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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.241 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021241.11 

Recensão

Recensão: Travail et travailleurs en Algérie, édition revue et actualisée

Virgílio Borges Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-6887-165X

1 Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Via Panorâmica, s/ nº, 4150-564 Porto, Portugal. jpereira@letras.up.pt

Bourdieu, Pierre. :, Travail et travailleurs en Algérie, édition revue et actualisée. ,, Paris: ,, Raisons d’Agir, ,, 432p. pp.ISBN, ISBN: 9791097084080.


Quase vinte anos depois da morte do autor, a atividade editorial em torno da obra de Pierre Bourdieu permanece florescente. Dando atenção apenas aos escritos de Bourdieu, entre a recuperação de textos menos conhecidos (ver, por exemplo, Bourdieu, 2018) e as transcrições dos cursos no Collège de France publicadas ao longo destas duas décadas, acrescenta-se, agora, a reedição, revista e atualizada, de um dos mais raros livros da bibliografia bourdieusiana, esgotado, sem conhecer reedições, há três décadas. Primeiro livro de Bourdieu construído a partir da prática do trabalho de terreno, Travail et travailleurs en Algérie é fruto de uma investigação coletiva marcante na formação científica, intelectual e política do autor (Bourdieu, 2004; Yassine, 2004; Wacquant, 2007; Martín-Criado, 2008). Originalmente publicado em 1963, como resultado de uma encomenda de Estado formalizada em 1960, o livro, cuja reedição foi realizada sob a direção editorial de Amín Pérez e a responsabilidade científica de Tassadit Yassine, restitui a respetiva segunda parte, constituída pela análise sociológica da autoria de Pierre Bourdieu, que complementava o extenso material estatístico, analisado por Alain Darbel, Jean-Paul Rivet e Claude Seibel na primeira parte do livro. A uma nota editorial e a um posfácio, de leitura obrigatória, da autoria, respetivamente, do diretor editorial e da supervisora científica, a obra acrescenta alguns textos complementares que permitem esclarecer o quadro de ação associado ao desenvolvimento do estudo. A secção dedicada à “Situação do livro” define a respetiva génese e receção. Para além da reedição da apresentação do livro redigida por Bourdieu para difundir a obra, incluem-se aqui a recensão dela feita pelo historiador Pierre Vidal-Naquet nas páginas do Le Monde de 5 de maio de 1964 e o texto que Claude Seibel dedicou à preparação do estudo publicado na revista Awal em 2005.

Construída num período formativo, a análise realizada na obra não se configura ainda em torno do programa teórico e do conjunto de conceitos e de relações entre conceitos que tornariam Bourdieu reconhecido nacional e internacionalmente. Não obstante tal facto, a análise desenvolvida mobiliza já preocupações e procedimentos de pesquisa que se encontram explicitados nas obras das fases mais avançadas do trabalho sociológico de Bourdieu. É disso bom exemplo o texto da Introdução, intitulado “Estatísticas e Sociologia”, que restitui, documentando a lógica do trabalho de inquérito por questionário levado a cabo, as preocupações teóricas e metodológicas subjacentes ao lançamento da pesquisa e o modo como a conjugação das abordagens das duas disciplinas poderia ser heuristicamente dinamizada para ultrapassar as oposições clássicas entre propostas de conhecimento explicativo e compreensivo. O texto seguinte, intitulado, em tradução livre, “As condições de uma ciência social descolonizada”, concretiza as preocupações com a construção de um ponto de vista reflexivo necessário ao desenvolvimento, numa situação de convulsão e de guerra, de uma sociologia política e etnograficamente empenhada como aquela que é convocada pelo trabalho de inquérito por questionário coletivo em que o livro se fundamenta. Definindo regularidades, com recurso às estatísticas decorrentes do inquérito, analisando as singularidades que emergem do extenso programa de entrevistas realizado, e que autoriza a identificação de casos típicos, a investigação desenrola-se num registo, profusamente documentado, que permite vislumbrar as preocupações topológicas e fractais que informarão a sociologia da dominação de classe de Bourdieu nas décadas seguintes.

É a partir deste quadro que se desenvolvem as análises mais substantivas da obra. Um primeiro segmento, materializado no primeiro capítulo, intitulado “Necessidade económica e modelos culturais”, retira consequências do ponto de vista reflexivo e compreensivo previamente identificado para concretizar um percurso denso de análise sociológica sobre o trabalho. Em conjugação com a guerra, o intenso processo de dominação capitalista e colonial a que a sociedade argelina foi submetida pelo Estado francês subverteu profundamente a atividade agrícola tradicional no país. Dada a sua relevância, Bourdieu visa, especificamente, o conhecimento das incidências, nos planos das condutas e da consciência, da emergência do desemprego estrutural na vida dos argelinos. Fiel, desde muito cedo, a uma lógica analítica de inspiração durkheimiana, o estudo circunscreve, sem perder de vista as divisões sociais e escolares entre a população analisada, a relevância da incerteza e da ansiedade no acesso ao emprego e o significado dos mediadores sociais (a figura do primo e do amigo) para este mesmo acesso. Inacessível e amplamente disputado, o mundo do trabalho revela-se dividido, em matéria de postos e de representações sobre esses postos e no domínio das possibilidades de vida nelas contidas. A divisão entre trabalhadores estáveis, instáveis e extremamente instáveis não é apenas suportada por diferenças de rendimento, de escolaridade e de classe. Uma tal divisão tem subjacente também um envolvimento diferenciado com o emprego, a constituição de moralidades profissionais alternativas (Bourdieu, 2021, p. 93) e a estruturação de formas e de graus diferenciados de consciência do desemprego. Para um segmento significativo do subproletariado argelino, a experiência do desemprego estrutural impede a tomada de consciência: “a estrutura e os mecanismos objetivos do sistema colonial, e sobretudo do sistema colonial enquanto tal, não podem deixar de escapar às mentes absorvidas pelas dificuldades imediatas da vida quotidiana. A revolta é dirigida sobretudo contra pessoas ou situações individuais, nunca contra uma organização que se trataria de transformar global e totalmente” (Bourdieu, 2021, p. 108, tradução própria).

Numa sociedade em convulsão política e social, as atitudes perante o desemprego são aferidas pelas condições materiais de existência e mobilizadas para uma leitura das condições de possibilidade da ação revolucionária. Os subproletários urbanos e os camponeses desenraizados, por um lado, a minoria dos trabalhadores permanentes do sector moderno, por outro, são portadores de projetos sociais e políticos profundamente distintos. É entre os trabalhadores permanentes, por força da regularidade do rendimento e do tempo de trabalho, que se pode desenvolver uma consciência revolucionária: “A desorganização da conduta quotidiana impede a formação desse sistema de projetos e de previsões racionais de que a consciência revolucionária é um aspeto. Força da revolução, o campesinato proletarizado e o subproletariado das cidades não formam uma força revolucionária em sentido verdadeiro” (Bourdieu, 2021, p. 118, tradução própria).

O segundo capítulo, intitulado “Do tradicionalismo à racionalização da conduta”, dedica-se ao estudo das contradições subjacentes à imposição de uma economia capitalista numa formação social dilacerada pela dominação colonial e revela “as transformações criadoras” envolvidas nas adaptações exigidas por aquela imposição no interior da cultura tradicional. A emergência das trocas monetárias transforma a estrutura de autoridade familiar, tornando esta última mais dependente do valor do dinheiro: com a transformação do trabalho assalariado em medida de valor e, quando realizado fora de casa, sendo este vedado às mulheres, aumenta a dependência destas últimas no interior da família e da sociedade; os mais jovens, se mais instruídos e empregados, emancipam-se, contudo, mais facilmente. O aprofundamento da análise em torno das atitudes económicas revela que estas são sensíveis às condições materiais de existência e que “o campo dos possíveis tende a alargar-se à medida que se sobe na hierarquia social” (Bourdieu, 2021, p. 178). Envolvendo um apuramento progressivo do raciocínio sociológico, a análise evolui para um estudo sobre as condições de possibilidade dos processos de desenvolvimento tomando por referência as classes sociais do país. Conjugando análise estatística com observação etnográfica e interpretação sociológica, a análise sobre as diferentes classes regista as propriedades dos respetivos quotidianos, os critérios de formação de condutas económicas e as lógicas subjacentes às relações com o tempo. Assim se define a impossibilidade de formação de um projeto de vida entre os subproletários, o contraste profundo entre estes e os trabalhadores permanentes dos sectores modernos e as lógicas que configuram as possibilidades de formação de empresários e de burocratas. De igual modo, e para além da disponibilização em anexo do inquérito realizado e de um dos textos que, muitos anos depois, Bourdieu dedicaria à estruturação da “dupla verdade do trabalho”, o livro revela, com grande detalhe, os artesãos argelinos como uma categoria não homogénea (fundada em lógicas sociais de sobrevivência, de subsistência e de mercado) e as trajetórias sociais prováveis que se lhes associam no quadro da profunda transformação societal em curso.

Como é bem sabido, Bourdieu regressaria, recorrentemente, aos seus materiais argelinos. Aspetos decisivos da teoria da prática seriam elaborados tomando por referência a sociedade argelina e as suas profundas contradições sociais, com especial enfoque na Cabília. O inquérito coletivo realizado entre 1958 e 1961, que esteve na origem de Travail et travailleurs en Algérie, para além de ter estado associado a um outro momento inaugural e decisivo da sociologia de Bourdieu (Bourdieu, Sayad, 1964), seria por este revisitado e reelaborado, em modo mais simplificado, para difusão internacional (Bourdieu, 1977). Acompanhado pelas fotografias originais e por um conjunto de imagens recuperado nos arquivos do autor - Bourdieu revela-se, na Argélia, um exímio fotógrafo (Bourdieu, 2003) -, a presente reedição do livro vem preencher uma lacuna no conhecimento disponível sobre a obra de Bourdieu, restitui a génese de um pensamento sociológico original e fornece uma aproximação decisiva ao respetivo modus operandi.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, P. (1977), Algérie 60, Paris, Minuit. [ Links ]

BOURDIEU, P. (2004), “Algerian landing”. Ethnography, 4, pp. 415-443. [ Links ]

BOURDIEU, P. (2003), Images d’Algérie: une affinité elective, Paris, ACTES SUD/SINBAD/CAMERA AUSTRIA. [ Links ]

BOURDIEU, P. (2018), “Social space and the genesis of appropriated physical space”. International Journal of Urban and Regional Research, 42(1), pp. 106-114. [ Links ]

BOURDIEU, P., SAYAD, A. (1964), Le Déracinement. La crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie, Paris, Minuit . [ Links ]

MARTÍN-CRIADO, E. (2008), Les Deux Algéries de Pierre Bourdieu, Belcombe-en-Bauges, Éditions du Croquant. [ Links ]

YASSINE, T. (2004), “Pierre Bourdieu in Algeria at war. Notes on the birth of an engaged ethnosociology”. Ethnography , 4, pp. 487-509. [ Links ]

WACQUANT, L. (2007), “Seguindo Pierre Bourdieu no terreno”. Cadernos de Ciências Sociais, 24, 69-95. [ Links ]

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