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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.243 Lisboa June 2022  Epub June 30, 2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022243.13 

Recensão

Recensão: The legitimacy of modern democrcy. A study on the political thought of Max Weber, Carl Schmitt and Hans Kelsen

1 Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Via Panorâmica, s/n, 4150--564 Porto, Portugal. diogoaurelio@hotmail.com

Magalhães, Pedro T.. ,, The Legitimacy of Modern Democrcy. A Study on the Political Thought of Max Weber, Carl Schmitt and Hans Kelsen. ,, , Nova Iorque e Londres: ,, Routledge, ,, 2021. ,, 207p. pp. ISBN, ISBN: 9781138068889.


Nas últimas décadas do século passado, a seguir à extinção do Pacto de Varsóvia, a democracia foi vista como protótipo da legitimidade em política. Apontavam-se--lhe, é certo, insuficiências. Mas a sua imagem permanecia, apesar disso, muito acima dos autoritarismos. O prestígio do regime parecia, inclusive, em franca ascensão, face ao declínio das alternativas no plano teórico e à sua supremacia no plano geoestratégico.

Passados não muitos anos, essa imagem mais ou menos idílica desvaneceu--se. A vaga de democratizações dir-se-ia estancar, e a soberania impõe-se amiúde pela força, ao arrepio do direito e das convenções internacionais. Mesmo em países onde há eleições, a maioria obtida nas urnas utiliza-se, não raro, como um pretexto para atropelos às instituições que moderam o poder. Não admira, por isso, que o aparente recrudescer do autoritarismo, aos olhos de alguns, prefigure uma réplica do que ocorreu na Europa entre as duas guerras mundiais. Terá, de facto, razão de ser uma tal analogia? Sem colocar explicitamente esta pergunta, a monografia de Pedro T. Magalhães (a seguir, PTM) desenvolve alguns dos tópicos essenciais para uma resposta.

Tal como o título indica, o livro centra-se na legitimidade, uma noção que remete para a moral, impossível, portanto, de objetivar, mas que desempenha um papel fulcral na compreensão das sociedades modernas, em especial da dialética que nelas se verifica entre poder e direito. Longe, porém, de se ficar pelo abstrato, PTM analisa a legitimidade a partir da experiência alemã de entre finais do século XIX e a chegada dos nazis ao poder, recorrendo, para tanto, aos três autores que mais extensa e profundamente refletiram sobre essa experiência: Max Weber, Schmitt e Kelsen. Em todos eles, a ideia de democracia parlamentar é axial, se bem que opere diferentemente em cada um. Mais do que identificar essas diferenças, PTM vai reconstituir através delas as configurações que o regime assumiu no século XX: o elitismo, no caso de Weber, o populismo, no caso de Schmitt, e o pluralismo, no caso de Kelsen. Não se trata, alerta PTM (p. 178), de modelos estanques, visto que as referidas configurações se intersectam, ocasionando ambiguidades em cada uma delas. Assim, para entender a democracia parlamentar, é necessário ter em conta, a par da dimensão pluralista, a dimensão elitista e a populista. “Longe”, pois, “de ser o oposto quer do elitismo, quer do populismo, [o pluralismo] constitui um elemento impossível de erradicar em qualquer teoria da democracia que leve seriamente em conta a condição moderna” (p. 190).

O livro impõe-se, desde logo, pela sua arquitetura, a clareza da linguagem e a coerência da argumentação, virtudes que não será demais realçar num texto que, ao arrepio dos cânones empiristas, atende não apenas ao aspeto descritivo, mas também ao prescritivo. Conforme esclarece na introdução, PTM visa apresentar as ideias dos autores e, em simultâneo, discutir a sua relevância nos dias de hoje, fazendo-se eco de Hermínio Martins, o sociólogo que pugnava por uma “ciência política histórica e filosoficamente reflexiva” (p. 4). Não estamos, por conseguinte, perante um texto alheio aos factos, que encarasse a democracia como destino dos povos, à maneira de Rawls e outros liberais. Pelo contrário, a relevância e atualidade da obra derivam precisamente das limitações do paradigma Rawlsiano no presente contexto.

Além da introdução, o livro tem três capítulos, cada um deles sobre um dos autores acima referidos. Embora só na conclusão seja objeto de algum desenvolvimento, há ainda um quarto autor, cuja sombra se projeta sobre toda a obra, como uma espécie de ponto de fuga por onde PTM ensaia a superação dos impasses diagnosticados nas várias matrizes da democracia: Claude Lefort. Dado o papel que desempenha na estratégia argumentativa, Lefort justificaria, talvez, um capítulo autónomo. Não custa, porém, admitir que o modelo arquitetónico seguido quer no conjunto, quer em cada um dos capítulos, em jeito de capelas imperfeitas, se considere mais apropriado à complexidade inerente à democracia.

O primeiro capítulo é dedicado a Weber, à sua visão dos tempos modernos e do declínio dos valores tradicionais. PTM sumariza o pensamento do autor, pondo em relevo a sua ambivalência: por um lado, fascina-o o progresso, por outro, deplora a burocratização - a gaiola de aço, stahlhartes Gehäuse - em que a nova estrutura social, apoiada na racionalização da ordem jurídica e administrativa, amarra a sociedade capitalista e faz estiolar a inovação, que só lideranças carismáticas, com o seu quociente de arbítrio, possuem o condão de estimular. A ambivalência de Weber manifesta-se igualmente nas referências à democracia e aos partidos políticos, os quais, como já havia sugerido Michels, abundam em funcionários, ainda que eleitos, e escasseiam em líderes, transformando os parlamentos em delegações de interesses avulsos. Weber passa, inclusive, por cima dos riscos do autoritarismo, insistindo apenas na necessidade que as massas têm de um líder, sem o qual se condenam à estagnação induzida pela estrutura legal-racional que molda a sociedade moderna. É isso que explica a função, literalmente axial, que Weber desempenha neste livro: em última análise, é para ele que remete a tese, desenvolvida por PTM sob a égide de Lefort, de uma indeterminação inerente ao regime democrático que impede o seu fechamento no interior de uma só das suas versões - elitista, populista, ou pluralista -, de tal maneira elas se cruzam e contaminam.

O capítulo dedicado a Schmitt sublinha criticamente a coerência ideológica do autor, contrariando interpretações que lhe apontam hiatos entre o autoritarismo tradicional dos primeiros escritos e o posterior neo-autoritarismo populista. Como recorda PTM, Schmitt procura conciliar a democracia moderna com o cesarismo. Dada a impossibilidade de o parlamentarismo dotar as massas de uma verdadeira representação, é necessário apelar à figura do líder, que decidirá em nome do povo, sem nenhum constrangimento: é a versão Schmittiana do carisma weberiano. Alguns aspetos, decerto complexos, mas decisivos no itinerário de Schmitt, incluindo as ambiguidades e, sobretudo, a cumplicidade com o nazismo, mereceriam talvez uma análise que fosse além do simples propósito de o vincular ao ‘populismo’. A própria ideia de populismo, aliás, justificaria uma dilucidação um pouco mais sistemática, dada a importância que assume na economia do livro e a forma, usualmente acrítica, como se tem disseminado. De Schmitt a Chantal Mouffe, convenhamos, alguma coisa se perdeu…

Se a obra de Schmitt é aqui interpretada como exacerbação do elitismo Weberiano, mais tarde replicado por alguns liberais, como Schumpeter, a de Kelsen aparece, no 3.º capítulo, como decorrência lógica do politeísmo de valores diagnosticado na modernidade pelo autor de Economia e Sociedade. É um capítulo notável, decerto o mais elaborado, que percorre de forma sintética a diversidade de disciplinas a que se estende a obra do constitucionalista. Consciente da importância do substrato filosófico da teoria Kelseniana, PTM revisita o neo-kantismo vienense e aquilo que considera, apropriadamente, as raízes do relativismo, ou seja, da impossibilidade de determinar verdades absolutas, com as implicações que tal acarreta para uma ciência do direito e do estado, e, mais ainda, para a legitimação da democracia numa sociedade eticamente pluralista. Aos olhos de Kelsen, com efeito, a essência da democracia reside na liberdade, enquanto impulso natural para a rejeição da obediência. A liberdade, porém, colocada nestes termos, é um paradoxo. Conforme explicita PTM, Kelsen recusa quer o anarquismo, quer o parlamentarismo liberal, para abraçar a democracia partidária, enquanto organização do individualismo relativista. “A democracia”, segundo a expressão de Kelsen, citada por PTM, “é necessária e inevitavelmente um estado de partidos” (p. 148). Enquanto para Schmitt a ideia de democracia se confunde com a homogeneidade do povo sob um soberano (p. 85), para Kelsen, a soberania não é senão um dos vestígios da teologia que se arrastam na política e na ciência do direito. Por isso mesmo, o autor da Reine Rechstlehre vê nos partidos uma consequência do relativismo - a sociedade é intrinsecamente plural - e contrapõe à ideia de soberania o primado do direito e a impessoalidade das decisões de âmbito comum.

As dificuldades com que se depara a doutrina são conhecidas, e PTM aponta cirurgicamente as principais, desde a fragilidade da fundamentação da ordem jurídica numa ciência por definição axiologicamente vazia, até à transposição, nem sempre convincente, da teoria do direito estadual para a ordem internacional. Na impossibilidade de atender a todas elas, salientarei apenas aquilo a que PTM chama “os impasses do relativismo” de Kelsen e a sua incapacidade de fornecer “uma defesa robusta do pluralismo democrático” (p. 163). De facto, a ciência baseada no relativismo epistemológico é por definição aberta ao contraditório. A ausência de um sentido último, ou valor absoluto, converte-a num perpétuo questionamento de si própria (vide o falsificacionismo Popperiano) e torna a liberdade e o pluralismo partidário racionalmente imperativos em política. Uma tese como a de Popper, que defende, “em nome da tolerância, o direito a não tolerar o intolerante”, significaria um atentado ao relativismo, i. e., à ciência, colocando a democracia ao nível do totalitarismo de um Mao-Tse-Tung, para quem as contradições no seio do povo se resolvem democraticamente, mas a contradição entre o povo e os seus inimigos só se resolve pela ditadura. Kelsen, fiel ao relativismo, declara inconciliáveis a ciência e a ideologia, mesmo que tal implique, no limite, a impotência perante um resultado eleitoral que ponha termo à existência de eleições.

PTM chama «quimérica e autodestrutiva» (p. 164) uma tal abstinência teórica, contrapondo-lhe a tese de Lefort, que considera a democracia moderna um regime assente na conflitualidade e na indeterminação social que lhe é intrínseca. Extinta a monarquia absoluta, explica Lefort, o lugar do poder, que era antes o lugar do rei, ficou um lugar inerentemente vazio, dada a inconsistência ontológica do seu putativo herdeiro, o povo. O povo, com efeito, é por definição uma entidade plasmada pela diversidade, impossível de materializar numa vontade única. A unidade social, essa contraditória união na desunião, só existe no plano simbólico. Atribuir-lhe um carácter substantivo, como faz a exaltação nacionalista, ou as autocracias de vária estirpe, seria retornar ao teológico-político e rasurar a democracia, regime em que as normas e instituições se encontram, por natureza, eternamente expostas à crítica e à anulação. Contudo, a sociedade não sobrevive sem essa imagem de um ‘nós’ em que se reveja e a quem possa imputar os atos que os seus membros experienciam como imputáveis ao coletivo. Ignorar a performatividade dessa imagem partilhada, é condenar-se a um sociologismo sem sociedade, incapaz de compreender o verdadeiro sujeito da soberania popular, eixo fulcral da democracia na modernidade. Resumidamente, é esta a tese de Lefort.

Qual a natureza desse ‘lugar vazio’ em que, segundo o autor francês, se fundamenta o político? Em meu entender, não estamos aqui muito longe da Grundnorm kelseniana. Num como noutro caso, ainda que sublimada, é a ideia de soberania que reaparece. Na verdade, seja como resistência à monopolização do espaço político, seja como princípio estruturante da ordem jurídica, a vontade soberana do povo assoma, ainda e sempre, no horizonte da teoria. Sem esse recurso epistemológico, seria impossível a convergência, materialmente impossível, mas simbolicamente necessária, das vontades individuais numa pessoa coletiva.

Com isto, não se pretende atenuar a distância entre Kelsen e Lefort, devidamente registada por PTM. Pretende-se apenas sublinhar, primeiro, que ambos reconhecem o lastro problemático já identificado por Weber na democracia moderna; segundo, que tanto um como outro recorrem a categorias que em linguagem filosófica se designaria por transcendentais, ideias sem conteúdo empírico, mas imprescindíveis para efeitos metodológicos. Que o positivismo ignore esse lastro, não quer dizer que ele não se imponha à ciência.

A terminar, uma última nota. O projeto de PTM não constitui propriamente uma tarefa inédita. O confronto entre Kelsen e Schmitt, com ou sem remissão para Weber, tem sido objeto de abundante bibliografia, frequentemente com estrutura similar. Veja-se, por exemplo, Dyzenhaus (1997), McCormick (2007) e Kalivas (2008). Raras vezes, porém, tendo em conta o leque de problemas e saberes convocados - da história ao direito, da filosofia à teoria política - esse projeto terá sido levado a cabo com idêntica destreza e idêntico rigor.

Referências bibliográficas

BEETHAM, D. (1991), The Legitimation of Power, Londres, Macmillan. [ Links ]

DIZENHAUS, D. (1999), Legality and Legitimacy. Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar, Oxford, Oxford University Press. [ Links ]

ENGLEBERT, P. (2000), State Legitimacy and Development in Africa, Londres, Lynne Rienner Publishers. [ Links ]

KALIVAS, A. (2008), Democracy and the Politics of the Extraordinary. Max Weber, Carl Schmitt, and Hannah Arendt, Cambridge, Cambridge University Press. [ Links ]

MCCORMICK, J. P. (2007), Weber, Habermas, and Transformations of European State, Cambridge, Cambridge University Press . [ Links ]

XIANG, L. (2021), The Quest for Legitimacy in Chinese Politics. A New Interpretation, Londres, Routledge. [ Links ]

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