no paradigma da modernidade. A elite colonial de Angola também se imagina enquanto comunidade com domínio pleno do espaço, do homem e da cultura de África. Imagina-se porquê, apesar do discurso de conquista e celebração, o projeto colonial não deixou de estar sob ameaça e contestação ao longo do século XX.[18]

As crónicas de viagem aqui estudadas começam a ser publicadas em meados da década de 1930, quando a ideologia do império reorienta e reafirma as suas diretrizes através do Ato Colonial.[19] O desenvolvimento económico propiciado pela II Guerra Mundial dá fôlego ao projeto colonial e contribui para a transformação de Angola. Nas décadas de 1950 e 1960 as narrativas de viagem descrevem as fazendas de café e a exploração dos diamantes, o desenvolvimento das cidades e a transformação dos indígenas, amoldados pelos portugueses.[20]

O enaltecer das navegações e da expansão portuguesa, e o incluir de todos os atos e de todos os portugueses neste processo; a ideia de uma civilização superior, porque Ocidental e cristã; a apologia de uma política integracionista (e daí a recusa da autonomia do ultramar); o multirracialismo e a suposta integração dos africanos na vida política, social e cultural do império; e, um colonialismo considerado “diferente”, justo e apenas por não se reconhecer como tal, são os elementos centrais que constituem a mitologia histórico-sentimental do colonialismo na crítica de Lourenço, ideologia imperial que encontra um “modelo acabado” de quatro séculos de colonialismo através de Salazar e do Estado Novo (Lourenço, 2014, p. 55). Tais mitos localizaram-se no tempo entre os séculos XV e XX, ocuparam o espaço dos padrões e das guerras de pacificação, ganharam forma e cenário na descrição da natureza e das cidades, afirmaram-se no “amoldar” dos africanos à colonização e, na sua articulação temática e textual, deram corpo e substância à ideologia colonial através das crónicas de viagem. Entre as décadas de 1930 e meados de 1960, houve continuidade no estilo, nos temas e nas ideias-mitos propagadas pelos textos de viagem. Tal estabilidade pode explicar-se à luz das alterações “cosméticas” do regime em relação às políticas do ultramar, bem como pela fragilidade e mesmo ausência de crítica dos sectores democráticos e oposicionistas. Quando a viragem ideológica luso-tropical alcança as elites de Angola, o que se traduz nos temas e na abordagem dos romances de Reis Ventura, por exemplo, as crónicas de viagem voltam-se e limitam-se para as possibilidades de turismo na colónia, o que também se verifica efémero dado o acirrar da guerra de libertação[21]

As continuidades discursivas e representacionais herdadas do período colonial, a exemplo da ideia de “lusofonia”, estão entre as demandas de investigação das ciências sociais. A discussão do passado imperial e colonial de Portugal mantém-se aceso, inclusive na esfera pública, a exemplo do conflito sobre o nome a ser dado ao “Museu das Descobertas”, iniciativa da Câmara de Lisboa, tema que tem provocado um intenso debate entre académicos e comentaristas da imprensa sobre o vocabulário da história portuguesa. O tópico tem propiciado novas leituras e perspetivas sobre o papel desempenhado pelo país ao longo dos séculos, no qual se aponta o imperativo de uma “descolonização” ideológica, científica e social. Neste contexto, “viagem” é uma alternativa ou metáfora, para se pensar os “descobrimentos” ou a “expansão”.[22]

Numa leitura pós-colonial, assinala-se que a viagem e a crónica de viagem do século XX atualizaram e popularizaram a ideologia e a mitologia império-colonial, tipificando e homogeneizando uma retórica narrativa que se pretendia contributo de uma colonização que almejava “supremacia étnica, cultural, política e económica” (Lourenço, 2014, p. 64). Tais textos preservaram e atualizaram temas e estratégias narrativas do século XIX, numa retórica orientalista que serviu os propósitos das relações entre cultura e império, respondendo à demanda de legitimar, conservar, construir e defender o império africano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes

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“Recenseamento na Lunda”, Cândido Guerreiro da Franca, 02-08-1936.

“Já fui soba”, Roberto Silva, 12-06 a 19-06 de 1938.

“Terras de Magul”, Costa Mendes, 29-05-1938.

“Coisas que sucedem a quem anda pelo mato”, Cândido Guerreira da Franca, 10-05-1942.

“Mistérios do Iona. O homem da casa de barro”, Cecílio Mimoso Moreira, 11-10-1964.

“Diário de um chefe de posto”, J. Albuquerque Cardoso, 24-05-1942.

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SPURR, D. (1993), The Rhetoric of EmpireColonial Discourse in Journalism, Travel Writing and Imperial Administration, Durham e Londres, Duke University Press.         [ Links ]

TRINDADE, L. (2008), O Estranho Caso do Nacionalismo Português. O Salazarismo entre a Literatura e a Política, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

 

Recebido a 04-07-2019 . Aceite para publicação a 20-01-2020.

 

[1] Este estudo integra-se no projeto “O Império colonial português e a cultura popular urbana: visões comparativas da metrópole e das colónias (1945-1974)” - financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT-PT), desenvolvido pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pelo Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A autora agradece os comentários dos revisores anónimos, que enriqueceram o texto e o seu argumento. Este artigo é dedicado a Luís Andrade de Sá, viajante incansável e exímio narrador.

[2] Gastão de Sousa Dias (1887-1955) foi militar e capitão do exército português, fixou residência no Lubango, em Sá da Bandeira, onde se dedicou ao estudo e à escrita da história de Angola, tendo publicado diversos livros e artigos na imprensa. Entre eles, No Planalto da Huíla (Crónicas de Viagem, Impressões e Aspectos), 1923, Porto, Renascença Portuguesa e África Portentosa, 1926, Porto, Renascença Portuguesa, com o qual ganhou o 1.º Prémio de Literatura Colonial em 1926.

[3] No âmbito da pesquisa exploratória deste estudo foram observados diversos jornais diários das colónias de Angola e Moçambique entre as décadas de 1930-1970. Entre outros jornais de Angola observados neste estudo destacam-se o Diário de Luanda (1945-1972), Notícia! (1959-1974) e A Semana Ilustrada (1967-1973).

[4] Travel Writing, um estudo sobre as narrativas de viagem escritas em inglês entre os séculos XVI e XX, apresenta similaridades com esta cronologia de ciclos narrativos (Hulme e Youngs, 2002).

[5] Castro Soromenho (1910-1968) nasceu em Chinde, Moçambique, e cresceu em Benguela. Em Angola foi funcionário da administração colonial e agente da Companhia dos Diamantes, tendo depois sido jornalista no Diário de Luanda. Em 1937 mudou-se para Lisboa, onde colaborou em diversos órgãos da imprensa. Dedicou-se ao estudo da história e da etnografia africana, tendo publicado diversos livros de ficção. Até 1949, a africanidade e a sociedade lunda são os temas centrais da sua obra, a exemplo de Calenga, 1945. Com Terra Morta, 1949, o autor documenta a colonização portuguesa, incluindo as perspetivas dos colonos e dos colonizados, afastando-se do etnocentrismo europeu e do louvor ao império colonial português.

[6] Cecílio Mimoso Moreira (1913-?) foi colaborador regular na imprensa de Angola. Autodidacta, publicou diversos estudos sobre a região. Entre as Dunas e o Mar, Porto Alexandre, da sua História, da sua Terra e das suas Gentes, 1965, Luanda: Sociedade Publicitária de Angola. → Vátuas do Sul de Angola, Sandlopers e Ovacuambundos, 1989, separata do n.º 4 da Revista Africana, Universidade Portucalense.

[7] J. Albuquerque Cardoso chegou à Angola em 1925, foi empregado bancário, funcionário administrativo e afirmou-se como jornalista. O relato é do próprio, em reportagem publicada em 18 de Fevereiro de 1951, Suplemento de Domingo, A Província de Angola.

[8] Sobre a relação entre viagens, exploração e ocupação e as doenças, febres e alucinações que afetavam os viajantes europeus assinala-se o estudo de Johannes Fabian (2000).

[9] Alberto Jorge Júdice Ferreira de Lemos (1897-1970) nasceu em Angola e fez carreira na administração colonial do território, foi diretor dos Serviços de Estatística da província, diretor do Museu de Angola, presidente da Câmara Municipal de Luanda e organizador do Arquivo Histórico de Angola, entre outros cargos que ocupou. Dedicou-se ao estudo da história de Angola, tendo publicado diversos títulos. Entre eles História de Angola, 1929, Luanda, Imprensa Nacional; A Reconquista de Angola e o Dever do Português Contemporâneo, 1933, Luanda, Livraria Editora A Lusitana.

[10] Albano Neves e Sousa (1921-1995) nasceu em Matosinhos, cresceu e viveu em África, tendo sido Angola, o homem e a cultura africana, o tema principal da sua vasta obra de pintor. Participou de expedições etnográficas na província para registar o meio natural e humano de Angola e colaborou frequentemente com a imprensa. Realizou inúmeras exposições de pintura em África, Europa e América e as suas obras fazem parte de coleções públicas e privadas.

[11] O estudo de Cláudia Castelo (2017) sobre os colonatos portugueses em África, inclusive o da Cela, demonstra os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos colonos e pelos projetos em si, contrariando a propaganda colonial, que os exaltava enquanto empreendimentos de sucesso.

[12] Para David Spurr (1993, p. 63 e 77), a “classificação” desempenha as funções de policiamento, demarcação de posição, regulação dos grupos e reforço das fronteiras entre o homem branco e o outro. Tal retórica narrativa implica uma análise circular que relaciona o visível ao invisível, ou, às “causas profundas”. Através do “rebaixamento”, argumenta o autor, o discurso colonial reproduz, a nível ideológico, a ansiedade racial e cultural perante o “outro”.

[13] A “idealização” é outra categoria da retórica discursiva identificada por Spurr (1993, p. 128) e frequente nas narrativas de viagem aqui estudadas. O “Oriente” e os “selvagens” são idealizados enquanto “o paraíso” e “estranhos”, num processo de idealização que tem como referência a cultura ocidental.

[14] A ideia de uma “antropologia-etnografia” escrita nas margens a partir dos textos e contribuições de viajantes-escritores é desenvolvida e estudada por Hulme e Mcdougall (2007). O foco nas relações sociais coloniais e a forma como estas são subjetivadas é um requisito para se compreender os casos de “antropologia marginal”, no estudo de tais narrativas observa-se que a maioria dos textos nega a igualdade entre observador e representado e se estabelece uma distância de tempo e de lugar (Pels, 2007).

[15] Higino Vieira foi jornalista, tendo sido editor do mensário de divulgação literária, científica e artística da Sociedade Cultural de Angola em 1945.

[16] Sobre a ideologia do império colonial, ver, por exemplo Alexandre (1995) e Castelo (1998).

[17] Esta elite intelectual de Angola é herdeira e continuadora da literatura nacionalista que do fim do século XIX à década de 1940 legitimou o Estado Novo. Esta, constituiu “uma imagem superficial, constante e imóvel da sociedade portuguesa e do povo português, imagem que anulou qualquer projecto plural e transformador no interior da sociedade”, insistindo no papel de Portugal no Mundo e no carácter universalista do povo português (Trindade, 2008, p. 317).

[18] Diogo Ramada Curto (2015) também utilizou o conceito de “comunidade” para investigar as relações sociais e culturais no âmbito da história política da cultura e para estabelecer relações entre níveis micro e macro de interpretação das sociedades.

[19] Sobre a mística colonial na década de 1930 ver Rosas (1994).

[20] Sobre o império africano nas décadas de 1930-1960, v. Alexandre (2017, capítulos 4 e 6).

[21] Manuel Joaquim Reis Ventura, radicou-se em Angola em 1940. Funcionário público, defensor do regime e da ação colonial, publicou os seus romances no formato de folhetim no Suplemento de Domingo de A Província de Angola, onde foi cronista regular entre as décadas de 1950-1970.

[22] No âmbito da discussão sobre o nome a ser dado ao museu de iniciativa da Câmara de Lisboa foram publicados dezenas de artigos na imprensa portuguesa. Uma boa síntese da discussão, e também do histórico do debate sobre os vocabulários aplicados ao período colonial, é o texto de Afonso Ramos, publicado em 22 de Junho de 2018, no suplemento Ípsilon, do jornal Público.

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