Introdução
Apresenta-se neste artigo uma discussão acerca do modo como a Antropologia olha para as drogas e para os seus consumidores1, traçando, de uma forma bastante resumida, uma genealogia da perspetiva sociocultural das drogas, que é uma forma de encarar o uso de substâncias psicoativas necessariamente diferente da visão biomédica, há muito dominante. Não sendo exclusiva da disciplina2, a perspetiva sociocultural é algo inerente à Antropologia, sustentando o modo como encara os assuntos de estudo.
Antes de mais, num campo tão complexo quanto é o das substâncias psicoativas, onde se cruzam diversos saberes e poderes, releva-se a necessidade de questionar conceitos, recusando tomá-los como certos. Termos como «drogas» e «substâncias psicoativas» são aqui entendidos como sinónimos, abarcando, sem exceção, todas as substâncias, preparados ou produtos que, depois de consumidos (ingeridos, fumados, inalados, injetados, principalmente) condicionam o estado mental ou o sistema nervoso central, atuando sobre as funções ou as capacidades físicas e psíquicas, o estado de consciência, o desempenho motor, a perceção sensorial, o humor ou, mais genericamente, o funcionamento cerebral. Nesse sentido, o que define o que é uma droga é a sua capacidade de potencialmente desencadear efeitos psicoativos, e não o seu estatuto legal.
O que fez equivaler o termo “drogas” a determinadas substâncias psicoativas e não a outras foram processos históricos de controlo social (Sherratt, 2007; Musto, 1999; Parascandola, 1995). É importante não perder de vista que droga é, essencialmente, um objeto reificado, o conceito-chave que sustenta o dispositivo médico e legal de combate às drogas ilícitas e o modelo proibicionista que vigora a nível mundial desde a segunda metade do século XX. Este e outros conceitos (adicção, toxicodependência, abuso, etc.) têm uma história e traduzem opções políticas, consistindo em constructos ocidentais que impõem uma ordem económica, jurídica e social e espelham uma determinada visão médico-legal da realidade, em função da qual as diferentes substâncias ilícitas - e somente estas - partilham uma série de características: nomeadamente serem aditivas, alterarem o comportamento e terem efeitos nefastos sobre a saúde física ou mental dos consumidores. De uma forma geral, estes processos históricos tiveram por base objetivos políticos e económicos, e não se fundamentaram tanto em avaliações objetivas e na saúde pública ou individual, sendo que andaram a par da emergência e da afirmação das perspetivas criminal e patológica do fenómeno (Milhet et al., 2011; Valentim, 2000).
A Antropologia e algumas outras ciências sociais adotam uma posição teórica de crítica a estes conceitos, tomando-os como construções sociais, por oposição à postura objetivista ou positivista (Fraser e Moore, 2011, pp. 1-3). Neste sentido, para a Antropologia, a droga não existe a priori (MacRae, 2001) ou na natureza (Derrida, 1995), existe apenas como conceito político e entidade retórica (Valentim, 2001), não como algo que possa ser discutido de forma acrítica (Boothroyd, 2006). A perspetiva sociocultural é um modelo de compreensão do real que tem como ponto de partida a importância dos fatores socioculturais, enquadrando o objeto de análise como algo que ocorre e decorre de um determinado tempo histórico e de uma forma de organização social. No caso das drogas, o que esta abordagem oferece de mais interessante é a sua postura crítica de olhar o fenómeno, questionando a hegemonia do “biopoder”, para usar o conceito proposto por Michel Foucault (1975, 2005). É nessa tradição académica de crítica e de desconstrução que se filiam grande parte dos antropólogos que estudam o assunto, e também este artigo.
Na verdade, não existe propriamente uma “Antropologia das Drogas”. Não enquanto campo de estudos bem definido e consolidado, pelo menos. De facto, com a exceção de The SAGE Handbook of Social Anthropology ( Fardon et al., 2012), que inclui um texto de Axel Klein (2012) sobre a matéria, quem procure uma entrada acerca do tema das substâncias psicoativas em dicionários ou enciclopédias de Antropologia vai deparar-se com um enorme vazio. Tal não constitui surpresa, considerando que a disciplina nunca prestou muita atenção à questão do uso de substâncias psicoativas, sejam estas lícitas ou ilícitas. Embora todas as sociedades ou grupos humanos tradicionalmente estudados pela Antropologia, no presente ou no passado, usem ou usassem substâncias psicoativas - para fins terapêuticos, cerimoniais, rituais, utilitários, recreativos e outros3 - raramente o assunto teve destaque e, muito menos ainda, foi tema central de pesquisas antropológicas e monografias etnográficas. Um bom exemplo disso é a escassez de referências ao uso tradicional de cannabis e de outras substâncias psicoativas por parte dos povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné nos textos produzidos pela Antropologia portuguesa colonial ou pós-colonial. É paradigmático que os missionários do século XVII e os exploradores africanos portugueses do século XIX tenham prestado mais atenção ao uso de substâncias psicoativas entre a população dos territórios portugueses em África do que os etnógrafos do século XX (Calado, 2016).
Não havendo no seio da disciplina uma tradição académica sólida e um corpo teórico consensual e bem enraizado no que às drogas diz respeito, a maior parte das posições teóricas dos antropólogos que estudam os usos de substâncias psicoativas contempla contributos de diferentes ciências sociais e correntes disciplinares várias, incluindo dos chamados “estudos culturais”4 (Race e Brown, 2017). De facto, para os cientistas sociais que estudam as drogas a partir de uma perspetiva sociocultural, as propostas teóricas mais importantes provêm de outras disciplinas que não a Antropologia, sendo que Stanton Peele, Thomas Szasz, Norman Zinberg e Howard Becker são alguns dos autores mais influentes.5
Figuras fundadoras da perspetiva sociocultural das drogas
O psicólogo social Stanton Peele foi um dos primeiros (e provavelmente o mais célebre dos) críticos do modelo biomédico das drogas e dos comportamentos aditivos, que concebe a adicção como um problema de saúde mental, nomeadamente enquanto uma doença crónica do cérebro.6 A partir de uma posição de crítica e desconstrução de conceitos como “dependência” ou “toxicodependência”, a sua extensa obra pode ser lida como um esforço de comprovar que a adicção (de álcool, drogas ilícitas, jogo a dinheiro, compras, sexo, comida, o que for) não é uma doença (no sentido biomédico do termo), antes uma questão comportamental. Em resumo, para o autor não há uma relação causal e inexorável entre usar drogas (ou outro tipo de práticas ditas “compulsivas”) e ficar dependente, sendo que tal é mais provável de acontecer em pessoas afetadas por determinado tipo de sofrimento (“solidão”, “ansiedade”, “depressão”, etc.)7, uma vez que o comportamento aditivo não é mais do que uma forma de lidar com a realidade, nomeadamente quando esta é entendida como algo difícil de suportar (Peele, 1977; 1990; 1998; 2000; 2016).
De Thomas Szasz, figura de proa da chamada “Antipsiquiatria”, merece destaque Ceremonial Chemistry. The Ritual Persecution of Drugs, Addicts, and Pushers (1974), um texto seminal que é simultaneamente uma profunda reflexão e um feroz ataque à chamada conceção médica da droga, assente no positivismo científico. No essencial, a posição defendida por Szasz é a de que as drogas ilícitas devem ser vistas pelo prisma do “bode expiatório”, na medida em que a diferença entre o “uso” e a “dependência” (isto é, o uso transformado em patologia) não é uma questão científica e objetiva, antes uma questão essencialmente moral e política. Mais tarde, o autor publicou Our Right to Drugs: the Case for a Free Market (1993), uma violenta crítica ao modelo proibicionista, que, desde o início do século XX, domina o discurso e a prática em relação a determinadas drogas e que Szasz apelida de “hipócrita” e “imoral”.
Em Drug, Set and Setting. The Basis for Controlled Intoxicant Use (1984), o psiquiatra Norman Zinberg propõe que o efeito de uma droga resulta da combinação das suas propriedades farmacológicas e da forma de administração (drug) com o conjunto de motivações e a atividade simbólica do utilizador (set), bem como com o contexto sociocultural (setting).8 Segundo Zinberg, é isso que explica que se verifiquem diferentes padrões de uso de uma mesma droga, que vão do que chama de “uso controlado” ao “uso compulsivo”. O autor chegou a esta conclusão9 após anos de estudo com dois grupos: um constituído por veteranos da Guerra do Vietname e outro por consumidores de heroína ditos “recreativos”. O que observou no trabalho de campo foi que os militares que no teatro de guerra se haviam tornado manifestamente dependentes de heroína, finda a sua participação no conflito, abandonavam maioritariamente o consumo; e que consumidores experientes de heroína, em determinadas circunstâncias, conseguiam ter um uso “controlado” da substância, sem prejuízo da sua vida familiar e profissional, desafiando o estereótipo tão em voga. Perante tal, Zinberg concluiu que as propriedades farmacológicas das drogas não explicam tudo e que, pelo contrário, há que ter em atenção outras dimensões. No caso da heroína, uma substância tida como particularmente aditiva e, então como hoje, muito associada ao uso compulsivo e cumulativo (em frequência e na quantidade), o autor sugere que para se explicar como é que alguns militares conseguiram descontinuar o consumo de uma forma espontânea ou que um certo tipo de consumidores conseguia usá-la sem que daí decorressem problemas de saúde, familiares ou profissionais, era necessário considerar as suas motivações e representações e também o contexto sociocultural onde se integram. De acordo com o autor, um uso “controlado”, não “problemático”, é possível em função de processos formais e informais de controlo social desenvolvidos no interior do próprio grupo, nomeadamente sob forma de sanções e rituais.
De todas as ciências sociais, a Sociologia foi a disciplina que primeiro estudou de forma mais detalhada e consistente o tema do uso de substâncias psicoativas numa perspetiva sociocultural, tendencialmente em contextos históricos onde a droga começava a constituir-se em problema social e era cada vez mais associada a questões como a exclusão social, o crime e a marginalidade, nomeadamente em contextos urbanos desfavorecidos de algumas cidades norte-americanas. Na esteira da Escola de Chicago e do interacionismo simbólico, que lançaram as bases das “teorias da rotulação”, surgiu uma vaga de autores provenientes da Sociologia que se propôs estudar fenómenos ditos “desviantes”, como a criminalidade e a marginalidade, práticas sexuais e também o uso de drogas ilícitas. Em relação às drogas enquanto objeto de análise, destaca-se claramente Howard Becker, considerado uma das figuras fundadoras da chamada “Sociologia do Comportamento Desviante” e, a par de Zinberg, o autor mais citado por aqueles que estudam o uso de drogas numa perspetiva sociocultural (Goode, 2018). Becker é autor de textos particularmente influentes, como Outsiders. Studies in the Sociology of Deviance (1966) ou Becoming a Marihuana User (1953), nos quais analisa o processo de aprendizagem social através do qual alguém se torna consumidor de uma droga, no caso a cannabis. Segundo o autor, o utilizador de drogas para apreciar a experiência psicoativa tem de estar motivado e ter aprendido previamente a identificar e valorizar positivamente os seus efeitos. Isto é, há todo um saber detido pelo grupo de consumidores, consubstanciado em normas e valores e posto em prática em rituais, que é determinante para a experiência psicoativa.
No fundo, o que Becker, Zinberg, Szasz ou Peele fazem é demonstrar que determinadas drogas são muito mais do que substâncias com propriedades psicoativas e, nesse sentido, o seu carácter inerentemente bom ou mau, problemático ou terapêutico, prejudicial ou benéfico é socialmente construído, isto é, resulta mais de processos sociais do que bioquímicos. Apesar das suas diferentes abordagens, o que os une é a crítica à “medicalização” das drogas e a proposta de uma forma diferente de conceber o seu uso, nomeadamente a partir da perspetiva e das significações do utilizador e com enfâse nas dinâmicas sociais, o que contrastava com a visão então dominante e hegemónica que assentava numa posição de julgamento moral e de patologização, com base na teorização de médicos psiquiatras e criminalistas. Dessa forma, estavam lançadas as bases do que pode ser considerada uma “perspetiva construcionista” das drogas e das dependências (Goode, 2018).10
Dito de outra forma, a importância destes autores reside no facto de terem sido os primeiros que, de uma forma fundamentada empiricamente, questionaram e criticaram o que pode ser apelidado de “determinismo farmacológico”, demonstrando que a conceção médica e legal do uso de drogas ilícitas, que define a prática como algo intrinsecamente compulsivo e que conduz necessariamente ao descontrolo e à desestruturação (familiar, profissional e em termos de saúde física e mental) é extremamente redutora, no sentido em que não é universalmente verificável: pelo contrário, qualquer que seja a droga em causa, existe uma panóplia muito variada de padrões de uso, incluindo padrões absolutamente contrários ao chamado “uso problemático”. Ao reduzir a ação das substâncias psicoativas às suas propriedades químicas e aos mecanismos biológicos que desencadeiam, algumas disciplinas adotam uma postura determinista, de causa e efeito, encarando o uso de drogas como algo que se passa exclusivamente no plano interno, a um nível celular, como se a pessoa consumidora (com as suas expectativas e representações) e o contexto social (com as suas normas, regras e sanções) fossem irrelevantes. Entre este tipo de abordagens, destaca-se o emergente campo das neurociências, muito centradas em processos neurofisiológicos, e outros que procuram predisposições genéticas ou disfunções cerebrais para explicar as adicções, algo que, para um cientista social, não pode deixar de ver visto como um comportamento indissociável do meio social.
Outros contributos para a perspetiva sociocultural das drogas
Outros autores particularmente influentes, na medida em que se destacaram na teorização do uso de substâncias psicoativas tendo em conta fatores socioculturais, são os sociólogos Alfred Lindesmith (1938), autor da primeira teoria sociológica da dependência de drogas, Erich Goode (1970; 1972), Jock Young (1971), Robin Room (1975; 2003), Harry Levine (1978;1984) ou Peter Cohen (1990). Foi, portanto, no seio da Sociologia que surgiram as primeiras abordagens “construcionistas” ao tema do uso de substâncias psicoativas, de que tantos cientistas sociais que estudam a matéria são herdeiros, por oposição às visões de outras disciplinas ou ao discurso reificado do senso comum.
Para além da contribuição esporádica de autores do campo da Filosofia e dos Estudos Literários - como Sadie Plant (2001), Jacques Derrida (1995) ou David Lenson (1995) -, também a Psicologia contribuiu com textos de grande impacto, nomeadamente através de autores como Bruce Alexander (2008) ou Jean-Paul Grund (1993). Por outro lado, muita da produção académica de algumas disciplinas parece demasiadas vezes aceitar termos como “droga” ou “adicção” de uma forma acrítica, adotando uma abordagem exclusivamente centrada no utilizador e na sua personalidade e ignorando, dessa forma, a importância do contexto sociocultural, perspetiva de que a Antropologia se distancia claramente.
Finalmente, não pode deixar de se fazer referência a uma literatura histórica de grande importância, na medida em que demonstra que, no passado, muito do que tomamos como certo no que se refere às adicções não se verificava ou, então, assumia contornos muito diferentes, relevando o carácter político dos processos de controlo social do uso de determinadas drogas. É o caso das abordagens de pendor histórico levadas a cabo por Tobby Seddon (2010), Mike Jay (2010), Virginia Berridge (2013), David Courtwright (2012; 2002), Antonio Escohotado (1998) ou Michel Rosenzweig (1998). O mesmo se passa com as histórias sociais produzidas acerca de drogas específicas, como a cannabis (Gutiérrez, 2016; Duvall, 2014; Booth, 2005), o ópio (Booth, 1996), as anfetaminas (Rasmussen, 2008), o tabaco (Burns, 2007; Gately, 2001) ou as bebidas alcoólicas (Spivak, 2012; Gately, 2008; Williams, 2005).
A perspetiva antropológica das drogas
Ao contrário da Sociologia e da Psicologia, a Antropologia nunca mostrou grande interesse em estudar questões como o fenómeno da adicção per se, tendendo a debruçar-se sobre o uso de produtos psicoativos em concreto entre membros de uma comunidade ou de um grupo social. Como é seu apanágio, na maior parte das vezes, os antropólogos privilegiam o particular em detrimento do geral e focam-se no detalhe (etnográfico) em vez de se centrarem nas generalizações (sociológicas). Talvez por isso, desde o início, o estudo antropológico do uso de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas tivesse seguido caminhos autónomos e separados, dando origem a tradições académicas distintas e, em grande medida, de costas voltadas. Tal é hoje criticado por alguns autores (Hunt e Barker, 2011), que defendem uma abordagem unificadora, embora sejam poucos os que a seguem.11
No caso da abordagem antropológica, entre os primeiros autores que estudaram o uso de substâncias psicoativas, nomeadamente produtos com propriedades alucinogénias utilizados por xamãs e outras figuras em regiões da América Central e do Sul, destacam-se alguns que, a par do biólogo Richard Evans Schultes, faziam trabalho etnográfico mas que estavam também próximos da Etnobotânica, da Arqueologia e da Mitologia, como Weston La Barre (1938), Gordon Wasson (1968), Marlene Dobkin de Rios (1972), Gerardo Reichel-Dolmatoff (1975) ou Peter Furst (1976). Exceto no caso dos campos de estudo do psicadelismo e do xamanismo, o seu impacto não foi particularmente relevante e hoje em dia são muito pouco citados. Dentro de outro género académico, merecem destaque coletâneas multidisciplinares mas de pendor antropológico, como Cannabis and Culture, com edição de Vera Rubin (1975), e Constructive Drinking. Perspectives on Drink from Anthropology, com edição de Mary Douglas (1987), obras de referência sobre a cannabis e o álcool, respetivamente. No caso do uso do álcool, há toda uma literatura que merece ser citada, tendo sido desenvolvida maioritariamente por antropólogos que procuraram fazer do uso desta droga um campo de estudos por direito próprio, a começar por Dwight Heat (1958; 1976), David Mandelbaum (1965), e Craig MacAndrew e Robert Edgerton (1969). Muitas vezes adotando uma perspetiva transcultural, histórica e comparativa (cross-cultural), estes e outros autores procuraram demonstrar que são sobretudo fatores socioculturais que influenciam e determinam os padrões de uso e as consequências associadas à ingestão frequente de bebidas alcoólicas, concluindo que o que o biopoder considera “abuso” do álcool não tem que constituir forçosamente um problema de saúde ou um problema social (Baer, Singer e Susser, 2003).
Na segunda metade da década de 60 e início da década de 70 do século XX, a realidade do mundo ocidental mudou consideravelmente no que ao uso de drogas ilícitas diz respeito, primeiro com a chamada “contracultura” (Cottrell, 2015; Gair, 2007; Farber, 2002) e depois com a diversificação do perfil dos utilizadores de drogas ilícitas. Com isso, passou a associar-se cada vez mais o uso de determinadas substâncias psicoativas à contestação social mas também à transgressão e à exclusão social. Perante estes novos fenómenos, antropólogos e outros cientistas sociais promoveram estudos etnográficos em comunidades de utilizadores de drogas ditos “problemáticos” em meio urbano e desfavorecido e, com isso, a contribuição da disciplina para o estudo do tema fez-se realmente sentir pela primeira vez. De facto, com a aplicação do método etnográfico entre comunidades de utilizadores de drogas (nomeadamente heroína e cocaína), a Antropologia fazia sobressair a sua mais-valia: dar voz aos atores sociais, ajudando a compreender a sua vivência e a realidade social a partir dos seus próprios termos e significações, uma preocupação que está no cerne da disciplina desde, pelo menos, o trabalho pioneiro de Bronislaw Malinowski (1978). O método etnográfico tem-se revelado particularmente útil no estudo dos usos de drogas, sendo utilizado há décadas não só por antropólogos mas por autores de vários campos disciplinares. Assim, entre os autores que primeiro se destacaram por incursões de cariz etnográfico entre comunidades de utilizadores de droga destacam-se antropólogos como Michael Agar (1973), Philippe Bourgois (1995) ou Oriol Romaní (1999; 1997), mas também sociólogos como Dan Waldorf (1973), Marsha Rosenbaum (1981) ou Patricia Adler (1985).12
Um bom exemplo da mais-valia do método etnográfico para o estudo dos usos de drogas foi o que se passou em Portugal a partir dos anos 90 do século XX, quando muitos dos primeiros académicos13 que estudaram o assunto optaram por fazê-lo com base em observações participantes de cariz etnográfico, como os psicólogos Luís Fernandes (1995; 1998) e Maria Carmo Carvalho (2003; 2007), ou os sociólogos Miguel Chaves (1998; 1999) e Susana Henriques (2003a; 2003b). De facto, o método etnográfico parece especialmente indicado para o estudo de populações situadas nas margens ou populações ditas “ocultas”, marcadas pela distância social e pela estigmatização, e tal foi particularmente bem ilustrado nas monografias dos antropólogos Manuela Ivone Cunha (2002) e Luís Vasconcelos (2003).14
A perspetiva antropológica tende necessariamente a distanciar-se da abordagem quantitativa, que é absolutamente dominante, remetendo para segundo plano estudos de natureza qualitativa (MacRae, 2004), que, mais do descrever, procuram compreender e enquadrar os fenómenos. Esta predominância por estudos quantitativos, nomeadamente de natureza epidemiológica, decorre do facto de há muito o uso de drogas ser visto pelo lado problemático, pelo que interessa, antes de mais, ser constantemente medido, monitorizado e avaliado. Não é que esse tipo de estudos não seja importante, obviamente. A questão é que apurar prevalências ou incidências de fenómenos sociais, a partir de amostras, sejam estas aleatórias ou estatisticamente representativas, é sempre um exercício de tomar uma representação pela realidade, sob um manto de uma pretensa objetividade. Em última análise, tudo se resume a números, sobrevalorizando a descrição em detrimento da compreensão da realidade. Como se os respondentes de um inquérito (descritos como N= ) não fossem pessoas e não tivessem agência individual, mas antes constituíssem uma massa homogénea, que age sem intenção, e não atribuísse significados diferentes às mesmas práticas sociais.15
Ainda que a produção antropológica sobre o tema seja teoricamente muito diversificada, para simplificar pode dizer-se que, seja no contexto moderno e urbano, seja no contexto rural não-ocidental, a disciplina tende a procurar explicações socioculturais para tudo o que rodeia a experiência psicoativa (incluindo o efeito das drogas e o comportamento dos seus consumidores), pondo geralmente em causa as relações causais que muitas vezes são tidas como óbvias e inevitáveis entre o consumo de substâncias psicoativas (nomeadamente ilícitas) e problemas sociais, de saúde e criminais (Klein, 2012). É o que resulta de algumas das mais interessantes obras do que pode ser considerada uma “Antropologia das Drogas”, como, por exemplo, Ganja in Jamaica: a Medical Anthropological Study of Chronic Marijuana Use, de Vera Rubin e Lambros Comitas (1975), Consuming Habits. Global and Historical Perspectives on How Cultures Define Drugs, coletânea editada por Jordan Goodman, Paul E. Lovejoy e Andrew Sherrat (2007) e Drug Effects: Khat in Biocultural and Socioeconomic Perspective, de Lisa Gezon (2016).
Naturalmente, esta posição teórica não implica negar ou desvalorizar por completo os processos bioquímicos e fisiológicos que derivam do consumo das diversas substâncias psicoativas. Afinal de contas, como atrás foi dito, o que define uma substância psicoativa é o facto de, quando consumida por seres humanos, desencadear tais processos. No entanto, a posição teórica da esmagadora maioria dos antropólogos que se dedicam ao estudo destas matérias é de que os efeitos, os sintomas e as experiências sensoriais que decorrem do uso de substâncias psicoativas não se podem reduzir à ação farmacológica dos seus princípios ativos e não se explicam apenas em função de fenómenos bioquímicos. Parafraseando Thomas Szasz (1974, p. 4), não é a Química que explica o que distingue a água benta da água da torneira. Pelo contrário, são fatores políticos, económicos, morais, ideológicos e outros que transformam uma substância psicoativa em droga e a investem de certas características e propriedades, incluindo serem consideradas bentas ou vistas como diabólicas. Embora, em grande medida, o modelo vigente de controlo legal e social das drogas assente numa perspetiva médica, na verdade a categorização do que é ou não uma droga não é feita predominantemente em função das propriedades farmacológicas das substâncias e de critérios objetivos como a toxicidade, os efeitos secundários, o potencial aditivo, etc. (Escohotado, 1998). Se assim fosse, algumas das substâncias ilícitas provavelmente não o seriam e com outras (lícitas) passar-se-ia precisamente o contrário, conforme tão bem demonstrou em Drugs - Without the Hot Air: Minimizing the Harms of Legal and Illegal Drugs o neuropsicofarmacologista David Nutt (2012).
A necessidade demonstrada pela Antropologia de a todo o momento relevar o contexto sociocultural e contestar a predominância da dimensão neurobiológica do consumo de drogas é provavelmente inevitável, ainda que tal a uns possa parecer redundante e a outros excessivo. No entanto, tal decorre da particularidade e da originalidade do fenómeno, há muito dominado por uma visão que se afirmou hegemónica e redundou numa patologização e na criminalização do uso de certas drogas. De um modo geral, no paradigma proibicionista a droga tende a ser encarada como algo doentio e o consumo como um crime ou um comportamento marginal, pelo que muita da produção antropológica é, muitas vezes, uma resposta reivindicativa e crítica à perspetiva da Medicina e do Direito, disciplinas que detêm o poder e autoridade de punir, discursar e legislar sobre a substância e o consumidor. Muita da produção da disciplina nesta área é, em grande medida, uma antropologia aplicada, procurando oferecer uma visão diferente do fenómeno e dos seus atores e avançar com explicações dos processos sociais envolvidos assentes em pressupostos diferentes ou complementares. Talvez isso ajude a explicar por que razão a teorização antropológica sobre as drogas incorre muitas vezes num excesso de holismo, muito próximo de um determinismo social, como se, na verdade, tudo se passasse a um nível demasiado macro e societal e os utilizadores de substâncias psicoativas não tivessem agência. Ao negligenciar a perspetiva individual e a especificidade de cada consumidor, a Antropologia pode ser acusada de cometer o mesmo pecado de que acusa as ciências naturais - com a diferença de que umas centram tudo num plano estritamente biológico e outras no plano social.
Portanto, o mais sensato será reconhecer que as substâncias psicoativas têm um lado biológico - são assim classificadas em função de propriedades químicas, que são demonstráveis num qualquer laboratório- mas têm também um lado cultural, na medida em que os seus efeitos dependem e são condicionados pelo contexto social, a forma como são enquadradas legalmente e tudo o que rodeia o consumo, incluindo as expectativas e os propósitos dos consumidores.
As drogas e a antropologia da saúde e da doença
Para muitos antropólogos, o que caracteriza a disciplina é essencialmente o esforço de colocar em causa o que tomamos como certo na vida social que nos é próxima e familiar e, simultaneamente, mostrar que o que consideramos exótico e irracional na vida social que nos é estranha e distante não é assim tanto se visto à luz do contexto sociocultural e da teia de significações aí forjada. No entanto, em anos mais recentes, o projeto unificador de uma certa Antropologia tem vindo a ganhar força e adeptos, mais interessados em encontrar semelhanças e universalismos na diversidade da vida social humana e, inclusivamente, procurando ativamente pontes de contacto com a Biologia e com outras ciências naturais e, inclusivamente, colocar em causa a dicotomia “natureza/cultura”. Não obstante, são ainda as diferenças culturais que mais fascinam os antropólogos, na medida em que, acima de tudo, o que a diversidade humana nos demonstra é a extrema flexibilidade do engenho humano, para usar a expressão de Edmund Leach (1989, p. 19) 16, pelo que necessariamente a nossa (ou qualquer outra) organização social é apenas uma de várias possíveis. E quem diz organização social, diz sistemas políticos, religiosos, quadros legais, enfim, todos os domínios da vida social. Ou seja, muito do que tomamos como certo não se aplica à realidade de outras formas de organização social, e muito do que conhecemos na nossa vida social foi em outros tempos históricos radicalmente diferente. Transportando esta postura para o caso das substâncias psicoativas, o mais interessante é verificar como, noutros contextos, os problemas que tomamos como certos, decorrentes do uso de determinadas drogas, não se verificam e também que a forma como organizamos, regulamos e atribuímos sentido ao seu uso nem sempre ocorreu dessa forma no passado, variando em função de uma história própria e de processos sociais, políticos e morais particulares.
A Antropologia da Saúde e da Doença, por vezes também conhecida como Antropologia Médica, centra-se essencialmente na crítica ao modelo biomédico e na análise de outras formas de medicina, de cura, de práticas clínicas e de relações terapêuticas, assumindo que o que chamamos “medicina” - ou mais concretamente “biomedicina”, por oposição a outros modelos médicos - é apenas uma entre várias formas de abordar a saúde e a doença. A gestão e a resolução de males e problemas de saúde é um dado universalmente verificável, mas as formas de o fazer variam culturalmente, pelo que se deve dar atenção também à dimensão social da saúde e da doença. Ainda que a medicina - entendida num sentido lato e definida como um conjunto organizado de práticas medicinais e terapêuticas - seja um fenómeno universal e comum a todas as formas de sociedade humanas conhecidas, as personagens e as instituições locais aos quais é conferida legitimidade para cuidar, tratar e curar, bem como o modo como o fazem, são fenómenos conjunturais e específicos de cada sociedade. Nessa medida, a doença é culturalmente construída, pois a forma como é conceptualizada, experienciada e lidada tem por base um conjunto de saberes e valores culturais, sem esquecer as posições sociais que os indivíduos ocupam, os contextos temporais, etc. Em resumo, a doença é, então, um facto social e os processos de cura não se podem reduzir a toda uma farmacopeia química (Brown e Closser, 2016; Good et al., 2010; Lock e Nguyen, 2010). A psicossomática (Filho, 2008) e a eficácia dos placebos sustentam a ideia de que há mais coisas envolvidas em qualquer processo de cura do que apenas elementos bioquímicos (Moerman, 2002).
A abordagem sociocultural à questão da saúde e da doença distingue três termos - disease, illness e sickness - que correspondem a três dimensões diferentes. O primeiro é a doença médica, o objeto que a medicina constrói, diagnostica e trata, a que faz corresponder processos patológicos no corpo ou na mente. O segundo é a experiência individual e subjetiva da doença, correspondente à perceção dos sintomas da enfermidade clínica. O último é a condição social do enfermo, correspondente ao estatuto e papel social do que sofre de doenças médicas. A medicina ocidental, preocupada em classificar, de modo a produzir conhecimento, centra-se na disease, enquanto as ciências sociais procuram estudar os comportamentos e os sentidos inerentes à experiência da illness e os processos sociais referentes à sickness (Kleinman, 1995; Scheper--Huges, 1990, 1993; Good, 1994).
A grande crítica da Antropologia da Saúde é a de que a medicina ocidental se centra na doença e não na pessoa doente, parecendo não compreender as dimensões sociais que toda e qualquer processo de doença envolve. A biomedicina é criticada pelo seu etnocentrismo, o seu reducionismo, e pela sua incapacidade de se interessar e procurar perceber os referentes socioculturais dos seus pacientes, na medida em que se fica pela dimensão biológica da pessoa: a doença define-se pela alteração de determinados parâmetros biológicos e somáticos. Outros aspetos - sociais, ambientais, psicológicos ou comportamentais - tendem a ser negligenciados na prática clínica. A conceção biomédica vê nas doenças simples fenómenos patológicos: uma doença - definida em termos de desvios ou disfunções - é um processo bioquímico que afeta um corpo. Assim vistas as coisas, saúde e doença acabam por ser realidades orgânicas independentes dos indivíduos ou dos grupos sociais, dos contextos culturais, do tempo e do espaço.
Para a Sociologia da Saúde e a Antropologia Médica, a conceção biomédica da doença é altamente redutora. As radiografias, as ressonâncias magnéticas ou as análises ao sangue não captam a dimensão psicossocial do doente (Reis, 1998). Por um lado, é negligenciado todo o universo sociocultural da pessoa doente, ignorando o seu carácter individual e não legitimando o seu sofrimento. Por outro, a medicina ocidental recorre a pré-tipologias, (re)organizando o real em conjuntos de atributos que lhe permitam determinar categorias de doentes e de doenças. A medicina ocidental retira o doente do seu tempo - centrando-se na doença, faz do corpo portador um objeto clínico, um ser fora do tempo. Com o seu saber comparativo, a Antropologia encara a saúde e a doença como coisas relativas, culturais, mas também naturais.
Conclusão
A postura crítica da Antropologia Médica pode e deve aplicar-se a uma enorme panóplia de domínios: não só à questão da saúde e da doença, mas também ao género, à exclusão social, a todos os processos de controlo social, de dominação e hegemonia, etc. E às drogas, naturalmente. Nesse sentido, são bem- -vindas todas as posição de desconstrução e que relevem processos históricos e sociais, bem como as que se centrem em questões de poder e de legitimação. Ainda que se verifique uma grande diversidade de posições teóricas (seja porque a Antropologia das Drogas não é ainda uma subdisciplina totalmente consolidada, seja porque é grande a influência de autores oriundos de outras disciplinas), a maior parte dos antropólogos que estudam o assunto filia-se na tradição académica construtivista, por oposição ao empirismo, reclamando que se dê maior atenção à vertente sociocultural dos usos de drogas e das suas consequências. Ainda assim, nem sempre é bem resolvida a questão da agência individual, ficando por reconhecer a importância de não se cair num determinismo, neste caso de natureza holística, acabando por repetir o erro que a disciplina acusa outras abordagens de cometerem.
Onde a grande maioria dos antropólogos conflui é na ideia de que, no que respeita às drogas, os efeitos e as consequências do seu uso não são dados adquiridos ou algo que decorra exclusivamente das propriedades farmacológicas de cada uma, antes resultam de condicionalismos históricos e sociais, nomeadamente do contexto político. A posição construcionista implica olhar para o uso de drogas como um fenómeno que é forjado socialmente, defendendo que é sobretudo o processo de definição coletiva de um determinado fenómeno como um problema social que o transforma em tal. Dito de outra forma, qualquer problema social resulta de uma construção no plano do discurso e da prática, ou seja, não é algo que exista só por si, nem tem nada de intrínseco, ao contrário do que, implícita ou explicitamente, defende a posição determinista, que é há muito dominante.
No entanto, defender que a “droga” é uma construção social não equivale a pensar que o uso de determinadas substâncias psicoativas em determinadas circunstâncias não tem implicações concretas e não se traduza muitas vezes em custos de saúde e outros. A Antropologia, com o seu saber comparativo, e a História, com o seu distanciamento no tempo, têm demostrado que noutras formas de organização social, e mesmo no Ocidente, no passado, o uso de drogas - mesmo aquelas hoje consideradas mais perigosas, como o ópio, a heroína ou o LSD, por exemplo - nada tinham de patológico, de problemático, de ilícito ou de censurável, o que lhes retirava a carga e negativa, e minorava as consequências hoje vistas como inevitáveis como a adicção, que é o aspeto-chave para definir a droga.