Introdução
A partir da segunda metade da década de 90 do século XX, os termos lusofonia e lusófono, até então quase exclusivamente usados por linguistas em alusão à comunidade de falantes de língua portuguesa, tornaram-se correntes para denotar um conjunto de afinidades culturais entre Portugal e os estados que outrora foram seus territórios coloniais, afinidades especialmente sedimentadas na partilha da língua portuguesa.1 As ideias de lusofonia e de uma comunidade lusófona constituíram o suporte discursivo legitimando o reforço de relações económicas e políticas, especialmente de cooperação e de concertação, entre os estados pós-coloniais de língua oficial portuguesa. Este reenquadramento foi institucionalmente materializado com a criação da organização multilateral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP, 1996), mas igualmente dos canais mediáticos RDP África (1996) e RTP África (1998). No mesmo período, a Exposição Mundial de Lisboa de 1998 (Expo 98), um evento de projeção internacional estruturado em torno do tema dos oceanos e comemorando os 500 anos do início da expansão marítima portuguesa, ensaiou através do seu discurso e programação a disseminação de ideias de lusofonia.
No domínio da música popular, a lusofonia designou a criação de uma categoria de produção cultural manuseada no âmbito da política cultural e da indústria da música, compreendendo músicos maioritariamente oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), das suas diásporas, do Brasil e, pontualmente, de Portugal, assim como editores discográficos, redes de mediação e circulação da música e, especialmente, festivais e eventos culturais.
Apesar da música e da dança, a par da literatura, serem mobilizadas enquanto as mais evidentes expressões da lusofonia, o “fio comum de portugalidade” (Fikes, 2009, p. 48) contido no conceito é problemático de defender relativamente a muitas das práticas musicais e expressivas oriundas dos PALOP e do Brasil, quer considerando as suas histórias de formação, quer os seus materiais musicais, coreográficos e, em muitos casos, linguísticos. Do mesmo modo, não é claro que a categoria traduza entendimentos sobre a coexistência e o diálogo intercultural partilhados pelos músicos e públicos/comunidades que são abarcados por ela. Discursos e estéticas da música, concretamente, parecem apontar para conceções sobre as histórias coloniais e pós-coloniais de relação entre os portugueses e os povos por si colonizados no passado muito diversas.
O presente artigo procura indagar como os músicos africanos ou descendendo de diásporas africanas em Portugal habitam a categoria de lusofonia. Procura interpretar estéticas e discursos de prática musical e expressiva na sua relação com ideias de lusofonia e música lusófona, avaliando de que modo dão conta de continuidades relativamente a discursos oficiais ou assinalam formações de identidade e historicidades que, potencialmente, poderão encerrar novos enunciados para pensar as relações pós-coloniais entre comunidades africanas, os seus descendentes e a população portuguesa branca com trajetórias mais sedentárias. O artigo pretende então inquirir, em particular, sobre a possibilidade de a cultura popular, sobretudo a música, propor modos de narrar a relação entre Portugal e os seus anteriores territórios coloniais que sejam alternativos ou transformadores de narrativas oficiais de inspiração tropicalista ou lusófona, e passíveis de serem aproximados a uma episteme pós-colonial.
A voz dos músicos é crítica para um entendimento da lusofonia desvinculado de políticas e discursos institucionais, uma vez que, desde logo, são os músicos e as tradições expressivas em que se inscrevem criativamente que materializam as ideias propostas por este discurso. Paralelamente, os músicos são, em simultâneo, atores sociais com os seus próprios posicionamentos de nacionalidade, diáspora, etnicidade, género, classe social, raça, idade, entre outros eixos de identificação, e vozes amplificadas das sociedades civis das comunidades nacionais e diaspóricas a que pertencem. Em alguns casos - pensando nos músicos que dão vida à categoria e que vivem em Portugal - participaram de modo decisivo na história pós-colonial dessas nações e das suas diásporas, contribuindo para tornar palpáveis questionamentos e sensibilidades políticas e sociais emergentes. As práticas da música popular permitem analisar o que Gilroy designou de “contracultura distintiva da modernidade” (1993, p. 36) - visões alternativas e potencialmente contra-hegemónicas do passado e do futuro. Contudo, como também acentuou Deborah Thomas, porque estas contraculturas são forjadas não no exterior da modernidade ocidental, mas através do envolvimento com ela, a produção cultural popular é multifacetada (2004, pp. 6-7). É essa pluralidade no que toca as práticas artísticas que o presente artigo pretende problematizar. Defendo que os músicos se apropriam do conceito de lusofonia de acordo com trajetórias coloniais, pós-coloniais e de diáspora diferenciadas; e que estas apropriações ou interpretações agregam projetos mais alargados de identidade, de cidadania e de ética cosmopolita.
Ao eleger a proximidade à cultura e língua portuguesas como critérios de pertença de um conjunto de nações a uma comunidade pós-nacional, a noção de lusofonia concede a Portugal e à sua história colonial um lugar simbolicamente destacado. Essa identificação com Portugal reclama implicitamente que os valores da igualdade, convivialidade, horizontalidade e do entrelaçamento cultural pautem a relação pós-colonial entre as suas diferentes comunidades. Contudo, no caso das comunidades africanas e dos seus descendentes em Portugal, as exclusões da raça e da classe, que se traduzem, entre outros aspetos, no seu afastamento de setores institucionais como o emprego, a educação, os serviços públicos, a representação política ou a esfera das relações sociais (Cidra, 2021, p. 335), enfraquecem sentimentos de pertença a uma comunidade lusófona. O ténue sentido que a noção adquire para os membros destas comunidades advém igualmente da sua sistemática exclusão da pertença à nação portuguesa, que faz com que sejam invariavelmente considerados como estrangeiros, mesmo que tenham vivido exclusivamente em Portugal e possuam nacionalidade portuguesa.
No presente artigo procura-se mostrar como as práticas expressivas e discursivas dos músicos redefinem as modalidades de pertença a uma comunidade lusófona como institucionalmente concebida. Defende-se que a lusofonia encerra para os músicos a expectativa do reconhecimento cultural e da inclusão social serem negociados no domínio da expressão cultural, o que designo como promessa de cidadania. Neste contexto, a cidadania pode ser entendida não apenas como a pertença a uma comunidade política, e como o conjunto de direitos e deveres de que o cidadão é investido ao tomar parte das atividades políticas dessa comunidade, mas igualmente, na linha de investigação antropológica ou de suporte etnográfico, como um processo cultural de subjetivação no sentido de os indivíduos serem produzidos e se autoproduzirem (Ong, 1996). Além de direitos formais, este processo envolve práticas quotidianas como aquelas que aqui se consideram da cultura expressiva e da música.
O texto baseia-se metodologicamente em investigação etnográfica conduzida em torno de vários géneros de música popular da África lusófona ao longo dos últimos anos, e em entrevistas realizadas mais recentemente com o propósito de inquirir os músicos sobre as suas experiências e visões da lusofonia. As entrevistas, entendidas como eventos de discurso relativamente formais, governados por certas assunções e ideologias (Briggs, 1986), mas possibilitando modos de produção dialógica de conhecimento, centraram-se em tópicos como a circunscrição do conceito; a sua tradução em termos de práticas culturais e expressivas existentes; o modo como a categoria intercetou a trajetória biográfica dos sujeitos; o modo como estes a experimentam enquanto categoria da indústria da música; e qual a relação do conceito com formações de identidade e projetos de cidadania.
Ao utilizar a categoria relativamente aberta de diásporas africanas para abranger os músicos com quem dialoguei, não pretendo apagar as circunstâncias concretas dos seus trajetos de vida ou excluí-los da nacionalidade portuguesa, definindo-os exclusivamente enquanto africanos quando viveram grande parte da sua vida em Portugal, aqui adquiriram a cidadania portuguesa e criaram as suas próprias conceções e imaginações do que significa ser africano, negro e português. A noção de diáspora pretende antes comunicar que qualquer pertença nacional, nos seus casos, é mediada por uma experiência diaspórica distinta. Esta compreende uma ligação a diferentes territórios políticos e contextos culturais, em que a pertença a diferentes casas é acompanhada de sentimentos de desconforto, de exclusão ou de inospitalidade originados pela disseminação de noções etnicamente absolutas de nação (Gilroy, 1987) ou pela experiência quotidiana da raça.
Comunidade, história, língua e geografia
O termo lusofonia constitui a categoria organizadora de um discurso politicamente criado no final do século XX que incide sobre as relações entre Portugal ou os portugueses e as nações ou os povos ligados à sua história colonial. Trata-se de um discurso na medida em que denota um modo de falar sobre estas relações, que produz sentido sobre elas e que molda perceções e práticas sociais, ou seja, que tem efeitos práticos (cf. Foucault, 2004; 2006). Enquanto categoria de pensamento (Madeira, 2004), a lusofonia comunica, num primeiro nível, uma comunidade formada pelas pessoas cujas trajetórias e experiências de vida estão radicadas em ou se movem através dos espaços geográficos onde o português é a língua oficial como resultado de uma história colonial comum. A língua portuguesa, entendida como um arquivo e como um repositório da história, da cultura e da memória, incorpora e materializa, na lógica do conceito, uma intimidade cultural entre aqueles que a falam. O modo como esta comunidade se imagina radica então numa experiência histórica e cultural concreta condensada na partilha da língua portuguesa.
O termo não só denota uma história e uma língua comuns como enfatiza o encontro colonial envolvendo portugueses e outros povos enquanto conjuntura histórica que formou ou moldou as práticas culturais que caracterizam a experiência de comunidades africanas, asiáticas e brasileiras no domínio da música, dança e literatura (a expressão artística de um modo global), da gastronomia, do património arquitetónico e algumas tradições de conhecimento. A ideia da lusofonia enquanto bem partilhado compreende, igualmente, sensibilidades e disposições emocionais, traços de personalidade ou de carácter individuais e coletivos, noções de intimidade e de proximidade, todas entendidas enquanto património afetivo e sensível que favorece o entendimento mútuo.
Durante a década de 90, um conjunto de medidas descritas pelos Estados português e brasileiro, em articulação com outros Estados de língua oficial portuguesa, no sentido da mútua aproximação política e económica, contribuiu para a ressignificação do termo. A mais importante dessas medidas foi a formalização da CPLP (1996), uma organização multilateral visando a concertação política e diplomática entre os seus Estados-membros, especialmente a sua representação em fóruns de relações internacionais; a cooperação em todos os domínios de atuação política; e a promoção e difusão da língua portuguesa (CPLP, 2007). Enquanto organização buscando o desenvolvimento político, económico e social dos países de língua oficial portuguesa, a CPLP constituiu o corolário das movimentações de um conjunto de atores da política e diplomacia brasileira e portuguesa durante as décadas de 80 e 90, embora o projeto tenha começado a ser debatido no período colonial tardio (Ribeiro e Ferreira, 2003; Maciel, 2010). A ideia da língua portuguesa como “um vínculo histórico e um património comum resultantes de uma convivência multissecular” (CPLP, 1996) entre os povos forneceu o suporte discursivo para uma nova comunidade política e institucional e veio a constituir o principal nexo do conceito de lusofonia nos anos seguintes.
A lusofonia enquanto categoria é produto de uma temporalidade específica, marcada pelo realinhamento geopolítico que sucedeu ao fim da guerra fria e pela crescente interligação e mobilidade características da modernidade tardia. No plano geopolítico, dá conta da transição entre um momento marcado pelos valores anticoloniais e nacionalistas sublinhados pelos regimes de partido único nos novos estados africanos, e de viragem para a Europa por parte de Portugal, para um momento dominado pela assunção de uma necessidade de aliança política e económica predicada na história, na língua e em afinidades culturais, em diálogo com uma conjuntura global marcada por processos políticos e económicos transnacionais e pelo neoliberalismo económico. Por outro lado, representa a assunção política do entrelaçamento pós-colonial entre as nações em causa, sobretudo materializado através dos movimentos migratórios que tiveram como destino Portugal, mas igualmente de acordos comerciais, elos de cooperação económica ou programas bilaterais de formação académica e profissional.
No quadro das instituições da política global, e no momento do seu surgimento em particular, a lusofonia como entendida pela CPLP representou uma modernidade alternativa ao projeto ocidental, ao fundamentar a inscrição numa ordem capitalista global em noções de proximidade cultural, partilha e troca. A ideia de um nexo cultural comum de portugalidade na experiência africana e dos povos cujas trajetórias históricas foram infletidas pelo colonialismo português reclama, como o discurso lusotropical, o relevo da cultura e de um ethos português na formação de outros mundos culturais e subjetividades. É na interceção desta narrativa de inspiração tropicalista com uma trajetória de modernidade que radica a ideia contemporânea de lusofonia.
Em paralelo à moldura política e institucional representada pela CPLP, a ideia de lusofonia foi particularmente materializada pelos meios de comunicação de massas. Entre as décadas de 80 e 90 estes foram entendidos pelo Estado português como veículos cruciais para disseminar a língua e o conhecimento da cultura portuguesa nos países africanos e, desse modo, fomentar a cooperação económica - na linguagem política universalista e civilizadora ainda prevalecente no período, como modos de “afirmar a imagem e a presença de Portugal no mundo”; “acentuar a matriz universalista e projetar no mundo a língua e a cultura”; ou “reforçar laços afetivos e económicos” (Sousa, 2006). Esta orientação política iniciou-se com a criação da RTP Internacional (1992), da RTP África (1998) e da RDP África (1996). A reunião, operada pelas emissões diárias destas estações, de um corpus de notícias, informações, debates e escolha musical interligando e tratando em simultaneidade as realidades sociais de Portugal e dos PALOP, constituiu um poderoso veículo de materialização da lusofonia enquanto comunidade.
Apesar de assentar na ideia de uma história comum, o discurso institucional da lusofonia implica uma diluição da consciência histórica. A multiplicidade de histórias que a realidade do império convoca e relaciona, em especial histórias desvinculadas de uma grande narrativa historiográfica que desemboque na asserção da importância dos portugueses no mundo; ou os diferenciais de poder e as formas de violência em causa no encontro colonial envolvendo Portugal e outros povos ao longo de mais de cinco séculos estão ausentes do discurso da lusofonia. O passado é simplificado ao serviço de um enunciado apresentado como inquestionável: o da existência de elos culturais e linguísticos entre povos de diferentes continentes cujas trajetórias históricas foram moldadas pelo contacto com os colonizadores portugueses. Esta ausência de uma representação histórica concreta parece repousar numa “memória representação” de Portugal como nação imperial que tem a sua própria genealogia histórica (Peralta, 2017).
Não se trata tanto de uma incapacidade de lembrar, de uma amnésia, de um “entorpecimento” ou “anestesia” como propôs o historiador Andreas Huyssen (2000, p. 27) ao caracterizar o que designou de “culturas de memória” da contemporaneidade, mas antes, como sugeriu Ann Stoler ao dar conta da incapacidade do meio intelectual e político francês de abordar publicamente a história do colonialismo francês, de uma “afasia”: uma “oclusão de conhecimento” que além de pressupor “uma dificuldade em falar, uma dificuldade em gerar um vocabulário que associe palavras e conceitos apropriados a coisas apropriadas” (2011, p. 125), envolve uma incapacidade de julgar, o redirecionamento da atenção e uma renomeação das coisas de modo a que “o desrespeito seja revivido e sustido” (Stoler, 2011, p. 153).
Tendo como referência este passado comum não vocalizado, a lusofonia alude igualmente a uma “geografia imaginada” - uma entidade geográfica poeticamente investida de “valor imaginário ou figurativo que podemos nomear ou sentir” (Said, 2004, p. 63). Esta história e geografia ancoraram discursivamente a criação do espaço geopolítico da lusofonia, tal como este é entendido pelos estados integrantes da CPLP: um espaço transnacional de trocas económicas, de circulação de bens e de pessoas (sobretudo migrantes laborais), de promoção de relações culturais, todas politicamente tuteladas pelos estados que integram a categoria. As relações do mundo lusófono são uma dimensão mais ou menos significativa das políticas externas dos estados, adquirindo maior ou menor densidade e diferentes acentuações de sentido consoante as necessidades políticas do presente.
A categoria vive das dinâmicas e tensões entre a sua dimensão cultural, linguística e de imaginação, e a sua dimensão institucional e política. Estas dimensões do conceito conheceram relações cambiantes em anos recentes. A aceitação da Guiné Equatorial como estado membro em 2014 - um estado não falante de português, governado por uma ditadura desrespeitadora dos direitos humanos desde 1979, mas que detém abundantes reservas de petróleo - secundarizou a afetividade da língua e da história em detrimento das oportunidades económicas do presente e do futuro.
Os usos da categoria na cultura expressiva: do multiculturalismo à interculturalidade
No domínio da música popular, a lusofonia designou a criação de uma categoria de produção cultural manuseada no âmbito da política cultural e da indústria da música, em especial abarcando produções, eventos culturais e artefactos protagonizados por músicos e performers maioritariamente oriundos dos PALOP, das suas diásporas, do Brasil e, pontualmente, de Portugal.2 É sobretudo em relação aos primeiros que a categoria se materializa.
Como em outras áreas da vida social, a categoria, conforme assinalado na época por figuras como o escritor angolano Ondjaki, excluiu Portugal e os portugueses (Fikes, 2009; Maciel, 2010) e tornou-se um atalho para designar migrantes africanos, os PALOP e o Brasil. Portugal e os portugueses são entendidos enquanto produtores da lusofonia, não enquanto produtos dela, e desse modo a categoria, predicada na reprodução de relações de poder herdadas do período colonial, só excecionalmente os inclui. A pontual inclusão de músicos portugueses dá-se sob condições específicas: em Portugal, sobretudo em eventos de política cultural que narrativizam a proximidade cultural entre géneros musicais africanos e portugueses (por exemplo, concertos promovendo a ideia de uma proximidade estética entre o género musical morna, de Cabo Verde, e o fado); e no exterior, quando no âmbito de eventos da indústria da música, se representa uma imagem de contemporaneidade multicultural de Portugal e de Lisboa, ou se encetam colaborações de músicos portugueses com músicos do Brasil, uma orientação do mercado discográfico que tem sido amplamente explorada.
Intermitentemente reclamado como um resultado histórico das circulações coloniais entre Portugal, África e o Brasil, o fado é um dos géneros que melhor preenche os critérios da lusofonia. Contudo, como defendeu Leonor Losa, a sua inscrição na categoria é totalmente contingente e sujeita a agendas específicas, uma vez que para o género são projetadas formas de imaginação histórica distintas que ora exaltam a sua génese nas trocas atlânticas, ora a fundam numa ancestralidade mediterrânica e oriental (Losa, 2019). Estas modalidades de representação das origens do género coexistem e são mobilizadas de modo cambiante pela indústria e pela política cultural consoante os eventos ou os públicos a que o género se direciona (Ibid.).
À semelhança de outros termos de disseminação alargada, em especial veiculados pelo mercado e pela indústria da música, e como revelado pelo exemplo da utilização cambiante do fado no âmbito dos eventos da lusofonia, esta é uma categoria aberta, porosa e moldável. Os seus sentidos transformam-se no contexto do seu renovado uso, especialmente no âmbito da programação de eventos culturais, denotando quer uma geografia quer um conjunto de propriedades ou de atributos culturais.
O termo qualifica, em primeiro lugar, uma geografia de produção cultural concreta que pode ser traçada entre os PALOP e Portugal, em particular a Área Metropolitana de Lisboa no modo como é habitada e experimentada pelas populações das diásporas daqueles países. Nesta aceção, as ideias de lusofonia e de música lusófona são atalhos para toda a música produzida nos PALOP ou no âmbito das suas diásporas. Esta aceção ganhou forma com a emergência do conceito, na segunda metade da década de 90, quando os termos lusofonia ou lusófono se tornaram identificadores da música dos PALOP em circuitos de mercadorização cultural em Portugal e na Europa, especialmente no mercado mais alargado da world music. A formalização da lusofonia permitiu a inscrição do mundo lusófono no domínio de mercado da world music e um interesse pelas músicas dos PALOP por parte da indústria internacional da música num período em que a cantora cabo-verdiana Cesária Évora se tornou numa das suas principais figuras. À semelhança do termo world music, esta aceção de música lusófona agrupa uma multiplicidade de práticas expressivas com histórias coloniais e pós-coloniais complexas e autónomas.
Na sua articulação com a música e a cultura expressiva, a lusofonia e o lusófono qualificam, em segundo lugar, diferentes configurações de diferença cultural no contexto português. No momento de formalização do discurso e políticas da lusofonia, na segunda metade da década de 90, o conceito constituiu o denominador comum de eventos culturais celebrando a diversidade cultural, a tolerância e a diferença que mobilizaram músicos e performers africanos vivendo em Portugal, assim como jovens descendentes das diásporas africanas. A associação da música e dança à lusofonia comunicou a própria ideia de uma realidade multicultural recentemente formada na sociedade portuguesa e o reconhecimento da necessidade de construção de uma vida comum em torno dessa coexistência (cf. Kymlicka, 1995; Hall, 2000).
Mais do que a multiculturalidade, após os anos da sua emergência a categoria de lusofonia associada à música denotou sobretudo ideias de hibridez e de fusão cultural ligadas à imagem de Lisboa enquanto cidade multicultural e cenário de encontros culturais entre a Europa, o Atlântico Sul, o Índico, África e o Brasil. Em anos recentes, ideias de hibridez e de mistura na orla da constelação discursiva da lusofonia foram crescentemente subsumidas sob o conceito de interculturalidade. Enquanto conceito estruturador das políticas da União Europeia no que respeita a diversidade cultural e a migração para o espaço europeu desde a década de 90 do século XX, a interculturalidade “conota um desejo de conexões socioculturais entre povos de diferentes etnicidades, em oposição aos desenhos inspirados em mosaico do multiculturalismo” (Pardue, 2015, p. 9). Desse modo o termo abriga a ideia da “interação social entre diferentes grupos” como chave quer “para o reconhecimento”, quer “para a igualdade política e socioeconómica” (Pardue, 2015, p. 138) entre diferentes comunidades.
Paralelamente, a noção de interculturalidade foi disseminada através de políticas de gestão da diversidade cultural (Oliveira, 2013) associadas à implementação do modelo neoliberal de produção de cidade em Lisboa (Estevens, 2017). No âmbito de uma economia cultural característica da ordem neoliberal, a produção de uma marca de cidade (city branding) associada à diversidade cultural e à coexistência de diferentes comunidades diaspóricas no espaço urbano é entendida como passível de atrair recursos económicos e produzir valor através do turismo e do investimento (Estevens, 2017, pp. 189-190). A visão da interculturalidade enquanto índice de dinamismo cultural convertível em recursos, competitividade e valor foi especialmente analisada no contexto das políticas municipais associadas às transformações do bairro da Mouraria (Oliveira, 2013; Sanchez, 2016; Estevens, 2017).
Embora nos seus usos institucionais o termo agregue indistintamente, na continuidade de idiomas anteriores, ideias de multiculturalidade e de hibridez, a interculturalidade entendida de acordo com esta lógica de mercadorização trouxe para o feixe de sentidos da lusofonia as realidades do “encontro” cultural, da “interação” e da “troca” (Estevens, 2017, pp. 192-193) vernaculares na cidade. Uma vez mais, não é claro se populações portuguesas brancas com trajetórias mais sedentárias também são abarcadas pela lusofonia e moldadas por estes diálogos interculturais. A noção parece não contemplar as ideias do entrelaçamento e da mútua constituição de sujeitos e grupos sociais que os autores que fundaram a perspetiva pós-colonial propuseram como coordenadas fundamentais para entender o encontro colonial e o seu reenquadramento nas metrópoles pós-coloniais da Europa.
Na sua análise da relação entre cultura e imperialismo, Edward Said propôs olhar “contrapontisticamente” para as experiências de sociedades metropolitanas e colonizadas, reconstituindo as suas “histórias sobrepostas e entrelaçadas” (1994, p. 18). Além da possibilidade de interpretar tradições europeias de expressão artística e de pensamento à luz da história do imperialismo, reconstituindo as suas filiações e notações não usualmente reconhecidas, tal proposta constitui para o autor o suporte de um projeto pós-colonial de expansão de uma “comunidade sobreposta” constituída por anteriores metrópoles e colónias, autorizando formas de “crítica” e de “interpretação” seculares, capazes de franquear as “denúncias do passado”, “expressões de arrependimento” ou de “hostilidade” entre as diferentes formações culturais e comunidades envolvidas (Said, 1994, p. 18-19).
Na mesma direção, na sua análise do colonialismo e pós-colonialismo portugueses, Boaventura de Sousa Santos (2002) sublinhou a importância de considerar a “inter-identidade” que caracterizou historicamente os regimes de identidade desencadeados pelo colonialismo português. As formações de identidade e práticas de governação dos portugueses, em contraste com aquelas dos colonizadores do centro da Europa, teriam sido historicamente marcadas pela “ambivalência” e “hibridez”. Desajustados à polarização entre colonizador (Próspero) e colonizado (Caliban) que possibilitou os colonialismos hegemónicos do centro da Europa, os portugueses terão oscilado entre ambos, habitando a “liminaridade”, a “zona de fronteira” e, desse modo, a “inter-identidade” (Santos, 2002, p. 24) enquanto identidade original. Atendendo a esta condição híbrida constitutiva, o pós-colonialismo no espaço da língua oficial portuguesa seria menos marcado pelo reconhecimento da hibridez e do entrelaçamento, como no mundo anglo-saxão, e mais pela sua crítica. A esta caberia distinguir entre um tipo de hibridez que confere voz ao subalterno (uma “hibridez emancipadora”) e um que usa a sua voz para o silenciar (uma “hibridez reacionária”) (Santos, 2002, p. 17). Dada a sua leitura unívoca das realidades colonial e pós-colonial, o discurso da lusofonia parece encaixar-se neste último tipo. Para ambos os autores a destabilização das categorias binárias desencadeada pela hibridez representa a possibilidade de uma crítica do presente pós-colonial.
Identidades de diáspora, cosmopolitismo e cidadania
A ideia de lusofonia é interpretada pelos músicos a partir de histórias, trajetórias sociais e posicionamentos de identidade diferenciados. O termo é grosso modo tomado como sinónimo das relações coloniais e pós-coloniais entre africanos e portugueses, igualmente consagradas no domínio da cultura expressiva e da música. Mais do que um nexo de portugalidade, denota a coconstituição de realidades culturais e subjetividades. A cantora e compositora Lura começou por situar a lusofonia num cronótopo e numa historicidade particulares:
É um conceito que acabou por naturalmente se implementar nas nossas vidas, no dia--a-dia, de acordo com a nossa história, com a realidade, com o que se foi passando, com a movimentação dos povos, com a colonização. Às tantas o português ficou muito enraizado em Cabo Verde. Cabo Verde também está muito enraizado em Portugal e acaba sempre por haver estas trocas a todos os níveis e neste caso, nomeadamente, a música acaba por estar sempre influenciada por estes encontros que foram acontecendo. Encontros e desencontros - não é? - que foram acontecendo.3
Lura concebe a lusofonia a partir do entrelaçamento histórico entre Cabo Verde e Portugal, quer aquele que resultou do processo de crioulização que desde o século XV configurou a colonização do arquipélago de Cabo Verde e moldou as práticas culturais crioulas cabo-verdianas, quer aquele predicado em migrações laborais de cabo-verdianos que, a partir das três últimas décadas do século XX, tiveram como destino o território de Portugal metropolitano ou pós-colonial. Essa interligação está especialmente documentada na música popular, como assinalou ao recorrer a uma morna de B.Leza (Francisco Xavier da Cruz) para ilustrar o seu próprio entendimento diaspórico da lusofonia:
Há um tema que eu cantei há pouco tempo que é o Bejo de Sôdade. Esse é por exemplo um tema que eu acho que tem um significado enorme e está escrito de uma forma magnífica, de forma a mostrar esta ligação grande entre Portugal e Cabo Verde. “Ondas sagradas do Tejo/ Deixa-me beijar as tuas águas/ Para levares ao mar…/ Um beijo de saudade/ Para levares ao mar/ e o mar à minha terra”. E isto vai acontecer, e acontece já de há muitos anos para cá, esta, esta condição de viver cá, de viver cá em Portugal, mas ter sempre saudades de Cabo Verde, de viver em Cabo Verde, mas ter a necessidade de vir a Portugal porque estes dois países fazem parte de nós. E eu sou um exemplo disso. Eu vivi agora quatro anos em Cabo Verde, mas senti falta de Lisboa. Lá está, vou ser sempre um pouco estrangeira, quer em Lisboa quer em Cabo Verde. Aqui sou uma cabo-verdiana negra de outras origens. E em Cabo Verde eu não nasci lá. E então acabo sempre por ser estrangeira nos dois sítios. Há esta nostalgia, isto dá-nos uma certa nostalgia, por um lado. Mas por outro lado dá-nos uma riqueza imensa, porque de facto temos os dois lados, culturalmente falando; e ao nível da língua e da música enriquece-nos imenso.4
O tipo de consciência diaspórica que descreve, uma dupla identificação ou pertença cultural que é paradoxalmente experimentada com o sentimento de se ser estrangeira em ambos os lugares, constitui a chave para o seu entendimento da lusofonia. Lura nasceu em Lisboa em 1975, filha de pais cabo-verdianos. Com um percurso, durante a juventude, ligado ao desporto e à dança em associações culturais, iniciou a sua ligação à música popular aos 17 anos ao participar na gravação de um disco do cantor são-tomense Juka. O seu interesse pela interpretação dos géneros da música popular de Cabo Verde, sobretudo a partir da gravação do disco Di Korpu ku Alma (2004),5 correspondeu a uma redescoberta mais alargada do seu passado cultural e familiar que a levou a viajar com mais frequência ao território de origem dos seus pais e a conhecer com maior profundidade a realidade cultural das ilhas e a língua crioula - o português foi a primeira língua que aprendeu dada a preocupação dos pais de que se adaptasse ao ensino escolar em Portugal sem barreiras linguísticas; o crioulo era a língua falada pelos pais, a “língua da casa”, “da casa cabo-verdiana.”6 O entrelaçamento entre Cabo Verde e Portugal sugerido pela lusofonia é entendido no caso de Lura a partir de um sentimento de dupla pertença cultural enquanto mulher portuguesa cabo-verdiana ou portuguesa crioula, qualquer que seja a ordem ou o vocabulário - alguém que nasceu e cresceu em Portugal no seio de uma comunidade de diáspora com as suas formas de identificação e de coetnicidade apoiadas na memória coletiva, na afetividade, no sentimento de partilha de uma mesma cultura e língua.
Para Lura, de um modo mais claro do que para os restantes entrevistados, o termo lusofonia constitui igualmente uma categoria política potencialmente emancipadora no terreno da política cultural e no âmbito das lutas de representação pública das comunidades africanas e seus descendentes em Portugal. A este nível, a produção da música popular é central, uma vez que este é o principal domínio de produção cultural que na sociedade portuguesa se associa à diferença cultural - concretamente à ideia de uma cultura africana. A lusofonia é para si um conceito integrador, de valorização cultural e contendo uma promessa de igualdade futura em termos de recursos materiais e condições sociais e políticas entre portugueses, as comunidades africanas e seus descendentes em Portugal, mesmo que no presente persista a dúvida quanto à eficácia das lutas de representação cultural sob o seu signo - nomeadamente quanto ao caráter bidirecional ou recíproco das relações que qualifica:
Ao longo do tempo foi havendo uma dificuldade de integração. Digamos que a lusofonia acaba por nos integrar num bom conceito. De certa forma retira-nos um bocadinho do gueto. Digamos que é um passo positivo. É um passo que nos leva a abranger mais espaço no mundo. […] Isto tem sido uma luta. Tem sido uma luta de valorização que nós próprios temos de dar a nós, mas que os outros não reconhecem. Mas ao longo do tempo estes valores vão sendo reconhecidos. O valor cultural, o valor da palavra, o valor da nossa união, de nos assumirmos como somos, o valor de sermos aceites por aqueles que de certa forma fizeram de nós cabo-verdianos, por aqueles que fizeram também a nossa língua que são os portugueses, que é o mundo lusófono. Então digamos que é uma união e uma integração, uma aceitação global. Enfim, em que sentido é que é? Provavelmente até que ponto é que será nos dois sentidos, até que ponto será só no sentido do africano que se alastra mais para o universo português, digamos, ou será o português que está a reconhecer que o mundo africano também os enriquece? Não sabemos muito bem. Mas o que está a acontecer já é bom. Já há aqui uma abertura global - global dentro do nosso universo lusófono - que é válida, que é boa, que é importante e vamos nesse sentido. Vamos ver até onde irá. Espero que vá mesmo no sentido da igualdade a nível geral e de nos assumirmos como um povo, porque acabamos por ser um povo, o povo da lusofonia, miscigenado. Há aqui uma mistura que de facto tem de ser assumida, não só dos portugueses que estão ainda em Cabo Verde e que criaram família, deixaram o seu coração lá e isso se alastrou por Cabo Verde, como dos africanos que vieram para Portugal e que criaram povos cá em Portugal também, e que, de certa forma, não sabemos até que ponto é que são africanos ou não, ou são portugueses, ou que se assumem como tal. Acho que assumir é o primeiro passo para a liberdade e para a felicidade.7
Por contraste com Lura, cuja ligação à lusofonia se dá enquanto portuguesa que foi socializada no interior de uma formação social de diáspora e se apoia na própria narrativa de hibridez da crioulidade cabo-verdiana, a identificação do músico António Costa Neto com o conceito dá-se a partir de uma experiência de migração profissional no domínio da música a partir de Moçambique, interpretada através de um conjunto de valores cosmopolitas. O seu entendimento da lusofonia predica-se igualmente numa história colonial e pós-colonial de relacionamento entre africanos e portugueses, especialmente materializada no ambiente multicultural da cidade de Lisboa, patente na sua própria biografia e história familiar:
Eu penso que a história não nos deixa fugir. Nós não escolhemos a história que temos. Felizmente, é uma história da qual nos podemos orgulhar. […] No caso de nós que viemos viver para Portugal, onde se criou uma grande diáspora, nasce também como que um território especial, sem fronteiras, um território que não é físico, das gentes dessa lusofonia, onde se fundem todas estas culturas. Acabamos parecendo, senão mesmo sendo até, um povo, um povo único. O Homem insiste em criar limites de fronteiras […] e somos muitas vezes cegos em identificar aqueles territórios - como aquele que acabei de falar - que não […] têm fronteiras físicas. Porque convivemos. Eu dou um exemplo. A minha esposa é cabo-verdiana, a minha filha é portuguesa e eu sou moçambicano. Então de onde é que nós somos?8
Costa Neto chegou a Portugal em 1989, integrando uma digressão do grupo Ghorwane. Para trás ficou a participação em vários agrupamentos musicais na cidade de Maputo, nos anos volvendo a Independência Nacional do país. Tomou a decisão de permanecer em Lisboa, tornando-se músico profissional num circuito de salas de dança e de concertos dedicados à música popular dos PALOP, com ocasionais digressões no exterior do país, sobretudo na Europa e em África. Entre as décadas de 70 e 90, o crescimento das comunidades migrantes africanas em Portugal foi acompanhado do surgimento de espaços de lazer dedicados aos géneros da música popular africana e de infraestruturas de gravação e edição de discos então inexistentes nesses territórios. Um núcleo de músicos profissionais, maioritariamente constituído por cabo-verdianos das ilhas de Barlavento, passou a atuar diariamente em espaços públicos de performance de música e dança na cidade de Lisboa, e iniciou um trabalho em estúdios de gravação, criando redes que possibilitaram que músicos africanos migrantes em Portugal, em outros centros da diáspora africana ou vivendo em países de origem gravassem em Lisboa. Foi a este núcleo que Costa Neto se juntou no final da década de 80, integrando formações musicais de alguns dos principais intérpretes da música da África lusófona como os angolanos Bonga e Waldemar Bastos, ou os cabo-verdianos Paulino Vieira, Bana, Tito Paris, Cesária Évora e Maria Alice (1989-2000), sobretudo como baixista. O músico é também autor de canções cantadas na língua ronga da região de Maputo que processam materiais rítmicos e melódicos inspirados em várias culturas expressivas moçambicanas.
O facto de ser um músico moçambicano envolvido na criação de música popular associada a outras comunidades nacionais e diaspóricas da África lusófona em Lisboa torna-o um interlocutor importante para uma reflexão sobre questões de interculturalidade e mistura cultural implícitas nos discursos oficiais da lusofonia. Como me referiu, desde finais da década de 80 que se envolveu num diálogo prático e regular com as tradições expressivas dos diferentes PALOP:
De facto, essa experiência de ter convivido com artistas e músicos dos diversos países enriqueceu-me imenso. Primeiro enriqueceu-me musicalmente porque eu fui conhecendo não só tecnicamente os géneros musicais, mas isso ajuda muito a perceber quais são as diversas filosofias de vida que existem nas culturas diferentes, nos diferentes povos etc., a nível da lusofonia. Pelo menos a nível dos países africanos de língua oficial portuguesa, quer dizer, eu sinto-me em casa em qualquer lugar. Chego a Cabo Verde como um cabo-verdiano. Até tenho episódios de ser profundamente confundido [Risos].9
Como o seu discurso revela, o desenlace desse diálogo entre músicos não aponta para processos de hibridez ou de fusão cultural em que as práticas musicais e expressivas sintetizariam materiais culturais - elementos musicais, poéticos, coreográficos - originários das diferentes culturas nacionais em presença ou absorveriam de modo automático elementos participando da experiência dos músicos em Portugal. Ao contrário, as fronteiras entre os géneros e práticas expressivas nacionais foram sublinhadas, reforçadas:
Mas uma das coisas que eu acho que nessa altura nos enriqueceu mais a todos foi que mutuamente aprendemos a valorizar mais o que era das nossas origens, porque nós temos a tendência de pensar sempre que quem vem de fora é que vale mais, não é? E quando nos encontramos e sou surpreendido pelo meu amigo que vem de Cabo Verde, de Angola e diz “eh pá, a tua música é fantástica”. Eu olho para mim e “fogo, eu não valorizava isto que eu faço!”, estás a perceber? […] Um dos fatores mais importantes é que aprendemos todos, tanto eu como os outros, que aprendemos a valorizar mais aquilo que já trazemos connosco naturalmente. Iá. Esta é que foi para mim a grande aprendizagem. Para além de ter aprendido outras coisas. Por exemplo, eu sei muito bem o que é a morna hoje, porque foram muitos anos a tocar morna. Sei muito bem o que é a coladeira. Sei muito bem o que é o semba, não é? E os meus amigos também passaram a saber o que é a marrabenta […] Passaram a saber que em Moçambique existem as timbilas que é uma música tradicional.10
Embora assente num posicionamento diaspórico, a identificação de Costa Neto com a lusofonia é sobretudo suportada por valores e práticas cosmopolitas. Costa Neto projeta para o espaço lusófono o princípio estruturador do cosmopolitismo, de acordo com o qual todos os seres humanos têm deveres morais uns para com os outros além das suas esferas comunitárias imediatas - definidas pela nação, diáspora, etnicidade, religião, cidadania conferida pelo Estado, etc. (Brown e Held, 2010, p. 1). Se na orientação ética do cosmopolitismo o envolvimento com o outro se predica numa humanidade partilhada, no tipo de cosmopolitismo lusófono que Costa Neto preconiza, esta humanidade é mediada por uma história comum. Estes valores têm de resto vinculado a sua prática de músico a projetos relacionados com a educação multicultural e o antirracismo, os direitos humanos e das crianças, a luta contra a pobreza, entre outros temas.
Estes valores subjazem igualmente a uma orientação prática cosmopolita, a de envolvimento com a diferença cultural e musical através da sua vivência na cidade de Lisboa, e das suas circulações no domínio transnacional da música mercadorizada entre os mercados da lusofonia e da world music.11 Como os restantes músicos abordados no presente texto, Costa Neto não se ajusta ao perfil convencional de migrante laboral africano a viver em Portugal. É, antes, um migrante profissional no domínio da produção da música popular, com relativo capital cultural, com uma mobilidade física conferida pela sua atividade profissional que lhe permite circular pontualmente pelos diferentes territórios do espaço lusófono de acordo com modalidades de viagem que contrastam com as estratégias de mobilidade de migrantes laborais dos PALOP. É a partir dessa experiência e dos valores que a acompanham que se sente um cidadão do universo lusófono que está à vontade em qualquer dos territórios da lusofonia.12
Acoplada a ideias de cosmopolitismo, multiculturalismo e interculturalidade, a lusofonia representa para Costa Neto a possibilidade de uma crítica da história colonial - uma “pedagogia cívica,” utilizando as suas palavras, buscando um melhor entendimento entre as comunidades abarcadas pela lusofonia no presente pós-colonial:
[No centro da lusofonia] está uma história comum que infelizmente não tem sido muito valorizada, sobretudo no que diz respeito à pedagogia cívica, porque eu acho que é muito importante que se sinta que essa história existe. […] Eu acho que é muito violento que muita coisa tenha sido esquecida em tão pouco tempo. É preciso que comecemos a falar das coisas de forma clara e frontal. No caso de Portugal, [essa história] é muito esquecida muito por parte de fantasmas que se receia mexer com eles: o fantasma do colonialismo, […] o fantasma do tráfico de escravos […] e também entra a questão racial no caso de África. […] Mas a única forma de vencer esses fantasmas é falar das coisas! […] Estamos tão próximos, mas metemos esse fantasma entre nós e isso cria esta falsa distância que nem sequer existe. […] A lusofonia somos nós, a lusofonia é a nossa história comum.13
Esta visão da lusofonia, em suma, descreve uma categoria política que deve ser ocupada, cuja atuação deve ser negociada e transformada por aqueles a quem diz respeito, a partir de um questionamento das instituições que a representam, em particular da CPLP.
Se os trajetos de Lura e Costa Neto ocorreram em diálogo com as dinâmicas culturais e políticas de um tempo pós-colonial, a prática expressiva do músico angolano Bonga (n. Porto Quipiri, Angola, 1942) acompanhou as transformações que marcaram a transição entre o período colonial tardio e o presente. Esta trajetória biográfica configura o modo distintivo como interpreta a lusofonia enquanto categoria que interceta as práticas expressivas dos países de língua oficial portuguesa. Bonga experimentou ambas as temporalidades de modo politicamente comprometido, a primeira enquanto opositor ao colonialismo português, a segunda enquanto crítico do regime de partido único do MPLA liderado por José Eduardo dos Santos, mas igualmente das relações entre portugueses e africanos no Portugal pós-colonial. É de acordo com essa condição duplamente crítica de exílio e de diáspora, que avalia a lusofonia a partir de Portugal. A lusofonia constitui para ele a tradução institucional de uma história comum e de “entrelaçamento”14 entre africanos e portugueses - “faria todo o sentido derivado dos anos em que a gente está juntos. E não fomos, nem o meu amigo nem eu, os culpados deste encontro.”15 Idealmente comunicaria a “convivência” e “o intercâmbio salutar” entre pessoas “que se ligam através da língua e da cultura”.16 Contudo, na sua ótica, a existência de um ideal lusófono é meramente retórica e não tem correspondência no plano das relações sociais:
É preciso que a gente pratique através do outro uma relação de concórdia, de amizade e de intercâmbio. Isto é coisa que não existe de facto! […] Essa vivência não existe. Nós não vamos a casa de ninguém. É mais fácil eu receber aqui um indivíduo que seja meu conhecido, ou que queira tratar de qualquer coisa, não sei quê, do que a gente [com ênfase] ir a casa de um português.17
A lusofonia constitui a seu ver um projeto promissor, mas não concretizado dada a ausência de hospitalidade dos portugueses, uma metáfora poderosa para interpretar as relações de distância e as fronteiras no quotidiano entre africanos e portugueses vivendo no Portugal pós-colonial. Essa ausência de hospitalidade encontra correspondência, a seu ver, na ineficácia das políticas da lusofonia em promover e valorizar um património cultural comum, onde se inclui centralmente a cultura expressiva.
Bonga cresceu nos musseques da Luanda colonial onde conviveu quotidianamente com várias manifestações de cultura expressiva, sobretudo associadas ao grupo étnico ambundu, historicamente fixado no Nordeste de Angola e zonas limítrofes de Luanda, e falante de kimbundu. A sua ligação aos instrumentos de percussão iniciou-se na infância, sobretudo ao acompanhar, na dikanza (um idiofone de raspagem aproximado a um reco-reco), o seu pai, um tocador de concertina na tradição da massemba (um género de música e dança da região de Luanda, também designado de rebita). Durante a juventude integrou enquanto percussionista grupos como Kissueia, Os Ilundos ou Kimbandas do Ritmo. Reagindo à política assimilacionista do estado colonial, que valorizava retoricamente a adoção por parte dos angolanos negros e mestiços de comportamentos e valores identificados com Portugal (e com a ideia de Europa) em detrimento da cultura e línguas africanas, estes grupos inscreveram-se no movimento de valorização de práticas culturais e linguísticas ambundu/kimbundu como modo de articular resistência anticolonial e despoletar sentimentos nacionalistas (Cidra, 2019) - uma sensibilidade política e cultural inaugurada durante a década de 50 por Liceu Vieira Dias e o grupo Ngola Ritmos (Moorman, 2008).
Além da música, as suas performances enquanto praticante de atletismo valeram-lhe um convite para treinar na metrópole (1966) em representação do Sport Lisboa e Benfica e da seleção nacional, uma trajetória comum a atletas de outros territórios coloniais africanos. Em paralelo à atividade de velocista, tornou-se percussionista de músicos angolanos atuando em Portugal. O crescente envolvimento com a luta anticolonial e a iminência de ser detido pela polícia política levaram-no a refugiar-se em Roterdão (1972), uma cidade com uma expressiva comunidade de migrantes laborais cabo-verdianos ligados ao trabalho portuário e marítimo, mas igualmente um ponto de encontro de ativistas políticos dos diferentes territórios coloniais portugueses em África. Sob o nome artístico (e de clandestinidade política) Bonga ou Bonga Kuenda, gravou o LP Angola 72, acompanhado pelo cabo-verdiano Humbertona e pelo angolano Mário Rui Silva, ambos guitarristas.18 O disco apresentou composições de Bonga com mensagens anticoloniais e nacionalistas cantadas com uma forte carga emocional na língua kimbundu. A sonoridade acústica das guitarras, dos instrumentos de percussão e de sopro, o timbre rouco e a expressividade da sua interpretação vocal, estabeleceram os princípios estéticos do seu repertório gravado no período, especialmente audíveis em Angola 74 e Raízes: Canções e Poemas de Angola, Brasil e Cabo Verde.19 Este último disco, que resulta de uma colaboração entre Bonga, o músico brasileiro Sebastião da Rocha Perazzo (“Tião”, que se tornou o seu principal parceiro musical durante a década de 70) e o saxofonista da Guiné-Conacri Jo Maka, parece-me especialmente importante para avaliar contrapontisticamente a relação do músico com o que posteriormente seria concebido como lusofonia.
Ao apresentar as práticas expressivas de Angola (semba, rebita, kilapanda), Cabo Verde (morna e coladeira) e Brasil (samba, chorinho, baião e coco) em continuidade e em dialogia, enfatizando a sua proximidade cultural e estilística, o disco elege o Atlântico Negro (Gilroy, 1993) e, em particular, a instituição da escravatura tal como foi implementada ao longo do império colonial português, como o evento histórico formador das culturas diaspóricas negras, concretamente de Cabo Verde e do Brasil, e das afinidades culturais entre estes povos e o de Angola. O projeto do disco fundamenta estes elos culturais não de acordo com uma história mítica e heroica da expansão portuguesa, mas de acordo com uma intimidade diaspórica (Boym, 1998) decorrente de uma história de violência, de subordinação, mas igualmente de resistência. Bonga incidiu de resto nos elos transatlânticos entre Angola e o Brasil numa das suas canções mais populares, o semba “Mulemba Xangola”.20 Nas suas palavras, o álbum Raízes dá conta de uma:
História de povos reencontrados! E há gente que tem medo dos povos reencontrados porque eles quando se reencontram falam de tudo um bocadinho, e de tudo, [com ênfase] claro, a passar pelas palmatórias que levaram na mão, o chicote que levaram, das comidas específicas que eles têm e que gostariam de continuar a comer […], não é verdade? Das pessoas que nos frequentam e que nos respeitam. Ah, o Raízes é isso! O Raízes é isso aí.21
Gravado no momento das independências nacionais dos estados africanos sob o signo do nacionalismo cultural e dos valores anticoloniais, Raízes comunica a possibilidade dos outrora colonizados estabelecerem alianças predicadas na crítica ao outrora colonizador, no descentramento deste, na destituição do seu poder de representação na história. Neste sentido a sua proposta assenta em valores que são contrários àqueles que, a partir da década de 90, se estruturaram em torno do conceito de lusofonia, sobretudo por procurar reposicionar a história através da valorização das práticas culturais dos povos colonizados numa aliança autónoma à dos colonizadores.
Para Bonga - e em continuidade com estes valores - existe no presente um hiato entre o discurso e a prática da lusofonia, especialmente observando as relações entre africanos e portugueses na sociedade portuguesa. A ausência de hospitalidade a que se refere encontra correspondência na ineficácia das políticas da lusofonia em promover e valorizar um património cultural comum, onde se inclui centralmente a cultura expressiva. Bonga aponta a incapacidade das instituições que representam a lusofonia de infletirem políticas de divulgação da música lusófona nos meios de comunicação de massas, sobretudo na rádio; de organizarem eventos que promovam o intercâmbio entre práticas artísticas; de salvaguardarem uma política de representação que promova a valorização cultural das práticas expressivas da África lusófona em vez da sua exotização, da sua racialização a partir do seu consumo erótico (“uma espécie de pornografia”22) ou da sua promoção na continuidade de discursos de racialização do outro africano na sociedade portuguesa (por exemplo, a sua associação à criminalidade e à violência). Em suma, na sua visão, a lusofonia poderia ser socialmente produtiva se constituísse uma plataforma que assegurasse uma representação cultural igualitária decorrente de uma crítica pós-colonial de legados coloniais persistentes.
Em vez disso Bonga entende a lusofonia, enquanto narrativa de inspiração tropicalista que reinstala Portugal no centro da história e confere um nexo de portugalidade às práticas culturais do mundo falante de português, de modo distanciado. Apesar dos anos passados em Portugal, não se sente um cidadão português ou lusófono. Pelas suas tomadas de posição relativamente ao regime de partido único em Angola, é um angolano de exílio e de diáspora.
A promessa da cidadania
Entre as décadas de 80 e 90 do século XX o conceito de lusofonia foi sendo gradualmente disseminado através de um conjunto de políticas envolvendo os estados de língua portuguesa, em especial Portugal e o Brasil, e de eventos, práticas e objetos culturais de ampla circulação que, em conjunto, contribuíram para a sua gradual entextualização23. Em contraste com perceções dominantes no Brasil ou nos PALOP, contudo, em Portugal a lusofonia não comunicou apenas a ideia longínqua de uma aliança política e económica entre estados ou uma política cultural de defesa da língua portuguesa, mas constituiu também a tradução de um momento histórico no país: o da assunção da natureza crescentemente multicultural da sociedade portuguesa desencadeada pelo aumento substancial de migrações pós-coloniais para o território nacional português, especialmente oriundas dos PALOP e do Brasil.
A lusofonia não só comunicou a própria ideia de diferença cultural como forneceu a moldura a partir da qual se passou a pensar a relação com a diferença na sociedade portuguesa. Inicialmente, e na continuidade do período colonial, estabeleceu uma relação hierárquica entre Portugal e as nações outrora colonizadas ao postular o carácter transcendente e universalista da cultura e língua portuguesas na formação de outros mundos culturais. Acentuou a proximidade cultural do outro relativamente a uma imaginação da cultura portuguesa marcada pela crença numa missão histórica e civilizadora da nação. Em anos recentes as ideias de hibridez e de interculturalidade procuraram corrigir estas assimetrias contidas na noção em direção à ideia de um passado e presente de entrelaçamento e de mútua constituição. Contudo, não é claro se as trocas cosmopolitas vernaculares associadas à lusofonia incidem tanto sobre as práticas culturais de migrantes de África, Ásia ou América do Sul que vivem na cidade de Lisboa quanto sobre aquelas de cidadãos naturais de Portugal. O funcionamento meramente unívoco do conceito, a sua redução da diferença cultural a um resultado da história imperial portuguesa, assim como a desvantagem racializada e a exclusão que marcam a experiência de populações migrantes em Portugal, bloqueiam a possibilidade de a lusofonia adquirir pleno significado para as populações que abarca e poder ser definida por estas de modo a assumir-se como uma comunidade que verdadeiramente as represente.
No domínio da música popular, o discurso da lusofonia gerou uma categoria agregadora de todas as práticas musicais produzidas por músicos do Brasil, dos PALOP e das suas diásporas em Portugal. A música popular constituiu o principal terreno de reiteração da lusofonia enquanto conceito. Os principais géneros de música e dança dos países de expressão portuguesa, as suas circulações contemporâneas no âmbito da indústria da música internacional, assim como as colaborações entre músicos, especialmente aquelas ligadas à imagem da multiculturalidade da cidade de Lisboa e às sociabilidades de migrantes em Portugal, figuraram simbolicamente pela história comum que o conceito institucionalmente denotou. Colocada em circulação por instituições de política cultural e por agentes da indústria da música, a ideia de lusofonia e a sua ligação à música popular materializaram-se em eventos culturais como festivais e concertos temáticos, e colaborações pontuais entre músicos africanos, brasileiros e portugueses ativadas em espetáculos ou gravações de discos. Apesar do trabalho conjunto entre músicos poder implicar a homogeneização de uma sonoridade entendida na indústria enquanto lusófona, bem como uma regularidade de influências culturais e de elementos estilísticos partilhados, os músicos continuaram a abordar a sua prática expressiva a partir de tradições nacionais e diaspóricas circunscritas.
Os músicos cujos entendimentos de lusofonia são debatidos no texto interpretam o conceito a partir de trajetórias individuais e identidades de diáspora diferenciadas, quer entre si quer em relação a outros perfis de migrantes ou populações de diáspora. Em Portugal desenvolveram atividade como músicos profissionais, dialogando com as tradições de territórios de origem de acordo com recursos culturais, materiais e tecnológicos proporcionados pela experiência de diáspora. A partir de Lisboa, o principal centro de produção e mercantilização da música dos PALOP, divulgaram a sua prática expressiva ao longo de redes, que interligam centros de diáspora e mercados da música na Europa e em África. O seu acesso aos meios de mediação da música popular e a sua criatividade artística tornaram-nos, na perspetiva de públicos nacionais e diaspóricos, em reconhecidos representantes de culturas nacionais e, em alguns casos, em vozes importantes das sociedades civis dessas nações, comentando através dos temas, personagens e lugares abordados nas suas canções, o passado, o presente e o futuro comuns.
Apesar do relevo do lugar de origem na sua representação pública e prática artística, estes músicos não pertencem já subjetivamente a uma terra ou casa apenas. A sua relação com os países africanos é mediada pela diáspora em Portugal, onde práticas culturais e significados associados a comunidades de origem coexistem com, e são reinterpretados à luz de uma experiência de vida em território português; onde relações práticas e imaginadas com a nação e a diáspora competem com a experiência de vida na sociedade portuguesa e com os discursos que em Portugal enquadram a relação com a diferença, nomeadamente a lusofonia. A sua experiência de diáspora, por outro lado, em contraste com a da maioria dos migrantes laborais africanos, está ancorada no seu estatuto de músicos profissionais: alguém que frui de mobilidade espacial transnacionalmente, mesmo que de modo provisório, no exercício do seu trabalho; cuja experiência social, ao contactar com públicos portugueses, europeus e africanos, não se confina aos contextos de trabalho e às redes de comunidade e de parentesco definidas pela pertença nacional e diaspórica - aos contextos de interação social circunscritos dos migrantes laborais africanos ou às sociabilidades envolvendo exclusivamente migrantes do mesmo país ou região de origem. Estes aspetos da sua experiência contribuem em conjunto para uma aceitação, mesmo que crítica, da categoria, que envolve necessariamente o reconhecimento de uma ligação a Portugal e a uma história comum que é mobilizada em narrativas de identidade. As suas trajetórias de vida transportam os traços de várias histórias e práticas culturais e o termo lusofonia permite sintetizá-las ou nomeá-las. Esta aceitação da lusofonia radica, na maior parte dos casos debatidos, numa consciência diaspórica aberta, complexa e que abriga a possibilidade de se pertencer a várias casas, como alguma literatura sobre diásporas assinalou em décadas passadas (Hall, 2017).
Lura, por exemplo, ao comentar o enriquecimento que decorre dessa possibilidade de habitar dois lugares - mesmo que experimentados a partir de uma permanente condição de estrangeira -, dois enquadramentos culturais ou duas línguas, alude, seguindo a conhecida ideia de Homi K. Bhabha, ao ato de “falar a partir do lugar desestabilizador entre línguas,” negociando e traduzindo através das suas diferenças (Hall, 2017, p. 173; Bhabha, 1994), um processo que alimenta a sua criatividade artística. A partir da sua história familiar, da sua experiência profissional e dos seus valores cosmopolitas, Costa Neto afirma igualmente a sua pertença a diferentes casas, radicada nos trânsitos e práticas culturais que se entrelaçam no seu percurso. Por seu turno, o percurso de Bonga, marcado pela luta anticolonial e pela oposição ao regime de partido único em Angola, aproxima-se a uma configuração mais tradicional e fechada de diáspora, construída a partir de uma fronteira excludente entre um dentro e um fora (Hall, 1999) e apoiada numa relação de lealdade, vivida à distância, relativamente a um território de origem que, no seu caso, é experimentada de acordo com um sentimento de exílio político.
Os músicos partem da prática musical e expressiva para iluminarem as múltiplas histórias culturais abarcadas pela categoria de lusofonia e apontarem para a possibilidade de formulação de novos valores políticos que organizem a vida comum das suas várias comunidades. O conceito contém então uma promessa de cidadania. Mais do que o acesso às prerrogativas outorgadas por esta, como direitos políticos, igualdade perante a lei ou os direitos fundamentais que, no conjunto, constituem a cidadania social (proteção contra riscos sociais maiores, educação), a noção e o seu aparato institucional comportam para os músicos “a capacidade ativa de afirmar direitos no espaço público” (Balibar, 2015, p. 66) através da expressão cultural e da vocalização de histórias culturais e narrativas suprimidas. Essa possibilidade persiste, contudo, uma promessa, uma vez que encerra um conjunto de expectativas e de desejos relativamente ao reconhecimento, à inclusão social e à participação política das comunidades diaspóricas africanas que permanecem por realizar no presente.
O conceito representa a possibilidade de articulação de formas não normativas de cidadania, isto é, linguagens culturalmente específicas para enunciar apelos políticos (Lazar, 2013). Para Lura, estas respeitam a possibilidade de a lusofonia promover a valorização e o reconhecimento de identidades e práticas culturais através da relação dialógica com o outro significativo - o que Charles Taylor (1994) chamou de política do reconhecimento. A lusofonia responde desse modo ao duplo apelo do multiculturalismo na procura por igualdade social e justiça e, simultaneamente, pelo reconhecimento da diferença cultural. Para Costa Neto, a lusofonia constitui idealmente o garante institucional de uma cidadania pós-nacional na defesa dos direitos humanos, da democracia, da liberdade de expressão, da igualdade e da justiça nos países de língua portuguesa. Estes valores devem ser apoiados numa pedagogia que compreenda o debate em torno das histórias coloniais que envolvem os cidadãos dos países de língua portuguesa, e uma crítica de legados coloniais persistentes.
Iluminando geografias de expressividade musical alternativas
Mas é sobretudo através de modos performativos e expressivos, mais ou menos sujeitos a reflexividade, que os músicos alargam a noção de lusofonia. Nesta direção, a categoria comporta a possibilidade de formular geografias de imaginação e de aliança que compreendem, e por vezes transcendem, os países de língua portuguesa, relativizando a centralidade de Portugal e reavivando rotas de circulação cultural que atravessam ou estão radicadas em histórias coloniais e pós-coloniais. Estas geografias de expressividade musical (Losa, 2019) que comportam modos musicais e expressivos de relação com o outro, mas também depoimentos sobre ele e sobre si mesmo, aludem a histórias complexas de transformação cultural que ligam as culturas expressivas africanas ao Brasil e às Caraíbas.
Estas histórias complexas de apropriação cultural, de imaginação e de identificação transmitem de um modo mais aproximado as paisagens sonoras e as histórias culturais nas quais os músicos inscrevem os seus processos criativos e a partir das quais questionam a unidade dos materiais culturais e dos processos de interação cultural agrupados sob o termo de lusofonia. Ao acentuarem a irredutibilidade da prática cultural a noções institucionalmente formadas de comunidade cultural e linguística predicada numa história articulada em termos imperiais, reclamam a possibilidade de as relações entre comunidades africanas e a população portuguesa poderem ser formuladas de modo simétrico a partir das experiências e vozes de todos os interlocutores abrangidos pela categoria. Só uma orientação igualitária deste tipo poderá revelar se o termo lusofonia preservará sentido no futuro ou se outro conceito denotando uma história colonial e pós-colonial comum e a interculturalidade tomará o seu lugar.