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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.239 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021239.11 

Resensão

Recensão: Como Acaba a Democracia, de David Runciman, por Nuno Andrade Ferreira

Nuno Andrade Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0003-3670-3878

1 Cátedra CIPSH de Estudos Globais da Universidade Aberta (CEG-CIPSH-Uab). Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica, 147 - 1269-001 Lisboa, Portugal. nuno@nafonline.info

Runciman, David. Como Acaba a Democracia. ,, Lisboa: ,, Gradiva, ,, 2019. ,, 216p. pp. ISBN, ISBN: 9789896169428.


O tema da “crise da democracia” tem fornecido ao mercado editorial um conjunto alargado de títulos, dedicados a explorar as suas fragilidades e as ameaças que a colocam em causa. Como Acaba a Democracia, da autoria de David Runciman, é mais um contributo para este debate atual e urgente.

Professor da Universidade de Cambridge, Runciman tem trabalhado a questão da democracia e coordenou recentemente dois projetos de investigação na área - Tecnologia e Democracia (2014-2017) e Conspiração e Democracia (2013-2018), ambos no Centre for Research in the Arts, Social, Sciences and Humanities.

Como Acaba a Democracia surge na sequência de obras anteriores do mesmo autor e, muito particularmente, do livro de 2013, The Confidence Trap: A History of Democracy in Crisis from World War I to the Present, com chancela da Princeton University Press.

Estruturada em quatro capítulos - “Golpe!”, “Catástrofe!”, “O domínio da tecnologia” e “Algo melhor?” - precedidos de um prefácio e de uma introdução e seguidos por uma conclusão e um epílogo, a obra constrói-se em torno de uma pergunta lançada nos primeiros parágrafos: “É assim que acaba a democracia?” (p. 8).

Usando como primeiro exemplo o caso dos Estados Unidos da América e a chegada de Donald Trump à Casa Branca, depois das eleições de 2016, o professor de Cambridge contraria expectativas de um fim abrupto do sistema político democrático e recorda que o desenho institucional estado-unidense assegurou a normalidade de funcionamento democrático, mesmo perante um presidente atípico: o famoso checks and balances a que, no fundo, assistimos ao longo dos últimos quatro anos e que permitiu a eleição de um outro presidente, na eleição de novembro de 2020, não obstante a contestação do incumbente, entretanto derrotado.

Deste modo, estabelece-se que o fim da democracia não será, necessariamente, decorrência de qualquer elevação autoritária, mas antes da falência do próprio regime, num processo lento e demorado, de desvalorização autoinfligida.

Sem acreditar no recurso à violência política, Runciman sublinha que a História não se repete, o que não significa que não possamos aprender com ela.

O livro não será um guia prático ou um manual de uso universal, mas ao fazer a ponte com diferentes modelos de organização política, da Grécia dos anos 60 do século XX à França do general De Gaulle, Runcinam consegue sustentar o argumento da emergência de um grupo de novas ameaças à democracia, distintas consoante a solidez do regime em cada país.

Apresenta-se como paradigmático e ilustrativo o exercício comparativo feito, no capítulo I, entre o golpe de Estado perpetrado em Atenas, em 1967, e a situação política contemporânea grega. Perante um cenário de crise, duas soluções. Há meio século, a rutura. Agora, o lento caminho do enfraquecimento.

Revelam-se oportunas as incursões feitas sobre a fragilidade dos processos eleitorais e a exposição dos eleitores a fenómenos populistas, alimentados por teorias da conspiração.

Quanto mais a democracia é tida por garantida, mais fácil se torna subverte-la sem ter que a eliminar. Em particular, o “alargamento executivo” - quando figuras fortes eleitas desgastam a democracia enquanto lhe juram fidelidade - parece ser a ameaça mais séria para a democracia do século X (p. 43).

O capítulo II recorre a um tom ensaístico para antecipar o fim hipotético da civilização. Ao discutir o nível de resiliência da democracia a um presumível evento catastrófico, Runciman discorre sobre a existência de uma atitude passiva perante ameaças reais que, não partindo necessariamente do sistema de organização política, poderão acabar por reconfigurá-lo.

Eis algumas maneiras de a nossa moderna civilização se fazer explodir a si própria. Pode fazer-se explodir com armas de destruição em massa. Pode suicidar-se envenenando o ambiente. Ou pode deixar-se infetar pelo mal que um sistema administrativo sem alma e burocratas sem rosto espalhariam por toda a sociedade (p. 77).

A ideia de catástrofe é-nos, desta feita, apresentada numa lógica de omissão e alienação: “aquilo” que não fazemos para reverter ameaças latentes.

Será razoável sublinhar que a preocupação de David Runciman, em particular no que ao clima diz respeito, encontra suporte na discussão em curso sobre sustentabilidade e a urgência de se descobrir um novo modelo de desenvolvimento económico que estabeleça um compromisso com as gerações futuras ao nível da gestão de recursos.

O autor dedica o capítulo III à revolução tecnológica e à forma como as tecnologias de informação e comunicação se impregnaram na nossa vida diária e, consequentemente, se apresentam como ameaça adicional à democracia.

Não existe, diz-nos Runciman, uma relação direta entre revolução tecnológica e crise democrática. O perigo resulta do uso que é feito das ferramentas disponíveis por parte de determinados atores políticos, apetrechados de importantes instrumentos de manipulação e controlo.

Importante reflexão é feita em torno das redes sociais, apresentadas como ameaça específica (mais uma), enquanto estruturas hierarquizadas e corporativas, onde “habitam” milhares de pessoas, perante uma ilusão de liberdade e igualdade, face a dinâmicas de manipulação e propagação de informações falsas.

As redes sociais fizeram com que a democracia representativa parecesse falsa. As versões falsas que existem online parecem mais reais. Por agora, destruímos uma coisa sem saber o que a vai substituir (p. 133).

O livro evoca, nesta parte, e apesar de não o referir explicitamente, princípios e ideias que associamos ao estudo da esfera pública, enquanto espaço socialmente deliberativo e de troca de argumentos, afetado por elementos degenerativos que o desviam dos objetivos originais.

Feita a análise sobre as três grandes dimensões de perigo à democracia, Como Acaba a Democracia procura, no capítulo IV, regimes políticos alternativos, apresentando três propostas: pragmatismo autoritário, epistocracia e tecnologia (livre e de inspiração anárquica, diríamos).

Através do pragmatismo, os cidadãos estariam dispostos a ceder parte das suas liberdades individuais em benefício de uma proteção coletiva. Seguindo-se a via da epistocracia, o governo seria entregue a sábios.

Embora lhes reconheça algum potencial, Runciman não se mostra particularmente entusiasmado com nenhuma destas alternativas. Contrariamente, encontra na tecnologia livre um campo por explorar. “A tecnologia digital abriu a possibilidade da existência de um mundo de redes auto-suportadas, não necessariamente anárquico” (p. 169), declara.

Como Acaba a Democracia não é um livro de soluções. Não sendo, como assinalámos no início, especialmente inédito na temática que trata, destaca-se de outros trabalhos do género por escolher um caminho distinto. É uma obra de diagnóstico, que assinala problemas à luz de referências e contextos atuais, que nos confronta com as fragilidades intrínsecas a uma forma de organização política em degeneração.

Ao vaticinar a morte da democracia, o autor não a deseja, nem a considera uma fatalidade, afinal. Na conclusão, David Runciman frisa que o rumo que seguirá a democracia, em cada país, dependerá das dinâmicas locais e da forma como elementos que valoriza, e que aqui resumimos, vierem a interagir entre si.

Apesar de enfrentar uma “crise de meia idade” (expressão usada amiúde), o regime democrático poderá reinventar-se, melhorando o seu funcionamento e as suas instituições.

Referências bibliográficas

Runciman, David (2019) Como Acaba a Democracia, Lisboa, Gradiva. [ Links ]

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