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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.237 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.31447/as00032573.2020237.01 

Artigos

As radiações e a formação de uma ecologia institucional da medicina do cancro em Portugal (1912-1948)

Radiations and the formation of an institutional ecology of cancer medicine in Portugal (1912-1948).

Ricardo Gomes Moreira1 
http://orcid.org/0000-0003-3978-4626

1 Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal, rolisango@gmail.com


Resumo:

Os estudos da radioatividade e o impulso científico e industrial associado à produção de radiações marcaram profundamente a medicina portuguesa no começo do Século XX. Neste artigo explora-se o modo como uma noção biomédica do cancro emergiu nessa época, intimamente associada ao desenvolvimento de uma “economia das radiações” que se apoiava nos usos clínicos e científicos da radioatividade. Argumenta-se que essa economia se baseou em ambos os conceitos de “cancro” e de “radiações”, que se constituíram como objetos de fronteira, capazes de sustentar, no caso português, uma nova ecologia institucional da medicina através do seu potencial mediador entre diversos interesses políticos, científicos, médicos e industriais.

Palavras-chave: cancro; rádio; economia das radiações; objetos-fronteira; ecologia institucional.

Abstract:

The studies of radioactivity and the consequent flourishing of the sciences and industries related to the production of radiations left a distinctive influence in Portuguese medicine of early twentieth century. In this article I examine the ways in which the biomedical concept of cancer that emerged in that period was in close connexion with the development of “radiations’ economy” sustained by the clinical and scientific uses of radioactivity. I argue that such economy was grounded on “cancer” and “radiations” concepts and that both of these were constituted as a boundary objects that were capable of supporting (in the Portuguese context) a new institutional ecology of medicine through their mediation between different spheres of political, scientific, medical and industrial interests.

Keywords: cancer; radium; radiations economy; boundary objects; institutional ecology.

Introdução

Corria o ano de 1908 quando uma companhia de capitais franceses iniciou uma série de investimentos nos arredores da cidade da Guarda que, a partir dos minérios de urânio aí explorados, levaram à abertura da primeira fábrica, em Portugal, para a produção de sais de rádio. Poucos anos mais tarde, uma outra companhia, liderada pelo banqueiro Henry Burnay, explorava já as minas da Urgeiriça com o mesmo intuito de daí extrair minérios radioativos.

Em simultâneo com estes primeiros investimentos minerários, os sais de rádio tornavam-se já uma presença frequente em algumas instituições de saúde na Europa, circulando dentro de agulhas e tubos metálicos. Nestes pequenos contentores, poucos miligramas de rádio eram suficientes para serem aplicados em hospitais públicos e clínicas privadas, servindo de terapia a doenças geralmente tidas como do espectro do cancro.1

Foi em 1912, no Hospital de Santa Marta em Lisboa, que os sais de rádio produzidos nos arredores da Guarda vieram a encontrar os seus primeiros pacientes e serviram algumas das primeiras práticas de radioterapia efetuadas no país.

Neste artigo explora-se essa relação íntima entre o rádio e o cancro, e entre uma eventualmente lucrativa indústria da radioatividade e a medicina oncológica. Iniciada nessas primeiras décadas do Século XX, esta relação levou Portugal a estar no grupo dos primeiros países do mundo que desenvolveram uma medicina do cancro em torno das novas tecnologias radiológicas e que institucionalizaram a oncologia hospitalar em torno do potencial curativo das radiações.2

Até há alguns anos, a história da medicina portuguesa mantinha-se distante dos debates que, em várias áreas dos estudos da ciência, surgiam estimulados pelo interesse na oncologia e nas suas múltiplas dimensões política, científica e tecnológica (Cantor, 1993, 2007; Hayter, 1998; Helvoort, 2001; Pinell, 2002; Löwy, 2003; Kraft, 2006; Pickstone, 2007). Em 2012 surge a primeira monografia dedicada ao percurso histórico dos estudos do cancro em Portugal (Costa, 2012), anos depois das primeiras explorações sociológicas de João Arriscado Nunes, centradas na “oncobiologia” contemporânea (Nunes, 1998, 1999).

Neste trabalho pretende-se contribuir para um conhecimento mais aprofundado da história da ciência e da medicina oncológica em Portugal, explorando o modo como esse novo campo de estudos biomédico emergiu - em princípios do Século XX - na interseção de múltiplos interesses científicos, políticos e económicos e, em simultâneo, com o surgimento de um outro novo domínio tecnocientífico com grande impacto social e político no decorrer do século: a Física de Radiações. De facto, a aplicação das tecnologias radiológicas nas clínicas do cancro constituiu o primeiro grande impulso à formação de um importante subsector económico que aqui denominamos de “economia das radiações”. Nesse contexto é de destacar a importância dos minérios de rádio nacionais no mercado internacional das radiações, num período ainda anterior à Primeira Grande Guerra (Boudia, 1997; Roqué, 2001). Mas a verdade é que a participação de Portugal neste mercado nunca foi convenientemente explorada, nem mesmo no sentido de compreender as suas ligações com a emergência dos estudos do cancro em Lisboa,3 dado que a história das ­diferentes estratégias nacionais de “luta contra o cancro” foi, sobretudo, explorada ou comparada entre as nações que afirmaram os seus modelos de desenvolvimento científico como dominantes - em particular a Alemanha, a França, o Reino Unido e os eua.4

Nesse sentido, o presente ensaio contribui também para uma reavaliação das relações e das posições relativas de centros e periferias (Gavroglu et al., 2008). A emergência destes novos domínios científicos no contexto da “semiperiferia” portuguesa (Nunes e Gonçalves, 2001) releva da especificidade do contexto tecno-político de um país que estava, em princípios do Século XX, não só a dar os primeiros passos no campo da medicina laboratorial, como se encontrava em pleno processo de formação de um novo regime republicano, aliás propenso à expansão do papel social e político da ciência e da medicina.5 O caso português evidencia, assim, um momento histórico decisivo, no qual se desenha esse fenómeno de articulação entre diferentes interesses e “mundos sociais”, tipicamente observável em momentos de transformação e de formação de novos terrenos científicos. Por isso, o cancro, na sua qualidade de “objecto de fronteira” (boundary object), constitui - em conjunto com as “radiações” - um exemplo eloquente sobre o modo como o cruzamento de interesses sectoriais permite formar em torno de si uma “arena” de participação e benefício mútuo entre mundos sociais distintos (Star e Griesemer, 1989; Fujimura, 1992; Nunes, 1999; Gaudillière, 2009).

Considerando os espaços da assistência médica lisboeta da primeira metade do Século XX, interessa-nos ponderar duas dimensões sociais da ciência. A saber: (i) uma reorganização político-institucional em torno da medicina que depende, por seu turno, de (ii) um novo conceito médico-científico de cancro. O que se propõe, portanto, é compreender a emergência de uma ecologia institucional6 em torno dos estudos do cancro, no sentido em que diferentes agentes e instituições participavam conjuntamente numa mesma esfera de atuação e em vista de uma mesma missão (neste caso uma resposta médica e hospitalar ao cancro), embora cada uma destas entidades se mobilizasse em vista de interesses e regimes disciplinares e organizacionais próprios.

Uma análise dessa história das relações da medicina com as restantes esferas sociais, constitui também uma via de acesso ao debate que decorre hoje em torno das articulações entre os interesses público e do Estado, interesses científicos, e interesses da indústria e dos mercados da tecnologia, do conhecimento e da informação (Gibbons et al., 1994; Leydersdorf e Etzkowitz, 1996; Hayden, 2003; Petryna, 2009; Cooper and Waldby, 2014; Swanson, 2014).

O presente artigo divide-se em três secções principais e uma conclusão. Na primeira parte abordamos a formação do moderno conceito científico do “cancro”, enquanto objeto de fronteira, que surge em simultâneo com o das “radiações”. Na segunda parte exploramos a criação de uma economia internacional das radiações e a inclusão de Portugal nesse circuito económico. Por fim, a última secção lida com o papel das radiações na formação da oncologia portuguesa, explorando-se a constituição, no país, de uma ecologia institucional do cancro a partir da conjugação da iniciativa política com os outros interesses científicos e industriais.

A dupla emergência do cancro e das radiações como objetos-fronteira em princípios do Século XX

As primeiras articulações entre preocupações médicas e sensibilidades políticas em torno do “cancro” começaram a emergir em finais do século xix, quando o que era percecionado como um conjunto mais ou menos diverso de patologias cancerosas ganhou visibilidade nas estatísticas hospitalares. Dentro dos hospitais, a consciência de uma dimensão epidemiológica do cancro surgiu a partir do momento em que - com a aplicação das técnicas antissépticas de Lister à cirurgia interna - os casos identificados como cancerígenos passaram a ser alvo de tratamento cirúrgico. A remoção de tumores internos na mesa de operações abriu novas possibilidades de cura e trouxe a esses casos clínicos um interesse médico renovado, o que levou à crescente ocupação de camas em hospitais públicos por doentes de cancro que passaram a ser incluídos nas estatísticas hospitalares. Essa visibilidade estatística contribuiu, naturalmente, para acentuar uma consciência do cancro como um problema de saúde pública. À questão médica e científica sucederam-se, em poucos anos, questões de ordem social e política, sendo esta uma doença que, por via das estatísticas existentes, era encarada como atingindo sobretudo a “civilização moderna”.7 Tal como ia acontecendo noutros países da Europa e nos Estados Unidos, pela viragem do século também em Portugal se assistiram a algumas iniciativas políticas na tentativa de alcançar uma resposta científica e hospitalar para uma doença que despertava a preocupação de médicos, estatísticos e políticos.8

Nas clínicas hospitalares as desilusões não eram, por essa altura, menores do que as esperanças de cura, e as estatísticas médicas demonstravam bem a dimensão das dificuldades que os clínicos não conseguiam superar, a despeito da evolução dos meios de diagnóstico e terapia (Pinnel, 2002). Apesar de não constituir (ainda) uma doença com grande visibilidade social - mesmo nos meios urbanos a tuberculose era, de longe, mais mortífera - dentro dos hospitais o cancro era das que mais matava.9

No ano de 1895 e, poucos meses depois, em 1896, ocorreram as descobertas dos raios-x e da radioatividade, por Wilhelm Roentgën e Henri Becquerel, respetivamente. Teve assim início o campo de estudos da Física de Radiações, o que marcou também o arranque da radiologia médica sobre a qual se sustentaram os estudos do cancro nos começos do Século XX.

Em termos terapêuticos, a radiologia constituiu à época uma ferramenta que permitia operar com maior sucesso dentro da estreita janela temporal na qual a cirurgia do cancro podia ser eficientemente aplicada. Na falta de outras opções, as radiações poderiam funcionar também como terapia principal mas, geralmente, tinham sobretudo um papel complementar à cirurgia. Já ao nível da investigação, a possibilidade de manipular as radiações em contexto clínico e laboratorial foi providencial. A radioatividade e os raios-x serviam tanto na produção de conhecimento biomédico - sobre as origens do cancro, sobre a natureza dessa patologia e sobre a terapêutica - como na produção de conhecimento em Física, sobre a própria natureza da matéria e das radiações. A radiologia médica veio adicionar uma nova plataforma clínica10 que melhorou a eficácia curativa das terapias convencionais e permitiu aos cirurgiões manter uma posição dominante nos hospitais, mas trouxe também uma transformação crucial do contexto laboratorial - biólogos e radiólogos passaram a trabalhar em conjunto, potenciando o desenvolvimento do novo campo oncológico e dos estudos da radioatividade.

Os especialistas na química de elementos radioativos estavam sobretudo em França e foi aí que se desenvolveram as primeiras indústrias do rádio e que primeiro se processaram materiais radioativos das mais variadas ­proveniências. Apesar do elevado custo em reagentes necessários ao tratamento dos minérios radíferos, e da grande quantidade de trabalho que requeria o processamento industrial de sais de rádio - o que explicava em parte o avultado preço do produto final -, a grande procura de rádio criada pelo mercado das aplicações clínicas permitia justificar o investimento de capitais na extração dos minérios e no seu tratamento industrial. Nos anos que antecederam a Primeira Guerra, os sais de rádio tornaram-se a mercadoria mais cara alguma vez conhecida, ascendendo o seu custo no mercado ao valor de um milhão e meio de francos por grama (Pinnel, 2002, p. 35).

Nestas primeiras décadas da história da radioatividade, Pierre Curie e Marie Curie são duas figuras centrais. Depois de em 1898 terem isolado sais de rádio, pela primeira vez, a partir de minério de urânio, o casal empreendeu uma estratégia de acumulação de rádio-elemento com o intuito de assegurar uma posição de autoridade científica e domínio na investigação. Celebraram então um compromisso de colaboração com o laboratório industrial da Societé Centrale de Produits Chimiques que se tornou no primeiro produtor mundial de sais de rádio. Os Curies faziam a verificação, a certificação do rádio produzido, e forneciam os técnicos e os instrumentos necessários para a sua extração a partir do minério radífero sob supervisão de André Debierne, um dos seus colaboradores próximos (Roqué, 1997).

Instigadas pelos próprios Curie, as aplicações médicas do novo elemento radioativo não tardaram a aparecer. Logo em 1903, Pierre Curie, Marie Curie e Antoine Henri Becquerel ofereceram a Henri Danlos - médico do Hospital de Saint-Louis (Paris) - algumas amostras que tinham disponíveis e que foram de imediato aplicadas experimentalmente sobre doenças dermatológicas, nomeadamente em doentes com lúpus e cancro da pele (Pinnel, 2002, p. 34). Por essa altura, inúmeras pesquisas médicas sobre os efeitos biológicos das radiações estavam já em publicação, o que viabilizava a produção industrial de rádio em grande escala. Armet de Lisle - industrial francês produtor de quinino - viu-se então motivado a abrir a primeira fábrica para a produção e comercialização de sais de rádio, criada no ano de 1904 em Nogent-sur-Marne; um momento igualmente promissor para físicos e médicos, que viam satisfeitas as urgentes necessidades de sais de rádio para dar continuidade às suas pesquisas (Vincent, 1997). Desenhava-se, assim, nos primeiros anos após a descoberta do fenómeno da radioatividade, um movimento de “interessamento” (interessement)11 dos sectores médicos e industriais instigado pelos meios das ciências físico-químicas parisienses, em particular por ação dos próprios Curie, a quem interessava captar o interesse sobre as propriedades dos novos elementos radioativos e estimular o seu uso e produção.

Em 1910, Henri de Rothschild instala uma nova fábrica de rádio, então denominada Société Anonyme des Traitements Chimiques, e no ano seguinte coloca Albert Laborde - também investigador no laboratório de Marie Curie - como supervisor do serviço de medições e purificação da fábrica. Numa postura filantrópica e conjugando uma vez mais os propósitos industrialistas com a vertente médica, Henri de Rothschild afirmava ser o seu intuito “estender à maioria dos incapacitados os benefícios do tratamento por rádio” (Vincent, 1997, p. 297). Ainda nesse mesmo ano uma outra fábrica de rádio abre atividade e França passa a contar com três instalações industriais para a produção de instrumentos de base radioativa para aplicações médicas. Esta última, a Société Industrielle du Radium, era propriedade de Gaston Danne e Jacques Danne, tendo este último deixado a colaboração com de Lisle no ano anterior. Pelo ano de 1912 existia já uma necessidade permanente de minérios de rádio nas fábricas, hospitais e laboratórios franceses e os Curie mantinham relações privilegiadas com as três unidades industriais existentes (Boudia, 1997).

Neste contexto de investigação biomédica sobre o cancro, a articulação e a tradução do conhecimento científico produzido nos laboratórios de rádio-biologia para o domínio clínico - algo que hoje se denominaria de investigação de translação - era já muito marcada pela sua proximidade com os terrenos da inovação tecnológica. Essa investigação prestava-se já a um papel de mediador, particularmente poderoso e eficiente (lugar que ainda hoje assume), na criação de sectores económicos de base tecnocientífica, e na criação de mercados que se vinham a afirmar, em pouco tempo, a uma escala internacional. O trabalho laboratorial cruzava-se então de modo reciprocamente profícuo com o trabalho clínico. Nessa articulação, a produção de conhecimentos sobre os tecidos vivos, sobre as radiações e sobre os seus efeitos biológicos, permitiu traçar um vínculo epistémico entre a biologia, as ciências físico-químicas e a medicina, produzindo assim um mercado para as radiações tão amplo quanto o da população hospitalar ou potencialmente hospitalizável por diagnóstico de cancro. Mas se a investigação permitiu criar esse “mercado” em potência para as radiações, terá sido a intervenção política e estatal, por via das instituições de assistência hospitalar e do seu financiamento, que permitiu abri-lo, de facto, à exploração comercial (como se verá adiante, na última parte deste artigo). Nesse movimento, as bases biológicas da clínica aprofundavam-se e a assistência hospitalar tornava-se mais dependente dos vários campos da ciência articulados entre a clínica e os laboratórios.

Como é sabido, os sais de rádio que eram então utilizados em radioterapia contribuíram significativamente para o estudo radio-biológico daquela doença criando condições para a observação comparativa dos efeitos das radiações sobre os diferentes tecidos e, em 1905, esse uso de radiações na investigação biomédica do cancro tornou possível um dos mais significativos avanços teóricos da oncobiologia. Foram Jean-Alban Bergonié - electro-fisiologista e radiologista - e Louis Tribondeau - médico especialista em fisiologia celular - os responsáveis pelo reconhecimento de uma “lei”12 que explicava que os tecidos (particularmente os cancerosos) eram tanto mais sensíveis às radiações quanto maior fosse a sua atividade reprodutora - ou seja, quanto maior fosse o seu momento cariocinético e menor a especialização morfológica e funcional das suas células. Importa salientar que foi a compreensão do cancro na sua dimensão celular - a partir de estudos laboratoriais fundamentalmente histológicos - que permitiu explicar de que modo é que os efeitos da ação biológica das radiações poderiam constituir uma terapêutica fundamental para as clínicas de oncologia, justificando a continuidade dos investimentos e da investigação em radioterapia.

É assim compreensível que, inicialmente, tenha sido a fluidez ou a indefinição do conceito médico de cancro a permitir que, a partir de certa altura, o problema clínico fosse “traduzido para questões de explicação biológica” sendo que “essa tradução tinha, na maioria das vezes, implicado conhecimento biológico em vez de conhecimento médico” (Löwy, 2003, p. 461). Nessa tradução da linguagem clínica para o terreno da biologia abriu-se o espaço necessário à pesquisa dos fenómenos cancerígenos no âmbito da investigação laboratorial. Durante essas primeiras décadas do Século XX e através do cruzamento da investigação radiológica com a histo-biologia, os estudos do cancro passaram a ocupar um lugar de charneira nas ciências biomédicas, e o próprio conceito biomédico de “cancro” adquiriu a qualidade de um “objeto de fronteira”: operando entre os diferentes domínios científicos da Física e da Biologia, na articulação entre laboratórios e clínicas e mobilizando todo o dispositivo tecnológico e industrial montado para fornecer hospitais e laboratórios dos necessários recursos de terapia e investigação.

Assim, a par da ideia de objeto-fronteira, importa sublinhar aqui a importância de uma outra noção analítica que é a de tradução (translation).13 Porque ao abordar o desenvolvimento de um conceito como o do cancro enquanto objeto-fronteira, é relevante, não só, compreender o esforço de equiparação entre os conhecimentos da biologia e os conhecimentos clínicos, mas também ter em conta um mais vasto processo de tradução/translation na formação de uma ecologia institucional que liga diferentes mundos inicialmente separados e entre os quais a comunicação era inexistente ou superficial. É esse processo denominado tradução que dá conta da produção de uma certa discursividade própria da prática científica, marcada por um elevado grau de certeza, que consideramos aqui como tecendo a (re)combinação desses diferentes universos e trazendo-os para “uma relação marcada pela inteligibilidade” (Callon, 1984, p. 223). Pacientes e cirurgiões, biólogos e físicos, patologistas e engenheiros, políticos e industriais, viram-se então envolvidos na busca de respostas a uma questão central capaz de conjugar os seus diversos interesses em torno dos estudos das radiações e do cancro. Essa questão consistia fundamentalmente em saber como é que a aplicação de radiações sobre os tecidos tumorais eliminava as células cancerígenas e preservava as células saudáveis. A oportunidade que esta questão científica representava para consolidar esse processo de tradução (e interligação) entre interesses de diferentes universos sociais, veio a concretizar-se na formação dessa ecologia institucional e de novos elementos estruturais que, nessas diferentes esferas, cimentavam essa interligação: laboratórios, hospitais, leis, organizações civis, minas, indústrias, clínicas privadas, entre outras, vieram a ser criados no sentido de dar resposta àquela questão e de, a partir dela, promover o tratamento e a prevenção do cancro, articulando os interesses de diferentes atores, permitindo-lhes expandir a sua ação e influência, e abrindo-lhes mundo e futuro. A importância analítica desse processo de tradução, como o entende Callon - no qual certos atores sociais são capazes de “expressar na sua própria linguagem o que outros dizem e ambicionam, porque atuam do modo como atuam e como é que se podem associar entre si” - é fundamental para cerzir mundos e aponta para a consolidação desses atores como “porta-vozes”, ou representantes (na sua ação), desses diversos interesses conjugados (Callon, 1984).

Nesse sentido, é de realçar que, a par do conceito de “cancro”, também a noção de “radiação” se constituiu como central e sofreu, em poucos anos, uma notável evolução que foi sendo acompanhada de processos de tradução do campo de estudos foto-eléctricos para o campo da física atómica e das radiações, e deste para os terrenos da rádio-biologia. Por um lado, encontrávamos o “cancro” na fronteira entre os laboratórios de biologia e os espaços clínicos e assistenciais. Por outro lado, as “radiações”, na interseção entre os laboratórios de física, as minas de urânio, e a indústria química de sais radioativos. Finalmente, ambos os conceitos se conjugavam na ação clínica de radioterapia e nos laboratórios de rádio-biologia. Com uma história inicial conjunta, estes dois conceitos tornar-se-iam em dois poderosos objetos-fronteira ao longo do século, constituindo-se desde logo como importantes eixos de tradução e circulação de conhecimento, atuando na institucionalização de interesses que se cruzavam e colocavam em contacto uma panóplia de agentes constituídos em torno da radiologia médica e da emergente economia das radiações.

A combinação destes dois conceitos cedo potenciou uma disseminação internacional de conhecimentos e de práticas de trabalho clínico e laboratorial que articulavam elementos da investigação biomédica sobre o cancro e elementos da investigação radiológica. As parcerias criadas entre as duas áreas científicas, da biologia e da física, imprimiram uma reciprocidade reforçada entre equipas, laboratórios e instituições, aprofundada ainda a partir do momento em que se demonstrou que o efeito das radiações sobre as células com maior propensão reprodutiva permitia conceber “o cancro” como sendo, fundamentalmente, um fenómeno de células em divisão e crescimento acelerado (Löwy, 2003, p. 463).

Em suma, se o trabalho clínico e de análises laboratoriais era fundamental ao avanço do conhecimento médico da doença, não menos importante se revelava o uso de substâncias radioativas, particularmente do rádio. Para além de constituir um instrumento terapêutico com valor próprio, as radiações vinham permitindo também estudar algumas das características fundamentais da biologia do cancro a partir dos efeitos que podiam ser observados pela sua incidência nos tecidos cancerosos e saudáveis. Foi esta articulação entre “cancro” e “rádio” em clínicas hospitalares que orientavam a sua atuação para uma ação médica de larga escala sobre as massas populacionais, que deu origem à ecologia institucional própria dos estudos do cancro: laboratórios e clínicas coordenavam-se em ações de diagnóstico e terapia, onde a cirurgia e a radioterapia eram pensadas para servir o maior número de pacientes possível, retirando-se daí as bases de uma legitimidade política com vista ao financiamento público da investigação e da assistência médica. As clínicas ­hospitalares constituíram-se então como pontos de passagem obrigatórios; vértices de ­articulação centrais aos vários interesses envolvidos em torno da biomedicina do cancro e das radiações.

Guarda-Lisboa-Paris: a economia das radiações na formação dos estudos do cancro em Portugal

Durante a fase de arranque da emergente economia das radiações - que terá durado até ao início do período entre guerras - a indústria francesa do rádio necessitou de estender a procura de matérias-primas a algumas regiões da Europa onde era possível encontrar minérios de urânio, até então praticamente inexplorados. Por essa altura, vários sítios das Beiras portuguesas viram-se inseridos numa rede europeia de extração, indústria e comércio de matérias radioativas, e assistiram à criação das primeiras instalações industriais do país para o tratamento de urânio (que contém naturalmente rádio). A instalação de “fábricas rádio”14 em Portugal - na periferia do desenvolvimento do campo de estudos de Física das Radiações - foi determinante na introdução das práticas de radioterapia no país. Por esta via, Portugal acabou por acompanhar e por se apropriar de um modo relativamente original dos desenvolvimentos da medicina radiológica e oncológica.

Apesar do crescente uso clínico e laboratorial da radioatividade, a primeira fase de expansão da economia das radiações em França não ocorreu sem alguns sobressaltos. No ano de 1903, precisamente quando o processamento industrial de sais de rádio despontava em França, o governo da Áustria decidiu colocar um embargo à exportação de pecheblenda, negando aos industriais franceses a sua principal fonte de minério. Em 1904, Armet de Lisle - que estava em pleno arranque da sua produção industrial de rádio - propôs-se divulgar a existência desta nova substância e incitar à prospeção de depósitos radioativos. Para isso fazia chegar a um público amador materiais instrutivos sobre técnicas de prospeção de minérios a partir do Le Radium, uma publicação que editava em colaboração com Jacques Danne. Também este, no laboratório que depois instalou em Gif-sur-Yvette15, disponibilizava a investigadores e colaboradores instrumentos para a compreensão de todos os aspetos da radioatividade, desde a extração do urânio à preparação dos sais para aplicação médica (Roqué, 2001, p. 56).

Depois do embargo austríaco, a busca de depósitos de urânio noutras regiões da Europa transportou o mundo da radioatividade até algumas das regiões mais isoladas do velho continente, entre as quais a Cornualha, no sudoeste de Inglaterra, e as Beiras portuguesas. Na Grã-Bretanha foi encontrada pecheblenda, que Jacques Danne tratou de processar industrialmente. Em Portugal, o trabalho de prospeção revelou extensos depósitos de autunite16, uma rocha de difícil tratamento e com percentagens mais baixas de urânio. Ainda assim, este minério português apresentou-se economicamente viável e constituiu, à época, um importante recurso para a indústria francesa (Boudia, 1997, p. 252), e em particular para de Lisle que enfrentava então a concorrência conjunta de Henri de Rothschild e Jacques Danne, já que ambos haviam unido as suas duas companhias fabris e trabalhavam com o minério inglês (Roqué, 2001, p. 56).

A indústria do rádio entre França e Portugal

As primeiras descobertas de jazigos de urânio em Portugal datam de 1907. Em 1908 terão sido efetuadas as primeiras exportações de minério para França, depois de instaladas algumas infraestruturas fabris para o estudo e o tratamento dos materiais extraídos (Carvalho, 2007). O modo de tratamento específico do minério português foi inicialmente pesquisado no laboratório de Marie Curie. Contudo, os métodos de processamento deste minério foram estabelecidos com dificuldade, carecendo de um período de nove anos de experiências para alcançar o processo de tratamento da autunite que era utilizado em 1916.17

A instalação da primeira fábrica em Portugal ocorreu logo depois das pesquisas iniciais realizadas no laboratório de Marie Curie. Essa fábrica, situada na localidade do Barracão (Guarda), era propriedade da Société Française l’Urane, Urbain, Feige et Cie., que detinha algumas minas de urânio próximas. Durante cerca de dois anos funcionou apenas no intuito de preparar sais de urânio puros, de efetuar pesquisas nas minas, e de vender os minérios de autunite e torbernite em França, onde eram depois tratados por Armet de Lisle. Contudo, em 1910, “para evitar o transporte inútil e caro do minério, fundaram-se em Portugal fábricas de preparação de sais puros ou de concentrados (…) e, mais tarde ainda, fábricas de sulfatos radíferos que eram depois tratados em França” (Lepierre e Pio Leite, 1933, p. 5). Segundo um manuscrito do químico francês Charles Lepierre, esta fábrica do Barracão, financiada por Denys Cochin, seria a segunda no mundo do seu género.18

Em 1912, a Société Française l’Urane ligou-se à casa financeira de Henry Burnay, que explorava já as minas da Urgeiriça, no concelho de Nelas, transformando-se então na Société Urane-Radium (Mourão, 1954; Carvalho, 2007). Esta tinha como principais investidores o próprio Henry Burnay e o aristocrata francês Denys Cochin que, segundo António Pedro Mourão, havia entrado para o negócio de Urbain e Feige “com mais de um milhão de francos fortes” (Mourão, 1954). A fábrica da nova sociedade, no Barracão, começou a partir de 1913 a laborar na produção de sais de rádio a partir dos minérios de autunite que lhe eram fornecidos pelas suas próprias minas, na Urgeiriça. Depois de produzidos, estes sais passavam por Lisboa antes de serem vendidos no mercado francês, e a administração da Urane-Radium encarregava-se aí de promover os seus usos terapêuticos, participando da formação ou do financiamento de clínicas privadas.19

Em 1917, Charles Lepierre - antigo discípulo de Pierre Curie, mas já na altura instalado em Portugal e com um importante papel no Instituto Superior Técnico - é nomeado “engenheiro consultor” da Société Urane-Radium. Lepierre ocuparia aparentemente a posição de consultor científico da fábrica do Barracão, tendo sido os trabalhos na fábrica orientados por engenheiros portugueses20 - entre os quais terá estado António Pedro Mourão, que afirma ter dirigido a produção entre 1916 e 1921.21 As impressões de Lepierre sobre a unidade fabril do Barracão não terão sido positivas, já que o químico francês destacou nas suas notas a ocorrência de processos de laboração fabril de “organização defeituosa”, entre outras considerações muito depreciativas dos trabalhos em curso.22 Eventualmente, com o seu contributo, os procedimentos terão ganho em eficiência e segurança mas, ainda assim, durante os cerca de 16 anos que laboraram - entre 1910 e 1926 - as fábricas da companhia luso-francesa apenas produziram 10 gramas de sais de rádio (Carvalho, 2007).

Em 1919, a fábrica deparava-se ainda com vários problemas de organização e de laboração. A dificuldade em estimar o potencial de produção da fábrica em função das concentrações de rádio nos minérios, e até mesmo em avaliar a sua real capacidade produtiva, levou mesmo os investidores a considerarem o encerramento. Por outro lado, o estado financeiro da empresa era precário e a greve dos camionistas portugueses desse ano - que levou a uma paralisação de pelo menos dois meses, - não ajudou à recuperação de uma situação ruinosa que se agravava em cerca de 144 000 francos por ano, fruto dos juros de dívidas acumuladas.23 Em 1920 a Société Urane-Radium, fundiu--se com a Société des Applications Scientifiques du Radium (A. S. R.), a sociedade que viria, depois da morte de de Lisle em 1928, a adquirir a fábrica de Nogent-sur-Marne onde aquele dera os primeiros passos no fabrico de sais de rádio. Por este tempo, já o rádio belga produzido com o minério do Congo, proveniente dos jazigos do Alto Katanga, invadia o mercado internacional em grandes quantidades.24 Nessa altura, Portugal praticamente deixara de poder competir no mercado internacional com os seus minérios de autunite, pouco concentrados e de tratamento dispendioso.

Bénard Guedes e a radioterapia do cancro em Lisboa

Podemos considerar que, em Portugal, a colaboração entre o mundo das radiações e a oncologia instituiu-se em 1912, com a própria fundação do serviço de cancro, dirigido por Francisco Gentil no Hospital Escolar de Santa Marta, em Lisboa. Mesmo desprovida dos necessários recursos terapêuticos, a clínica de cancro de Gentil conseguiu instituir a realização frequente de sessões de radioterapia. Com vista ao tratamento dos pacientes, mas também para estudar os efeitos das radiações - numa postura terapêutica ainda experimental - Francisco Gentil e Francisco Bénard Guedes terão, nesse tempo, recorrido ao auxílio da casa Burnay, o que lhes permitiu aceder ao rádio produzido na fábrica do Barracão. Mesmo sendo pouco rentável e de fraca capacidade produtiva, aquela unidade fabril acabou por se revelar instrumental na introdução do rádio nos meios médicos da capital. A Gentil e Guedes foi-lhes permitido obter os sais de rádio produzidos pela fábrica da companhia de Henry Burnay, desviando-os da sua rota rumo a Paris no momento da sua passagem por Lisboa e fazendo-os entrar na 1.ª Clínica Cirúrgica de Santa Marta. Em trânsito por Lisboa, estes sais de rádio eram temporariamente cedidos e utilizados nos tratamentos do Hospital Escolar, seguindo depois o seu destino para França, onde eram vendidos pela sociedade que detinha a fábrica.25

Iniciava-se nestes moldes, em Lisboa, o estudo científico da radioterapia e dos efeitos da aplicação da radioatividade sobre o cancro. As bases científicas em que se sustentou a criação do Instituto Português de Oncologia (IPO) foram assim, em grande parte, constituídas por experiências clínicas e de investigação proporcionadas pelo uso desse rádio “francês” produzido no Barracão, uso esse que teve também um contributo decisivo para o crescimento do número de pacientes nas consultas de cancro, em virtude dos seus alegados sucessos terapêuticos.

O principal responsável pela introdução do rádio e dos raios-x, como auxiliares da cirurgia, aquando da criação do novo serviço de cancro em 1912, foi Francisco Bénard Guedes - diretor do serviço de radiologia do Hospital Escolar e do IPO durante várias décadas, até à sua aposentação, em 1957. Guedes era um radiologista de formação médica e antigo discípulo de Francisco Gentil na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (era apenas nove anos mais novo). Em consequência do seu trabalho conjunto com Francisco Gentil, veio a constituir-se numa das personalidades basilares da génese dos estudos do cancro em Portugal e num dos mais reconhecidos radiologistas do país. Depois de aprender os fundamentos da radiologia com Feyo e Castro,26 em Lisboa, Francisco Bénard Guedes rumou a França, em 1913, para estagiar no serviço de radiologia do Hospital de Santo António de Paris com Antoine Béclère, fundador desse serviço em 1898, e um dos pioneiros da radiologia francesa. Daí saiu, em 1914, para estudar sob as orientações do físico Jacques Danne (antigo assistente no laboratório de Pierre Curie) e do médico Henri Coutard em ­Gif-sur-Yvette, no Laboratoire d’Essais des Substances Radioactives, um dos mais importantes centros de investigação na Europa para o estudo da radioatividade.27 Regressou então a Lisboa para, a partir de 1915, voltar a assumir os trabalhos de radiologia na secção de cancro do Hospital de Santa Marta. Desde 1923, passou a dirigir o respetivo departamento no então já oficializado Instituto Português para o Estudo do Cancro (IPEC).

Com base em observações que fez durante a sua prática clínica, Guedes publicou, em 1916, no Portugal Médico, um artigo que intitulou “O rádio no tratamento das neoplasias”. Aí afirmava perentoriamente o carácter subsidiário do rádio em relação à cirurgia e dizia não ser aquele um “agente terapêutico específico do cancro”, mas apenas indicado em algumas situações das quais era possível retirar grande benefício: criando condições para a remoção cirúrgica do tumor e complementando o tratamento com rádio depois da operação, num processo de ação combinada denominado de rádio-cirurgia. Em casos específicos, podia ainda ser usado como agente terapêutico principal.28 Ao olhar clínico era evidente que apenas numa segunda fase o cancro passava de uma patologia local a uma doença generalizada - o que alimentava a esperança de que pudesse ser curado se fosse tratado a tempo (Pinnel, 2002, p. 20) - mas esse intervalo temporal, no qual a cirurgia poderia ser aplicada com sucesso, era frequentemente muito estreito. O uso das radiações, como meio auxiliar da cirurgia, permitiu tornar mais eficiente a terapêutica nessa estreita janela temporal e, nesse sentido, dar resposta à urgência que caracterizava a temporalidade da ação hospitalar sobre o cancro.

Não é por isso surpreendente que, durante a sua primeira década de funcionamento, as consultas de cancro do Hospital Escolar tenham conhecido uma afluência sempre crescente de utentes e que o número de aplicações de radioterapia tenha acompanhado esta tendência, embora os registos para este período sejam bastante incompletos.29 É, contudo, evidente que no período entre 1914 e 1925 se assistiu a uma expansão considerável da população hospitalar presente nas consultas de cancro. Para Guedes, esse aumento do número de pacientes era importante, pois permitia um maior número de observações de casos e um maior número de aplicações experimentais de rádio.

Em 1916, Bénard Guedes reconhecia a importância da colaboração prestada pela casa Burnay e agradecia publicamente esse apoio. Recorrendo a uma retórica que sublinhava a sua ação social - a qual viria a ser recorrente na instituição e que era reveladora do seu posicionamento público nesse lugar de mediação e de facilitador da ação filantrópica dos nomes fortes da indústria e do capital junto das populações desprotegidas - Guedes afirma que o rádio que era utilizado nos tratamentos dos pobres das consultas de cancro, era “português, das minas dos arredores da Guarda e aí preparado”:

O Prof. Francisco Gentil deve à casa H. Burnay & C.ª e em especial aos Ex.mos Srs. Dr. [Baltazar] Cabral e [George] Demoustier o favor de poder estudar no seu serviço a acção do rádio em neoplasias malignas inoperáveis. (…) Consideramos um dever fazer saber que o rádio português tem sido aproveitado por alguns pobres dos nossos hospitais, mercê da generosidade da casa H. -Burnay & C.ª [Guedes, 1916, p. 74].

Dos problemas que surgiam do carácter transitório da passagem dos sais de rádio pelo Hospital Escolar destacam-se a imprecisão e a irregularidade das aplicações terapêuticas, causadas pela dificuldade em controlar inteiramente as doses, os tipos de aparelhos, os modos de aplicação e o tempo de exposição às radiações. O lado experimental e de improvisação era uma das marcas do serviço de cancro e da sua relação com as radiações. Bénard Guedes realçava a precariedade destas sessões de radioterapia da 1.ª Clínica Cirúrgica e afirmava não haver a “possibilidade de usar uma unidade de ação, sempre necessária para a difícil posologia de tão precioso agente terapêutico”. A par da preciosidade ou do valor do material terapêutico, Guedes poderia certamente também ter realçado a sua perigosidade, dadas as condições em que era aplicado e a falta de proteção existente. Tinha que se adaptar “a técnica às condições em que o rádio era temporariamente cedido” (Guedes, 1916, p. 74). Apesar das suas limitações, as radiações parecem ter-se revelado suficientemente úteis e, quando bem utilizadas, podiam de facto operar a cura de alguns doentes, como foi largamente exposto nas publicações científicas da época sobre as suas aplicações médicas.

A ecologia institucional da oncologia portuguesa no período da sua formação, 1912-1948

Não obstante o sucesso hospitalar das radiações, o impacto da radiologia na medicina portuguesa ultrapassa em muito a sua dimensão clínica. A criação de escala proporcionada pela radioterapia foi relevante no próprio desenvolvimento institucional das ciências nacionais, do qual tiravam proveitos, para além de cirurgiões e radiologistas, um conjunto de outros agentes (científicos e não só) cujos interesses eram potenciados por esse novo campo transdisciplinar que eram os estudos do cancro. Tornou-se, por exemplo, corrente o envio de jovens cientistas portugueses em estágios científicos ao estrangeiro - sendo um dos casos mais notórios o do físico Manuel Valadares que, em 1930, com o apoio estatal, estudou o modo de manusear o material radioativo, os meios colheita de radão, e as técnicas de medição e controlo das radiações; técnicas que veio a pôr em prática posteriormente, durante o período em que exerceu funções como assistente no laboratório de física do IPO.30 Segundo o próprio, a colaboração com o IPO constituiu uma importante “alavanca” para posteriores progressos científicos, sendo parte destes apenas justificáveis pelas aplicações técnicas que possibilitavam em contexto hospitalar (Valadares, 1930b; Gaspar, 2008, pp. 24-25).31 Também as ciências biológicas beneficiaram significativamente dos trabalhos de investigação realizados no instituto do cancro e dos seus recursos médicos e laboratoriais. Essa investigação - dirigida pelo histo-fisiologista Mark Athias - no seio da qual se produziram os primeiros estudos laboratoriais em “cancro experimental” - realizados por Simões Raposo - constituíram componentes fundamentais da atividade científica do IPO, contribuindo para o desenvolvimento das ciências naturais da capital (Athias e Dias, 1932; Athias e Fontes 1934; Athias, 1937a; Raposo, 1928) e abrindo espaços à expansão de campos disciplinares como a endocrinologia e a bioquímica (Athias, 1937b; Amaral, 2006, 2011).

Com a utilização dos sais de rádio provenientes do interior do país no Hospital Escolar em Lisboa, a medicina do cancro portuguesa desenvolveu em poucos anos uma ecologia institucional própria e, no entanto, reveladora das suas dimensões transnacionais. Particularmente importantes foram as influências oriundas dos meios científicos e industriais franceses, caracterizados por uma forte interligação entre a indústria do rádio, os laboratórios e os hospitais. Esta foi também uma ecologia institucional que revelou um grande potencial de transformação social marcado pela tecnologia e pela ciência: a proliferação de laboratórios (de física e química, de biologia, de histo-fisiologia, de radio-biologia, e de investigação biomédica); a abertura de novas clínicas privadas e hospitalares; o fomento dos investimentos financeiros na exploração mineira e na criação de indústrias, laboratórios industriais e mercados para matérias radioativas; o desenvolvimento das engenharias; os investimentos estatais em ciência e saúde pública e a institucionalização de novas disciplinas científicas nas universidades e nos hospitais; a formação de novas práticas de saúde e de cuidado médico junto das populações; o próprio crescimento da burocracia estatal. Foram estas algumas das diferentes dimensões de um impacto social que veio demonstrar esse elevado potencial de criação de mundos tecno-políticos associados aos novos objetos de ciência que se constituíram em torno do cancro e das radiações.32

Obviamente que a dimensão das novas configurações institucionais assim emergentes apenas se tornou possível com a participação interessada dos poderes públicos e, em particular, com a tradução do novo conceito biomédico de cancro para uma linguagem burocrática própria das instituições do Estado, subordinadas à gestão e à tutela dos decisores políticos. Essa possibilidade de articulação entre os diferentes organismos estatais - do qual faziam parte não só os hospitais e as universidades, mas também os centros de poder governativo - em conjunto com a atividade de cientistas, de profissionais de saúde e de alguns agentes financeiros, parece ter resultado de um constante ­trabalho de tradução e de captação do interesse público para o problema médico e científico do cancro. Inicialmente, esse trabalho parece ter sido desencadeado com recurso a conhecimentos e influências pessoais, mas rapidamente foi complementado pela atuação dos órgãos de propaganda e de disseminação de informação e conhecimento do Instituto Português para o Estudo do Cancro, do seu diretor, e, mais tarde, também com o contributo da Liga Portuguesa ­Contra o Cancro.

Francisco Gentil: da medicina às “relações públicas”

A documentação da época demonstra que, desde 1907, Gentil já procurava um espaço de atuação médica no campo das patologias malignas. Organizou, nesse ano, um conjunto de conferências na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, que Miguel Bombarda abriu em gestos largos, declarando o cancro como o grande problema da medicina contemporânea.33 Em 1908, Gentil era nomeado numa 2.ª Comissão para o estudo do cancro, de iniciativa governamental e presidida por Ricardo Jorge. Dessa comissão nada se sabe. Sabe-se, contudo, que esteve depois no estrangeiro, “em comissão gratuita”, a estudar “os progressos realizados no diagnóstico e tratamento do cancro”,34 juntamente com o médico conimbricense João de Magalhães, que viria a ser o responsável pela secção de estatística e propaganda do IPO.

Três anos passados da abertura do serviço de cancro no Hospital Escolar, atribuíram-lhe a direção da 1.ª Clínica Cirúrgica onde estava instalado esse serviço. Em 29 de dezembro de 1923, após 12 anos de experiência clínica e de trabalho de investigação sobre o cancro, o então ministro da Instrução Pública fazia publicar - por intermédio do seu chefe de gabinete - o Decreto n.º 9333, que criava o Instituto Português para o Estudo do Cancro, e conferia a Gentil e aos seus colaboradores plenos poderes para desenvolverem uma ação nacional de luta contra o cancro, centralizada na capital e da qual detinham, oficialmente, competências e reconhecimento legais exclusivos. O ministro era António Sérgio de Sousa, membro da Seara Nova. Fora nomeado na véspera da publicação do decreto para o ministério de onde sairia ao fim de um mês. O seu chefe de gabinete era Luís Simões Raposo, recém-formado em medicina na Universidade de Lisboa, amigo pessoal de Gentil, e um dos mais importantes colaboradores do instituto durante os anos seguintes e até à sua morte precoce, em 1934.

Uma das motivações de Gentil era a criação de uma congénere nacional dos institutos do cancro existentes em outros países. Esta permitiria a ­Portugal estar representado na nova União Internacional de Luta contra o Cancro, em vias de ser criada a partir do congresso promovido pela Liga Nacional Belga Contra o Cancro, onde Gentil estivera presente poucas semanas antes. Segundo o historiador Rui Costa, o decreto assinado por António Sérgio foi redigido pelo próprio Francisco Gentil (Costa, 2012, p. 176). A instabilidade política do novo regime republicano abria espaços a este tipo de facilidades e as redes de influência permitiam aproveitar algumas oportunidades. Para lá de um progressismo ideológico próprio da época, este foi igualmente um tempo de consagração das elites científicas e médicas. A elite médica, em particular, alcançou efetiva influência política, sobretudo através da projeção da sua missão social orientada para a regeneração da sociedade e da “raça”, colocando a reorganização sanitária, hospitalar e universitária ao serviço de uma visão por vezes eugenista, muitas vezes assistencial, e quase sempre de base secular (Carneiro et al., 2019).35

Em 1924, assente numa base retórica de autoridade científica, foi implementada “uma larga campanha de propaganda, entre os clínicos”, realizada no sentido de atrair doentes às consultas de cancro e antecipar o diagnóstico tanto quanto possível, o que terá ajudado a informar médicos e populações da existência do instituto e a encaminhar novos pacientes ao Hospital Escolar.36 O rádio foi então apresentado como um dos produtos mais relevantes da revolução tecnológica da medicina que, se bem utilizado, poderia trazer alguma esperança aos doentes. Por essa altura, uma grama de rádio custaria cerca de dois mil contos.37

Em 1927, a dotação de quatro mil contos conseguida pelo IPEC - por intermédio do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e na forma de um empréstimo contraído na Caixa Geral de Depósitos ao juro de 9 por cento38 - terá servido, em boa parte, para a compra de equipamento de radioterapia (sais de rádio e aparelhagem de raios x). Os 1800 miligramas de rádio adquiridos nesse ano custaram ao instituto cerca de 1600 contos, incluindo-se aí os equipamentos e os certificados necessários. Mais de 250 contos foram gastos em material de raios x. 39 Apenas nesse ano, ao cabo de 15 anos de atividade, e com recurso ao seu primeiro financiamento público, o instituto conseguiu, finalmente, obter os materiais para a radioterapia de que tanto necessitava.

O impacto da Física de Radiações ao nível da inovação, da investigação e dos necessários investimentos em ciência e tecnologia, e o seu contributo para o desenvolvimento da oncologia e da medicina portuguesa, tornam-se ainda evidentes com a concretização material e simbólica que constitui o Pavilhão do Rádio do Instituto Português de Oncologia, inaugurado em dezembro de 1933 na presença dos representantes máximos do Estado.40

A construção do Pavilhão do Rádio, da autoria do arquiteto Carlos Chambers Ramos, materializava pela primeira vez as diretrizes de segurança radioativa definidas no ii Congresso Internacional de Radiologia de Estocolmo, o que constituiu um avanço significativo em termos de segurança radiológica. 41 Com recurso a um material de origem nacional - a barita -, este edifício proporcionou um importante ascendente retórico na pretensa capacidade científica do país, sendo claramente ostentado pelo regime e pelo próprio IPO como um feito marcante para a ciência portuguesa.42 A partir de então, a oncologia conhece, em Portugal, uma época de consolidação científica e institucional, convenientemente narrada em materiais autopublicados que divulgam uma história de sucesso médico e científico.43

Renomeado nesse ano de 1933 como Instituto Português de Oncologia, o IPO manteve durante quase 50 anos o privilégio de ser a única instituição de assistência hospitalar do país vocacionada para o tratamento de doentes de cancro, beneficiando de relações estreitas com os centros de poder do regime e com o próprio chefe do governo, António Salazar. Com a inauguração, em 1948, do grande bloco hospitalar de Lisboa - que é ainda hoje o principal edifício do seu complexo hospitalar - o IPO passou a assegurar todas as valências e funcionalidades de uma instituição de âmbito nacional, com estruturas de investigação, assistência e de educação médica na área da oncologia, incluindo uma escola de enfermagem criada e mantida com o financiamento da Fundação Rockefeller. À frente do centro “regional” de Lisboa, Francisco Gentil, com cerca de 70 anos de idade, usufruía de uma inegável posição de prestígio e apresentava-se como um dos grandes promotores da assistência hospitalar em Portugal.

O cirurgião fundador, sempre apoiado pelo regime de Salazar, manteve-se como diretor do IPO durante 38 anos, até 1961. Durante essas quase quatro décadas, o IPO tornou-se um dos mais eloquentes testemunhos da política científica e assistencial da ditadura salazarista, na linha da frente de uma biopolítica alicerçada na fusão entre ciência e corporativismo, na qual o cancro e as radiações serviam também como instrumento de legitimação política. O envolvimento do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios no primeiro financiamento ao IPO vem precisamente evidenciar a relação íntima e fecunda entre a assistência médica e a segurança social e laboral. Essa era uma via de acesso privilegiado das instituições científicas às populações, o que permitia garantir uma margem de desenvolvimento institucional e científico continuado.

A acumulação e o estudo das coleções e dos registos clínicos permitiram, por outro lado, operar uma reavaliação epidemiológica do próprio risco oncológico, através da determinação dos grupos populacionais mais vulneráveis ao cancro. Algumas das formas patológicas observadas nas populações foram então reproduzidas em contexto de laboratório pelo uso de substâncias patogénicas sobre animais.

Se, num ponto determinado do organismo, incidirem repetidas vezes factores irritativos ou inflamatórios, pode acontecer que a proliferação das células a que eles dão origem, acabe por tomar o carácter dum hábito (…). As células começarão então a proliferar por sua conta podendo desse modo originar um cancro. É este o processo de que nos servimos nos laboratórios para provocar, por exemplo, o cancro em animais com pinceladas de alcatrão. As irritações crónicas têm importância na patologia humana, porque são a causa de certos cancros chamados profissionais e que aparecem nos operários que trabalham no alcatrão e outros produtos químicos cancerígenos” [Loureiro, 1936].

Com essa tradução dos casos clínicos de cancro profissional, observados em contexto hospitalar, para o contexto da experimentação laboratorial e da investigação, a prática científica introduzia-se, com o patrocínio do Estado, na própria organização social do trabalho dando corpo institucional à ideologia corporativa. Durante o Estado Novo, o risco oncológico de base laboral foi, de resto, uma das fontes de legitimação dos investimentos públicos no instituto; algo que ficou bem patente durante a Primeira Exposição de Propaganda de Luta Contra o Cancro, em 1940, onde os trabalhadores dos sectores agrário e industrial eram apresentados como incorrendo em maiores riscos, fruto da sua exposição ao sol e a substâncias cancerígenas (Moreira, 2016).

Apresentando-se como representante dos interesses das massas populares (sobretudo daqueles que, enquanto pacientes ou populações de risco, usufruíam da assistência hospitalar do IPO), a comissão diretora do instituto correspondeu-se diretamente, durante vários anos, com o chefe do governo e com os ministros da Educação ou das Obras Públicas, junto de quem ia tentando conseguir os necessários apoios financeiros e materiais para continuar a obra de luta contra o cancro do Instituto. Invocavam as populações como sendo esses “milhares de desgraçados por um mal que ninguém poupa e para o qual não há ainda profilaxia directa”, mas que poderiam “ser bem tratados e curados” atendesse o ministro aos pedidos da direção.44 No papel de diretor, Gentil era um dos principais agentes “tradutores” dos interesses da medicina oncológica para a esfera do interesse público. Esse trabalho de captação dos interesses assistenciais, próprios dos poderes públicos, para a esfera dos interesses da ciência era evidente nas missivas de Francisco Gentil a António Salazar, nas quais aquele exortava o chefe do governo a reforçar os apoios financeiros do Estado. Apresentava como justificações para aumentar o financiamento público a necessidade de “salvar muita gente”,45 inclusivamente o próprio pessoal do instituto que tinha como exemplo o “Dr. Bénard que se [estava] matando conscientemente para tratar os doentes com rádio”.

As radiações, dada a sua perigosidade ou o seu valor terapêutico, sustentavam de razão os principais pedidos de financiamento, de entre os quais aquele que permitiu a construção do Pavilhão do Rádio. O crescente número de pacientes e de aplicações, o impacto das radiações na saúde dos profissionais do IPO, bem como os seu efeitos terapêuticos, constituíam importantes argumentos numa retórica usada em captação dos interesses do Estado e que ia sendo apoiada em dados estatísticos acerca do número e das horas de aplicações terapêuticas de rádio e raios-x,46 ou na crescente percentagem de doentes que sobreviviam graças ao efeito das radiações.47

Em suma, a ecologia institucional da medicina oncológica resultou de uma ação de planeamento centrada nas instituições hospitalares, na qual colaboraram diversos atores científicos, políticos e industriais, mas onde o patrocínio do Estado se revelou fundamental. Funcionando inicialmente como representantes dos interesses das populações, os poderes públicos ­ofereceram aos agentes científicos e hospitalares o acesso às massas populacionais - os ­potenciais pacientes das clínicas hospitalares - e acabaram por se ver doravante agregados à nova esfera de interesses institucionais que ajudaram a moldar quando apoiaram a formação de um grande “mercado” hospitalar para as radiações.

Conclusão

Em princípios do Século XX, o conceito de cancro adquiriu um duplo significado científico que lhe conferiu a qualidade de um “objeto de fronteira”. Estava em causa, por um lado, um entendimento das formações cancerosas como sendo de natureza celular, por outro lado, a constatação da maior sensibilidade dessas células perante o efeito destruidor das radiações, comparativamente com as células saudáveis. Neste pressuposto radicou a relevância médica da radioterapia e a necessidade de criar, nos hospitais, clínicas de cancro apetrechadas com as tecnologias radiológicas mais avançadas. Em Portugal, a introdução da radioterapia conduziu à centralização de recursos numa única instituição hospitalar especializada - o Instituto Português para o Estudo do Cancro. A coordenação dos interesses financeiros e industriais com os interesses médicos e científicos, permitiu que a partir da luta “científica e social” contra o cancro se produzisse uma afirmação da influência política dos meios médicos de Lisboa, ao mesmo tempo que, fomentando o uso das radiações em contexto clínico, se abriam mercados à expansão da nova economia das radiações. Em Portugal sentiu-se o impulso transformador dessa economia da radioatividade desde as primeiras décadas do Século XX, por via da instalação das primeiras minas de urânio e de algumas unidades de processamento de sais de rádio nas Beiras, que conduziram à circulação das radiações pelos espaços clínicos da capital.

Foram também os estudos sobre a radioatividade e a radiologia médica que impulsionaram a formação de uma ecologia institucional própria da oncologia. Se, por um lado, os sectores médicos teciam ligações privilegiadas aos poderes públicos e a assistência médica hospitalar aprofundava a sua dependência das especialidades tecnológicas, eram os físicos e alguns radiologistas que mantinham, por outro lado, uma maior proximidade com o sector industrial e com a nova economia do rádio. Nesse sentido, o campo de estudos radiológicos e da radioatividade revelou-se de enorme importância na mediação e na formação de redes internacionais, nas quais se articulavam as visões de diferentes agentes (clínicos, industriais, físicos, biólogos e médicos radiologistas) interessados nos usos médicos das radiações. A radioterapia do cancro permitia justificar novas articulações e investimentos científicos, políticos e industriais em torno de um projeto institucional que tinha como derradeira função a criação de uma estrutura hospitalar capaz de conduzir uma ação terapêutica sobre o cancro, numa escala de grande abrangência populacional e continuada no tempo.

A importância das radiações na clínica do cancro conduziu, assim, à formação de um novo compromisso político, científico e social em seu redor, e o uso das novas tecnologias de base radiológica justificou a disponibilização de meios financeiros, bem como a criação de condições para a utilização, em larga escala, de radiações em contexto clínico. Foi essa extensa utilização da radioterapia que permitiu mobilizar os meios tecnológicos e institucionais para um trabalho de planificação e desenvolvimento, centralizado e financiado pelo Estado, que veio a constituir a luta nacional contra o cancro atribuída à iniciativa do cirurgião Francisco Gentil.

Neste artigo, pretendeu-se redesenhar o lugar periférico de Portugal no espaço científico europeu de princípios do Século XX a partir de um contexto tecnológico e científico particular, podendo-se realçar que é precisamente esse lugar que iria permitir a sua integração prematura numa nova economia tecno-política emergente em torno das radiações e da medicina oncológica.

Aponta-se ainda para o papel das radiações numa articulação mediada pelo Estado entre interesses científicos e económicos, tornando evidente o papel da inovação tecnológica na formação de novos objetos científicos e na sua constituição enquanto objetos-fronteira. No caso do cancro, este assumiu desde cedo, em Portugal, uma particular relevância social e política e permitiu criar uma resposta legítima de apoio por parte do Estado Novo. A mediação dos poderes públicos e a cooptação das populações para a sua esfera de ação institucional, em conjunto com a dimensão industrial e científica da biomedicina do cancro, vem completar o quadro de formação de uma ecologia institucional própria da oncologia da primeira metade do Século XX.

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1Este artigo resulta da minha investigação de mestrado em antropologia no Instituto de Ciências Sociais, desenvolvida no âmbito do projeto Portugal Nuclear: Física, Tecnologia, Medicina e Ambiente (1910-2010), coordenado por Tiago Saraiva e financiado pela fct (hc/0063/2009). Ao Tiago Saraiva agradeço a oportunidade de integrar a sua equipa de investigadores como bolseiro. À minha orientadora de mestrado, Cristiana Bastos, agradeço a orientação científica e as valiosas sugestões que moldaram este trabalho. Agradeço igualmente ao Ricardo Roque a coorientação e todos os comentários e reflexões partilhados durante os diferentes períodos da pesquisa. Estou igualmente grato pelo generoso contributo dos revisores anónimos da Análise Social a uma primeira versão do artigo. Por fim, é devida ainda uma palavra de reconhecimento aos profissionais do ipo de Lisboa que comigo partilharam uma parte do seu tempo e saber. Sem o seu contributo esta investigação não teria sido possível. Atualmente, o autor integra como bolseiro de doutoramento o projeto Colour of Labour (erc adg 2015, #695573), coordenado por Cristiana Bastos.

2A chegada a Portugal das terapias radiológicas numa fase relativamente precoce dos estudos do cancro, que é um dos temas centrais a desenvolver neste artigo, foi já verificada por outros autores em alguns trabalhos anteriores (Gaspar, 2008; Costa, 2012; Moreira, 2013; Saraiva, 2019).

3De salientar a recente publicação, resultante do mesmo projeto Portugal Nuclear, de um trabalho de Tiago Saraiva que realça a importância da combinação cancro-radioatividade para a expansão e a modernização da medicina no período da ditadura salazarista (Saraiva, 2019).

4Para uma história geral da medicina oncológica encontramos boas referências nos trabalhos de Cantor (1993), Löwy (2003), Pickstone (2007), ou Gaudillière (2009). Outros trabalhos de maior profundidade abordam sobretudo casos de desenvolvimento médico e científico mais focados em contextos nacionais, como é o caso de Proctor (1999) para a Alemanha, de Pinell (2002) para a França, de Sturdy (2007) e Moscucci (2010) para o Reino Unido, ou de Gardner (2006) e Cantor (2007) para os eua.

5Há vários trabalhos onde se destaca o papel da ciência no regime republicano: Garnel (2010); Lourenço e Neto (2011); Matos e Ó (2013); Macedo e Saraiva (2019); Carneiro et al. (2019).

6A noção de ecologia das instituições é desenvolvida pelos sociólogos Roderick Mckenzie e Everett Hughes em 1936 (Hughes, 1984), tendo o conceito sido recentemente adotado no âmbito dos estudos da ciência, em particular por Star e Griesemer (1989).

7Ver Hoffman (1915, p. 15).

8Ver Neves (1906); Bombarda (1908).

9Rui Costa (2012) fornece um bom resumo das estatísticas de cancro para a época.

10Para uma abordagem das práticas biomédicas a partir do conceito de “plataformas biomédicas”, o que neste contexto assume toda a pertinência, ver Keating e Cambrosio (2003).

11A noção de “interessamento” (interessement) aqui utilizada corresponde a um movimento de captação dos interesses de entidades externas aos campos científicos em questão para os propósitos destes, captação essa integrada em processos de “tradução”. Esta noção foi inicialmente explorada por Bruno Latour e Michel Callon, mas é aqui utilizada no sentido exposto por Star e Griesemer, relativamente à criação de objetos-fronteira (Star e Griesemer, 1989).

12Esta lei ficou conhecida como a “Lei da correlação entre a fragilidade roentgeniana das células e a sua atividade reprodutora” (Pinnel, 2002).

13A ideia de tradução entre diferentes domínios de conhecimento e prática como via para a formação de objetos-fonteira, utilizada na obra supracitada de Star e Griesemer (1989), foi apresentada e explorada por Michel Callon e John Law em alguns trabalhos anteriores, dos quais os mais relevantes são Callon e Law (1982) e Callon (1984). Esta noção de “tradução” refere-se, em estudos da ciência, a um processo complexo que entende quatro etapas: problematização, interessamento (interessement), envolvimento (enrollment) e mobilização (Callon, 1984).

14O rádio é um elemento que necessita de ser extraído industrialmente do minério, não se encontrando na natureza em estado puro. À época, esses processos de extração industrial produziam, para usos médicos e de investigação, sais radioativos, geralmente na forma de brometo de rádio.

15Em 1909, Jacques Danne criava, com uma estrutura algo semelhante à do laboratório de Marie Curie, o Laboratoire d’Essais des Substances Radioactives.

16Além de autunite foi também encontrada torbernite, mas esta parece ter sido explorada em menor escala.

17ipo (1916), Carta de J. Anachoreta a Francisco Gentil, Espólio da antiga direção do Instituto Português de Oncologia (documentação não tratada arquivisticamente).

18Lepierre, C. (1924), “Radioactividade”, Núcleo de Arquivo do Instituto Superior Técnico, pt/ist-ap-pcl/b-b/1/22.

19A. S. R. (1920), “Applications Scientifiques du Radium (A. S. R) Compagnie Minière et de Fabrication de Radium et d’Urane”.

20Lepierre, C. (1924).

21Mourão (1954).

22Lepierre, C. (1924).

23“Applications Scientifiques du Radium…”

24Lepierre, C. (1924); Mourão (1954).

25Cf. Guedes (1916, p. 74); Lepierre e Pio Leite (1933).

26Joaquim de Sousa Feyo e Castro (1877-1937), médico e radiologista, foi um dos pioneiros em Portugal na aplicação de técnicas eletro-radiológicas em contexto clínico e, a par de Virgílio Machado e Carlos Santos, no uso dos raios-x.

27“Bénard Guedes” in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 4, pp. 510-511.

28Guedes (1916, p. 75).

29Ver Raposo (1925), “O Instituto Português para o Estudo do Cancro”.

30Valadares, M. (1930a) Relatório dos trabalhos efectuados em 1929/1930; Bénard Guedes beneficiou também, como veremos, de um importante período de estágio científico em França (Guedes, 1916).

31Para uma história inicial das relações entre a Física e a Medicina ver a tese de mestrado de Júlia Gaspar (2008).

32Sobre o conceito de “tecno-política” ver Hecht (1998).

33Cf. Bombarda (1908).

34Cf. “Decreto n.º 9333” de 29 de dezembro 1923, Diário da República, i série, n.º 278, pp. 1512-1513.

35Ainda sobre o papel da classe médica no contexto político e ideológico da Primeira República ver Celestino da Costa (1999), Garnel (2010), Dias (2011) e Macedo e Saraiva (2019); ver também nota 4.

36Raposo (1925, pp. 42-43).

37Lepierre, C. (1924).

38Decreto n.º 13 098, Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 24, p. 178.

39Gentil (1928), “O Instituto Português para o Estudo do Cancro”.

40Sobre a importância deste edifício para a compreensão de aspetos críticos da história da ciência no Portugal salazarista ver Saraiva (2019, nota 2).

41Athias e Ramos (1930); Bandeira e Figueiredo (2007).

42Gentil (1933, 1934); Athias (1934); Diário da Manhã (1933a) “O Instituto Português de Oncologia inaugura-se hoje…”, 29-12-1933; Diário da Manhã (1933b) “O Chefe de Estado acompanhado dos Srs. Presidente do Conselho…”, 30-12-1933; Diário de Notícias (1933) “A Luta Contra o Cancro”, 29-12-1933.

43Cf. Athias (1934); Gentil (1934); Gentil (1937) “O Rotary Club de Lisboa e a luta contra o cancro”, Boletim ipo.

44ipo (1943), “Situação do Instituto Português de Oncologia. Pedido de aumento do quadro de pessoal do mesmo instituto”.

45ipo (1930), “Realização de obras no Instituto Português de Oncologia”.

46ipo (1943), “Situação do Instituto…”, nota 42.

47ipo (1930), “Realização de obras no Instituto…”, nota 43.

Recebido: 03 de Dezembro de 2019; Aceito: 02 de Outubro de 2020

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