SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número239Vícios ou virtudes? Uma reflexão sobre o conceito de profissionalização da política.A corte portuguesa e a campanha pela publicação da Clavis Prophetarum do Padre António Vieira (séculos XVII-XVIII). índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.239 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021239.02 

Artigos

O uniforme branco como marca da desigualdade: um estudo sobre as babás do Leblon/RJ.

White uniform as a symbol of inequality: a study on babysitters at Leblon.

Marusa Bocafoli da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-7524-0015

Rodrigo Anido Lira1 
http://orcid.org/0000-0001-6217-9622

1 Universidade Candido Mendes/Campos dos Goytacazes » Av. Anita Peçanha, 100, Parque São Caetano - CEP 28030-335, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. marusasilva@gmail.com, rodrigoanidolira@gmail.com


Resumo

O presente trabalho tem por objetivo compreender como a obrigatoriedade do uso do uniforme branco pelas babás na zona sul do Rio de Janeiro se configura em segregação social. O uniforme, enquanto símbolo social, define e determina o lugar de invisibilidade e de subalternidade ocupado por essas trabalhadoras. Para a presente pesquisa foram entrevistadas babás e patroas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. O uso do uniforme está relacionado com a identificação e a segurança do trabalhador. Contudo, no caso específico da babá, ele carrega consigo um marcador simbólico importante que remete para a submissão, exclusão e separação.

Palavras-chave: desigualdade; uniforme; discriminação; babás; relações laborais

Abstract

This paper intends to understand how the mandatory wearing of white uniforms by babysitters in the south side of the city of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro State, Brazil, is characterized by social segregation. The uniform as a social symbol “defines and determines” the position of invisibility and subordination occupied by these workers. Women who work as babysitters at Leblon, on the south side of the city of Rio de Janeiro, were interviewed for this study. Wearing the uniform is about the identification and safety of the worker. In the specific case of the babysitter, however, the uniform has a significant symbolism, which refers to submission, exclusion, and segregation.

Keywords: inequality; uniform; discrimination; babysitters; work relationship

Introdução

A babá1 faz parte do cenário urbano. Ela está nas praças, nos parques, nos shoppings, nos clubes, nas portas das escolas, nos táxis. Em diversos lugares e situações, deparamo-nos com uma cena que parece comum: mulheres vestidas de branco empurrando carrinhos, levando pelas mãos os pequenos ou brincando com eles. A proximidade permitida por este tipo de trabalho faz parecer, num primeiro olhar, que esta relação é quase familiar.

Ao mesmo tempo, a imagem da babá, vestida de branco, remete-nos para as raízes históricas do Brasil, ilustradas pelas gravuras de Jean-Baptiste Debret com seus senhores e mucamas do século XIX. Uma relação ultrapassada historicamente, mas ainda uma sobrevivente no imaginário social e que fica claramente evidenciada quando se analisa o ritmo lento que embalou as mudanças no sentido de regulamentar e valorizar socialmente essa função.

Este tipo de tarefa carrega consigo profundas marcas da escravidão, pois o trabalho dispensado aos cuidados da casa e das crianças era realizado, no contexto colonial, por negras escravizadas. Marcado pela subalternidade, o trabalho doméstico, mesmo no contexto do trabalho livre, manteve-se durante muito tempo sem qualquer tipo de regulamentação, cenário que passou por mudanças mais significativas em 2013.2

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trabalhador doméstico é toda a “pessoa que trabalha prestando serviço doméstico remunerado, em uma ou mais unidade familiar” (2014). São compreendidos como empregados domésticos, segundo os Parâmetros da Classificação Brasileira das Ocupações, cozinheiras, governantas, babás, lavadeiras, faxineiras, motoristas particulares, entre outros.

Além de ser um trabalho que mantém embutidos os resquícios da escravidão, é também considerado socialmente como trabalho feminino, por isso, menor e invisível. Este facto reforça a sua desvalorização, já que é assumido como uma continuidade das funções naturais da mulher. Assim sendo, tornou-se um nicho profissional que abriga, sobretudo, mulheres pobres e negras, apontando para a interseccionalidade presente neste tipo de função.

O trabalho doméstico e de cuidado está muito presente no Brasil3, até mesmo entre crianças e adolescentes, escancarando o forte sistema de estratificação de classe, género e cor, como observado por Brites (2000). Segundo a autora, o trabalho doméstico passa a ser uma opção quando outras formas de inserção no mercado formal se mostram inatingíveis, revelando, assim, a sua faceta de desigualdade.

A manutenção deste tipo de trabalho, estruturado na lógica da servidão, não promove dignidade para os indivíduos que o realizam. Observa-se que, mesmo tendo em vista o movimento de transformação da consciência social, com a regulamentação desse tipo de trabalho, permanecem os abusos e as desigualdades.4

Partindo deste cenário, o presente artigo pretende empreender um estudo sobre o trabalho doméstico, recortando a categoria babá como objeto de pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, supondo que a presença destas mulheres, além de comum entre as famílias brasileiras, é responsável por engendrar uma relação ambígua que envolve afetividade e discriminação.

Deste modo, importa analisar a obrigatoriedade do uso do uniforme branco pelas babás como uma forma de segregação social. Para a realização deste estudo, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, realizadas no período entre janeiro de 2016 e janeiro de 2019, com 21 mulheres que desempenham a função de babá e 10 patroas. O cenário da pesquisa foi o bairro do Leblon na cidade do Rio de Janeiro (Brasil), especificamente, a praça Antero de Quental e a faixa de areia frente à rua General Venâncio Flores, no chamado Baixo Bebê5. Os dois locais são ocupados todas as manhãs por uma pequena multidão formada, na sua maioria, por babás.

Pretendeu-se, através de entrevistas semiestruturadas e em profundidade, uma vez que houve várias oportunidades para conversar com as interlocutoras, responder ao objetivo do trabalho. Além disso, faz parte dos métodos utilizados nesta pesquisa a observação em momentos pontuais em alguns clubes de elite6 da Zona Sul da cidade, entre eles, o Monte Líbano, situado no Leblon, a Casa de Espanha, localizado no Humaitá, Caiçaras e o Jockey Club Brasileiro, que ficam na Lagoa. Foram escolhidos por serem locais frequentados por famílias de posição social privilegiada e com histórico de frequentarem estes espaços acompanhadas das suas babás. O shopping Leblon e o shopping da Gávea também fizeram parte do cenário de observação da pesquisa.

Para sustentar a reflexão que aqui trazemos, serão utilizados trabalhos clássicos e também produções recentes que delimitaram como objeto de análise o trabalho desempenhado pela babá, a relação entre babás e patroas, a problemática do cuidado e a carga simbólica existente neste tipo de relação laboral, como sejam os trabalhos de Pierre Bourdieu, Irving Goffman, Suely Kofes, Hildete Pereira de Melo, Rhacel Parrreñas, entre outros.

O lugar do trabalho da babá

O decorrer do século XX trouxe profundas transformações nas relações de trabalho em todo o mundo, abrangendo também o trabalho doméstico. Fraisser (2003) afirma que os anos 2000 assistiram a uma reviravolta dessas transformações, quando o emprego doméstico, que parecia ter desaparecido na Europa, graças à sua normalização em horas de trabalho, se transformou num paliativo das carências do Estado, usado como um remédio para a desestruturação familiar.

Com o decréscimo de investimentos em políticas sociais, caraterística do neoliberalismo, muitas mulheres viram-se forçadas a retornar ao lar, responsabilizando-se pelas tarefas domésticas e o trabalho de cuidadoras. As pertencentes às classes média e média/alta optaram pela terceirização dessas funções através da contratação de empregadas domésticas e babás, o que se deu em escala global.

A chamada globalização da maternidade, analisada por Parreñas (2001), é um dos efeitos da crise do cuidado do atual arranjo capitalista. Numa perspetiva multidimensional, o trabalho do cuidado pode ser entendido como atividade relacionada com a prestação de atenção às pessoas e à manutenção da qualidade de vida. Segundo a autora, esse é um movimento que exacerba a profunda desigualdade entre o Sul e o Norte Global. Com efeito, é cada vez mais comum mulheres pobres do Sul procurarem melhores condições de trabalho e de ordenado no Norte. Uma parte significativa destas mulheres insere--se no trabalho doméstico desempenhando a função de babá. Este cenário contribui para uma dependência feminina do trabalho do cuidado, uma vez que as mulheres do Sul têm de deixar para trás os seus filhos, que ficam à responsabilidade das avós ou de outras mulheres, também pobres, que serão pagas para cuidar das crianças.

Ainda durante este intervalo de acontecimentos, surgem as chamadas “au pairs”, jovens raparigas, na sua maioria, que viajam para outros países com o objetivo de cuidar de crianças de famílias estrangeiras em troca de alojamento, alimentação, algum valor retorno monetário e oportunidades de aprendizagem e contacto com outra cultura. Apesar de ser uma prática comum em países da Europa e nos Estados Unidos, a ausência de uma legislação específica deixa espaço para o questionamento sobre a exploração que essas jovens podem sofrer. Cox (2015) aponta para os perigos encontrados neste tipo de trabalho, que, de acordo com a autora, se transformou num vale-tudo, principalmente, com a expansão da União Europeia.

No Brasil, o trabalho doméstico está nas raízes da sua construção. Utilizado massivamente por famílias de posição privilegiada desde os tempos coloniais, este trabalho era realizado, sobretudo, pelas negras escravizadas e não sofreu transformações profundas com o advento da abolição da escravatura e da instauração do trabalho livre. Continuou, pois, a ser uma função a cargo das mulheres mais pobres, com pouca ou nenhuma qualificação e negras. Um caldo histórico de desvalorização dessas tarefas que contribui para a existência de uma mão-de-obra abundante e barata (Melo, 1998).

Todo este panorama de desvalorização do trabalho doméstico fica ainda mais explícito quando se percebe que, mesmo com a velocidade do progresso e das transformações sociais pelas quais passaram a sociedade, a figura das mulheres que cuidam de lares que não são seus e dos filhos dos outros não desapareceu. Um olhar cuidadoso para a história permite observar inúmeras tentativas de apagar o importante papel desempenhado por essas mulheres no funcionamento da vida social. Como aponta Segato (2007), o lugar delas no imaginário da nossa sociedade é o da periferia e as tarefas por elas desempenhadas são consideradas menores.

Atualmente, no entender de Gonzalez (1980, p. 95), as babás são as mucamas permitidas que vivenciam a anulação do corpo e ocupam um lugar racializado que remete para o seu passado de escravatura. Poucas foram as mulheres negras que conseguiram escapar ao destino do trabalho doméstico, mostrando, como aponta Davis (1981, p. 98), que este tipo de trabalho não era apenas um resquício da escravidão fadado a desaparecer com o tempo. É possível, então, depreender que, por ter sido um tema que muito tempo permaneceu fora da legislação que regulamenta as demais categorias de trabalho livre, houve uma extensão do corpo escravo para o corpo produtivo.

O trabalho da babá tem as suas peculiaridades, como, por exemplo, a necessidade de maior envolvimento corporal e afetivo, residência no mesmo local de trabalho7 e tarefas diferenciadas. Estas trabalhadoras passam um tempo significativo com as crianças de que cuidam, sendo em muitos casos uma importante referência de afeto para os pequenos. No entanto, estão sujeitas a vários tipos de discriminação. Por esta razão, dar visibilidade a esta questão configura-se como uma tentativa de superar a invisibilidade promovida pelo capitalismo, racismo e sexismo.

Porquê o uniforme branco?

No caso em destaque neste artigo, a obrigatoriedade do uso do uniforme branco para as babás chama a atenção. Esta exigência, muito presente na Zona Sul do Rio de Janeiro, revela-se uma forma de segregação que é encarada com naturalidade por muitos, mas gera, no entanto, incómodo a alguns. Nanci8, portuguesa a viver há cinco anos no Rio de Janeiro, moradora do Leblon, negra e mãe de duas meninas, conta com o serviço de uma babá e conta que:

Sempre achei muito estranho essa coisa do uniforme branco, das meninas usarem roupas brancas para cuidar das crianças. Não exijo isso da minha babá. Eu mesma já passei por situações aqui no bairro de ser confundida com a babá porque minhas filhas são bem mais claras do que eu. Mas isso foi no início, hoje praticamente todo mundo me conhece.

Em alguns casos,9 a obrigatoriedade do uso do uniforme branco para as babás é compreendida como uma ação corriqueira, que padroniza, que está relacionada com a higiene ou até mesmo com uma forma de identificação que gera segurança para a trabalhadora. Em entrevista concedida ao jornal O Globo, o diretor-executivo do Jockey Club Brasileiro, ao ser questionado sobre a proibição da entrada de babás que não usassem uniforme nas dependências do clube, afirmou: “O uniforme para a babá é questão de apresentação e padronização.”10 Esta também foi a postura do vice-diretor administrativo da Naval Piraquê: “Não é discriminação e, sim, identificação dos funcionários.”11

É comum relacionar o uso do uniforme com a questão da identificação e da segurança para o trabalhador. Contudo, no caso específico da babá, o uniforme branco carrega consigo um marcador simbólico importante que remete para a submissão, a exclusão e a separação. O branco usado pela babá não tem o mesmo valor simbólico do branco utilizado pelo médico. No primeiro caso, o uniforme serve para demarcar o sujeito como inferior, enquanto no último serve a demonstração de poder e valorização social.

A imposição do uniforme branco nesses casos deixa claro a segregação de classe. Sendo esta ocupação caracterizada socialmente como subalterna, a obrigatoriedade do uniforme branco serve a reafirmação dessa subalternidade. Apesar de o uso não ser dominante no setor e de ele estar presente, sobretudo, em contextos concretos em que os patrões pertencem a famílias muito ricas, o uniforme branco não serve para proteção da trabalhadora, mas antes como símbolo de distinção para os empregadores (Melo, 1998).

Foi Bourdieu (2015) quem trouxe à tona a importância de se observar algumas pré-disposições que indivíduos pertencentes às classes sociais distintas possuem e que os colocam numa situação de diferenciação social. Nesta perspetiva, o conceito de habitus é uma importante ferramenta analítica. Como pontua o autor, habitus é concebido como um sistema de esquemas individuais que são constituídos socialmente nas disposições estruturadas (no social) e nas estruturantes (na mente). É adquirido nas e pelas experiências práticas em condições sociais específicas. Os habitus de classe incorporados permitem, mais ou menos, o reconhecimento simbólico no espaço social. Deste modo, a babá uniformizada pode ser vista como capital simbólico para famílias que pertencem a um determinado extrato social e que incorporaram e naturalizaram a presença de outra pessoa que os serve.

Mobilizado como marcador social e fonte de status para quem emprega uma babá, o uniforme branco contrasta com a cor da pele negra presente na maior parte das entrevistadas para esta pesquisa. De um total de 21 mulheres a trabalhar como babá no Leblon, 15 autodeclararam-se negras, 1 parda, 1 morena e 4 brancas. Este número representa o perfil do trabalhador doméstico no Brasil, formado, por maioria, de pardos e negros. Todas as babás ouvidas nesta pesquisa usam o uniforme branco por exigência dos patrões. De acordo com Maria Lúcia, que trabalha como babá há 14 anos para a mesma família e é negra, o uniforme significa:

que você é serviçal. Serviçal é serviçal. Patrão é patrão. A roupa nos marca. É a mesma coisa no shopping. As patroas gostam de desfilar no shopping com a babá. Elas estão pagando por isso e dá status. Não fica bem diante das amigas desfilar com a babá com roupa normal.

O uniforme tem um papel simbólico relevante na medida em que corrobora a hierarquização dentro das relações, como fica exposto na compreensão de Maria Lúcia. A roupa define o lugar de cada indivíduo, define quem manda e quem obedece, quem paga e quem recebe, quem dá direitos e quem recebe deveres. Citando novamente Bourdieu (2015), uma classe ou fração de classe não é definida apenas pela sua posição nas relações de produção, mas também pelas características daqueles que a compõem, como género e etnia, além de sua distribuição no espaço geográfico.

Infere-se que alguns critérios oficiais usados na distinção de classe funcionam como máscara, que são dissimulados. O pano branco sobre a pele negra reforça o lugar social daquela mulher que circula num espaço valorizado, para evitar qualquer tipo de mal-entendido. O uniforme limita e define a forma como estas trabalhadoras se devem comportar nos espaços em que se movem. No trabalho de campo, duas situações ajudaram a compreender o sentido invisível dessa necessidade de impor às babás a roupa branca. A primeira situação diz respeito às experiências vividas por Nanci, uma portuguesa que se declara negra, casada com um brasileiro branco e que mora no Leblon há pouco tempo. Ela relata que assim que se mudou para o bairro foi, inúmeras vezes, confundida com uma babá:

Uma vez estava com meus filhos na praça e via as pessoas olhando diferente p’ra mim. Não entendia muito bem isso, até que uma mãe me perguntou qual era a criança que eu cuidava e se minha patroa não exigia uniforme. Aí, percebi, era minha cor! A maioria das babás ali eram negras e estavam de branco.

Durante uma caminhada pelo bairro, não conseguimos ver indivíduos negros sem o seu uniforme, sejam as babás, os porteiros ou os garçons. Vemos também aqueles que, mesmo sem o uso do uniforme, possuem na vestimenta uma marca que os diferencia daqueles que pertencem ao bairro, como os guardadores de carros e os ambulantes na praia. Talvez por isso uma mulher negra, vestida de maneira informal e acompanhada de duas crianças não fosse reconhecida num primeiro momento como moradora.

Situação repleta de significados foi a relatada por Camila. Diferente de Nanci, Camila não é moradora do bairro, mas passa cinco dias da semana lá, no apartamento dos patrões. Trabalha como babá na mesma casa desde que Pedrinho nasceu, hoje ele tem seis anos. Camila é uma mulher jovem e negra, com sorriso largo e muito comunicativa. O seu patrão nem sempre morou na zona sul da cidade, era da Baixada Fluminense12 e está no bairro há exatamente seis anos. Um homem negro casado com uma mulher branca. Segundo Camila, no início, não exigiram dela o uso do uniforme, até que um dia:

Fui levar o Pedrinho na capoeira e meu patrão foi junto. Estava lá sentada esperando a aula terminar quando uma mãe começou a puxar papo comigo e perguntou se o menino era meu filho. Eu expliquei que era a babá mas vi na hora que meu patrão não gostou. No carro, indo p’ra casa, ele disse que agora toda vez que eu saísse na rua com o Pedrinho era p’ra eu usar bermuda e blusa branca. P’ra mim ficou claro que ele não gostou de me confundirem com a mãe, né? Até porque o Pedrinho não é branco.

O relato de Camila ajuda a perceber que, para alguém que é novo neste espaço, alguns códigos e símbolos não estão ainda claros. Assim é, por exemplo, possível compreender a atitude dos patrões de Camila ao não exigirem o uso do uniforme branco inicialmente. À medida que estes códigos se começam a clarificar, o comportamento individual começa a ser formatado. Com a possibilidade efetiva de a babá negra ser confundida com a mãe da criança mestiça surge a preocupação de demarcar, através do uso do uniforme, o lugar social dos envolvidos na cena. Como sugere Bourdieu (1994), a posição ocupada em determinado momento no espaço social não pode ser estabelecida apenas pelo capital de origem. Ao assumir uma nova posição no campo, é necessário aderir, antecipadamente, à homogeneidade das disposições que são associadas ao lugar que se ocupa, contribuindo, assim, para a sua reprodução moral e transmissão de valores que servem à distinção dos indivíduos pertencentes a uma classe ou a fração dela.

No ensaio Filosofia da Moda, Simmel (2008) mostra como o vestuário, antes de ser uma projeção de quem somos, forma e domestica a nossa personalidade. Está relacionado com as distinções pessoais e com os valores que forjam as subjetividades no meio social. A mulher negra de branco mostra que trabalha e não que se diverte. De branco, ela parece mais limpa e um pouco mais invisível, ela adapta-se às circunstâncias e reconhece o seu lugar. É como se ela vestisse a sua segunda pele, como um acrescento quase desnecessário à primeira pele, a negra. Desnecessário porque o Brasil já tinha dado um lugar aos negros na Lei de Terras, em 185013. O lugar era a senzala, os mocambos, as favelas, os quartos de empregadas e as traseiras dos carrinhos de bebés. Como salienta Nogueira (1988, p. 15):

Libertos da situação de cativeiro, quando da promulgação da “Lei Áurea”, continuaram, porém, excluídos, despossuídos. (…). Embora juridicamente capazes de ocupar um lugar na sociedade, os negros eram, de fato, dela excluídos e impedidos de desfrutarem de qualquer benefício social, foram marginalizados, estigmatizados, marcados pela cor que os diferenciava e discriminados por tudo quanto essa marca pudesse representar.

Assim se vai consolidado na sociedade brasileira um racismo cultural tão entranhado na dinâmica social que passa a ser, como diz Souza (2017, p. 18), a “dimensão não refletida do comportamento social”.

A negritude da pele e a roupa branca transformam-se em marcas que estigmatizam, como analisa Goffman (1975). O termo, que nasceu na Grécia Antiga, referia-se às marcas físicas imputadas para identificar, negativamente, os indivíduos, como, por exemplo, ladrões, prostitutas, etc. Na modernidade, o estigma ultrapassa as marcas físicas, incluindo todas as características negativas que são imputadas ao indivíduo pela sociedade, de maneira forte o suficiente para fazer desacreditar aquele que a possui.

Conceição tem 38 anos, é paulistana, mas está no Rio de Janeiro há 22 anos. Mora na Rocinha14 e trabalha como babá no Leblon. Dorme no trabalho e só retorna a casa ao sábado. Está neste emprego há um ano e é a primeira vez que tem contrato assinado. Antes disso, trabalhou para uma família durante 15 anos sem registo e criou os dois filhos dos patrões. Sobre a sua circulação pelo bairro, a babá diz:

Já perdi as contas de quantas vezes entrei nas lojas e fizeram pouco caso de mim. Não gosto nem de lembrar porque me dá vontade de chorar. As pessoas olham você preta e com uniforme e te diminui. Como a gente vive num mundo preconceituoso eu me sinto diminuída. Se eu pudesse escolher não usava uniforme, são horrorosos e tá na cara que você é babá porque tem muito preconceito.

No Brasil, o imaginário social cria estereótipos que relacionam a mulher negra a funções menores e naturaliza esses modelos a ponto de ser comum encontrarmos estas mulheres em funções como a de tratar de crianças e a de trabalho doméstico. Tal imaginário está ancorado na “naturalização de relações de autoridade e subordinação, que são apresentadas como se fossem fundadas na biologia e/ou justificadas racialmente” (Biroli, 2018, p. 42).

Na tentativa de compreender o pensamento, as funções e as hierarquias sociais, Mary Douglas (2010) encontra nas regras de higiene convenções que estipulam os lugares do que é puro e do que é impuro. A autora cita os corpos poluentes que existem no pensamento higienista. E desta forma poderíamos imaginar a situação das babás como alguém que se movimenta no seu lugar social determinado, a área de serviço.

De maneira simbólica, o uniforme seria o “aspecto convencional de se evitar a sujeira” (Douglas, 2010, p. 19). E os patrões, indivíduos da elite, por acreditarem ocupar o lugar do que é sagrado, exigiriam, em última instância, o uniforme para evitar a profanação. O que Mary Douglas sustenta é que neste sistema há ordenação e hierarquização das coisas e, consequentemente, uma rejeição ou condenação do que é apropriado ou inapropriado. Assim, o uniforme marca, reconhece o corpo da babá na sua função de trabalho, ao mesmo tempo que deixa pistas do seu lugar na cena social. Como nos conta Maria Lúcia:

É uma hierarquia. O uniforme iguala todo mundo, tipo, aqui todo mundo é empregado. Você nos lugares que você vê olhar diferente. Você vai no shopping com a patroa e você negra, de branco e empurrando o carrinho de bebê, todo mundo já sabe que você é a babá. Acho que olham como coitadinha. Não gosto.

Os relatos das babás deixam claro o incómodo causado pela obrigatoriedade do uso do uniforme e o lugar ocupado por esta função na sociedade. Durante a pesquisa, muitas demonstraram-se contra o uso da roupa branca, algumas disseram que lhes era indiferente, mas nenhuma delas se mostrou satisfeita com o facto de outra pessoa escolher o que elas têm de vestir. A fala de Fernanda ilustra o significado do uniforme para ela:

(…) é porque tem umas babás que não têm cara de babá. As pessoas acham que a babá tem que ter cara de babá. Acham que deve ser excluída. Eles olham assim diferente porque sou negra mas eu não ligo. Já liguei muito, agora não ligo mais. Dizem que o racismo acabou mas aqui não acabou não.

O que significa ter cara de babá? Em alguns espaços, a cor da pele pode ser um importante elemento desse marcador social. Como apontamos anteriormente, no universo dessa pesquisa, a maioria das babás é negra. Além disso, a única mulher negra desta amostra que não é babá foi, durante repetidas vezes, confundida com uma. O que nos leva a considerar a cor um marcador importante. A cara de babá também está estampada no uniforme.

No estudo sobre a indumentária, Miller (2013) afirma que a roupa nos representa no mundo exterior, não é uma coisa superficial e faz de nós o que imaginamos ser. O autor propõe uma análise afastada da abordagem semiótica das coisas em geral e da indumentária e, partindo de uma análise comparativa entre Trinidad, Índia e Londres, tenta demonstrar que a indumentária não é superficial e que é preciso examinar de que forma “coisas tais como roupas não chegam a representar pessoas, mas a constituí-las” (Miller, 2013, p. 37). Isto levaria a uma extrema insegurança sobre o que os outros pensam a respeito delas, como os outros fazem a leitura sobre elas (Miller, 2013, p. 32):

Se o eu não está profundamente dentro de nós, ele tampouco é visto como constante. Nós vemos o eu como algo que cresce baseado em coisas acumuladas. Assim, ocupação, status e posição social criam substância, a qual é acumulada no interior. Isso decorre de uma preferência histórica por identidades relativamente fixas e hierárquicas.

Assim, nesta perspetiva, o uniforme branco usado pela babá ajuda a construir visivelmente informações que permitem que outras pessoas compreendam o lugar social ocupado por elas. Uma forma de demarcar as desigualdades de classe que fica patente nesse tipo de relação de trabalho.

A compreensão da indumentária como fator que constitui o indivíduo e que gera insegurança sobre o julgamento do outro ajuda-nos a compreender o que sente, por exemplo, Sueli, babá negra:

Eu uso blusa branca, calça capri ou bermuda. Tudo branquinho. Infelizmente, é muito preconceito. O uniforme é horroroso e tá na cara que você é babá.

Rita, moradora de São Gonçalo, trabalha no Leblon e dorme no emprego a semana toda. Já trabalha como babá há 25 anos. No trabalho atual, está há três. Ela conta que:

Ah eles olham, nas festas que a gente vai aqui na zona sul já estamos acostumadas, eles não tratam mal, mas tratam com indiferença. Se tem uma mesa só de patrões eles vão servir os patrões primeiro, porque você é a babá, não é convidada. O convidado é a criança. E tá na cara que você tá trabalhando, primeiro porque você quase não vê preto na festa, só babá e de branco.

As experiências de vida de um indivíduo são diferentes dependendo do tempo, do lugar e também, de maneira parcial, como mostra Miller, da indumentária. Segundo o autor (2013, p. 63), “em cada caso, descobrimos que o vestuário desempenha um papel considerável na constituição da experiência particular do eu, na determinação do que é o eu”.

Que outra imagem pode ser mais simbólica do período escravocrata do que a imagem de uma mulher negra, uniformizada, a empurrar um carrinho de bebé de uma família branca? Ou a imagem dessa mesma mulher negra e uniformizada numa festa onde, pelo menos, a maioria dos convidados é branca? Estas questões levam-nos a pensar que, mesmo após a promulgação da PEC das domésticas em 2013, a perceção social do trabalho doméstico e de cuidados ainda não se descolou da escravidão e da sua relação com a cor negra.

Os relatos e observações acima mencionados mostram o incómodo que essas babás sentem e o que elas passam a representar quando estão de uniforme. Não são mais a Rita, a Sueli, a Maria Lúcia, a Dandara ou a Conceição, são apenas as babás. Algo coisificado, objetivado e não-subjetivo. O contraste da pele negra com o uniforme branco é entendido por elas como marca da submissão, da invisibilidade e do apagamento enquanto sujeito social, marcas materializadas no tratamento indiferente, frio e distante a que estão sujeitas quando se movimentam pelo espaço do bairro.

Os clubes, a praia, as ruas e o branco das babás: as vozes de patroas e babás

Corria o ano de 2015 quandi a advogada paulistana Roberta Loria entrou com uma ação no Ministério Público contra o Esporte Clube Pinheiro, que fica localizado na Zona Oeste da cidade São Paulo. O motivo da denúncia foi a proibição da entrada da babá da sua filha nas instalações do clube sob o argumento de que a funcionária não estava devidamente uniformizada, ou seja, não vestia o uniforme branco. Roberta deu, na altura, o seu testemunho a várias agências de notícias reforçando o seu repúdio contra a ação do referido clube. Segundo ela, a sua denúncia não era apenas para resolver um problema dela. “É uma questão social. É revoltante essa discriminação ainda ocorrer. Sou sócia do Pinheiros há pouco mais de um ano e jamais imaginei que isso acontecesse.”15

Ainda segundo a advogada, durante algum tempo a sua babá entrava normalmente no clube sem o uniforme, o que para a patroa se justifica pelo facto de a sua funcionária ser confundida com a mãe da criança, porque “Débora poderia passar por mãe da minha filha. Então, quando as duas estavam sozinhas, acho que não percebiam que ela era babá e, por isso, não era barrada, mas quando ela foi identificada como babá os problemas começaram.”16

O caso citado acima veio no seguimento de outras denúncias feitas contra clubes17 de elite, desta vez na zona sul carioca. A Organização não Governamental (ONG) Educafro18 entrou com uma ação no Ministério Público do Rio de Janeiro, após a babá Elaine Pacheco ser barrada na portaria do clube Caiçaras porque estava de bermuda jeans e blusa branca, mesmo constando o seu nome na lista de convidados para a festa infantil que aconteceria no referido local. A babá sentiu-se constrangida e teve de comprar umas bermudas brancas para conseguir levar a criança a seu cargo à festa. A representação apresentada pela ONG ao Ministério Público versava sobre a discriminação desses clubes para com as babás que viam a sua entrada proibida caso não usassem o uniforme branco, bem como lhes era barrado o acesso a algumas partes dos clubes, como piscina e casas de banho.

Após a denúncia realizada pela ONG acima citada, uma lei estatal foi promulgada em 2014, proibindo os clubes de exigir o uniforme branco para a entrada de babás e acompanhantes de idosos. A multa é de R$ 3.293,90.19 Contudo, casos recentes e a pesquisa de campo revelaram que a lei não está a ser cumprida nos clubes da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

Estes clubes são conhecidos como redutos de lazer. Em muitos casos, o gosto por apreciar momentos de ócio e diversão vai passando de pai para filho, como uma espécie de habitus, o que permite que se construa toda uma história social dentro desses muros. Os clubes que ficam localizados na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro agregam e mantêm um grupo restrito de contribuintes mensais, donos de títulos que, em alguns casos, podem chegar a 30 mil reais. Este espaço distinto e toda a forma de sociabilização que nele tem lugar são traduzidos em sinais de distinção. Assim, as pessoas que servem as famílias dos associados, como as babás e acompanhantes de idosos, devem ser classificadas adequadamente a fim de manter o ordenamento social daquele espaço.

A resistência por parte destes estabelecimentos em cumprir a lei estatal vigente escancara o cenário de profunda desigualdade social e racial presentes no Brasil. O uniforme é um atributo que demarca quem é o indivíduo, onde mora, qual a sua posição na sociedade. Se o uniforme usado é de um gerente, tal facto coloca a pessoa numa situação mais confortável dentro da pirâmide social; já se o uniforme é o de babá, então é sinónimo de que ela é serviçal.

À época da promulgação da Lei n.º 6660/14, o superintendente do clube Caiçaras, Durval Macieira, disse à imprensa que exigir que as babás entrem no clube vestidas com o uniforme branco não é discriminação. E disse mais: “Então, eu também sou discriminado, pois venho uniformizado todos os dias trabalhar. Aqui, o sócio tem direito a cinco gratuidades por mês. Nenhum sócio quer gastar seus convites para garantir o acesso às babás, que estão trabalhando. Então, essa profissional tem o acesso liberado, desde que esteja uniformizada.”20

Nas palavras do superintendente, o branco da babá é identificação, como qualquer outro uniforme, e não um demarcador social, ou um elemento de distinção, mesmo sendo sabido que, na maioria das relações de interação na vida social, incorremos em identificações. Neste sentido, alguns elementos permitem inferir algo sobre a posição social, como a forma de falar e de se vestir, como argumenta Horta Nunes (2014, p. 238):

A dimensão objetiva da identidade reside em atributos institucionalmente conferidos, decorrentes de processo de socialização, como a educação familiar ou escolar e a capacitação profissional. O aspecto subjetivo é o reconhecimento, a identificação consciente, cognitiva e afetiva, dos atributos institucionalmente estabelecidos ou, em termos corriqueiros, do que os outros dizem que somos.

É assim, por exemplo, que Goffman (1975) imaginava a vida social, como uma vida de interações nas quais a representação e a atividade de um indivíduo são visíveis diante de um outro grupo social. De acordo com o teórico, utilizamos uma “fachada” (máscara) que funciona como equipamento de padronização que pode ser intencional ou inconsciente e que permite que outros façam uma leitura sobre nós. Assim, a máscara pessoal pode advir: “(…) da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes” (Goffman, 1975, p. 54).

É na interação social e na sua ordem moral que é possível distinguir os indivíduos através de inúmeros aspectos que vão desde a aparência aos hábitos comportamentais. Neste sentido, como afirma Park (1973), a diferença entre pessoas desiguais parece estar fundamentada não naturalmente, mas por um conjunto de características percetíveis, como hábitos, costumes, educação, cor e vestuário.

Desta feita, a obrigatoriedade do uso do uniforme branco para a babá é, além de uma ação ilegal, uma forma de dizer ao outro quem ele é, no caso, uma subalterna, já que o corpo e os adornos utilizados expõem características próprias do indivíduo, como, por exemplo, o grupo social a que pertence.

A posição contrária à ação do clube paulista, assumida pela associada citada no início dessa secção, é, ainda hoje, uma exceção, uma vez que no cenário da pesquisa nos deparamos com patroas que não possuem o mesmo entendimento da advogada paulista sobre o assunto. A título de exemplo, a fala da Auxiliar que tem dois filhos e duas babás é simbólica:

É importante por causa do bom senso, quando elas não têm. Sou sócia de um clube e eu entendo a postura do clube, ele tem que definir a pessoa que está entrando, ela é sócia? É convidada? É da família? Na verdade, você como sócio pode levar dois convidados, aí, o clube, para agradar o sócio, deixa a babá entrar identificada e ela não conta como convidado. No clube que eu frequento a babá só entra com identificação.

Do lado oposto ao do discurso de igualdade, o cenário que se desenhou durante a pesquisa apontou posições e hábitos de manutenção de uma ordem social segregadora. Ana, que é analista financeira, tem 41 anos e é mãe de um menino, diz o seguinte:

Eu entendo a exigência porque é para dar mais segurança. Por exemplo, minha antiga babá usava um shortinho que eu não tenho coragem de usar e ela tinha cinquenta anos e olha que eu sou direitinha, magrinha. Então eu comecei a exigir o uniforme e um avental branco para tampar os peitos.

A partir dos relatos acima infere-se duas observações. A primeira diz respeito à carga afetiva presente neste tipo de trabalho. No Brasil, é comummente utilizado pelos empregadores o discurso de que empregadas domésticas e babás são tratadas como se fossem da família. Contudo, várias pesquisas (Koffes, 2001; Silva, 2018) demonstram que na prática esse discurso é mobilizado para esconder violações de direitos e discriminações. Ao argumentar que o clube precisa de identificar se quem está a entrar é associado, convidado ou da família, está-se a excluir a babá da classificação como se fosse da família, que outrora era utilizada para disfarçar as possíveis dinâmicas exploratórias.

Já a segunda observação refere-se ao argumento de que o uniforme gera segurança para os associados dos clubes, pois baseia-se no estereótipo da babá como alguém que precisa de ser vigiada e controlada. A roupa branca, ao mesmo tempo que a coloca no centro das observações, uma vez que todos ali sabem que ela é a babá, serve também para o seu apagamento social enquanto sujeito, pois não é uma associada, uma mãe, um indivíduo e, sim, um corpo para servir. Nas falas das mães e patroas, a obrigatoriedade do uso do uniforme não teria nenhuma pretensão de marcar inferiormente os indivíduos. Cibele é publicitária, mãe de um menino, e afirma que:

Acho ridícula toda essa polêmica. O uso do uniforme não rotula ninguém. Qual o problema da babá trabalhar de branco? Acho ótimo que você esteja em um clube e identifique a babá, até porque já vi babá fazendo coisas horrorosas com crianças. Assim você identifica que aquela ali é a babá. O médico não trabalha de branco? Qual o problema?

O que não está problematizado nestes testemunhos é a maneira como a aparência e todos os símbolos que ela envolve, cor, cabelo, traços da face e roupa podem ser atributos de desprezo e preconceito. A babá pode ser, utilizando as categorias de Goffman (1975), um tipo clássico de “não-pessoa” na nossa sociedade. Deseja-se que ela esteja presente na “região de fachada” nos clubes, praças, academias, shoppings e praia acompanhando as crianças e nos apartamentos de luxo. Ao mesmo tempo, ela é definida por todos como alguém que não está ali.

As teias deste jogo social levam-nos, inspirados por Elias (1994), a perceber a “necessidade” da presença da babá nesses espaços, como foi possível verificar no trabalho de campo, como uma ação de manejo de símbolos valorizados. A babá torna-se para as famílias mais abastadas símbolo de status e distinção. Retomando Park (1973, p. 62):

O status do indivíduo é determinado num grau considerável por sinais convencionais - por moda e “aparência” - e a arte da vida reduz-se em grande parte a esquiar sobre superfícies finas e a um escrupuloso estudo de estilos e maneiras.

A presença da babá é uma constante nos clubes da zona sul carioca. No dia-a-dia, sobretudo, aos fins de semana, são elas as principais responsáveis por levar as crianças a brincar, a nadar e a divertirem-se nos clubes. Muitas babás entrevistadas para esta pesquisa relataram como se sentem neste espaço. A título de exemplo, o relato de Darcy, que trabalha como babá há 14 anos, é revelador:

Tem babá que fica o dia inteiro no clube e só tem direito de beber água porque é de graça. Você cuida do bem maior da família e é tratada assim. O clube que meus patrões frequentam você só entra de branco e eu já fui barrada. Eu cheguei na piscina e o segurança disse que não poderia sentar na cadeira porque era só para sócios, como vou dar comida p’ra criança em pé? A gente sofre discriminação. Babá é discriminada. É uma profissão de responsabilidade, os pais viajam e a criança fica com você. As vezes a gente entra num lugar e as pessoas acham que você é escravo.

A fala de Darcy, remetendo a ideia de como as pessoas, de um modo geral, vêem as babás, coincide com outros depoimentos recolhidos no campo. A sociedade brasileira foi fortemente marcada por distinções sociais de raça e de género, que se uniram à formação de variadas classes. Assim, por mais que sejam visíveis mudanças sociais e políticas nas últimas décadas, as profundas marcas dessas múltiplas desigualdades sobrevivem. E tal perceção é mais clara para estas mulheres em alguns espaços específicos como clubes, restaurantes e shoppings. É isto que nos diz Fernanda, uma babá de 31 anos. Ela relata que o seu primeiro emprego como babá foi quando tinha 14 anos, nunca trabalhou noutra área, porque “minha mãe morreu cedo e meu pai ficou criando a gente sozinho, então tivemos que começar logo a trabalhar”. Jussara revela que também se sente constrangida e inferiorizada em alguns lugares que frequenta a trabalho.

Muitas pessoas acham que a babá tem que ser excluída. No restaurante você não senta na mesa com os patrões. Eles sentam e você vai para o parquinho brincar com a criança. Geralmente eles sentam e a gente vai para o parquinho. Eles olham assim porque sou negra e tô ali com uniforme e com a criança, eu não ligo mais, já liguei, hoje não ligo porque, se acabou o racismo no tempo antigo, hoje ele ainda existe aqui.

Também Clara reforça esta perceção:

Outra coisa é restaurante, a gente chega com os patrões, os garçons puxam a cadeira para eles, trazem a cadeirinha da criança e você fica ali em pé. Parece que você não está ali, que não precisa sentar. Quando a gente faz um pedido, aí os garçons fazem de conta que eu não pedi.

Os relatos aqui elencados dão-nos a dimensão do preconceito e da discriminação a que estão sujeitas estas mulheres. O tratamento desigual a elas dispensado é parte de uma sobreposição de símbolos que identificam os sujeitos como inferiores. Estes símbolos podem ser a cor, o uniforme branco e o próprio trabalho do cuidado. Há aqui, nesta interação, preconceito de classe, de género e de cor.

Conclusão

O trabalho doméstico no Brasil é comummente utilizado desde o período colonial e permaneceu com resquícios da escravidão mesmo após a abolição e a instauração do trabalho livre. Com o tempo, tornou-se um nicho que abriga maioritariamente mulheres negras e pobres, evidenciando a desigualdade presente na sociedade brasileira e sinalizando a necessidade de reflexão sobre o lugar reservado a estas trabalhadoras no Brasil, conforme expõem Gonzalez (1982, 2018) e Saffioti (1978, 1987, 2004, 2013), que identificam o cruzamento de diferentes marcadores sociais, como raça, classe e género a atuar na subalternização destes indivíduos.

O uso do uniforme branco é compreendido como um símbolo de status para os patrões e como uma marca de submissão para as babás. A sua obrigatoriedade em lugares como clubes é uma forma de demarcação do lugar social destas trabalhadoras, dando lugar a situações de preconceito e de múltiplas discriminações. Basta ver que, como pontuam Gonzalez (2018) e Davis (2016), o trabalho doméstico configura-se em locus, por causa da manutenção de tais discriminações.

Com efeito, o uniforme serve para separar indivíduos que pertencem a classes sociais distintas. Define que espaços podem ser usados, por quem e como. Inúmeros foram os relatos das babás entrevistadas para esta pesquisa sobre situações em que foram alvo de discriminação relacionada com o uso do uniforme. Foi possível verificar que todas as interlocutoras entendem claramente que o uniforme serve a classificação, a diferenciação e a hierarquização, que não são indiferentes ao peso e à marca simbólica que esta roupa específica carrega. Por outro lado, as patroas ouvidas consideram necessário o uso do mesmo. As justificações vão da aparência limpa à segurança das babás e das próprias patroas.

Mesmo a promulgação da estadual Lei n.º 6 660/14, proibindo a obrigatoriedade do uso do uniforme por babás e cuidadores de idosos nas instalações dos clubes, não foi suficiente para alterar o modus operandi destes estabelecimentos, uma vez que continuaram a exigir que as babás estivessem vestidas de branco para entrar.

Os casos de abuso e de preconceito relatados pelas babás possuem como pano de fundo a marca da escravidão e da servidão. A roupa branca sobre a pele negra marca o preconceito de cor, reforçando que tipo de trabalho está disponível para os negros na sociedade brasileira. Por outro lado, a desigualdade de classe fica exposta quando esta mão-de-obra tem no seu perfil uma maioria de mulheres pobres. São elas mulheres pobres e negras, que se tornam visíveis pelo uso da roupa branca. Uma visibilidade que está ao serviço do controlo para que não ocupem lugares que não lhes são permitidos. Ao mesmo tempo, o branco retira a estas mulheres a condição de sujeito na sociedade e remete-as para a condição de instrumento, de babá, apenas.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, P. (2011), O Poder Simbólico, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. [ Links ]

BOURDIEU, P. (2015), A Distinção: Crítica Social do Julgamento, Porto Alegre, Zouk. [ Links ]

BRITES, J. (2000), Afeto, Desigualdade e Rebeldia: Bastidores do Serviço Doméstico. Tese de doutoramento, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [ Links ]

COX, R. (2015), Au Pairs’ Lives in Global Context: Sisters or Servants?, London, Palgrave Macmillan. [ Links ]

DOUGLAS, M. (2010), Pureza e Perigo: Ensaio sobre a Noção da Poluição e Tabu, Lisboa, Edições 70. [ Links ]

DAVIS, A. (2016), Mulheres, Raça e Classe, São Paulo, Boitempo. [ Links ]

ELIAS, N. (1994), O Processo Civilizador: uma História dos Costumes, Rio de Janeiro, Zahar. [ Links ]

FRAISSER, G. (2005), “Domesticidade, emprego de serviço e democracia”. In M. Maruani, H. Helena (eds.), As Novas Fronteiras da Desigualdade: Homens e Mulheres no Mercado de Trabalho, São Paulo, Editora SENAC, pp. 179-182. [ Links ]

GOFFMAN, E. (1975), Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, Rio de Janeiro, Zahar . [ Links ]

GONZALEZ, L. (1982), “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”. Mulherio, 2(7), p. 9. [ Links ]

GONZALEZ, L. (2018), Primavera para as Rosas Negras, São Paulo, Diáspora Africana. [ Links ]

HORTA NUNES, J. (2014), “Dilemas identitários no mundo dos serviços: da invisibilidade à interação”. Sociologias, 35(16), pp. 238-272. [ Links ]

KOFFES, S. (2007), “Experiências sociais, interpretações individuais: histórias de vida”. Cadernos Pagu, 3, pp. 117-141. [ Links ]

KOFFES, S. (2007), Mulheres, Mulheres: Identidade, Diferença e Desigualdade na Relação entre Patroas e Empregadas, Campinas, SP, UNICAMP. [ Links ]

MILLER, D. (2013), Trecos: Troços e Coisas: Estudos Antropológicos sobre a Cultura Material, Rio de Janeiro, Zahar . [ Links ]

MELO, H. P. (2000), “Uma análise dos grupos ocupacionais. Estratégias para combater o trabalho infantil no serviço doméstico”, Organização Internacional do Trabalho-OIT e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA. [ Links ]

NOGUEIRA, I. (1998), Significações do Corpo Negro. Tese de doutoramento, São Paulo, Universidade de São Paulo. [ Links ]

PARREÑAS, R. (2015), Servants of Globalization: Migration and Domestic Work, Stanford, CA, Stanford University Press. [ Links ]

PARK, R. (1967), “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In A. G. Velho (org.), O Fenômeno Urbano, Rio de Janeiro, Zahar , pp. 26-67. [ Links ]

SAFFIOTI, H. (1978), Emprego Doméstico e Capitalismo, Petrópolis/RJ, Vozes. [ Links ]

SAFFIOTI, H. (1987), O Poder do Macho, São Paulo, Moderna. [ Links ]

SAFFIOTI, H. (2004), Gênero, Patriarcado, Violência, São Paulo, Fundação Perseu Abramo. [ Links ]

SAFFIOTI, H. (2013), A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade, São Paulo, Editora Expressão Popular. [ Links ]

SEEGER, A. (1974), Nature and Culture and Their Transformations in the Cosmology and Social Organization of the Suyá, a Ge-Speaking Tribe of Central Brazil, Chicago, University of Chicago. [ Links ]

SEGATO, R. (2012), “Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial”. E-cadernos ces, 18. Disponível em http://eces.revues.org/15 33 [consultado em 01-03-2021]. [ Links ]

SILVA, M. (2018), A Relação (in)tensa entre Patroas e Empregadas, Curitiba, Appris. [ Links ]

SIMMEL, G. (2005), As Grandes Cidades e a Vida do Espírito, Rio de Janeiro, Mana. [ Links ]

SOUZA J. (2017), A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato, Rio de Janeiro, LeYa. [ Links ]

Notas

1 No Brasil, o termo “babá” corresponde a uma categoria dentro do trabalho doméstico. Este tipo de profissão, exercida maioritariamente por mulheres, tem como função cuidar de crianças.

2 Em 2013, foi aprovada a Emenda Constitucional n.° 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, com o objetivo de regulamentar o trabalho doméstico no Brasil, estendendo a essa categoria os mesmos direitos dos demais trabalhadores.

3 De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), divulgados em dezembro de 2019, o Brasil conta com um contingente de 6,3 milhões de pessoas dedicadas a esse tipo de trabalho, 92% é formado por mulheres e 63% por mulheres negras.

4 De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), em 2019, o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,3 milhões, sendo que 4,5 milhões de empregados domésticos não possuem carteira de trabalho assinada. A pesquisa revela que, mesmo após a regulamentação da categoria, ela é a que mais sofre com a informalidade, facto que abre espaço para abusos de vários tipos, como, por exemplo: carga horária de trabalho excessiva sem direito a horas extra.

5 Estrutura na praia do Leblon que conta com parquinho e fraldário para bebés e crianças. O local é muito frequentando por famílias com crianças pequenas e também é ponto de encontro das babás.

6 Como são conhecidos os clubes que ficam em bairros privilegiados e que são frequentados por indivíduos de classe alta.

7 Das 21 babás entrevistadas para este estudo, apenas 1 não morava no trabalho. Ainda é comum neste tipo de função, no Brasil, que as babás passem a semana inteira na casa dos patrões, retornando às suas residências ao fim de semana. Em alguns casos, elas voltam apenas após 15 dias consecutivos no trabalho.

8 Todos os nomes que aparecem neste trabalho são fictícios.

9 Todas as babás entrevistadas relataram que os patrões exigem o uso do uniforme. De entre as patroas, apenas 1 relatou não exigir uniforme à sua babá.

10 Entrevista publicada a 08-01-2013, no jornal O Globo. Disponível em www.oglobo.com.br [consultado em 20-01-2017].

11 Entrevista dada ao jornal O Globo a 13-01-2013.

12 A Baixada Fluminense é uma região geográfica do Rio de Janeiro que pertence ao Grande Rio. As cidades que compõem a região são: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Japeri, Queimados, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti.

13 Lei promulgada por D. Pedro II em setembro de 1850, que determinava a compra como única forma de obtenção de terras públicas, inviabilizando, assim, sistemas de posse ou doação para transformar uma terra em propriedade privada.

14 É uma favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Destaca-se por ser a maior favela do país, com 100 mil habitantes.

15 Entrevista dada à BBC Brasil. Disponível em www.bbc.com/postuguese/noticias.

16 Reportagem da BBC Brasil. Disponível em www.bbc.com/portuguese/noticias.

17 A saber: Paissandu, Naval Piraquê, Jockey Club e Caiçaras.

18 Fundação Criada em 1987, a Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes) foi pioneira na defesa das cotas raciais e a levar o debate adiante, liderando a luta pelo acesso à educação superior de qualidade para oprimidos dos morros e periferias.

19 Lei n.º 6.660/14.

20 Entrevista dada ao jornal O Globo, em 14-10-2014.

Recebido: 27 de Fevereiro de 2020; Aceito: 31 de Março de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons