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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.237 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.31447/as00032573.2020237.13 

Recensão

Recensão: “Democratic Practice: Origins of the Iberian Divide in Political Inclusion”

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencout, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal andre.mota.paris@hotmail.com

Fishman, Robert. Democratic Practice: Origins of the Iberian Divide in Political Inclusion. ,, Nova Iorque: ,, Oxford University Press, ,, 2019. ,, 266p. pp. ISBN, ISBN: 9780190912871.


Democratic Practice: Origins of the Iberian Divide in Political Inclusion, livro que sintetiza o pensamento que Robert Fishman tem vindo a amadurecer ao longo de vários anos dedicados ao estudo de Portugal e Espanha, é um importante contributo para estudo das variedades de democracia e, muito particularmente, para a investigação sobre os legados das transições democráticas na Península Ibérica.

Distinguindo quatro dimensões fundamentais para avaliar o funcionamento da democracia (autenticidade, qualidade, profundidade e consolidação), o livro de Fishman foca-se essencialmente naquilo que o autor define como profundidade da democracia, uma dimensão que remete para o grau de inclusão política dos sectores económica e socialmente desfavorecidos. Traduzindo-se as desigualdades materiais em assimetrias na capacidade de indivíduos e grupos sociais influenciarem a agenda política e o processo de tomada de decisão, trata-se, segundo Fishman, de uma dimensão crucial para aferir a forma como os regimes democráticos se aproximam do ideal normativo da igualdade política entre cidadãos.

Com um pé na sociologia cultural (de onde parte a conceptualização da prática democrática) e outro na ciência política (que serve de âncora à teorização da variação entre democracias), o autor acaba por propor e desenvolver uma análise com traços inovadores, colocando em evidência a importância dos legados culturais decorrentes dos contextos de democratização para explicar aquilo que define como a “divisão ibérica na inclusão política”. A prática democrática constitui o conceito-chave do livro, a variável que permite estabelecer a ligação entre a herança cultural resultante dos contextos de transição e as diferenças registadas no grau de inclusão política existente nos dois países.

Entendida essencialmente como um fenómeno cultural, o autor olha para a prática democrática como um substrato cognitivo que enquadra a forma como os atores políticos concebem a democracia e o tipo de interações que esta deve proporcionar e promover. Traduzindo-se num conjunto de regras não escritas, a prática democrática compreende diferentes “formas de expressão e interação” que se desenvolvem tanto dentro como fora dos limites estabelecidos “pelas instituições formais” do regime democrático. Partindo de diferentes entendimentos da democracia, há elites políticas mais abertas à participação de sectores económica e socialmente desfavorecidos nos mecanismos de “conversação” democrática e, pelo contrário, há elites mais propensas a erigir barreiras à participação política destes segmentos sociais. É neste sentido que as formas predominantes da prática democrática desempenham um papel fundamental nos níveis de inclusão política alcançados pelas democracias. E são as diferenças na forma predominante da prática democrática que, segundo Fishman, explicam que Portugal seja um país mais inclusivo e Espanha um país com tendência para a exclusão.

As transições na origem das diferenças na prática democrática

E o que explica as diferenças na forma predominante da prática democrática nos dois países? Segundo Fishman, a resposta reside nos caminhos divergentes que levaram ao estabelecimento da democracia na Península Ibérica. Para o autor, as transições democráticas marcaram um ponto de viragem no padrão de semelhanças partilhado pelos dois países até aos anos 1970 e abriram caminho para o estabelecimento de divergências em algumas dimensões relevantes do funcionamento da democracia. Mais do que os legados institucionais, a variação na profundidade da democracia identificada e explorada no livro resulta de diferenças culturais estabelecidas durante a “conjuntura crítica” das transições democráticas ibéricas.

Não obstante a sobreposição cronológica dos processos de democratização, a passagem do autoritarismo para a democracia processou-se de forma radicalmente distinta nos dois lados da Península. A democratização em Portugal fez-se através de uma “revolução social democrática”, uma via historicamente singular que resultou de uma síntese entre os elementos democráticos convencionais (como a realização de eleições livres e a elaboração de uma constituição democrática) e os aspetos sociais da revolução. Não desconhecendo o carácter conflitual que, durante 1974-1975, se estabeleceu entre os fatores democráticos convencionais e a dinâmica revolucionária, o autor considera que a singularidade do caso português resulta da fusão complementar destes dois elementos. É esta dupla herança que tem levado Fishman a defender que Portugal deve ser considerado uma democracia “pós-revolucionária”. E é a vertente revolucionária e social da transição - com a subversão das hierarquias, as extensas dinâmicas de mobilização social e a reconfiguração das conceções e práticas culturais - que estão na origem, em Portugal, de uma prática democrática mais inclusiva e igualitária.

Em Espanha, ao contrário de Portugal, a passagem do autoritarismo para a democracia fez-se de forma mais gradual e por via reformista, através de um processo de transformação política liderado pelos sectores reformistas do franquismo sob pressão das forças da oposição. Apesar das dinâmicas de protesto e mobilização popular que se fizeram sentir durante a transição espanhola - sobretudo numa primeira fase -, segundo o autor, o processo de mudança decorreu essencialmente na esfera institucional. Sem uma crise de Estado como a verificada em Portugal e face aos receios de uma involução democrática protagonizada pelos sectores “duros” do franquismo, a transição espanhola pautou-se por uma certa contenção dos protestos sociais e por uma moderação “autoimposta” por parte dos partidos da oposição e mesmo dos sindicatos. Por essa razão - e porque não houve uma reconfiguração de símbolos, expressões e práticas culturais como verificado em Portugal -, os principais atores políticos da transição patrocinaram a emergência de uma prática democrática assente numa demarcação clara entre as pressões socias vindas de baixo e o processo de decisão institucional.

As diferenças culturais forjadas durante os anos iniciais da transição seriam depois moldadas, em cada um dos países, por dois processos históricos complementares (a que o autor chama “transitional codas”) que teriam um impacto decisivo na política democrática nos dois países da Península Ibérica. No caso espanhol, as eleições legislativas de 1982 e a reconfiguração do sistema partidário delas resultante constituíram o acontecimento histórico determinante. A mudança mais significativa, segundo Fishman, teve que ver com o colapso da ucd e a emergência da ap (depois pp) como principal partido à direita do psoe. Segundo o autor, a substituição da ucd pelo ap/pp - isto é, de um partido moderado propenso ao compromisso por um partido muito mais à direita e com uma visão menos inclusiva face aos manifestantes ou à legitimidade das reivindicações dos nacionalismos periféricos - teve consequências nefastas para o funcionamento da democracia espanhola.

No caso português, o processo que levou ao “reajustamento” da herança da transição foi o processo de privatizações iniciado no final dos anos 80. O legado social da revolução - protegido pela constituição de 1976 e visível sobretudo no peso do sector público na economia - diminuiu, de certa forma, a pressão sobre os decisores políticos para desenvolver o Estado Social. Curiosamente, segundo Fishman, foi a revisão constitucional de 1989 e o subsequente processo de reprivatizações que inaugurou um período de rápido crescimento das despesas sociais. Este processo permitiu transpor o legado social da revolução da esfera da propriedade pública das empresas para o crescimento e consolidação do Estado--Providência.

Na tese do autor, estes dois processos históricos vieram fechar o ciclo iniciado durante a fase inicial da democratização. A forma de prática democrática que se tornou predominante em cada um dos países deve assim ser vista como resultado do efeito combinado do contexto da transição com os dois processos históricos ocorridos posteriormente. Por essa razão, Fishman defende que é a partir dos anos 1990 que os legados culturais historicamente enraizados nas transições democráticas se tornam visíveis e, portanto, que é a partir dessa data que podemos encontrar variações estáveis e significativas entre os dois países.

A divisão ibérica na inclusão política

O ponto central da divisão ibérica na inclusão política pode ser aferido pela forma como, nos dois países, as elites políticas lidam com os manifestantes e as pressões vindas de baixo. Neste domínio, Portugal e Espanha constituem dois casos profundamente contrastantes. As elites políticas portuguesas desenvolveram uma conceção da democracia que tende a percecionar as manifestações e protestos sociais como mecanismos legítimos e normais do processo de “conversação” democrática. Por essa razão, tendem a ser mais abertas e permeáveis às reivindicações e pressões sociais vindas de baixo. Em Espanha, pelo contrário, as elites políticas tendem a assumir uma conceção de democracia que olha para os manifestantes e as pressões sociais como potencialmente desestabilizadoras e, por esse motivo, tendem a isolar-se das dinâmicas sociais vindas de baixo e a serem menos sensíveis às reivindicações formuladas fora das instituições oficiais.

O efeito mais visível deste contraste na prática democrática pode ser encontrado quer no sucesso dos movimentos de protesto, quer nos mecanismos utilizados para o alcançar. Em Portugal, os movimentos de protesto têm sido mais bem-sucedidos na sua capacidade de influenciar a agenda política e o processo de tomada de decisão do que em Espanha, e esse resultado é em grande medida reflexo de uma prática democrática que tende a promover formas de “conversação” entre as pressões sociais vindas de baixo e as autoridades políticas institucionais. No caso espanhol, como ambos os lados partilham uma visão hierárquica e segmentada da vida política democrática, a relação entre as duas esferas - a dos movimentos e a institucional - tende a assumir uma lógica mais confrontacional, deixando pouca margem para a ­resolução de conflitos por via do diálogo e da negociação democrática.

Mas, na tese do autor, as diferenças entre os dois países não se limitam à relação que se estabelece entre manifestantes e as autoridades políticas institucionais. As formas predominantes da prática democrática têm produzido efeitos duradouros noutros domínios com impacto para a profundidade da democracia. É o caso da implementação de iniciativas de Orçamento Participativo (op), domínio onde Portugal é mais bem sucedido do que Espanha, não só por constituir um caso de crescimento e sucesso mais regular das iniciativas de op no plano local, mas também por ter introduzido, em 2017, o op a nível nacional. Além disso, Portugal constitui um caso em que a realização destas iniciativas ao nível municipal não é afetada pela alternância governativa, sendo muitas experiências mantidas ou promovidas por governos municipais de direita - algo que não se verifica no país vizinho.

Também na comunicação social e na escola pública o autor encontra diferenças que considera relevantes para reforçar o argumento central do livro. Os meios de comunicação em Portugal tratam de forma mais inclusiva e imparcial as reivindicações dos sectores económica e socialmente desfavorecidos. Em Espanha, inversamente, os órgãos de comunicação são menos sensíveis às vozes emanadas pelos movimentos de protesto social e tendem a fazer uma cobertura limitada e desigual destes movimentos. Percecionado, também, como um legado da revolução social, o sistema educativo em Portugal está concebido e funciona de forma não hierárquica, participada e inclusiva, coadunando o ensino convencional com a capacitação cívica e cultural dos alunos. Um modelo que a natureza hierárquica e a rigidez do sistema educativo não têm permitido reproduzir no país vizinho. Ora, estas diferenças no sistema educativo refletem-se depois nos gostos culturais “omnívoros” e em níveis mais elevados de envolvimento na esfera pública eletrónica dos jovens portugueses.

De igual modo, para o autor, os custos unitários do trabalho ou a rigidez/flexibilidade do mercado laboral são insuficientes para explicar a disparidade nos níveis de desemprego verificados nos dois países durante o período democrático. De acordo com Fishman, sem olhar para a forma como a prática democrática influenciou a prioridade e definição de políticas públicas em matéria de emprego não se consegue compreender verdadeiramente essa disparidade. Durante a transição, ambos os países tiveram de responder aos desafios provocados pela recessão económica causada pela crise petrolífera, mas fizeram-no de forma distinta. Tendo de lidar com dinâmicas socias vindas de baixo - e sendo mais sensíveis às reivindicações expressas nas ruas -, os decisores políticos e económicos portugueses pediram ajuda a economistas norte-americanos de esquerda, de inspiração neo-keynesiana. Este aconselhamento externo e os compromissos com a construção do socialismo levaram a que os decisores políticos e económicos portugueses colocassem a ênfase no combate ao desemprego e não à inflação. No caso espanhol - em que os decisores políticos e económicos tinham posições mais favoráveis ao mercado e decidiram refugiar-se nos conselhos de economistas americanos de inspiração neoliberal - a prioridade foi colocada no controlo da inflação. Esta diferença traduzir-se-ia também, ao longos dos anos, numa maior sensibilidade dos decisores políticos e das instituições financeiras portuguesas no apoio às pequenas e médias empresas, com impacto decisivo na criação de emprego.

De resto, para além deste fatores, o autor defende que a maior participação das mulheres no mercado de trabalho em Portugal tem desempenhado um papel importante nas diferenças entre os dois países. Ao incorporar os direitos das mulheres entre os seus objetivos, a revolução portuguesa não só contribuiu para a emancipação feminina face aos homens - um importante indicador de desigualdade social - como, segundo Fishman, teve o efeito secundário de contribuir para os níveis mais elevados de empregabilidade registados em Portugal.

Os resultados positivos verificados no mercado de trabalho também são visíveis no plano do Estado Social. Apesar de partir de uma situação relativamente desfavorável aquando do início da terceira vaga de democratização - Portugal era então o país com maiores níveis de desigualdade na Europa do Sul -, o país conseguiu recuperar ao longo do período democrático em muitos indicadores sociais. Recorrendo a vários indicadores sobre a evolução da despesa social nos dois países, o autor tenta demostrar que Portugal, mesmo partindo em desvantagem, acabou por ultrapassar o vizinho ibérico, construindo um estado social mais robusto e redistributivo.

Crise financeira, Catalunha e trabalho cultural: impactos duradouros dos legados das transições

Fishman defende que a gestão da crise financeira e a crise política na Catalunha constituem dois exemplos que permitem comprovar os efeitos duradouros das práticas democráticas historicamente enraizadas nos dois países. Apesar de sujeitos aos mesmos constrangimentos externos decorrentes da crise da zona euro, os governos dos dois países geriram a crise de forma diferente e essa gestão produziu, também ela, resultados políticos e sociais distintos. Portugal foi o país da Europa do Sul onde as políticas de austeridade produziram menos desigualdades e constituiu um caso excecional de resiliência do sistema de partidos. Na tese do autor, os efeitos negativos da austeridade foram amenizados em Portugal devido à cultura política inclusiva do país que, mesmo num período de crise económica, continuou a ouvir e a integrar no processo de tomada de decisão as reivindicações dos protestos sociais e dos segmentos mais desfavorecidos da população. Em Espanha, de acordo com a tradicional visão hierárquica e segmentada da democracia, as autoridades políticas não só mantiveram a distância face às manifestações, como procuraram ­deslegitimá-las e ­promoveram mesmo alterações à moldura penal para criminalizar algumas formas de protesto.

Por outro lado, mas sempre na mesma linha de raciocínio, a prática segmentada e com tendência para a exclusão do “outro” que tem caracterizado a política espanhola condicionou de forma decisiva a gestão da crise política da Catalunha. A forma como a causa independentista (radical) conseguiu atrair um número crescente de adeptos entre aqueles que se consideram simultaneamente catalães e espanhóis - tradicionalmente defensores da independência catalã no quadro de uma Espanha federal - deveu-se em grande medida à incapacidade de o sistema político espanhol reconhecer a legitimidade das aspirações do catalanismo moderado e da falta de abertura para promover um processo de negociação entre as partes. A decisão do tribunal constitucional sobre o estatuto de autonomia da Catalunha em 2010, ou a querela entre as autoridades de Madrid e de Barcelona em torno da questão referendária, ilustram (mas não esgotam) os limites da negociação impostos por uma prática democrática iminentemente segmentada e com tendência para não reconhecer a legitimidade das reivindicações e direitos das minorias (neste caso, referentes às identidades nacionais). O resultado foi uma escalada de conflito entre os sectores pró-independentistas da Catalunha e as autoridades de Madrid e uma crescente degradação de um dos alicerces de qualquer regime democrático: a “tolerância mútua” entre adversários políticos.

No último capítulo, o autor salienta a importância do trabalho político e ­cultural realizado ao longo dos anos em Portugal na reprodução do significado histórico do 25 de Abril e das conquistas da revolução. Um esforço cultural que não tem paralelo com a forma limitada como Espanha assinala as principais datas da sua transição. As celebrações do 25 de Abril desdobram-se em diferentes iniciativas, com destaque para a sessão anual organizada no Parlamento e para a manifestação realizada, também anualmente, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Ambas, segundo Fishman, funcionam como um mecanismo através do qual a classe política e a sociedade civil renovam todos os anos os votos com os compromissos sociais da revolução. Estas iniciativas, coadunadas com outras atividades destinadas a reproduzir a história e o significado da revolução (sobretudo para as novas gerações), desempenham um papel determinante na fortificação das bases inclusivas em que tem assentado a prática democrática “pós-revolucionária” em Portugal.

Nem tudo são “cravos” em Portugal, nem só de espinhos vive a democracia espanhola

A divisão ibérica na inclusão política, alicerçada nos legados culturais enraizados nas duas transições democráticas, levam o autor a enfatizar, na conclusão, os efeitos positivos para a democracia do padrão democrático português. Um padrão que demonstra também as vantagens duradouras que uma revolução social pode ter no aprofundamento da democracia em termos de inclusão e igualdade. Inversamente, o caso espanhol revela os custos de se ignorar as dimensões culturais da democratização e os problemas que uma prática democrática fundada numa visão excludente e segmentada pode ter para o funcionamento da democracia.

Evidentemente, não é lícito extrair das conclusões do autor que Portugal é um exemplo de perfeição democrática ou que Espanha deva ser considerada uma democracia que se esgota no cumprimento dos requisitos institucionais de um regime poliárquico. A avaliação global do funcionamento de uma democracia não pode ficar adstrita a uma das suas dimensões. Aliás, se considerarmos alguns estudos sobre a qualidade da democracia realizados nos dois países, verificamos que resultados positivos em certos indicadores convivem com diagnósticos negativos noutras dimensões do seu funcionamento (Fortes et al., 2010; Pinto, Sousa e Magalhães, 2013; Fernandes, 2017; Teixeira, 2018).

De resto, mesmo no quadro da profundidade democrática, a amplitude e o peso explicativo que o autor atribui à prática democrática são passíveis de discussão. Ao longo do livro, a assimetria na validação empírica do argumento legitima algumas dúvidas. Assim como, contrapondo argumentos e considerando outros indicadores, é legítimo perguntar se as diferenças são assim tão grandes e com implicações assim tão vastas como o autor propõe. Em alguns momentos do livro ficamos mesmo com a impressão de que as diferenças entre os dois casos surgem um pouco inflacionadas pelo voluntarismo narrativo do autor.

É certo que a maior abertura do sistema político português ao protesto social, ponto central da divisão ibérica na inclusão política, aparece corroborado por investigações recentes (Portos e Carvalho, 2019; Fernandes et al., 2020). Mas tendo em conta os indicadores positivos que Espanha apresenta em termos sociais ao longo do período democrático - indicadores que Fishman reconhece -, talvez seja um pouco excessivo afirmar que, globalmente, Portugal tem um estado social mais robusto e igualitário que o homólogo ibérico. Até porque, olhando para as características dos sistemas de proteção social e para a convergência dos dois países com os padrões europeus, é válido concluir que as semelhanças superam largamente as diferenças (Branco, 2017). O que não invalida que a trajetória de recuperação verificada em Portugal neste domínio seja notável, e possa ser explicada, em larga medida, pela natureza da transição (Branco, 2017; Silva e Pereira, 2017).

Além disso, no caso português, resultados positivos registados na evolução do estado social - e muito particularmente na redução da pobreza - convivem com aspetos menos positivos. No contexto europeu, Portugal permanece um país com elevados níveis de desigualdade de rendimentos, com baixos salários e limitada mobilidade social (Brinca, 2020; d’Uva e Fernandes, 2017; Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2012). A maior integração das mulheres no mercado de trabalho, sendo em si mesmo um dado importante, não esconde nem apaga os elevados níveis de desigualdade salarial com base no género. Igualmente importante, em termos de representação política feminina, Espanha tem tido uma trajetória mais rápida e consistente na proporção de mulheres eleitas para o parlamento ou nomeadas para cargos ministeriais (Costa, 2017). Este é um domínio em que a inclusão política ainda é manifestamente limitada em Portugal e maior no país vizinho.

Por outro lado, é preciso alguma cautela com extrapolações feitas a partir da forma mais ou menos inclusiva com que os media tendem a cobrir os manifestantes. Avaliando a evolução dos sistemas mediáticos na Europa do Sul - em termos de pluralismo político e partidário, ética dos jornalistas e liberdade de imprensa - Santana-Pereira e Sousa (2017) concluem que Portugal e Espanha tendem a apresentar “padrões normativamente (…) favoráveis ao desempenho dos media”. Ainda que Portugal apresente melhores resultados nalguns destes indicadores e que a explicação avançada pelos autores remeta para as teses de Fishman, isso não significa uma grande clivagem em relação a Espanha, muito pelo contrário.

De igual modo, embora reconheça a importância de outros fatores - como o papel do Tribunal Constitucional -, o autor parece exagerar a força dos protestos sociais na modelação das políticas de austeridade em Portugal. Como sinalizado por outros autores (Accornero e Pinto, 2015, p. 509), a amplitude das manifestações e a multiplicação de greves neste período não parece ter surtido um grande efeito na inversão dessas políticas. De resto, a forma mais ou menos inclusiva com que se procurou amortecer o impacto da austeridade, sendo relevante, não é suficiente para explicar a maior ou menor resiliência dos sistemas partidários ibéricos durante a crise financeira (Jalali, 2019; Rodrígez-Teruel et al., 2019).

Por fim, e pese embora a forma como os direitos sociais se encontram embutidos no conceito de democracia partilhado pela maioria dos portugueses - em si mesmo um importante legado da revolução -, também no que concerne à memória e à interpretação dos legados da transição portuguesa alguns estudos revelam que o consenso entre as principais forças políticas não é tão evidente e linear como o autor descreve no livro (Raimundo e Dias, 2020).

Em todo o caso, e independentemente das dúvidas ou discordâncias que alguns pontos possam suscitar, depois deste livro deixa de ser possível ignorar os legados culturais das transições democráticas. E ficam abertas várias portas de investigação, sendo que algumas delas já começaram a ser exploradas e dar frutos.

Referências bibliográficas

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