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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.237 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.31447/as00032573.2020237.10 

Recensão

Recensão: Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822). Introdução e edição de José Luís Cardoso (org.)

Zília Osório de Castro1 
http://orcid.org/0000-0002-9015-3005

1CHAM, FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Avenida de Berna, 26-c - 1069-061 Lisboa, Portugal, zoc@fcsh.unl.pt

Tomás, Manuel Fernandes. Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822). ,, Introdução e edição de, Cardoso, José Luís. (org.), Lisboa: ,, Imprensa de Ciências Sociais, ,, 2020. ,, 538p. pp. ISBN, ISBN: 9789726716020. 1


Manuel Fernandes Tomás deixou-nos impressos na constituição os fundamentos da liberdade que se aventurou a lavrar com o seu próprio sangue e sustento com a força invencível do seu animo e sabedoria! Fernandes Tomás restituiu-nos o grau ilustre que nos compete entre as nações! Fernandes Tomás viveu livre e morreu tranquilo e pobre! Ensinou-nos como se vive e como se morre (…) Quanto lhe deve a Pátria (…) Quanto lhe deve o Mundo! (…).

Estas palavras, escritas por Nuno Pato Moniz em 1822, e retomadas agora por José Luís Cardoso na obra Manuel ­Fernandes Tomás. Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822) elucidam os leitores sobre as qualidades pessoais e políticas de Fernandes Tomás. Nascido na Figueira da Foz em 1771, matriculou-se em Coimbra no curso jurídico, exerceu diversas funções como magistrado e publicou várias obras quer contra os abusos de poder, nomeadamente no âmbito do direito de propriedade, quer para lembrar a necessidade de atualização das leis do reino. Se se notabilizou na área da sua formação académica, maior relevância se afigura ter tido desde cedo o seu percurso político. Fundou o Sinédrio, divulgou os objetivos da regeneração, integrou a primeira Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, foi um dos deputados eleito para as primeiras cortes constituintes e, posteriormente, para as cortes ordinárias, colaborou na redação do projeto de Bases da Constituição e da própria Constituição, interveio amiúde nos debates parlamentares e preparava-se para continuar o seu percurso político-parlamentar quando a morte veio pôr fim a uma vida de sucesso, aliás, reconhecida pelos seus contemporâneos.

Por tudo isto, hoje em dia não se põe em causa a figura de Manuel Fernandes Tomás no quadro do primeiro liberalismo português, vulgarmente conhecido como vintismo. Daí que não deixe de ser inexplicável que em tão poucos textos seja apresentado como personalidade central, e muito menos tenha sido encarado na globalidade da sua existência de cidadão e, simultaneamente, de político empenhado na regeneração da pátria. Se, apesar de tudo, no primeiro caso se salientou o indivíduo pessoalmente caracterizado, no segundo foi posta em relevo a dimensão social de membro da comunidade em que se inseria. Esta dupla faceta, comum a todos os seres humanos, adquire particular expressão de singularidade e excelência quando conjugada numa única pessoa. Descobri-la e interpretá-la na sua dinâmica será o objetivo primordial de quem pretenda situá-la na multiplicidade da sua vivência. Para isso é indispensável agudo espírito crítico, capacidade de análise e saber tão aprofundado quanto possível das circunstâncias pessoais e sociais de quem se pretende dar a conhecer. Só assim se torna possível avaliar tanto a sua intervenção na sociedade, como a real influência desta sobre quem se pretende dar a conhecer.

A presente obra concretiza científica e metodologicamente os princípios acabados de enunciar. Centrada numa das figuras tutelares do estabelecimento do constitucionalismo vintista, esta abordagem ultrapassa os limites de uma simples biografia descritiva, e mesmo os parâmetros comuns da sua congénere intelectual, para conjugar numa perspetiva unívoca um homem e uma época. Mediante a conjugação de fontes atribuídas, ou da autoria de Fernandes Tomás, foi possível ao autor da edição desta obra apresentar ao leitor atento as particularidades pessoais de uma intervenção política multifacetada, em que o sentido prático e a fundamentação teórica deram as mãos para a concretização dos ideais liberais tal como ele os entendia e em que a moderação dos argumentos presentes nas intervenções definia, no seu modo de ver, o caminho a seguir pela nação portuguesa.

Percorrendo atentamente o índice e compaginando-o com a análise de ­conteúdo personalizada, salta aos olhos a leitura possível da ação (prática) e do pensamento (teórico) de Fernandes Tomás desde os alvores ainda incertos da sua participação política até ao ocaso ditado pela morte. Neste duplo sentido, a Introdução de José Luís Cardoso é de facto exemplar, não só pela clareza da exposição, mas também pela leitura crítica, que possibilita traçar a personalidade do deputado e também equacionar o constitucionalismo liberal, tal como ele o entendia. Pela publicação criteriosa dos textos torna-se evidente que o radicalismo estava longe do seu horizonte, e que a moderação gradualista seria o seu ideal de intervenção política, sempre pautada pela firmeza dos princípios fundamentais e fundadores do liberalismo. Se os defendeu nas Cortes, como provam os discursos pronunciados - cujos excertos são significativos e merecem o aplauso ao autor pela seleção - de não menor significado são os textos que o deputado publicou pela imprensa quer no início da revolução, como um arauto abrindo caminho, quer depois sem dúvida para formatar a mentalidade dos cidadãos para a nova era que despontava.

Entre os primeiros, avultam manifestos, proclamações, ofícios e discursos de cariz mais ou menos oficial. Estes textos aliam a um acentuado pendor político o reflexo da personalidade do autor. Neste duplo sentido são manifestamente elucidativas as proclamações dirigidas aos portugueses e aos cidadãos de Lisboa, respetivamente de 24 e de 28 de agosto de 1820. São demonstrativas da intenção de transmitir o significado dos ­acontecimentos do Porto em que o passado “constitucional” se refletia no constitucionalismo do presente, sob os auspícios da dinastia de Bragança e da religião católica, de uma “iluminada instrução pública” e, sobretudo, da reunião de cortes e das leis por estas promulgadas. A ponderação dos termos aliada à invocação historiográfica, indiciam espírito moderado, a que os ideais de felicidade, liberdade e dignidade humana serviam de suporte à ação “revolucionária”. Esta moderação, que não excluía firmeza de princípios, transparece igualmente no modo como depois da Martinhada se dirigiu a António da Silveira Pinto da Fonseca, ordenando a sua expulsão da capital e fixando-lhe residência em Vila Real, assim como se evidencia nos elogios que dirigiu ao exército. Enfim, nos textos editados entre 1820 e 1823, a reunião de cortes e a adoção da constituição, tal como a união do rei e da nação, equilibrando os direitos régios e os dos cidadãos eram considerados por Fernandes Tomás como os quatro firmes pilares da felicidade geral e do ideal liberal. No entanto, o deputado indo mais além, manifestou perfeita consciência de que a mutação política implicava também a reforma da administração pública. Fazendo parte da Repartição do Interior e da Fazenda conhecia bem os males existentes devido “à ignorância e imoralidade”, aos erros viscerais, à corrupção desenfreada, tudo devido à fraqueza do governo. Assim, no entender do deputado, as medidas necessárias haviam sido até certo ponto sempre adiadas, embora a criação de comissões para sanarem os defeitos da administração pública serem de louvar. A agricultura, o comércio, a fazenda, as fábricas, o governo mereceram-lhe especial análise só possível ou com o conhecimento global da realidade, ou com o esforço para o adquirir.

A convicção de que a globalidade de conhecimentos era indispensável para o entendimento da complexidade da realidade e daí para o êxito da regeneração, fê-lo “descobrir” o valor tanto individual como sociopolítico da imprensa, tanto para o combate de ideias, como para a afirmação de ideais. Terá sido este o duplo sentido das polémicas em se envolveu, publicadas com os títulos de Carta do Compadre de Belém ao redator do Astro da Lusitania (1820), Carta segunda do Compadre de Belém ao redator do Astro da Lusitania,(1821), Lutero, Padre Agostinho de Macedo e a Gazeta Universal (1822). Um outro fôlego teórico e pragmático empregou nos artigos publicados em O Independente (1820-1821), talvez por influência de Ferreira de Moura. “Instruir recreando” seria o lema deste periódico, evidenciado numa série de artigos sobre temáticas atuais e pertinentes como a cidadania constitucional, as reformas institucionais, economia e finanças, segurança e ordem pública. Nestes, a linguagem é diferente, pragmática, como se quisesse dirigir-se ao cidadão comum e à sociedade civil.

Pelas razões que se acabam de enunciar, esta edição contribui para um conhecimento de certo modo original da génese do liberalismo em Portugal, mediante o contacto com o pensamento e ação de um dos seus mais ilustres mentores, tal como José Luís Cardoso o compreendeu a partir de fontes significativas e de bibliografia adequada. Torna-se, assim, claro que a contemporaneidade política portuguesa se construiu mediatamente com a moderação de um gradualismo político que se confrontou com o radicalismo revolucionário e o conservadorismo tradicionalista. José Luís Cardoso, com a sua análise, transmite avaliação segura das ambiguidades do vintismo, sem anular o contributo inegável do movimento regenerador. É evidente que os textos publicados e a leitura que deles é aqui feita não esgota outras abordagens, sem que, no entanto, se possa ignorar o que esta edição traz de novo, nomeadamente quanto à conjugação de reflexos individuais e sociopolíticos na regeneração de 1820, tendo em conta neste caso concreto as valências e evidências personalizadas em Manuel Fernandes Tomás. São elas que, afinal, dão visibilidade ao que poderíamos chamar uma inovadora conceção de História e a José Luís Cardoso como um dos seus obreiros.

Referências

Tomás, Manuel Fernandes Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822), Introdução e edição de José Luís Cardoso (org.) Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2020 [ Links ]

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