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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.243 Lisboa jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022243.12 

Recensão

Recensão: Dos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau

Aurora Almada e Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-5753-7015

1 IHC, FCSH-NOVA, Av. de Berna 26 - 1050-099 Lisboa, Portugal. auroraalmada@yahoo.com.br

Catarina, Laranjeiro. ., Dos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau. ,, Lisboa: ,, Outro Modo Cooperativa Cultural, ,, 2021. ,, 318p. pp. ISBN, ISBN: 9789895488285.


Dos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, da autoria de Catarina Laranjeiro, resulta de uma tese de doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global defendida pela autora na Universidade de Coimbra. O livro aborda um conjunto de narrativas criadas no período da guerra colonial na Guiné, confrontando-as com as que, entretanto, surgiram no pós-independência. Para tal, Catarina Laranjeiro apoia-se na análise de filmes realizados por cineastas estrangeiros e guineenses aquando da guerra colonial e nos primeiros anos após a independência, mas também num trabalho etnográfico na tabanca de Unal, no sul da Guiné-Bissau, onde o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) tinha um dos seus bastiões. Ao explorar os projetos políticos que as diferentes narrativas veiculam, o livro assume-se como uma publicação que pretende dar um contributo para o estudo das memórias da luta pela independência da Guiné-Bissau (p. 18).

Quanto à sua estrutura, o livro divide--se em quatro partes. A primeira é dedicada à guerra existente na Guiné a partir de 1963, sendo explorados os diferentes projetos políticos ensaiados tanto pelo movimento de libertação liderado por Amílcar Cabral como pela administração colonial portuguesa, bem como a sobreposição das estruturas do PAIGC às do estado guineense no pós-independência. Num segundo momento, o livro analisa várias fotografias para introduzir conceitos que servirão de base ao estudo da representação cinematográfica subjacente aos filmes realizados durante a guerra colonial e no pós-independência. Na terceira parte, são abarcados os imaginários coloniais e pós-coloniais presentes nos filmes, que a autora integra no âmbito daquilo que designa como cinema de libertação. Por fim, a última parte centra-se nas memórias das populações da tabanca de Unal, contrastando-as com as narrativas presentes nos filmes.

Em traços gerais, o livro apresenta um contributo significativo para o estudo da luta pela independência da Guiné-Bissau. Assim, indica-nos que os filmes realizados por cineastas estrangeiros em colaboração com o PAIGC durante a guerra colonial, para além de denunciarem as atrocidades cometidas pelo exército português e darem a conhecer a figura de Amílcar Cabral, seguiram um guião político comum, procurando mostrar como o movimento de libertação estava envolvido na construção de um protoestado nos territórios que afirmava que tinha conseguido libertar do controlo de Portugal e que ficaram conhecidos como áreas libertadas. A temática central dos filmes eram as atividades estaduais que o PAIGC estaria a implementar, mostrando as escolas, hospitais, farmácias, lojas do povo, tribunais populares, comités de aldeias ou os contributos para a emancipação das mulheres. A conclusão à qual o livro chega é que a filmagem de infraestruturas nas zonas libertadas tinha subjacente um imaginário do futuro estado que seria instituído no pós-independência, o que ia ao encontro do que era considerado válido e legítimo pelas audiências às quais os filmes se destinavam (p. 159).

A análise efetuada pelo livro resulta numa leitura dos filmes que ultrapassa o olhar do “espectador visualmente acrítico” (p. 139). Por exemplo, a autora refere situações em que podem ter existido montagens com o objetivo de passar a ideia de um acontecimento que não teve lugar. Em diversos momentos, chama a atenção para questões que os filmes deixam em aberto e para as quais ainda não existem respostas. Também refere os silenciamentos, pois os filmes representam unicamente as atividades do PAIGC deixando de fora outras narrativas e organizações anticoloniais que participaram igualmente na luta pela independência da Guiné-Bissau. Do mesmo modo, alerta para a simplificação histórica da mensagem presente nos filmes, que por vezes atribuíam ao colonialismo português uma relevância que na prática não teve.

Ao centrar-se nas imagens produzidas no pós-independência, o livro refere que o PAIGC, como aquando da guerra colonial, continuou a instrumentalizar o cinema, desta vez para a consolidação da unidade nacional. Com os poucos filmes que sobreviveram, concluiu-se que houve a preocupação de documentar o desaparecimento do poder colonial português, nomeadamente através de filmagens da entrega de quartéis militares. O livro refere igualmente que os filmes do pós-independência revelam como o PAIGC teve de se adaptar às contingências do aparelho colonial herdado do governo português. Como acontecera no período anterior à independência, a figura de Amílcar Cabral continuou a dominar, o que permite à autora afirmar que houve um grande investimento para o sacralizar, tornando-o numa personagem messiânica (p. 201).

No seguimento da análise dos filmes pós-coloniais, o livro assume uma vertente etnográfica, contrastando as narrativas fílmicas com múltiplas memórias individuais, que segundo Catarina Laranjeiro não têm encontrado espaço no discurso dominante existente na Guiné-Bissau (p. 19). Procurando perceber como as memórias da luta pela independência foram trabalhadas por aqueles que viveram nas áreas libertadas, a última parte do livro evidencia que as populações continuam a ter a perceção de que são exploradas pelo aparelho estatal e desenvolveram agência própria para enfrentar as suas dificuldades, o que para a autora coloca em causa a caracterização da Guiné-Bissau como um “estado falhado” (p. 56). Por outro lado, as entrevistas revelam narrativas que os filmes do período da guerra colonial e do pós-independência omitiram, como por exemplo o recrutamento forçado de guerrilheiros pelo PAIGC, a importância de práticas religiosas locais na luta armada, o facto de as estruturas de protoestado nas áreas libertadas terem beneficiado sobretudo os membros do movimento de libertação, as contradições entre o discurso e a prática em relação à condição feminina ou a existência de vozes críticas da liderança de Amílcar Cabral.

Dos Sonhos e das Imagens representa um importante contributo para o estudo da luta pela independência da Guiné--Bissau, mas a obra também apresenta algumas limitações devido às temáticas que não foram abordadas. Embora se afirme que os filmes realizados durante a guerra colonial difundiram o discurso do PAIGC, o livro não explora esta vertente de forma detalhada. O recurso à análise de publicações do PAIGC, como o jornal Libertação “Unidade e Luta”, a revista PAIGC actualités e a vasta panóplia de comunicados, declarações, manifestos, memorandos e mensagens, teria permitido demonstrar que o guião político presente nos filmes também se encontra nesses documentos, pelo que fazia parte de uma narrativa mais ampla construída pelo movimento. Apesar de a autora ter entrevistado alguns dos realizadores dos filmes, constata-se que as entrevistas são pouco citadas e que ao longo do livro existem escassas informações que permitam compreender as motivações dos cineastas para se associarem ao PAIGC. A mesma afirmação poderá ser aplicada às audiências às quais os filmes se destinavam, pois os dados existentes no livro não esclarecem quanto aos locais onde os filmes foram exibidos ou como foram usados pelos comités de apoio à luta pela independência das colónias portuguesas criados em vários países. Por outro lado, nota-se que o livro questiona a existência das áreas libertadas, mas este tema é abordado superficialmente, sendo que o estudo etnográfico realizado em Unal poderia ter servido para uma melhor compreensão deste aspeto da luta pela independência da Guiné-Bissau.

Não obstante as omissões do livro, Catarina Laranjeiro fornece um ponto de partida para futuras comparações com narrativas fílmicas produzidas na mesma época sobre os movimentos de libertação de Angola e Moçambique, cujo estudo ainda está por fazer, mas que apresentavam um guião político semelhante aos filmes relativos ao PAIGC. Dos Sonhos e das Imagens é uma publicação que, ao conjugar a análise fílmica e o estudo etnográfico, tem um caráter inovador e cuja leitura permite melhor compreender a estratégia do PAIGC para alcançar a independência da Guiné-Bissau, a tentativa de consolidação da unidade nacional no período pós-colonial e as memórias da luta anticolonial.

Referências bibliográficas

SANTOS, A. A., (2022), RecensãoDos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, Lisboa, Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021”. Análise Social, 243, LVII (2.º), pp. 432-435 [ Links ]

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