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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.240 Lisboa set. 2021  Epub 30-Sep-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021240.06 

Artigos

O bulício provocador: forma desajeitada de demanda de consideração?

The provocative hubbub: clumsy form of demand for consideration?

José Manuel Resende1 
http://orcid.org/0000-0002-7233-2237

José Maria Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0002-1479-2155

1 CICS.NOVA.UÉvora, Universidade de Évora. Largo dos Colegiais 2 - 7000-645 Évora, Portugal. josemenator@gmail.com; carvalhoze10@hotmail.com


Resumo

A experiência escolar é capital nas trajetórias dos jovens, capacitando-os desejavelmente para aceder aos mundos dos adultos. Nela, o relacionamento entre professor e aluno, nos seus múltiplos ajustamentos possíveis, ocupa um lugar de charneira. A redução da distância entre ambos é uma maneira de conservar a novidade que as novas gerações trazem. De dois casos empíricos ocorridos em aula, captados recentemente por entrevista e observação direta, sublinham- -se as habilidades provocadoras reveladas por alunos no (des)ajuste daquele relacionamento. Partindo de uma sociologia pragmatista, ressalta a incapacidade de o professor integrar nas aulas os efeitos subjacentes à imprevisibilidade de certas ações dos adolescentes.

Palavras-chave: educação; adolescência; provocação; pragmatismo

Abstract

The school experience is capital in the trajectories of young people, desirably enabling them to access the adult’s worlds. In it, the relationship between teacher and student, in its multiple possible adjustments, occupies a pivotal place. Reducing the distance between them is a way of preserving the novelty that the new generations bring. From two empirical cases that occurred in class, recently captured by interview and direct observation, the provocative abilities revealed by students in the (de)adjustment of that relationship are highlighted. Starting from a pragmatist sociology, it highlights the inability of the teacher to integrate in class the effects underlying the unpredictability of certain actions of adolescents.

Keywords: education; adolescence; provocation; pragmatism

A educação como projeto para si mesmo

Para as famílias, os atos que proporcionam o nascimento dos seus filhos trazem desafios que ao longo do tempo se mostram instigações diversas com que se vão confrontar desde o seu espaço proximal até ao percurso escolar, que pode ser curto ou longo. Em muitas circunstâncias dos quotidianos dos jovens há reptos que, sendo momentos de convocação dos pais, dão visibilidade a formas de envolvimento destes com a sua descendência. Mesmo quando a solicitação de um trabalho comum entre os adultos que geraram a criança e este novo ser que já está no mundo não é concretizada, pela ausência dos dois ou de um dos seus progenitores, os compromissos com o novo ser não desaparecem, uma vez que este ou vai ficar à guarda de alguém próximo da família de origem ou entregue a uma instituição estatal que tem por missão abrigá-lo no seu interior para uma posterior, e eventual, adoção futura.

É por estes gestos de proteção, de cuidado, isto é, de inclusão num dado meio em que se fixam e circulam adultos que se expressam múltiplos ajustamentos entre estes e os recém-nascidos, que um pouco mais tarde são qualificados como crianças (Garnier, 1995). Estas são as primeiras, e muitas vezes decisivas, marcas que resultam da antropologia do nascimento1 (Arendt, 2006; Boltanski, 2004). E que carregam já manifestações sobre a sua existência. As exteriorizações sensoriais, como o riso, o choro, o balbuciar de curtos sons não só visibilizam a sua presença como propiciam o desejo de estar no mundo com os outros que lhe são próximos.

Como refere Arendt “a essência da educação é a natalidade” (Arendt, 2006, p. 224) (…) uma vez que todos os “seres humanos nascem no mundo” ( ibidem). E ao nascerem no mundo, os novos seres que a ele chegam, vão sendo envolvidos no mundo dos adultos, a começar nas famílias e, mais tarde, nas escolas.

Ao se rodearem de adultos já existentes antes do seu advento, a vida destes seres mais jovens vai trazer desde o início questionamentos resultantes de um sem número de problemas experimentados em diversas situações que atravessam a sua educação desde tenra idade. E a novidade trazida pelo nascimento de um novo ser é a projeção de um ideal de educação que se começa a gerar ainda no ventre da mãe, dando-lhe os seguimentos possíveis proporcionados pelas circunstâncias e as ocorrências acontecidas posteriormente. Ora, o ideal educativo que vai procedendo desde a sua gestação traz para o mundo projeções sobre o caminhar e os possíveis itinerários deste novo ser, que tem como lance principal a sua entrada na esfera dos adultos, após as experiências educativas enquanto criança, e mais tarde como adolescente.

Assinalar o problema por este ângulo não impele que o desenvolvamos nesta análise preliminar. O que importa é assentar que qualquer ser, desde a entrada no mundo pelo nascimento até à sua saída pela morte, vai estando envolvido em múltiplas experiências educativas, e que estas são investidas em múltiplas formas de qualificação, cujas nomeações acompanham, antes de tudo, o trabalho que sobre si é exercido por adultos, pais e/ou outros educadores, que os preparam para a entrada nos seus universos, dotando-os de responsabilidades que acompanham a sua maturação e o seu engrandecimento como seres (Boltanski e Thévenot, 1991; Garnier, 1995), como pessoas preparadas para fazer o comum, isto é, propensas a exercitar os seus atos e a conviver com os outros em formas plurais de comunalidade (Breviglieri, 2007a, 2007b; Derouet, 2000; Resende, 2012; Resende e Gouveia, 2013; Resende e Beirante, 2018). Estar e fazer a comunalidade requer gestos e ações de civilidade (Elias, 1989).2

Alertamos, porém, que dotar destas capacidades todos os seres recém-chegados não significa que a todos seja possível o exercício de capacitações que os adultos esperam de cada um e de todos (Breviglieri, 2012). Nem essas capacitações são garantidas para sempre aos adultos que as exerceram desde a sua entrada neste mundo, e que por razões não esperadas deixam de as poder praticar com responsabilidade numa equivalência absoluta com os outros no mesmo estado; muito menos se pode prever por antecipação que nos projetos educativos experimentados pelos mais jovens nos seus arranjos com os adultos até chegarem ao âmbito dos crescidos, não haja quem revele fragilidades em escalas diferenciadas com dotações capacitantes, umas mais vulneráveis que outras. As vivências comuns são constitutivas destas existências que podem inclusivamente aparecer com composições existenciais diversas (Resende e Dionísio, 2016).

As perturbações que eventualmente menorizam as capacidades dos atores nem sempre permanecem corporeamente com uma frequência continuada no tempo. Não é descartável prever experiências de altos e baixos em pessoas qualificadas como vulneráveis, que em certas ocasiões experimentam limites elevados nas suas autonomias, mas que em outras ocasiões, como no-lo demonstram Weid (2018) ou Mol (2002, 2008), com apoio de objetos e com a intervenção de mediadores conseguem, pelo treino, ultrapassá-las, senão na totalidade, pelo menos parcialmente.

Sejam quais forem as cambiantes das suas trajetórias, a todos têm de ser dadas oportunidades de entrar na esfera dos adultos, uns de forma autónoma, como convém e é expectável que assim ocorra, sem muitos percalços, outros mais dependentes, em função das vulnerabilidades corpóreas que manifestam, da cegueira à surdez, das maleitas psíquicas às dificuldades de locomoção, ou com sujeições ainda mais limitativas em se moverem num mundo comum e no plural (Thévenot, 2006). Ora, atribuir a todos os seres mais jovens os ensejos de ingressarem no terreno dos adultos, em escalas de autonomização diferenciadas, vai implicar sempre da parte de quem lhes está mais próximo, num regime de envolvimento familiar, políticas de proximidade em proximidade (Thévenot, 2017), que não resistem às interrogações suscitadas pelos problemas que surgem nos processos educacionais que servem de guias de orientação em face a futuros cada vez mais incertos e, nesse sentido, também cada vez mais em aberto (Dionísio, 2012; Pappámikail, Vieira e Nunes, 2015; Resende, 2010a; Resende e Beirante, 2014; Vieira, Pappámikail e Resende, 2013).

E é justamente na decorrência das situações que ocorrem em cenários com indeterminações mais ou menos extensas e dilatadas no tempo, que os adultos que seguem de perto os caminhares dos mais jovens não deixam de ter dúvidas e, noutros momentos, angústias relativamente aos futuros que estes vão abrindo em cada um dos tempos presentes e que experimentam consigo mesmo e com os outros. Os ajuizamentos por estes produzidos - adultos e não adultos - no confronto com os problemas que vão surgindo no dealbar dos dias dão corpo ao relativo mal-estar trazido pela modernidade política (Resende, 2010b), tal como é possível equacionar nas reflexões de Arendt sobre a crise endémica da educação moderna.3

Conservar as novidades que estas novas gerações trazem para os projetos educativos a que estão sujeitas, nas famílias ou nas escolas, e, mais tarde, no espaço público, é um dos desideratos que se espera quer da parte dos pais, quer da parte dos professores, quer ainda da parte de outros educadores ou técnicos que intervenham ao longo dos percursos feitos pelos mais jovens (Dionísio, 2015).4 Ora, nem sempre tem sido esse o entendimento dos adultos que lidam com as crianças, e mais tarde com os adolescentes ou com outros seres qualificados como adultos, mas que agem no espaço público com comportamentos assaz provocadores (Breviglieri, 2010), instigantes, considerados como inadequados ou mesmo inconvenientes (Resende e Beirante, 2018).

Na verdade, as travessias entre os espaços em que os seres de grandeza pequena estão sob a proteção ou a guarda de seres de grandeza grande não deixam de sugerir manifestações de inquietação, de perplexidade e de dúvida quanto aos projetos educativos que serviram de base para a sua preparação na entrada no espaço público.5 Arendt (2006) alertava no seu ensaio sobre a crise educativa moderna para dois problemas complementares que nos finais da modernidade política organizada (Wagner, 1996) anunciavam questionamentos que alimentaram distintos debates mais tarde.

O primeiro estava associado a ocorrências críticas que denotavam a falta de cuidado com as crianças e os adolescentes. As ausências de proteção, de apoio ou de amparo a estes seres expressavam-se pela politização de causas suscitadas pela sua exposição pública. A não completude dos seus processos de maturação requeria cuidados acrescidos da parte dos adultos e um deles era, justamente, evitar a exposição pública dos seus corpos. A sua exibição trazia mais problemas que benefícios.

O segundo prendia-se com a gestação de novos modelos pedagógicos que incitavam a estabelecer relações de maior equivalência entre as gerações mais velhas, a dos educadores, e as gerações mais novas, a dos filhos e/ou a dos alunos. A relativa equiparação era expressa nestes novos modelos pedagógicos noutro entendimento relacional a que se deviam comprometer os educadores nas suas ações educacionais e instrutivas com os mais novos.

Reduzir a distância entre estes dois corpos trazia vantagens educacionais. Subia o grau de escuta relativamente às questões e às necessidades trazidas pelos mais novos. E dar atenção a estes novos problemas era desafiante e melhorava o desempenho dos mais novos, uma vez que os adultos desciam até aos domínios das crianças e dos adolescentes.

Tendendo o pendor relacional para uma inclinação mais proximal entre uns e outros, o encurtar das distâncias transportava agora outras questões também decisivas nas modalidades pedagógicas, fossem quais fossem as suas naturezas e aspirações. A principal questão desembocava nas relações de autoridade, que passaram a propiciar maiores interrogações, quer da parte dos mais velhos, quer da parte dos mais novos (Resende, 2010a; Resende e Caetano, 2013). E estas outras indagações nutriam outros ajuizamentos, que mesmo que não fossem inteiramente novos, a sua maior novidade era a sua maior visibilidade em espaços e arenas públicas (Resende e Dionísio, 2005). Neste sentido, essa aproximação podia afetar, corroendo-as, as relações de autoridade entre os mais velhos e os mais novos (Resende e Gouveia, 2013).6

É curioso notar que as reflexões produzidas por Arendt (2006) já eram experimentadas e referidas por docentes nos anos 60, início dos anos 70, em Portugal (Resende, 2003). Mesmo que sob a égide de uma ditadura política, já se descortinavam menções às inovações pedagógicas sugeridas pela Psicologia Educacional, de entre as quais à necessidade de uma maior proximidade no relacionamento entre docentes e discentes (Resende, 2003, 2010a, 2010b). Não sem controvérsia, contudo: se estas eram questões pugnadas nomeadamente pelos professores mais jovens, os seus colegas, por outro lado, elevavam as vozes em nome de uma justificação doméstica mais tradicional (Neuburger, 2000), assente em princípios normativos verticais, garantidores da ordem e da autoridade docente, opondo-se à horizontalidade relacional e respetiva introdução de princípios negociais (Resende, 2010a, 2011), promovida pelos primeiros.

Deste modo, reconhecendo a centralidade da relação pedagógica entre os estudantes e os professores no curso das trajetórias escolares e extraescolares dos mais jovens, procuramos compreender como essa mesma relação é situacionalmente calibrada e estabelecida face a problemas concretos que vão surgindo no desenrolar do curso da ação. Para isso, socorrer-nos-emos de dois casos empíricos específicos, não sem antes, todavia, aludir para a evolução do panorama educacional português mais vasto, traçando, esquematicamente, as suas principais tendências e respetivas implicações escolares, com vista a localizar e situar a relação pedagógica nas suas conceções plurais e, até, por vezes opostas.

Na projeção da maturidade que há de chegar: o lugar das provocações dos adolescentes

A breve fotografia existencial sobre os efeitos do bulício que agitava as escolas portuguesas nos anos 60 e 70 do século XX nunca mais abandonou os processos de escolarização do país. O alcance do desassossego, que a contínua massificação escolar traz para os estabelecimentos de ensino, promovia cada vez mais o questionamento sobre a autoridade dos professores face às modificações na morfologia do estudantado dos Ensinos Básico e Secundário. Os problemas relacionados com o exercício da autoridade docente nos seus múltiplos significados, para além de não abandonarem a agenda das discussões a propósito dos projetos educacionais, tendiam a ganhar cada vez maior notoriedade pública. Os desacatos, as condutas indisciplinares e as manifestações de violência que têm sido relatadas a partir das experiências escolares são índices existenciais que dão corpo às desordens escolares, e, por isso, referenciados como os efeitos mais perniciosos das políticas dos afetos, que tendem a captar maior espaço em múltiplas composições relacionais entre os discentes, os seus docentes, mas também com outros técnicos e assistentes operacionais que trabalham nas escolas.

Na verdade, a partir dos anos 60, “a sobrelotação do espaço do recreio passou a ser uma questão importante para a comunidade escolar estudantil porque os alunos começavam a ter dificuldades em brincar e em jogar sem atropelar os seus colegas” (Resende, 2003, pp. 754). A pequenez dos espaços físicos, a par do aumento da morfologia escolar, não deixa de acompanhar a história da escolarização portuguesa, mesmo após a refundação da democracia em Portugal. Com altos e baixos, há sempre queixas sobre a ausência de espaço suficiente para brincar.

Mesmo após o período mais recente, em que se verifica uma redução da taxa de fecundidade e de natalidade (Almeida, 2016) - dos anos 90 até hoje -, a sua gradual incidência nos diversos ciclos de aprendizagem não faz diminuir os apelos para haver mais espaço, mas também mais tempo, para os corpos estudantis espairecerem, de modo a que se evitem as saídas das escolas durante as pausas letivas. A desigual distribuição do volume morfológico dos alunos pelo País, que resulta do facto de haver zonas geográficas mais populosas que outras, bem como a desigual qualidade dos equipamentos físicos e do espaço, em termos de metro quadrado, das escolas públicas que se espalham pelo território nacional, são elementos a ter em consideração na flutuação e conservação destas reclamações ao longo da história da escolarização portuguesa.

Não é despropositado assinalar que, pela escultura dos tempos sinuosos que acompanham os processos educacionais inscritos na história da escolarização portuguesa, outros reparos são produzidos a propósito dos comportamentos tumultuosos das crianças e dos adolescentes em meio escolar. Para além de interferirem nas aprendizagens dos discentes, a impetuosidade estudantil interferia em domínios relacionados com o respeito e a consideração dos mais velhos. Os alvoroços arrebatados de tais comportamentos, se atingiam os colegas da escola, também não poupavam os professores.

As dinâmicas sociais e políticas das últimas décadas, que se traduziram, inclusive, no prolongamento da escolaridade obrigatória, deram azo, de certo modo, a uma progressiva democratização do acesso ao ensino público e, consequentemente, a um engrossamento da morfologia do corpo estudantil (mas também docente), que se tornou, igualmente, mais heterogénea no que respeita à sua composição. Se é verdade que, em rigor, elas nunca deixaram de estar em cima da mesa, não o é menos que as questões concernentes à calibragem da relação pedagógica entre docente e discente vieram adquirindo espaço e múltiplas facetas, dando lugar a posições que, num mesmo continuum, vão desde a defesa de uma relação mais distante, formal e verticalmente estruturada, até posições que pugnam por uma maior proximidade, afetividade, por uma disponibilidade para o diálogo, horizontalmente estruturado.

O que nesta discussão se encontra em causa é o acesso dos jovens aos vários mundos dos adultos, processo de formação indispensável para a posterior maturação dos mesmos e para o exercício dos seus deveres e direitos enquanto cidadãos nacionais. Essa entrada no âmbito dos fazeres e dos sentidos dos adultos encontra na escola uma das suas mais nucleares vias, sem prejuízo do papel imprescindível que outras instituições, como a familiar, desempenham. Através de uma leitura de pendor, denominemo-la, existencialista da obra de Arendt, vimos que nascer é já estar, imediatamente, num dado meio ambiente povoado por outros. Os estabelecimentos de ensino jogam parte determinante nos processos de capacitação para que cada um possa ocupar o seu lugar no mundo, mas eles não são unívocos nem lineares, ou, pelo menos, nem sempre o são. Como seu reverso, nas múltiplas vias e modos de aceder às esferas dos adultos ocorrem, incontornavelmente, não sendo nisto a escola uma exceção, momentos de tensão, de bloqueio, de embate.

Centrar-nos-emos, de seguida, na análise destes momentos em que as condutas dos alunos adolescentes são vistas como inapropriadas ou desadequadas pelos professores. As sucessivas pesquisas realizadas nas escolas nos últimos 16 anos deram-nos oportunidade de recolher dados sobre os efeitos das agitações recortadas em múltiplos cenários, ocasiões “(in)disciplinares” que, interrompendo o curso expectável das situações, se nos afiguram privilegiadas para refletir acerca da relação pedagógica, da sua distância/proximidade conveniente, das suas fundamentações e valorações pelos envolvidos, mas igualmente das modalidades afetivas e emocionais, tanto quanto morais, que acompanham a ação. O objetivo passará por conseguir demonstrar a relevância da relação entre professores e discentes, sem com isso negligenciar os momentos em que ela se mostra mais fulgurante, isto é, nas disrupções e disfunções que a patenteiam enquanto se tece, destece e volta a tecer. Deste forma, veremos que ela é investida por modalidades de ação e qualificação dispares, o que nem sempre facilita os seus arranjos e rearranjos in situ. São estas tentativas, experimentais, tateantes, hesitantes por vezes, que procuramos seguir, sabendo de antemão que o acesso dos jovens aos fazeres plurais das comunalidades requer um equilíbrio, sempre incerto, instável e precário, entre as formas convencionais escolares, com as suas gramáticas e modos de agir próprios, por um lado, e as novidades (por definição, imprevisíveis) trazidas pelos jovens, por outro. Entre a rigidez dos formatos escolares e os aportes juvenis, muitas vezes disruptivos, exigem-se arranjos que acomodem e coordenem uns e outros.

Tomemos dois exemplos empíricos concretos que ilustram os sentimentos de desrespeito que alguns docentes sentiam a partir das experiências vividas nas escolas. Um primeiro referente a um episódio em torno da imposição para que um jovem estudante devolvesse a bola à professora, e um segundo que aponta para uma situação adstrita à educação para a sexualidade. Experienciados como acontecimentos de cariz contencioso, e, por isso, com uma carga incerta, para os adolescentes são apreciadas como se de um jogo se tratasse (Auray, 2007), tentando beliscar a autoridade da figura do docente, como pessoa que têm pela frente.

O chute na autoridade docente: ser apanhada no jogo ardiloso das palavras

Cenário A7

No outro dia andava um aluno a dar chutos à bola. E esse aluno não vive em família, vive na Casa Pia, pois também temos esses alunos, com seis educadores que educam uma criança. E ele andava aos chutos à bola e gritaram com ele, e eu aproximei-me e pedi-lhe a bola e ele atirou-me com a bola. E eu disse: não é assim que se atira a bola! Por favor dê-me a bola e não chute a bola. E ele chamou-me mentirosa. Que era uma grande mentirosa. “Eu disse: eu sou mentirosa. Aí sim. Vamos! Um de nós os dois, hoje, sai da escola”. Porque achei que não devia deixar-lhe chamar-me mentirosa. Vim pela escada abaixo e dirigi-me ao Conselho Executivo e disse: este aluno chamou-me mentirosa. Eu disse: ele chutou-me com a bola. E o miúdo disse: (eu não chutei com a bola, por isso eu disse que era mentirosa. Eu atirei a bola com a mão.) E aqui surgiu-me uma situação que para mim é fundamental e eu disse assim: (então vamos voltar o filme para trás. Peço desculpa porque realmente não chutou com a bola. Mas atirou-me com a bola e continuo a dizer que não é assim que se atira uma bola. Dá-me a bola na mão. Achei que devia dizer isso). Se por acaso aquela situação não fosse esclarecida ficava cada um do seu lado (incluindo a Diretora de Turma e o CE), mas, na verdade, a situação esclareceu-se. [Resende, 2010, p. 267]

A situação relatada foi obtida em entrevista coletiva com docentes, de diferentes disciplinas, que lecionavam numa escola localizada no município da capital do País8. Era uma antiga escola Industrial, renomeada como escola secundária logo a seguir à redemocratização do país, em abril de 1974, quando por determinação política o Governo português decretou a unificação do Ensino Secundário, assim dando fim à divisão entre liceus e escolas industriais e comerciais, que vigorou ao longo do Estado Novo (1926/1974).9 Esta entrevista decorreu em 2006.

A descrição feita pela docente que intervém neste caso pode ser lida como um sinal de preocupação pelos modos como os alunos falam com os seus educadores. Para a professora, agir desta maneira era impróprio para um aluno na escola. O pedir que lhe entregasse a bola era para evitar a continuidade do frenesim suscitado pelos chutos numa bola.

Não era só o barulho que estava em causa, mas o rebuliço que aquele ato provocava naquele momento. Aquela ação transporta coros de gritos dos colegas que com ele brincavam naquele instante. E para pôr termo ao desarranjo originado pelos chutos, solicita que o aluno lhe entregue a bola, usando a expressão “dê-me a bola e não chute a bola”. E este não desobedece, mas chama-a mentirosa, atirando-lhe com a bola sobre si.

E é por causa da adjetivação aplicada naquele instante que a docente resolve fazer queixa à autoridade da escola. E no decurso da reapreciação daquilo que de facto aconteceu, não deixa de reconhecer que se enganou ao empregar o verbo chutar em vez de ter usado o verbo atirar, uma vez que o adolescente arremessa a bola, gesto que esta sente como uma violência sobre si enquanto pessoa e profissional. E rebobina o filme, como refere, para voltar a avaliar a situação.

Para a professora, o aluno tinha de lhe ter dado a bola, e o ato de lhe entregar a bola na mão é um gesto mais sensível, mais adequado em face da situação que põe frente a frente a educadora e o educando. Atirar com a bola para a docente é um gesto que a professora sente como o descarregar da fúria, por estar a impedir que a brincadeira, que o jogo, continuasse daquela maneira barulhenta. O aluno, irritado com a proibição de não poder continuar a chutar com a bola, tem um comportamento impetuoso e usa ardilosamente os significados verbais empregues pela docente para lhe trocar as voltas, provocando a sua autoridade ao pôr em causa a veracidade da declaração do adulto. Na verdade, ele atira-lhe a bola porque usa a mão. Chutar a bola requer passar o ato da mão para o pé. E, para este, a história estava a ser mal contada, e por isso a professora estava a ser desonesta, uma vez que o adolescente se sentia desconsiderado junto dos colegas. Sentiu-se ofendido pela falsidade acometida sobre ele como pessoa. Chutar não é a mesma coisa que atirar, mesmo que o arremesso da bola para o adulto naquela circunstância possa ser por ele considerado um gesto impróprio.

Mas acho também que é importante compreender que eles hoje tenham agora outro vocabulário, que joguem com o nosso vocabulário, como o caso da bola, pois não chutei e atirei com a mão, é uma maneira muito habilidosa de tirar o tapete e de contestar o professor e isso eles têm uma habilidade enorme para isso tudo… [ibidem, 267]

No desfecho da entrevista realizada, a docente confessa abertamente que em reflexão posterior a todos aqueles momentos se apercebeu de que foi apanhada num jogo de significações que se retiram de uma ineficiente aplicação dos verbos, em face daquilo que realmente esta presenciou naquela ocasião. E não estava devidamente prevenida para evitar ser surpreendida perante a armadilha lançada velozmente pelo adolescente censurado, junto dos colegas.

Esta experiência deu-lhe conta de que as existências escolares contêm momentos em que os adolescentes ensaiam provocações repentinas que desarmam os adultos. Reconhece que o jogo com as palavras desta forma “habilidosa” tira o tapete ao educador.

E o significado de “tirar o tapete” denota fazer escorregar a autoridade, porque este fica sem pé. Ficar sem o pé é deixar de sentir o pé assente na terra. E, como tal, sentiu-se embaraçada. E as situações embaraçosas são espinhosas para os docentes enquanto figuras escolares grandes. Entre outras inquietações, os embaraços confundem e suscitam perplexidades, dando o flanco ao outro lado para desmanchar planos de atuação em nome da preservação do exercício da autoridade.

A verticalidade do corpo, correspondendo à verticalidade da assunção da autoridade, balança, sem que a professora tenha dado conta do abanão que a desequilibrou perante os alunos que presenciavam a cena. Naquele instante, a autoridade cai por terra, desfaz-se, e para evitar que, no futuro, tal queda não aconteça de novo tem de estar atenta aos efeitos destes trocadilhos. É preciso contar com as habilidades dos discentes, mesmo quando estes moram numa instituição que acolhe menores que não podem ter a guarda dos pais. É como este adolescente é apresentado durante a entrevista.

O humor pode ser corrosivo: galhofar com o escárnio de um gracejo

Cenário B10

Diogo: O professor está a dizer que não devemos experimentar ter relações sexuais com vários parceiros porque somos tarados? Não acha isso um abuso?

Professor: Eu não disse isso nem chamei tarado a ninguém, só me coloquei contra a promiscuidade sexual, o que é diferente…

Diogo: Ah… é uma palavra cara para dizer tarado.

Professor: Entenda como quiser…, mas entendeu mal, não é esse o sentido que quis dar à palavra “promíscuo”. O que quis dizer é que os jovens devem precaver-se quando iniciam a vida sexual, mas é claro que ao multiplicarem os parceiros sexuais também multiplicam os riscos. Penso que isto não é difícil de entender, pois não?

Diogo: Entendi o que o professor disse, mas não devemos então ter várias experiências para… sei lá… treinar?

[A pergunta gera uma gargalhada geral. O professor teve alguma dificuldade em reatar a aula. Por entre piadas e risos incontidos decorreram cerca de 15 minutos até tudo regressar à “normalidade” e após o professor ter ameaçado expulsar da aula quem persistisse nessa atitude.] [Notas de observação etnográfica, Diário de Campo, Escola B2, maio/2016]

Esta narração resulta de uma aula dedicada a discutir questões relacionadas com a educação sexual. O observador, com autorização formal da direção da escola e do docente incumbido de animar esta sessão, está presente e destaca o episódio que regista no seu diário de campo. Tudo acontece numa turma do 9.º ano de escolaridade. É o ano terminal do Ensino Básico. Os alunos desta turma são todos adolescentes e a escola situa-se num município do interior centro, mais distante das grandes cidades que povoam o litoral do país.

No domínio da educação para a sexualidade há várias entradas possíveis que os docentes seguem nestas aulas. Não há um programa delineado com o modelo similar ao das disciplinas que estão integradas no cardápio escolar. No plano programático há um feixe de problemas, que são considerados tanto pelo Ministério da Saúde, como pelo Ministério da Educação como questões fundamentais a tratar, muitas delas ligadas às transformações corpóreas que acontecem ao corpo das adolescentes e dos adolescentes na transição entre a idade infantil e juvenil (Resende e Beirante, 2018).

Na escolha dos temas a tratar nestas sessões, os professores que em cada ano letivo se disponibilizam para os trabalhar em conjunto com os alunos, há um que se destaca e que se prende com as doenças infectocontagiosas que resultam de práticas sexuais arriscadas. É o tema da qual resulta a discussão apontada no Cenário B. Ora, o risco em geral, e os comportamentos arriscados, em particular, são eixos problemáticos transversais que são experienciados pelos adolescentes no seu dia a dia.

Estão em idade de aquisição da maturidade esperada, e os caminhos para lá chegarem são múltiplos. E sejam quais forem esses itinerários e os seus momentos, as experiências não se libertam, muitas vezes, de estarem ligadas ao desejo de experimentarem sensações novas, ou pelo menos diferentes de tantas outras que atravessam o seu quotidiano. O desejo sexual é uma dessas sensações.

E as conversas sobre as experiências sexuais são excelentes momentos para explorar estas situações, com picos de aventuras que se apresentam em múltiplas composições possíveis quer nas escolas, quer nos espaços intercalares aos estabelecimentos de ensino (Breviglieri, 2007a, 2007b; Resende e Beirante, 2018). Em vários dos episódios partilhados, os auges das histórias contadas não deixam de oscilar entre a revelação de ocorrências íntimas em círculo fechado, e os relatos em que os autores ou autoras contam em voz alta como são frequentes as suas práticas sexuais, retratando quem foram as suas parceiras ou os seus praceiros nestas aventuras, conhecidas ou desconhecidas de quem escuta estas histórias.

Não é de descartar que a exposição em matérias com esta tenha custos com diversas incidências, para os próprios e para os outros, dentro e fora da escola. E as armaduras que servem de escudo para as evitar, ou para reduzir os seus efeitos nos emissores, são as performances usadas aquando do seu relato, que tanto pode conter a ironia, o tom escárnio - troça, zombaria -, um não levar a sério aquilo que foi praticado e como foi realizado, ou tons mais eufóricos e exibições narcísicas, em que a admiração sobre si e o seu feito enche de felicidade quem narra.

O próprio exercício da philia (amizade) que os alunos investem na escola ao longo dos anos letivos, propicia estas aprendizagens, mas também as oportunidades para as relatarem, em especial aos outros que contam realmente (Resende, 2010b). Na verdade, estando na escolarização de modo prolongado, e, por vezes, nas mesmas escolas, a natureza colegial das ligações dá origem a amizades entre si que tendem a ter continuidades, sem temporalidade marcada. E essas amizades fixam-se nestas afeições ou passam para outras experiências mais íntimas, no plano do namoro experimentado com intensidades díspares (Resende e Caetano, 2012).

Isto é, por serem atos com efeitos indeterminados, e mesmo incertos, até no plano do envolvimento a dois, que pode ou não incluir uma implicação com promessa amorosa futura ou mesmo desejada naquele momento, muitas e muitos aspiram que aqueles se mantenham resguardados das escutas gerais. Preservar estas histórias em círculos restritos significa que estas entram no plano do segredo (Simmel, 2004). O lado sigiloso é garante da redução da partilha, um precaver de que a história se espalhe pelo ambiente escolar e se perca o controlo.

E guardar o segredo requer recato de quem conhece a história. Mas também contar com a cumplicidade daquele ou daquela a quem não está vedado o conhecimento dos seus pormenores, que não esmurrassem o seu ser, ou melhor, que não estilhaçassem a sua pessoa. Assim, o narrador põe à prova a fidelidade de quem tem de demonstrar que o vai acompanhar até às últimas consequências, mesmo quando se manifeste algum desentendimento entre quem conta a história e quem a guarda a sete chaves.

Por outras palavras, falar das práticas sexuais em público é tarefa delicada. E a delicadeza é ainda maior quando a questão é levantada numa sala de aula, que requer a participação de quem está presente. A assunção do cuidado a ter quando o objeto da discussão passa pelo número de parceiros envolvidos nessas práticas eleva a sensibilidade do problema a tratar em comum.

A ocorrência observada e relatada no cenário B expõe o melindre da questão com a agudeza exibida pelo aluno que intervém no momento em que o docente designa como promíscuo o comportamento sexual associado a múltiplos parceiros ou parceiras. Ora, o contrapeso que o adolescente encontra para interpelar o adulto é ligar a conotação incitada por este a comportamentos classificados como condutas taradas.

Ardilosamente, o aluno joga com as palavras. Atribuindo à variedade do número de parceiros sexuais uma conduta promíscua, que o docente qualifica como comportamento a evitar em face de múltiplas razões que estão aqui omissas, o aluno atira-se a este juízo normativo revelado pelo adulto, insinuando que este pretende subliminarmente “atirar à cara” da audiência que quem assuma tais condutas exibe uma determinada tara. O desejo da experimentação sexual com múltiplas pessoas, em tempos sequenciais ou no mesmo momento, alardeia ações impróprias, conotadas como um defeito moral, isto é, uma conduta que fere os bons costumes, que agride aquilo que é habitualmente expetável.

É uma consideração que golpeia uma dada conceção de intimidade, que investida em conjunto é perdida na consumação do ato. O prazer da intimidade é deitado fora na misturada que é fazer sexo com múltiplas pessoas em momentos distintos, como parece indiciar a provocação feita pelo discente durante a sua indagação.

A insistência do adulto na tentativa de reduzir o mal-entendido (Resende, Gouveia e Beirante, 2018), ou possíveis equívocos futuros, conectando a promiscuidade com a multiplicação dos riscos sexuais, isto é, ter práticas sexuais com vários parceiros pode favorecer a exposição à contaminação de uma ou várias doenças sexualmente transmissíveis, não é atendida pelo interlocutor que o convoca para a celeuma. Na verdade, o mais novo alicia o mais velho a jogar em outro tabuleiro.

O desejo é incitar, mais do que exigir, esclarecimentos sobre a ordem regressiva do termo que lhe é oferecido pelo professor em substituição de tarado. Isso este compreendeu logo de início.

O que pretendia era zoar (Werneck, 2015), isto é, gozar com o parceiro de discussão, num jogo de equivalência, impossível de se manter para sempre. Mas aquele era o momento da fanfarrice, da jactância da bazófia, uma vez que tinha público: os seus colegas e os seus amigos da turma. E o desafio segue até este criar o desatino no docente, baralhando a ordenação da aula por este preparada.

E conseguiu atrapalhar tudo com a tirada da associação feita entre as múltiplas experiências sexuais e o treino sexual. O “sei lá… treinar” arremessado na altura, para dar corpo ao efeito benéfico para os jovens de estes terem tido diferentes experiências sexuais com distintos parceiros, é o suficiente para o interpelante se sentir no centro da atenção de todas e de todos na turma.

Consegue com a risada geral gastar um tempo alargado da aula. Consegue suspender a aula e tirar do sério o professor. Este tem de se agarrar, em última instância, à ameaça de expulsar da aula os alunos tumultuados, para que a algazarra termine de vez.

A fineza em tratar da questão sexual é substituída pela piada, pela projeção da chalaça. Na verdade, a normalidade em tratar de um assunto desta natureza é totalmente revirada de pernas para o ar. Para substituir o debate sério do problema assinalado pelo adulto, o adolescente opta pelo desafio em aliciar a autoridade e a ordenação das grandezas na sala de aula, para o plano de jogar com uma e outra até aos limites possíveis.

É a dificuldade em admitir a existência destas fronteiras frouxas nos modos de acomodar uns e outros nos espaços dos estabelecimentos de ensino, e que é a consequência da aquisição do amadurecimento da adolescência, que conduz os professores à incompreensão de muitos dos comportamentos assinalados como desajustados. Estes mostram dificuldades em desarmá-los no momento em que os episódios surgem nos tempos letivos e extraletivos.

Talvez o lado inesperado destas situações, somada à criatividade do agir adolescente, sejam ingredientes suficientes que dificultam o encaixe dos seus efeitos no adulto quando tais ocorrências surgem nas escolas. Dão mostra que não estão equipados, ou não exibem os apetrechos ajustados para jogar estes desafios lançados pelos adolescentes.

Fechando a porta deixando-a entreaberta

A centralidade que as experiências escolares detêm no (in)sucesso que os adolescentes apresentam na transição para os mundos dos adultos passa fundamentalmente pela sua responsabilização e capacitação para se envolverem na constituição das comunalidades no plural (Thévenot, 2014). Para tal, é preponderante repensar os múltiplos ajustamentos possíveis no que toca à relação pedagógica entretecida entre docentes e discentes. Em todo o caso, se concedermos em reconhecer o quão fundamental é, para o processo de aprendizagem, a conservação das novidades trazidas para a cena pelas gerações mais jovens, ao que acrescem as indeterminações e incertezas que lhes estão associadas, tanto do lado do professor como do aluno, então há que pensar para lá dos códigos normativos convencionais que organizam a relação pedagógica segundo um eixo vertical, assente na ideia de autoridade do mestre.

É neste contexto que se observaram, de há décadas, esforços no intuito de diminuir a distância entre um e outro, postulando antes modalidades pedagógicas proximais, ou aquilo que, mais globalmente, se pode designar como uma guinada para uma política dos afetos (Resende, 2019). A proximidade desejada para um acompanhamento que se quer formador, num sentido lato, dos jovens estudantes, é acompanhada de momentos de tensão e, possivelmente, de dúvida quanto à conduta adequada do professor.

Neste pequeno texto trouxemos dois casos empíricos onde, como se viu, os adolescentes demonstram habilidades provocativas que desconcertam a conduta do professor, sem que este consiga absorver os seus efeitos no curso da atividade letiva, e com isso impedir o bulício e a desordem. Com efeito, os formatos escolares convencionais, não raras vezes, são incapazes de fazer fluir o curso da ação e de o ordenar em torno de comunalidades coerentes e coesas, de onde a i(nte)rrupção de ocasiões de incerteza. Assim, do ponto de vista do professor, o comportamento provocador aparece como desajustado, alheio ao expectável no quadro das convenções vigentes na situação de aula, adquirindo o valor de ofensa pessoal. Por seu turno, para o jovem, trata-se de se fazer reconhecido e considerado nas suas demandas, desejos e valorações, tanto pelo professor como pelos seus pares, o que implica, por vezes, saber jogar, com sageza, com as regras de conduta que lhe são impostas, relativizando-as sem as enfrentar ostensivamente. No fundo, para ele, trata-se de um lance de jogo, do que se retira a existência de um mosaico situacional (Dewey, 2007) composto por modos de envolvimento na ação plurais (Thévenot, 2014), os quais originam momentos de incerteza quanto ao que está em jogo e, consequentemente, da conduta adequada a seguir, mas onde será talvez possível acomodar as suas demandas.

Trazendo à colação apenas dois casos, por motivos de economia de espaço, é evidente que as linhas interpretativas e analíticas esboçadas devem ser lidas com a devida prudência. Estivemos perante dois recortes particulares, circunscritos no espaço e no tempo, pelo que não foi nosso desígnio extrapolar em generalizações, sequer encetar e sistematizar comparações, o que tampouco seria possível. Porém, os casos relatados, embora apresentados como realidades pontuais, encontram respaldo noutras anotações diarísticas e depoimentos dos atores envolvidos, recolhidos aquando das pesquisas. Quer isto dizer que, pese embora as limitações óbvias deste excurso, que invalida que se arrisque a construção de modelos ou de explicações mais gerais, a seleção e leitura dos relatos não foi cega ao contexto mais vasto de dados do qual fazem parte, precavendo-se contra a violação do espírito geral dos mesmos. Ademais, há ainda a reconhecer que separar, mesmo que em grau relativo, cenas da vida escolar não significa isolá-las. Ao contrário, poder-se-á beneficiar dessa separação, desde que respeitadas certas precauções, na medida em que cada caso pode constituir um tubo de ensaio, cumprindo um propósito laboratorial de experimentação interpretativa e de captação de novas entradas analíticas que, aliás, podem ser testadas com o restante corpus de dados. As opções metodológicas e analíticas plasmadas no texto tiverem subjacente esta convicção, a ser testada futuramente, de que a exploração de um cenário refrata no restante corpus.

O quadro de referência teórico-metodológico das sociologias de orientação pragmatista afigura-se uma alternativa capaz de pensar estas situações, tal como são experienciadas, evitando reduzir a sua densidade e complexidade a regularidades sob a forma de leis sociais.11 Existencialmente orientada, privilegiando a ação situada concreta, na espessura temporal que lhe é própria, ela é inevitavelmente reenviada para a observação detalhada dos corpos presentes envolvidos no curso sequencial da atividade, para as suas recetividades sensoriais e tonalidades afetivas. Vendo na relação social algo iminentemente tátil, experimental, pudemos averiguar como a provocação, nas suas variadas nuances - do gracejo escarnecedor ao trocadilho -, é acompanhada de sentimentos como a ofensa e o embaraço, de atmosferas como a agitação e a galhofa e de modos de estar e conduzir a situação ambíguas e incertas. A provocação, quando hábil, é uma forma de desarmar o professor, de o deixar sem jeito, sem modo de agir seguro e determinado, retirando-lhe assim o chão prático sobre o qual repousa a sua autoridade, não tanto afrontando-a diretamente, com o que a provocação deixaria de o ser para ser antes um golpe ou ataque, mas incidindo-a de viés, nem num, nem noutro, mas entre os vários regimes de ordenação presentes.

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1 No seu livro Condition de l’homme moderne (1994), Arendt dá relevo especial à ação, ligando-a à condição humana desde o nascimento. Como refere a autora nesta obra, “o início inerente ao nascimento só pode ser sentido no mundo porque o recém-chegado possui a capacidade de fazer algo de novo, ou seja, de agir. Como sentido de iniciativa, provindo do nascimento, a ação é inerente a todas as atividades humanas. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, em oposição à mortalidade, é sem dúvida a categoria central do pensamento político, em oposição ao pensamento metafísico” (Arendt, 1994, p. 43). Ora, o conceito de ação é um dos conceitos fundamentais em Sociologia. Como assinala Weber logo no início da obra Economia e Sociedade, “por ‘ação’ deve entender-se uma conduta humana (quer consista em um ato externo ou interno, quer consista numa omissão ou permissão) sempre que o sujeito ou os sujeitos lhe associem um sentido subjetivo. A ‘ação social’, portanto, é uma ação em que o sentido mencionado pelo seu sujeito é referido à conduta de outros, sendo guiado por ela no seu desenvolvimento” (Weber, 1993, p. 5). É seguindo estes raciocínios que, desde o nascimento, o bebé - o ser novo que chega ao mundo pelo nascimento -, e mais tarde a criança, sob o cuidado dos pais, ou sob a proteção da creche ou do jardim infantil, passam a ser qualificados na mesma dignidade humana, tal como são os adultos justamente porque agem, e porque a sua palavra, pela voz, lhes garante o direito de serem escutados. Na obra Ce dont les enfants sont capables. Marcher XVIII, Travailler XIX, Nager XX, Pascale Garnier mostra que as aquisições de autonomia e de igual equivalência na dignidade humana resultam de transformações históricas que ocorrem desde a época das luzes, e com o apoio das aprendizagens trazidas quer pelas ciências médicas, a biologia, mas também mais tarde pela psicologia infantil, pela pedagogia, etc. O trabalho de qualificação a partir da idade biológica vai ganhando peso político. Como esta socióloga acentua, “a criança representa uma incerteza sobre a identidade dos seres, uma mudança de estado ligado a um futuro. Os jovens estão todos igualmente ligados a este poder natural que fará deles ‘grandes’, qualquer que seja a forma da realização da sua humanidade: cidadão esclarecido, soldado robusto, homem de ciência, artista. Esta sujeição à idade responde a uma exigência de justiça porque imprime naturalmente um novo estado aos seres, em lugar de os imobilizar num estado determinado pela sua subordinação doméstica. Mas a infância é, por excelência, este momento em que todos os homens são iguais na sua indeterminação” (Garnier, 1995, pp. 292-293). A escolarização, com a sua forma escolar moderna ( Vincent, 1994), é politicamente inventada justamente para ir trabalhando no sentido de reduzir, ou pelo menos acautelar as consequências esperadas ou inesperadas da indeterminação em futuros, que no presente estão cada vez mais em aberto (Vieira, 2015).

2 Como mostra o sociólogo alemão no 1.º volume do Processo Civilizacional (1989), a economia das pulsões é uma marca do processo civilizacional europeu que se inicia gradativamente na Europa da época do Renascimento.

3 John Dewey nas suas reflexões sobre Democracia e Educação (2007) dá nota de preocupações semelhantes, uma vez que “em educação, a distância a percorrer pode ser encarada como temporal”. A intervenção do tempo nos processos educativos não é linear. Na verdade, muitas vezes quem observa estes movimentos negligencia “a circunstância de que no crescimento existe um caminho a percorrer entre o estádio inicial do processo e o completar do mesmo; de que existe algo que intervém. Na aprendizagem as capacidades existentes do aluno representam o estádio inicial e o objetivo do professor o limite remoto. Entre os dois situam-se os meios - isto é, as condições intermediárias - atos a serem praticados; dificuldades a serem superadas; instrumentos a serem utilizados. Apenas através deles, no sentido literal do tempo, as atividades irão alcançar uma conclusão satisfatória” (Dewey, 2007, p. 120).

4 Ir ao encontro da educação como um projeto para si mesmo é conferir um valor real ao “reconhecimento do papel do interesse no desenvolvimento educativo”, que para Dewey “leva a considerar individualmente as capacidades específicas, as necessidades e as preferências das crianças. Quem reconhecer a importância do interesse não irá assumir que todos os intelectos funcionem do mesmo modo, só porque têm o mesmo professor e o mesmo manual. As atitudes e os métodos de aproximação e resposta variam com a atração específica do mesmo material e esta varia, por sua vez, com a diferença de aptidões naturais, das experiências passadas, dos projetos de vida, entre outras” (Dewey, 2007, p. 122).

5 A utilização das expressões “seres de grandeza grande” e “seres de grandeza pequena” ressalta da terminologia no livro de Boltanski e Thévenot (1991), referindo, não a idade ou dimensão objetiva dos seres, mas a hierarquia relacional numa dada ordem de grandeza específica. São estados dinâmicos, e, por isso sujeitos a provas, cujas provações os levam a garantir a ordem de grandeza ou a serem desqualificados dessa ordem. Estas provas têm de ser apresentadas de modo desingularizado, elevadas na sua generalidade, para garantirem o seu valor no quadro de um sistema de equivalência estabelecido em cada grandeza e entre si. Daí a importância em considerar acontecimentos e experiências situadas onde, por razões dilemáticas, por vezes controversas, os seus juízos são questionados por outros. Na escola a grandeza grande atribuída aos docentes não está em si mesma garantida, uma vez que esta sua grandeza pode ser posta em causa por pais, outros educadores ou pelos alunos.

6 A este propósito, Dewey avisadamente explicita que “a origem do ‘problema da disciplina’ nas escolas é que o professor tem, frequentemente, de passar grande parte do tempo na eliminação das atividades corporais, que afastam o espírito da matéria. Premeia-se a quietude física, o silêncio, a rígida uniformidade da postura e do movimento e a simulação maquinal das atitudes e do interesse inteligente. A tarefa do professor é manter os alunos nestas condições e punir os desvios inevitáveis que ocorrem. (…) E continua a sua reflexão ao nomear o corpo do aluno como objeto negligenciado pelo docente quando nas suas lições este não mobiliza “canais de atividade produtiva organizados”; uma vez que sem estas atividades “as crianças fisicamente ativas tornam-se irrequietas e indisciplinadas; as mais tranquilas, também apelidadas de conscienciosas, gastam a energia que têm na tarefa negativa de reprimirem os seus instintos e as suas tendências ativas em vez de a aplicarem na tarefa positiva de planear e agir construtivamente; são desta forma, educadas, não para a responsabilidade da importância e dignidade do uso das capacidades do corpo, mas para um dever imposto, que não lhe confere liberdade de expressão” (Dewey, 2007, pp. 131-132).

7 O material empírico que suporta a presente reflexão referente ao cenário A advém do trabalho de pesquisa empreendido em quatro escolas públicas portuguesas para explorar e analisar os processos de socialização política dos estudantes do ensino secundário público em Portugal: quadros normativos, dispositivos e regimes de ação, cuja recolha de dados foi feita de 2004 a 2007. Este cenário foi captado em entrevistas aprofundadas realizadas a pares de docentes que entre 2004 a 2006 lecionaram pelo menos uma disciplina no Ensino Secundário. O número de grupos de docentes entrevistados variou em cada uma das 4 escolas espalhadas pelo país que entraram no projeto. Em dois dias foram organizados dois fóruns e os docentes respondiam a questões de dois guiões de entrevistas. No primeiro dia o guião foi organizado à volta do tema “A cidadania e a escola moderna: contexto e papel da educação cívica”. No segundo dia o guião versou o tema “A educação cívica e o currículo: temas e abordagens”. Os professores convidados lecionavam disciplinas cujos programas tocavam assunto controversos debatidos nas turmas no âmbito do programa Educação para a Cidadania, em vigor à época. As escolas selecionadas são contrastantes entre si relativamente à estrutura social do seu estudantado e estão localizadas em 4 concelhos distintos: uma está situada a norte - num concelho interior do distrito de Vila Real -, outra está inserida num concelho a sul - num concelho do distrito de Faro, mas perto da costa -, e as outras duas são escolas que pertencem à área metropolitana de Lisboa - uma está integrada no concelho de Lisboa e a outra no concelho de Oeiras. O projeto foi desenvolvido no âmbito de uma bolsa de pós-doutoramento atribuída pela FCT - SFRH/BPD/20953/2004.

8 Para uma descrição ainda mais detalhada da metodologia aplicada, consultar Resende (2010a).

9 Como referem Almeida e Vieira (2006) “entre nós, a emergência da revolução traz consigo promessas de maior igualdade e justiça social: logo após 1974, abrem-se novas perspetivas para uma efetiva democratização escolar. A gestão democrática dos estabelecimentos de ensino autonomizada da tutela do Estado; a unificação do 3.º ciclo, terminando com a divisão tida como socialmente seletiva entre liceus e escolas técnicas (…)” mais o alargamento da rede pública de escolas são “as expressões mais significativas do princípio unificador da igualdade de oportunidades no sistema educativo. Trata-se, ainda, do cumprimento do desígnio da integração de todos na escola. E agora, na mesma escola” (pp. 65-66).

10 O excerto trazido para o texto resulta de uma observação participante realizada pelo autor de uma tese de doutoramento em Sociologia (FCSH/UNL) a uma turma onde decorria uma aula sobre a educação para a sexualidade. A tese foi defendida este ano. O seu autor, David Beirante, deu-nos autorização para a utilizar nesta reflexão que aqui desenvolvemos. Através de uma metodologia qualitativa de profundidade, de cariz etnográfico (observação prolongada, entrevistas, análise documental), o David questionou como os professores e profissionais da saúde, nomeadamente profissionais de enfermagem, (des)coordenadamente ajuízam e gerem as situações com que se defrontam quotidianamente nas escolas, que competências mobilizam e que dispositivos criam para educar adolescentes e jovens na sexualidade. A abordagem teórica comummente designada por sociologia pragmática orienta o itinerário analítico realizado. Para uma descrição mais detalhada da metodologia aplicada, consultar Beirante, D. (2020). Afigura-se-nos pertinente trazer à colação este caso, visto ter sido recolhido numa pesquisa inserida no quadro teórico-metodológico que aqui perfilhamos. Além disso, a tese referida foi orientada por um dos autores, do que resulta um conhecimento maturado no panorama geral de onde resulta este cenário concreto.

11 Em termos (excessivamente) esquemáticos, diremos que a perspetiva pragmatista aqui adotada distancia-se das abordagens sociológicas funcionalistas, que olham a escola a partir das funções que ela desempenha na coesão social, mas também das aproximações estruturalistas, que analisam a constituição da ordem escolar através das posições sociais que os seus atores ocupem. Contrariamente às primeiras, as sociologias pragmatistas primam pelo pluralismo composicional, e contrariamente às segundas, privilegia as situações concertas em que os atores assumem condutas particulares perante os outros.

Recebido: 20 de Novembro de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2021

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