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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.239 Lisboa June 2021  Epub June 30, 2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021239.09 

Recensão

Recensão: O Antipatrimónio: Fetichismo do Passado e Dominação do Presente, de Pablo Alonso González, por Joana Lucas

1 Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH). Av. Berna, 26 - 1069-061 Lisboa, Portugal. joana.i.lucas@gmail.com

Alonso González, Pablo. ., O Antipatrimónio: Fetichismo do Passado e Dominação do Presente. ,, Lisboa: ,, Imprensa de Ciências Sociais, ,, 2020. ,, 246p. pp. ISBN, ISBN: 9789726716198.


O primeiro livro de Pablo Alonso González publicado em português chega desfraldando o apelativo (e eventualmente polémico) título O Antipatrimónio: Fetichismo do Passado e Dominação do Presente, e surge precisamente num tempo em que a apropriação do património enquanto matéria, mas também dos seus assuntos e valores, pelas ciências sociais se faz enquanto estratégia de sobrevivência - dentro e fora do espaço académico - e de forma iminentemente situacional.1

O livro chega também devidamente escorado, com apresentação de Nuno Domingos (ICS-ULisboa), prefácio de Rui Gomes Coelho (Durham University, Reino Unido) e posfácio de Paula Godinho (Departamento de Antropologia, NOVA FCSH) que, ora numa ancoragem à História (e à Arqueologia), ora à Antropologia, e suas aproximações às questões patrimoniais tecem, em consonância com o autor do livro, uma avaliação crítica do que têm sido as consequências da debulhadora “máquina patrimonial” (cf. Gomes Coelho, no prefácio), quer na produção de discursos sobre identidade e tradição, quer nas marcas que deixa, efetiva e indelevelmente, nos terrenos tangíveis da patrimonialização.

A reflexão sobre o património enquanto “máquina” surge, como já referido, num momento crucial para a Antropologia e outras ciências sociais, tendo em conta que este objeto - o património - se tornou terreno propício para financiamento e empregabilidade, em contexto de escassez de ambos. E, não menos importante, emerge também como um valor per se, dando resposta a anseios e expectativas (no sentido, quase sempre, da legitimação de práticas e consagração de lugares) heterogeneamente espalhados pelo mundo, onde, a partir de motivações e estratégias diferenciadas - de cima para baixo, ou de baixo para cima - servirá para confirmar e certificar aspirações para participar no festim patrimonial, e beneficiar dele, sendo possível.

Assim, e tendo em conta o aparente consenso social em torno do património enquanto valor incontestado, sendo entendido quase sempre enquanto um valor acrescentado, o exercício crítico de Pablo Alonso González ao longo do livro assemelha-se ao de Teseu ao procurar a saída do labirinto do Minotauro. O património, tal como atualmente é pensado e posto em prática, assemelha-se a um labirinto, a um novelo de questões entre agência e poder, mercado e mercadoria, valor e identidade, estratégia e recurso, autenticidade e recriação, do qual é difícil encontrar uma saída que não seja - porventura a mais fácil para quem o avalia de forma crítica - a de deitar fora o bebé com a água do banho.

Esta saída, que alguns das/os que trabalham nos dias que correm sobre/com as questões patrimoniais procuram que seja airosa, mas, tal como vai ficando claro ao longo do livro de Alonso González, nem sempre é fácil de encontrar e mensurar: ela deverá ser crítica, mas não niilista, benévola, mas não condescendente.

A reflexão presente no livro decorre do trabalho de terreno realizado por Alonso González em Maragatería, região situada na província de Leão, no norte de Espanha, e é a partir de uma contextualização histórica e de uma observação etnográfica - ambas densas e finas - que o autor parte para a discussão em O Antipatrimónio, alertando para a dimensão iminentemente situada da sua análise e deixando, já perto do fim, a pergunta à qual andamos a tentar dar resposta: “Como levar a cabo uma crítica radical, negativa e imanente de uma categoria fetichista e hegemónica como o património?” (p. 208), à qual responde insistindo na importância do lugar e do contexto, quer em benefício da análise, quer da crítica.

O livro encontra-se organizado em seis capítulos precedidos por uma introdução, na qual o autor alerta: “(…) não se perguntará em nenhum momento o que é o património” (p. 33), assumindo aprioristicamente que se tratará acima de tudo de “(…) um diálogo crítico em busca de correspondência e uma aprendizagem com Maragatería, em vez de sobre Maragatería” (p. 35). Esta premissa enforma todo o livro, sendo que praticamente todos os capítulos se constroem a partir de reflexões espoletadas por aquilo que é observado no terreno etnográfico, e que dará origem a reflexões sobre raça, etnia e nacionalismo (capítulo 2), a construção do camponês no Noroeste ibérico (capítulo 3), gentrificação (capítulo 4), ou museus e cultura material (capítulo 5).

Digno de destaque, o primeiro capítulo compreende um notável e profícuo estado da arte sobre correntes, teorias, críticas e epistemologias patrimoniais, cuja leitura devia fazer parte de qualquer programa académico que tenha o património por objeto. Nele, Alonso González traça, de forma sistemática e generosa, a genealogia dos estudos sobre património, da qual nem os “estudos críticos do património” saem ilesos. Estes, tal como argumenta o autor: “(…) não trouxeram críticas à própria categoria de património nem formas de pensamento, gestão e prática alternativas (…)” (p. 47).

Esta parece ser, aliás, uma das principais dificuldades que tornam tão espinhosa a tarefa de sair do labirinto patrimonial: se os “estudos críticos do património” se ficam pelo exercício de desmontagem das autenticidades encenadas e das reinvenções do passado ou, ainda, pela identificação dos beneficiados e dos excluídos do vislumbre da participação no festim patrimonial, o que poderá constituir e onde poderá estar a verdadeira crítica ao património enquanto “máquina”?

Para além da enunciação da (importante e útil) premissa de que o ponto de partida para qualquer “tomada de posição” sobre práticas e políticas patrimoniais deverá ser a forma situada como se observa e se pensa sobre as mesmas, e de acordo com “(…) os modos de existência de determinadas comunidades (tanto globais como locais)” (p. 208), de maneira a que nos possamos libertar da abstração do que é afinal o património, trata-se, sobretudo, de pensar o património de forma relacional - como “(…) um tipo de relação social que emerge em contextos e situações determinados”, tal como afirma Paula Godinho no posfácio (p. 214).

Ambas as premissas - a da relação que emerge e a do lugar onde isso acontece - parecem-nos, assim, apresentar-se como um vislumbre possível para a saída do labirinto e para uma alternativa ao exercício, tantas vezes estéril e sem escape, da crítica ao modus operandi da “máquina patrimonial”. É que, precisamente, é necessário lidar - e cada vez de forma mais alargada - com aquela que é a aspiração de Estados, comunidades, grupos, coletivos, pessoas, etc., ao seu quinhão de património.

Por fim, dois apontamentos sobre o que ficou de fora deste livro: 1) a aparente profusa realização de entrevistas a diversos atores e agentes presentes em Maragatería, da qual apenas temos um vislumbre, não tendo sido mobilizadas para o corpo do texto e que, acreditamos, poderiam consubstanciar a ideia de “aprender com Maragatería” a partir das vozes dos seus interlocutores, ouvindo-os; 2) na capa do livro consta uma fotografia que tem como legenda: “Maragatos em feira promocional de turismo em Bangkok” (da autoria de Alonso González) sendo que, contrariamente ao esperado, em nenhum momento o autor faz alusão à forma como esta “promoção” da identidade e do património maragato é feito “para fora”, ou seja, no mercado global do consumo patrimonial enquanto mercadoria, longe dos referentes identitários da diferença e da autenticidade em contexto nacional espanhol. Seria interessante perceber como se “vende” e como se “promove” a identidade maragata enquanto valor no competitivo mercado patrimonial global, assim como quais os símbolos e referentes que são usados nesse processo. Mas imaginamos que seja exercício para outros enredos.

Referências bibliográficas

Alonso González, Pablo (2020) O Antipatrimónio: Fetichismo do Passado e Dominação do Presente, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

Notas

1 Veja-se, por exemplo, a este título, a recente criação do Laboratório Associado IN2PAST (Fevereiro de 2021), que junta unidades orgânicas de diversas instituições universitárias e que se debruçará, essencialmente, sobre as múltiplas formas do património: memória, usos do passado, arquivos, museus e monumentos.

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