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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.243 Lisboa jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022243.06 

Dossiê

Dossiê temático: Animais-companheiros nas vidas dos humanos

Verónica Policarpo1 
http://orcid.org/0000-0002-9245-1057

Miguel Barbosa2 

Ricardo R. Santos3 
http://orcid.org/0000-0003-0406-4215

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. veronica.policarpo@ics.ulisboa.pt

2 Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Avenida Professor Egas Moniz - 1649-028 Lisboa, Portugal. mbarbosa@medicina.ulisboa.pt

3 Instituto de Saúde Ambiental, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Avenida Professor Egas Moniz - 1649-028 Lisboa, Portugal. ricardoreis@medicina.ulisboa.pt

Policarpo, V.. (, 2022. ),, Introdução “Dossiê temático: Animais-companheiros nas vidas dos humanos”, ., Análise Social. , 243, LVII (2.º), pp., 334-339p. .


Animais-companheiros nas vidas dos humanos

O que faz com que um animal seja considerado de companhia? Como constroem os humanos as categorias, ou as demarcações morais, éticas e sociais, que os levam a olhar para uns poucos animais como dignos de viver consigo, ou para si, e uns outros tantos não? (Em boa verdade, a maioria).1 Como nos relacionamos com as diferentes espécies, em particular as domésticas, e com cada indivíduo de cada espécie? Que impactos benéficos tem essa interação, esse relacionamento, para a saúde e o bem-estar dos humanos? E quais as consequências destes modos de representação, interação e relação para as vidas desses animais que, apesar de tudo, são consequências forjadas a partir daquilo que é a interpretação dos humanos sobre um Outro que é diferente, que não fala, não porque não tenha voz, mas porque não articula uma linguagem inteligível à nossa razão? Como ultrapassar a ambiguidade de quem fala em representação de uma condição que nos traz à memória a advertência de Hegel, a de que “onde se está por representação, não se está”? Foi a questões como estas que a conferência Animais-Companheiros nas Vidas dos Humanos: Desafios Sociais e Éticos, organizada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) e pelo Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, procurou responder, ao longo de dois dias, em novembro de 2018.

A verdade é que o tema dos animais não-humanos - uma definição já de si problemática, pois define o Outro por aquilo que ele não é (não-humano), isto é, define-o tomando como aprumo a positividade do idêntico (ser ou não humano), ignorando a negatividade do diferente (ser polvo, ser sardinha, ser caracol, etc.) - adquiriu um lugar na agenda política, acompanhada de uma crescente visibilidade pública, que veio a culminar na aprovação, em 2017, do estatuto jurídico dos animais (Lei n.º 8/2017, de 3 de março), alterando, por conseguinte, o Código Civil, o Código de Processo Civil e o Código Penal. Os animais de companhia, em particular, captam crescentemente o interesse das famílias portuguesas: segundo a consultora GfK, entre 2011 e 2018, a percentagem de lares com pelo menos um animal de estimação aumentou de 45% para 58%, totalizando 5,8 milhões de animais, entre cães (36%), gatos (22%), pássaros (10%) e peixes (4%), com os quais as famílias gastam, em média, 12% do total do seu orçamento familiar (GfK, 2011; 2015; 2018). Esta entrada na esfera privada e familiar é enquadrada por transformações societais mais alargadas, que atravessam as sociedades contemporâneas, e também a sociedade portuguesa, como, por exemplo, a valorização das relações e dos afetos na construção dos laços. Estes animais atraem assim a atenção dos mercados, proliferando os serviços e os produtos à sua volta, vocacionados para a saúde e o bem-estar, uma alimentação altamente diferenciada ou o entretenimento, mas também para acessórios de moda ou tratamentos cosméticos variados.

Em Portugal, cães e gatos, retratados em pinturas, iluminuras ou outras obras de arte, começam a fazer parte das vidas de reis e aristocratas desde o Renascimento. No entanto, a categoria “animais de companhia” 2 começa a desenvolver-se apenas na passagem do século XVIII para o XIX, com a consolidação do papel da burguesia. Durante este período, a família vai-se tornando cada vez mais privada, fechando-se ao exterior. É nessa altura que os pequenos animais ficam circunscritos ao espaço privado da casa, tal como as mulheres e as crianças. Este movimento, e a consequente legitimidade de tomar sob o cuidado humano animais com uma função quase exclusiva de fazer companhia (lapdogs), ganham sentido em comunidades em abundância de recursos e, por isso, com a possibilidade de manter animais que não têm como fim o seu consumo (DeMello, 2012). São, pois, animais que vivem em grande proximidade física com os humanos, com quem mantêm relações emocionais e afetivas, fazendo parte do domus, ou casa. São, portanto, na verdadeira aceção da palavra, animais domésticos, que fazem parte da família. Não são percebidos como comestíveis, antes são vistos como indivíduos mais ou menos insubstituíveis (e não apenas como membros de um grupo, a espécie a que pertencem), com traços de personalidade próprios, muitos deles um tanto antropomorfizados. A sua maior proximidade e, naturalmente, a finalidade com que foram sendo selecionados pelos humanos ao longo do tempo, fez com que eles ganhassem uma maior visibilidade face a outros animais (como os de produção alimentar, entretenimento ou experimentação), gozando de certos privilégios: uma maior atenção por parte dos humanos, uma maior tendência para os proteger do sofrimento, da dor, da doença, da crueldade, e até um maior reconhecimento das suas capacidades emocionais, sobretudo no que diz respeito a emoções mais complexas como a depressão, a ansiedade, o amor ou o luto (cf. McGrath et al., 2013; Morris, Doe e Godsell, 2008).

Os animais de companhia ocupam, nas sociedades ocidentais contemporâneas, um lugar liminar, ou seja, um lugar de transição, a meio caminho entre o humano e o não-humano. Uma zona cinzenta em que, por um lado, têm uma maior visibilidade e lhes são reconhecidos mais direitos do que aos outros animais, mas, por outro, o seu estatuto privilegiado permanece problemático, instável e, apesar de tudo, indefinido, facilmente sujeito a despromoção em caso de dificuldades, por exemplo, de ajustamento às condições e estilos de vida dos humanos. Pensar a categoria “animais de companhia” levanta, assim, diversas questões. Como é percebido o continuum humano-animal? Como é construída, mantida, ou antes questionada, não apenas a barreira intraespécies, mas sobretudo interespécies? Em que medida é necessária uma mudança conceptual que nos permita captar outros modos de relação com estes animais, modos esses mais estruturados na cooperação do que na instrumentalização? Pensando-os como companheiros, num continuum de uma relação recíproca e coconstruída, e não tanto como indivíduos, ou espécies, que têm uma função bem definida, que acaba por sublinhar a dicotomia humano-animal, em que o segundo está ao serviço do primeiro?

Este dossiê temático da Análise Social dá voz a alguns dos intervenientes na conferência Animais-Companheiros nas Vidas dos Humanos: Desafios Sociais e Éticos e, desta forma, marca a dinâmica que se criou em torno da questão animal e que, hoje, permanece viva e pujante no ICS-ULisboa. Os contributos aqui reunidos vêm de olhares disciplinares múltiplos, que convergem para um objetivo comum: melhor compreender os modos como animais humanos e não-humanos interagem, como se relacionam, e o que acontece naquele espaço partilhado por eles habitado. Ademais, ao invés de tomar como ponto de partida as categorias de animais de companhia ou animais de estimação, esta conferência procurou tomar como fio condutor do seu programa a noção de espécies companheiras (companion species), proposta por Fonte, e que vem precisamente problematizar a distinção humano/não-humano. Os artigos que se seguem discutem, do ponto de vista teórico e/ou empírico, esta relação humano-animal a partir de temas distintos: o seu lugar nas famílias e na vida pessoal dos portugueses, como laço afetivo e fonte de identidade (Policarpo e Tereno); os modos de os incluir nas formas de pensar a cidade e o território (Horta e Gross); a sua presença e importância junto de populações vulneráveis, nomeadamente o seu papel na vivência da doença crónica ( Hilário et al.); as questões relacionadas com a sua perda e as práticas e significados sociais associados ao luto (Policarpo).

Os organizadores deste dossiê temático e da conferência Animais-Companheiros nas Vidas dos Humanos: Desafios Sociais e Éticos agradecem, reconhecidamente, o apoio institucional por parte do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, na pessoa da doutora Karin Wall, em particular na cedência do espaço e de todas as condições logísticas para a realização da conferência, mas também do Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, na pessoa do professor doutor António Barbosa. Este agradecimento é extensível a todos os palestrantes convidados, bem como àqueles que apresentaram comunicações livres, cujo contributo muito enriqueceu o programa e a discussão. Uma conferência não sobrevive apenas de oradores, mas também, e talvez sobretudo, de ouvintes ativos, participativos, críticos, entusiasmados. Tivemos, pois, a felicidade de contar com a presença de uma audiência fértil, em todos estes aspetos, e, por isso, a todos aqueles que nos acompanharam ao longo dos dois dias de trabalhos, o nosso obrigado. Um agradecimento final à revista Análise Social, na pessoa do seu então diretor, doutor José Sobral, por ter aceitado o desafio de publicar este dossiê.

Referências bibliográficas

BRAGA, I. D., BRAGA, P. D. (coord.) (2015), Animais e Companhia na História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores. [ Links ]

DeMELLO, M. (2012), Animals in Society: An Introduction to Human-Animal Studies, Nova Iorque, Columbia University Press. [ Links ]

GfK (2011), Track.2Pets, Lisboa. [ Links ]

GfK (2015), Track.2Pets, Lisboa. [ Links ]

GfK (2018), Track.2Pets, Lisboa. [ Links ]

JEAN L., Wilkie R. (2019), “Introduction to the silent majority: invertebrates in human-animal studies”. Society & Animals, 27(7), pp. 653-655. https://doi.org/10.1163/15685306-00001903. [ Links ]

McGRATH, N., et al. (2013), “Public attitudes towards grief in animals”. Animal Welfare, 22(1), pp. 33-47. https://doi.org/10.7120/09627286.22.1.033. [ Links ]

MORRIS, P., DOE, C., GODSELL, E. (2008), “Secondary emotions in non-primate species? Behavioural eports and subjective claims by animal owners”. Cognition and Emotion, 22(1), pp. 3-20. https://doi.org/10.1080/02699930701273716. [ Links ]

1 A diversidade de animais é tremenda e o nosso conhecimento sobre ela é ainda bastante reduzido. Até ao momento, os zoólogos descreveram pouco mais de 1,5 milhões de espécies de animais, que vão deste as simples esponjas marinhas até aos humanos, passando pela alforreca, a sanguessuga, o caracol, o mexilhão, o polvo, o verme, a aranha, a mosca, a formiga, a estrela-do-mar, o bacalhau, a salamandra, o camaleão, a pega-azul ou o morcego. Ainda assim, estima-se que este valor corresponda apenas a 20% das espécies existentes no planeta. Cf., por exemplo, Jean e Wilkie (2019).

2 Que deve ser aqui entendida num sentido particular, pois a categoria de animais de companhia, do ponto de vista da canicultura, está historicamente bem estabelecida, e que inclui diferentes secções (Bichons, Caniche, Cães Belgas de tamanho pequeno, Cães nús, Cães do Tibete, Chihuahua, Spaniels ingleses de companhia, Epagneul Japonês e Pequinês, Epagneul Anão Continental, Kromfohrländer e os Molossóides de tamanho pequeno) e, por sua vez, diferentes raças de cães destinadas exclusivamente à companhia.

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