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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.240 Lisboa set. 2021  Epub 30-Sep-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021240.08 

Recensão

Recensão: História global de Portugal, de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva

Xosé M. Núñez Seixas1 
http://orcid.org/0000-0002-6951-366X

1 Departamento de História, Universidade de Santiago de Compostela. Praza da Universidade 1 - E-15782 Santiago de Compostela, Galiza, Espanha. xoseml.nunez@usc.gal

Fiolhais, Carlos; Franco, José Eduardo; Paiva, José Pedro. (dir.)., História Global de Portugal. ,, Lisboa: ,, Círculo de Leitores, ,, 2020. ,, 660 ppp. . ISBN, ISBN: 9789724252629.


Desde que o historiador francês Patrick Boucheron publicara no ano de 2017 sob a sua direção a Histoire mondiale de la France, o grande sucesso de público atingido pela obra, e mais as polémicas que acompanharam a sua saída, converteram a história mundial numa espécie de subproduto específico da história global e transnacional. Boucheron, com ajuda de vários coordenadores para cada uma das épocas históricas, propunha enfoque renovado sobre a história da França, organizada a partir de datas concretas e significativas que marcavam a interação do que foi a sociedade francesa nas suas diversas épocas com os destinos do mundo. Cada data ilustrava um facto, tendência ou reflexão, desenvolvida por especialistas em artigos curtos, com a vontade de divulgar e tornar atrativa a história a um público amplo. Boucheron e os seus colaboradores, ademais, levaram a cabo uma escolha de datas nem sempre coincidentes com o relato canónico da história nacional francesa, e com uma olhada que não só privilegiava os grandes eventos políticos, as guerras e tratados de paz, as batalhas emblemáticas ou as personagens sobranceiras do passado francês. Pelo contrário, acolheram na sua obra descobertas científicas, viajantes, exploradores, hereges, exilados e perseguidos, para lá de eventos relativos à expansão francesa no ultramar, na Argélia ou no resto da África e na Ásia, mulheres destacadas, grandes escritores ou obras literárias que tiveram grande impacto global. Procurava-se assim um equilíbrio entre a história social, a história cultural, a história política, a história de género e a história da ciência. Vários dos seus críticos louvaram a sua coragem e a certa heterodoxia, ao pôr em dúvida algumas datas ou feitos emblemáticos do passado francês, e salientar alguns períodos escuros ou questionáveis do mesmo, como as guerras coloniais ou o colonialismo. Outros, porém, acusaram Boucheron de enfraquecer o relato da história nacional da França numa focagem pós-moderna, e de questionar os lugares de memória e mais as datas mais significativas do que era o passado nacional.

O grande sucesso editorial da Histoire mondiale deu alento a outras experiências semelhantes, que até agora se restringiram ao Sul da Europa. Assim, foram publicadas histórias mundiais de Itália (Giardina, 2017) e da Espanha (Núñez Seixas, 2018), cujas orientações nem sempre coincidiram em tudo com o modelo francês, mas adaptaram-no às circunstâncias. Em ambos os casos o peso da herança da narrativa nacional não é tão forte, salientaram-se datas alternativas, e evitaram-se no possível os lugares mais comuns. Pretendia-se evitar, assim, um risco que, não obstante as críticas recebidas na França, continuava a impregnar a obra de Boucheron: o do relato teleológico que sugeria uma continuidade, às vezes explícita, entre as covas pré-históricas, os galos pré-romanos, os francos da Alta Idade Média, e o Estado--nação francês moderno. Um perigo que no caso espanhol, um dos de maior heterogeneidade interna, se tentou reconduzir mediante uma narrativa plural e que recolhesse a diversidade ibérica e das conexões e elos dos territórios da monarquia hispânica desde finais do século XV, bem como as diversas tendências e narrativas periféricas da própria península, as Espanhas mais do que a Espanha (cf. o dossiê editado por Ridolfi, 2018). No caso italiano esse anseio, em menor medida, também estava presente. Igualmente, algumas regiões ou nacionalidades sem Estado também foram objeto de histórias mundiais, como a Catalunha (Riquer, 2018) e a Sicília (Barone, 2018), para além do ensaio de uma história “peregrina” da Bretanha como uma “aventura mundial” (Cornette, 2018), casos nos que a procura de uma espécie de inserção autónoma e independente desses territórios nas redes transnacionais desde tempos remotos implicou o perigo de uma teleologia semelhante à assinalada no caso de Boucheron, mais agora referida à nações sem Estado. Tentativas semelhantes estão-se também a registar noutros lugares, como a Galiza.

As histórias mundiais são ainda, pois, um produto ou moda genuinamente “meridional” no seio da historiografia europeia. Até agora, e ao contrário do que acontecera com outras iniciativas historiográficas francesas, coma os Lieux de mémoire de Pierre Nora, a história mundial não está a achar eco no Norte, Centro e Leste da Europa. Isso talvez reflita um feito: a geografia da influência historiográfica francesa é cada vez mais “periférica”. Mas também sugere que outras historiografias não sentem a necessidade de adotarem uma etiqueta que, no fundo, possui uma solidez conceptual contraditória e mais próxima do relato da história nacional do que reconhece. Por que nos referimos às “histórias mundiais”, quando são sobretudo um subproduto da história global ou transnacional? Trata-se de uma “moda” mais do que uma nova corrente ou género historiográfico? Ou, argumentam alguns autores (Dalmau/Luengo 2020), o simples facto de fazer de um país nas suas fronteiras atuais o sujeito de uma história “mundial” ou “global” desde os tempos pré-históricos, não determina já à partida uma implícita narrativa teleológica, sendo no entanto impossível fugir das artimanhas do relato da história nacional, ao assumir como pré-determinado um espaço determinado e definido pela sua fisionomia no presente? Sem dúvida, o debate fica ainda aberto.

O volume que aqui recenseamos, magnificamente editado polo Círculo de Leitores com diversos parceiros públicos e privados, evidência a extensão dessa “moda” a Portugal, ainda que os editores, de maneira muito inteligente, coloquem a sua obra no âmbito da história global e transnacional, e evitem o termo “história mundial”. Um amplo elenco, perto de 80, de autores e autoras, na sua grande maioria das universidades lisboetas, sob a coordenação geral de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, abordam em 93 artigos breves que se referem a datas concretas, com vontade divulgativa - aliás, e como também aconteceu nos cassos precedentes, mais sucedida em alguns capítulos do que em outros - marcos significativos da evolução de Portugal, abrangendo desde a Pré-História e Proto-História, a Antiguidade, a Idade Média, a época Moderna e ainda a época contemporânea. O resultado é um ótimo caleidoscópio da história de Portugal e das suas conexões, elos, interações e intercâmbios com outras áreas da Europa e do mundo todo.

O caso de Portugal é, de facto, quase excecional no panorama europeu pela continuidade entre as suas fronteiras peninsulares entre o século XIII e o século XXI. As etapas anteriores às origens do reino de Portugal não são vistas de maneira teleológica: bom exemplo são os capítulos dedicados à Idade Antiga e à Pré- e Proto-história, onde se trata sobre os acontecimentos e interconexões globais dos territórios que depois constituiriam o Portugal continental, mas sem pressupor que neles habitavam “proto-portugueses”. Trata-se da província romana da Lusitânia (não assim da posterior província bracarense), e incorporam-se temáticas originais, coma os riscos ambientais, as marés, ou as incursões viquingues. Despois da etapa medieval, que culmina muito significativamente com a conquista de Ceuta, a ênfase da obra situa-se, como era de esperar, no período-chave da relação de Portugal com o mundo: a época das descobertas e o império colonial clássico, em boa parte integrado na Idade Moderna. As viagens dos descobridores, a expansão do comércio, das ordens religiosas (um caso interessante é o das Misericórdias, por Isabel dos Guimarães Sá), vão a par das revoltas de escravos em São Tomé ou da insurreição pernambucana, bem como da obra de Camões ou dos avanços científicos. Ainda que o leitor interessado possa julgar escassa, por exemplo, a presença do Brasil, achamos que esta é a parte da obra onde melhor se reflete o carácter global da história de Portugal, não abordada segundo uma perspetiva excessivamente eurocêntrica e benigna, mas como uma história de luzes e sombras.

Algo semelhante se pode concluir sobre as diversas entradas da etapa contemporânea, que começa com o ano 1822 (independência de Brasil, Fernando Catroga) e remata no de 2011 com um artigo sobre a emigração portuguesa no mundo (Rui Carita). Nesse período alternam as entradas sobre a participação de Portugal nos eventos diplomáticos e conflitos internacionais, com especial destaque dos que tinham a ver com o império colonial (1884, Conferência de Berlim), mas também se passa revista à dimensão global do bacalhau, do santuário de Fátima, das descobertas científicas de Egas Moniz, a guerra colonial ou o jogador de futebol Eusébio como símbolo da “nação multicontinental” a que aspirava o salazarismo.

Trata-se, por tanto, de um percurso original e atraente sobre a história global de Portugal, no que são de salientar a variedade temática, da história da língua à da literatura, da história da ciência à história internacional, da história económica à história cultural. É impossível nesta breve resenha fazer justiça a todos e cada um dos capítulos. A diversidade de olhares e de perspetivas é uma característica intrínseca a este tipo de obras ambiciosas, e a diversidade de vozes e instrumentos contribui para enriquecer o seu valor. O risco, porém, pode ser incorrer na música atonal, na heterogeneidade tão frequente nos volumes coletivos. Os editores conseguem manter o equilíbrio entre polifonia e melodia, e assinalar um rumo e um ritmo comum à “orquestra” historiográfica que dirigem. Na verdade, nem sempre se atinge uma harmonia perfeita. Alguns capítulos levam a cabo verdadeiros exercícios de história global e salientam de forma atraente as interações e transferências, os jogos de espelhos, e as ambiguidades da relação dos portugueses com o mundo (p. ex., o capítulo dedicado à chegada da Inquisição a Portugal, obra de Bethencourt, ou o dedicado à exposição do mundo português de 1940, por Annarita Gori). Outros contributos, não obstante a sua qualidade inegável, ficam ainda muito presos a focagens e constrangimentos das suas disciplinas específicas. Assim, o público leitor gostaria de saber não só quais foram os vínculos globais da indústria e comércio do bacalhau, mas também por que motivo o bacalhau se converteu em mito nacional; ou gostaria, pelo contrário, de conhecer alguma coisa mais sobre a expansão exterior do vinho do Porto, para lá do surgimento da demarcação da sua região de origem. São vários os artigos nos quais a história diplomática, a história económica, a história da literatura ou a história política tout court sobressai sobre as abordagens genuinamente transnacionais.

Por tudo o que referi, a história global de Portugal não constitui uma cópia do original francês, nem é uma adaptação sem mais dos modelos ensaiados noutros países. Apresenta um olhar comum e singular, mais próximo aos princípios teóricos da história global e transnacional do que à história mundial. Sendo um dos poucos Estados-nação europeus com raízes bem firmadas no século XII e com uma notável continuidade territorial e estatal, os editores e coordenadores souberam afastar o risco de cair na reprodução, sob novas roupagens, de uma nova e clássica história nacional de Portugal. Bem pelo contrário o público leitor encontra nas páginas deste volume não somente as entradas que espera encontrar (Aljubarrota, Tordesilhas, Magalhães, Camões, Eusébio) mas também novas perspetivas sobre personagens, atores institucionais ou coletivos que deixarem uma pegada na história mundial desde e em Portugal, como Egas Moniz, a maçonaria, os jesuítas…). Haverá quem julgue faltar algum feito ou personagem (p. ex., Vasco da Gama, ou Amália Rodrigues e os fados, sendo a música um certo elemento ausente desta obra), mas qualquer escolha é, forçosamente, seletiva. A seleção de linhas temáticas, anos e temas aqui recolhidos oferece uma perspetiva global, rigorosa e original, interessante e fascinante, para um público amplo.

Referências bibliográficas

BARONE, G. (ed.) (2018), Storia mondiale della Sicilia, Roma/Bari, Laterza. [ Links ]

BOUCHERON, P. (ed.) (2017), Histoire mondiale de la France, Paris, Seuil. [ Links ]

CORNETTE, J. (ed.) (2018), La Bretagne, une aventure mondiale, Paris, Tallandier. [ Links ]

DALMAU, P., LUENGO, J. (2020), “Historia global e historia nacional: ¿una relación insalvable?”, Ayer, 120, pp. 311-324. [ Links ]

GIARDINA, A. (ed.) (2017), Storia mondiale dell’Italia, Roma/Bari, Laterza . [ Links ]

NÚÑEZ SEIXAS, X. M. (ed.) (2018), Historia mundial de España, Barcelona, Destino. [ Links ]

RIDOLFI, M. (ed.) (2018), “Storie transnazionali”. Memoria e Ricerca, 59, pp. 495-522. [ Links ]

RIQUER, B. de (ed.) (2018), Història mundial de Catalunya, Barcelona, Eds. 62. [ Links ]

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