SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número240Recensão: Religião em Portugal. Análise sociológica, de José Pereira Coutinho índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.240 Lisboa set. 2021  Epub 30-Set-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021240.11 

Recensão

Recensão: Teoria das relações internacionais: textos clássicos, de Carlos Gaspar (coord.), por Luís Lobo-Fernandes

Luís Lobo-Fernandes1 

1 Professor Aposentado, Universidade do Minho. Campus de Gualtar, R. da Universidade, 4710-057 Braga, Portugal. luisflobof@gmail.com

Gaspar, Carlos. (coord.),, Teoria das relações internacionais: textos clássicos. ,, Lisboa: ,, Livros horizonte, ,, 2021. ,, 327 ppp. . ISBN, ISBN: 9789722419895.


A área científica das Relações Internacionais é marcada por uma grande amplitude de problemáticas, onde o exercício de sistematização é especialmente árduo dada a grande diversidade de variáveis, quer no plano interno, quer no plano externo aos Estados. O estudo sistemático das dinâmicas internacionais exige, pois, um conhecimento aprofundado dos dilemas, princípios, conceitos, e teorias que distinguem esta área enquanto domínio científico autónomo. Em particular, a organização da aparente desordem e desconexão das dinâmicas internacionais é substancialmente melhorada através do conhecimento dos modelos teóricos, que lhes conferem significado, ligação e maior coerência interna. Por sua vez, distinguir os vários níveis de análise - ou níveis de causalidade -, analisar a natureza do poder nas relações internacionais, bem como aplicar e operacionalizar criticamente as várias perspectivas de intelecção da realidade internacional, propiciará patamares de compreensão superiores. Tal permitirá a interpretação mais apurada das problemáticas. Ora, nesse exercício, o “diálogo” com os autores de referência a partir das suas obras originais afigura-se fundamental. É neste plano que a obra Teoria das Relações Internacionais: Textos Clássicos, com coordenação de Carlos Gaspar (2021), adquire uma importância ímpar, constituindo um contributo imprescindível de um dos autores de referência deste domínio do conhecimento no nosso país.

A questão de como estudar Relações Internacionais envolve genericamente o mesmo debate epistemológico que se pode verificar no conjunto das Ciências Humanas e Sociais. No caso vertente centra-se nos métodos que devemos usar na investigação dos fenómenos políticos. A Escola clássica inclui o método descritivo-histórico tão familiar da riquíssima e vasta literatura das Humanidades, assente sobretudo numa estratégia dedutiva, com um enfoque qualitativo. Neste plano, as teorias e a sua lógica interna ilustram o uso da dedução para gerar hipóteses (deduzir implica justamente “extrair” um argumento ou proposição de um sistema de racionalidade - ou seja, de um arquétipo teórico - e ponderar as suas conclusões lógicas perante casos particulares). Porém, o exigente estudo dos complexos eventos internacionais não permite que apartemos qualquer das configurações metodológicas e de investigação. Referimo-nos especificamente ao método indutivo que se funda na experiência como fonte do conhecimento, privilegiando em grande medida o manuseamento de dados quantitativos. A estratégia indutiva assenta na observação e na construção de hipóteses a partir de casos particulares que permitirão eventualmente produzir generalizações. Reflecte, por outro lado, uma “admiração” pelos métodos usados nas chamadas ciências experimentais conferindo grande importância à própria configuração da investigação, e aspira, tanto quanto possível, à medição dos fenómenos utilizando preferencialmente recursos quantitativos e métodos estatísticos. Certos aspectos das estratégias indutivas e quantitativas podem ser referenciados já em Tucídides, no próprio Platão, e em Aristóteles, e mais tarde no Iluminismo, com Hermann Conring. Diríamos, não obstante, que afortunadamente para as Ciências Sociais - e também para crédito dos cientistas políticos - esta diferenciação está em grande medida resolvida. Ao invés de serem consideradas mutuamente exclusivas, as duas metodologias são hoje geralmente tidas como complementares.

E é, também, nesta medida que o trabalho de C. Gaspar se revela especialmente importante. Nele, dá-se expressão criteriosa ao pluralismo teórico e metodológico desta área científica como evidência das várias perspectivas epistemológicas do sistema internacional que cumpre considerar no exercício analítico, contemplando a multiplicação dos tipos de relações e dinâmicas que daí advêm. A sua escolha recai numa “arrumação” de grandes autores seguindo, nas suas próprias palavras, o ethos e os programas de investigação do que considera serem as principais escolas da teoria das Relações Internacionais: Teorias Realistas, Teorias Liberais e Teorias Sistémicas. Destacam-se, entre os contributos fundamentais que seleccionou, Carr, Morgenthau e Aron nos realistas clássicos (sendo que o grande tratado de Aron, como observa apropriadamente C. Gaspar, é a “excepção absoluta” ao domínio anglo-saxónico nesta disciplina científica); Wight, Bull, e Keohane & Nye nos enfoques de recorte liberal; e, Waltz, Wendt e Walzer nas construções sistémicas. O assinalável pluralismo teórico do campo das Relações Internacionais - senão mesmo alguma “fragmentação” - não invalida a ambição de produzir uma teoria geral das relações internacionais que não está - diga-se - totalmente ausente do panorama da disciplina, encontrando-se porventura a teoria sistémica de Kenneth N. Waltz (1979), designada de “realismo estrutural”, mais próxima desse desiderato, pois articula um conjunto de proposições muito simples e “eficazes” sobre os mecanismos essenciais de funcionamento do plano internacional propriamente dito. Mas, o autor do livro apresenta igualmente uma preciosa introdução às teorias das Relações Internacionais (pp. 13-33) que merece uma leitura mais atenta do público especializado e dos investigadores, contribuindo para o valor indiscutível desta publicação.

Como é reconhecido, os tratados de Vestefália de 1648 assinados entre as principais potências europeias marcaram a emergência de um novo sistema, definido fundamentalmente pela balança de poder entre os Estados, pelas variações nessa balança de poder e, também, pelo “consenso internacional” entretanto gerado, que assentou no reconhecimento mútuo das soberanias. Muitos especialistas localizam precisamente a génese do sistema moderno de Estados nas noções de territorialidade e de centralização do poder. Ganha, assim, nitidez, uma maior atomização da arena externa redefinida a partir de então pelo conceito fundamental de anarquia internacional, uma noção que indica a ausência de uma entidade (ou autoridade superior) que se possa sobrepor à soberania dos Estados. A paz em tais condições é tendencialmente precária e dependente da manutenção da balança de poder. O sistema internacional configura-se, assim, como um meio de poder por excelência, sendo essa condição geral provavelmente o principal elemento da própria autonomia disciplinar, consagrando um sistema internacional singularmente plasmado na imagem de paz armada. Naturalmente que o estudo científico das relações internacionais se centrou em grande medida no esforço de racionalização das dinâmicas de poder e nas hipóteses de trabalho associadas ao sistema vestefaliano, ou seja, ao moderno sistema de Estados, procurando abarcar e explorar a natureza fundamental da sua acção e respectivo comportamento no jogo de poder internacional. Daí que, originariamente, o próprio termo relações internacionais explicite sobretudo o campo do relacionamento interestadual ou intergovernamental, o mesmo seria dizer o espaço das relações formais entre Estados. Em rigor, o termo internacional 1 emerge no período em que os Estados marcavam de modo quase absoluto a arena das relações externas.

Contudo, nas últimas décadas, a implosão da União Soviética, os efeitos sistémicos multicontinentais da globalização, a emergência de actores transnacionais, o advento de formas de guerra assimétrica, os novos papéis das Nações Unidas - que lhe conferiram maior visibilidade na defesa dos direitos humanos -, entre outras macrotendências significativas, onde a expansão da China assume já lugar cimeiro, confrontou o domínio teórico das Relações Inter-nacionais com novos desafios teóricos e metodológicos. Tal premência aden-sou-se pela metamorfose, ainda que parcial, do próprio sistema vestefaliano, pelo que o desafio metodológico e as novas agendas de investigação apontam hodiernamente para a necessidade cres-cente de incorporar o variado espectro de dinâmicas e problemas horizontais (sociais, identitários, ambientais, ener-géticos, bem como a maior probabilidade de pandemias) - que se somam às dinâmicas verticais entre Estados - na explicação dos factores de mudança interna-cional.

Neste sentido, as escolhas apuradas de C. Gaspar não esgotam - nem poderiam esgotar - o amplo conjunto de abordagens deste domínio do conhecimento. Na verdade, o autor explicita a possibilidade de outros ângulos de análise, tendo em conta a vastidão das problemáticas internacionais. Assinalaria, não obstante, como nota mais relevante, que a inclusão do grande Tucídides e a sua perene originalidade, responsável pela descoberta do nexo e de um método das relações interestaduais, afigurar-se-ia fundamental nesta compilação de Textos Clássicos.

Diríamos, por último, que a tentativa de “cartografar” num esforço de procura consistente o core científico das Relações Internacionais, suscita desde já a necessidade de um 2.º volume, que pudesse integrar Arnold Wolfers e a sua obra Discord and Collaboration: Essays on International Politics (igualmente um clássico), Robert Jervis e a inovadora concepção psicológica das relações internacionais, Wallerstein e a sua modelação do “sistema-mundo”, a teoria crítica de Robert W. Cox, Robert Gilpin com dois contributos fundamentais: a “teoria da estabilidade hegemónica” - correlacionando Estados e mercados no sistema internacional -, e War and Change in World Politics que explora as “transições hegemónicas”, Graham Allison e o trabalho pioneiro sobre a decisão em política externa e a dissuasão nuclear, ou ainda Stephen Krasner que revisita de forma especialmente lúcida a noção de soberania. Do mesmo modo, referiria as novas incursões no âmbito das “teorias sociais” que expandem de forma considerável este domínio do conhecimento, onde se destacam a “teoria feminista das Relações Internacionais”, o enunciado do “pós-colonialismo” ou a chamada “Green Theory”. Mas, esta alusão final só evidencia e alarga a importância da área científica e, consequentemente, desta obra de Carlos Gaspar na descodificação da actual conjuntura internacional, em boa hora dada à estampa pelos Livros Horizonte. A não perder.

Referências bibliográficas

Gaspar, Carlos (coord.), Teoria das relações internacionais: textos clássicos, Lisboa, Livros horizonte, 2021. [ Links ]

1 Segundo Suganami (1978), é atribuída a Jeremy Bentham a primeira referência expressa ao termo internacional, no ano de 1780.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons