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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.243 Lisboa jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022243.14 

Recensão

Recensão: Os desastres da guerra. Portugal e as revoltas em Angola

1 IHC, FCSH-NOVA, Av. de Berna 26 - 1050-099 Lisboa, Portugal. opa@fcsh.unl.pt

Valentim, Alexandre. ,, Os Desastres da Guerra. Portugal e as Revoltas em Angola (1961: janeiro a abril). ,, Lisboa: ,, Temas e Debates/Círculo de Leitores, ,, 2021. ,, 472p. pp. ISBN, ISBN: 9789896446796.


Este volume constitui a muito aguardada sequela da obra que Valentim Alexandre lançou em 2017, Contra o Vento. Portugal, o Império e a Maré Anti-Colonial 1945-75 (Temas e Debates),1 o pontapé de saída para uma interpretação de grande fôlego da crise final do império português.

Em termos metodológicos, este se-gundo volume segue o plano delineado no antecedente. Alexandre tomou a opção de privilegiar o olho do poder, que é aqui o olho de Salazar. Nesse sentido, a documentação primária em que se baseia é essencialmente oriunda do Arquivo Oliveira Salazar na Torre do Tombo, compulsada de forma sistemática pelo autor.

Trata-se de uma opção que não radica apenas numa questão de economia de esforço de alguém que sabe que teria de lidar com uma massa documental intimidante gerada por um aparato burocrático de meados do século XX. Na realidade, esta é uma opção eminentemente plausível à luz da configuração do Estado Novo, onde a primazia de Salazar relativamente a outros atores institucionais e poderes fáticos era indiscutível. Tomando de empréstimo os esquemas interpretativos aplicados à Alemanha nazi, Salazar seria elegível para a categoria de ditador forte (por oposição a um Hitler ditador fraco, se aceitarmos a visão dos historiadores funcionalistas do III Reich), tão minuciosa era a supervisão que exercia sobre a rotina da administração, mesmo nos seus mais recônditos aspetos.

Valentim Alexandre possui um conhecimento exímio do acervo documental legado pelo ditador e isso confere a esta síntese uma enorme fiabilidade. Pela sua mão, é possível reconstituir a visão dos problemas a partir de São Bento, assim como as tentativas de vários atores no sentido de captarem o ouvido de Salazar e influenciarem, de algum modo, o curso das suas políticas. A sua vigilância crítica em relação às fontes é também assinalável e o autor não se coíbe de sublinhar exemplos recentes de como a informação altamente contaminada do arquivo da PIDE/DGS (em especial a obtida através da coação ou tortura) foi tomada pelo seu valor facial.2

Nesse sentido, e talvez de forma ainda mais notória do que o volume anterior, Os Desastres da Guerra constitui uma verdadeira lição de método, que muito aproveitará a quem se esteja a iniciar nestas lides, mas também a todos os praticantes do ofício. Como um perito forense, o autor tem o cuidado de cruzar e cotejar diversas fontes sempre que alguma margem de incerteza ou controvérsia possa subsistir - e isso tanto se pode aplicar à expressão quantitativa de um acontecimento, como à reivindicação de protagonismo de um determinado ator histórico.

Livre da tirania da bibliometria que pontifica nas instituições universitárias dos nossos dias, Alexandre desenvolve aqui um aturado exercício de decantação das narrativas e interpretações relativas a um período curto, mas extraordinariamente denso, do grande sobressalto de 1961. São mais de 400 páginas de thick description que nos conduzem pelos sucessivos choques que a estrutura colonial portuguesa enfrentou nos quatro primeiros meses desse ano. É um terreno já muito batido pela historiografia, é certo. Mas Os Desastres da Guerra revisita ideias feitas, sublinha inconsistências e avança com novas perspetivas a partir de um conhecimento sólido das fontes e da literatura secundária. Mesmo autores canónicos como René Pélissier e Christine Messiant não escapam ao bisturi crítico de Alexandre, ora porque as suas conclusões se viram desmentidas por pesquisa posterior ora porque as suas hipóteses carecem de uma adequada demonstração empírica.

A obra está organizada em duas partes - “As revoltas em Angola” e “Repercussões em Portugal”. A primeira lida, fundamentalmente, com a rebelião da Baixa de Cassange, os assaltos às prisões de Luanda em 4 de fevereiro, o levantamento da UPA a 15 de março, o contraterror branco que se seguiu, e as movimentações políticas no campo dos colonos e dos nacionalistas até finais de abril. A segunda ocupa-se das reverberações de tudo isto na metrópole e na arena internacional.

A análise de Alexandre procura contemplar as múltiplas facetas destes sobressaltos, que à época muito confundiram o poder português e ainda hoje se prestam a alguns equívocos.

Uma primeira conclusão que poderíamos fixar é a rejeição pelo autor de explicações monocausais. Sem dúvida que as condições de exploração da mão-de-obra africana, e as iniquidades associadas ao sistema das culturas obrigatórias em Cassange (algodão), foram poderosos incentivos para a adesão à revolta de muitos camponeses africanos - mas isso não chega para esclarecer todos os sentidos da rebelião, cujo alcance político foi por demasiado tempo desvalorizado. Não é essa a perspetiva perfilhada aqui. Tomando de inspiração os estudos dedicados por Georges Balandier aos movimentos messiânicos em África, o autor insiste na necessidade de filiar o enigmático culto de Maria entre os insurretos de Cassange numa corrente sincrética de protesto na qual elementos mágicos e religiosos foram mobilizados para pôr em causa toda a ordem colonial.

Esse protesto tinha uma forte dimensão endógena, mas Alexandre não deixa de insistir no efeito galvanizador que a independência recente do ex-Congo Belga produzira entre as populações do norte de Angola, embora sem subscrever as teses de vários agentes do poder colonial quanto a uma manipulação fomentada ou orquestrada do exterior.

Uma outra ideia poderosa que emerge destas páginas, já avançada por autores como Marcelo Bittencourt,3 tem a ver com a impossibilidade em se identificar um centro de comando único por detrás dos acontecimentos do 4 de fevereiro em Luanda. Mais do que tentar arbitrar as disputas de MPLA e UPA no tocante ao planeamento e protagonismo dos assaltos às esquadras e presídios, é importante perceber como eram fluídas as lealdades dos revoltosos, e como estes também foram, em larga medida, guiados por uma mistura de desespero e messianismo.

Os próprios levantamentos preparados pela UPA para os distritos do café, um mês mais tarde, se filiavam nesse mesmo padrão - um sopro messiânico, aliado às teorias fanonianas da emancipação pela violência, explicam a ausência de um plano minimamente estruturado para 0 momento posterior à revolta. Era como se a prevista debandada dos brancos pudesse conduzir à instauração imediata de uma nova ordem política e à reparação de todas as injustiças geradas pelo colonialismo.

Mas porventura a parte mais impressiva deste volume corresponde ao capítulo 5 (“Um caos sangrento”), porventura aquela que faz jus à convocação de Goya, e da sua série de águas-fortes sobre os horrores da guerra peninsular de 1807-14, para o título da obra. A reconstituição do contraterror das milícias, de outros combatentes irregulares, mas também das unidades especiais portuguesas (companhias de caçadores), é feita com grande crueza e geralmente suportada por extensas citações, respigadas a partir de várias fontes.

Fica-se aliás com a impressão de que existiu, da parte do autor, a preocupação de corrigir a preponderância das imagens do terror maciço da UPA na memória (e na historiografia) de 1961, restituindo às retaliações do poder colonial a magnitude e relevância que só mais recentemente lhe tem sido conferida - sendo um dos contributos mais importantes a este respeito a série televisiva de Joaquim Furtado, A Guerra (2007-2012), devidamente citada e elogiada por Alexandre.

Essas represálias vê-as o autor como a expressão da insegurança e medo de uma sociedade colonial apanhada de surpresa pela audácia e planeamento da insurreição. Dificilmente se poderia conceber um cenário mais funesto para a pax lusitana, assente no mito da capacidade única dos portugueses para a “assimilação” e “integração” dos africanos (p. 391). Como foi à época notado, sobretudo por observadores externos, entre os principais alvos da sanha punitiva dos colonos contavam-se, precisamente, aqueles que o regime gostava de apresentar como o resultado das suas políticas integradoras, os africanos detentores de alguma instrução que eram elegíveis para a condição de assimilados.

As consequências deste ciclo de violência seriam tremendas. Uma delas, nota Alexandre, foi a de “retardar a maturação de um pensamento anticolonial, contrário à guerra, em Portugal” (p. 404). Com efeito, e embora tal assunto vá certamente ser retomado em futuros volumes, Os Desastres da Guerra fornece-nos já uma série de elementos interessantes a este respeito, na senda do que sucedia em Contra o Vento. Para lá de assinalar a mobilização que a defesa do Ultramar suscitou nas fileiras do regime, o autor identifica (capítulo “Remoinhos políticos”, na parte II) várias tomadas de posição no campo oposicionista que permaneciam vinculadas a uma mundividência que confundia a gesta imperial com a própria identidade nacional, e tinham por prematura a ideia de autodeterminação das populações nativas ultramarinas (as únicas exceções que se poderiam assinalar neste quadro seriam o PCP e algumas figuras ligadas à Seara Nova).

Para compreender este “consenso alargado” (p. 409), o autor recorre a dois conceitos que se poderão considerar uma das suas chaves interpretativas fundamentais. O primeiro - habitus - tem um pedigree conhecido na área da sociologia, de Norbert Elias a Pierre Bourdieu, e é definido aqui como “as formas de pensar e agir dos Portugueses, moldadas e sedimentadas durante séculos, num processo dinâmico que marca a imagem que a nação faz de si própria e a visão que tem das suas relações com o mundo exterior” (p. 408).

É, no entanto, questionável se este habitus seria por si só suficiente para prevenir a discussão, a dúvida e, em última análise, a descrença relativamente a uma defesa militar prolongada do império. Para que o consenso (ou o simulacro dele) se mantivesse era imprescindível a “‘produção da obediência’, imposta pelo Estado Novo […] impedindo a controvérsia” (p. 409). A censura, a intimidação policial e a manipulação da opinião pública através dos mais diversos estratagemas eram alguns dos dispositivos que o regime empregava para alcançar esse desiderato.

Mas o autor assinala também outro aspeto que obrigava o regime a ser muito mais vigilante quanto à supressão da dissidência - é que em 1961, a legitimação que o colonialismo europeu ainda podia reivindicar na década anterior (por via do impulso desenvolvimentista do pós-guerra e da caução que este recebia de várias organizações internacionais) desvanecera-se quase por completo, em particular numas Nações Unidas cada vez mais rendidas ao imperativo da descolonização.

A perceção de que esta mudança no contexto internacional iria tornar mais difícil, se não mesmo impossível, uma defesa sem concessões da soberania colonial portuguesa, estará no cerne de um dos mais sérios desafios que Salazar enfrenta por parte das chefias militares - a chamada Abrilada. A maneira como o ditador supera esse pronunciamento, jogando com as divisões nas forças armadas, é analisada aqui com grande subtileza, a partir de uma leitura cuidadosa dos testemunhos de alguns dos principais implicados. A neutralização da Abrilada salda-se por uma vitória dos partidários de uma “intervenção maciça em Angola” (p. 389), mas não sem que Salazar reconheça a necessidade de preparar uma resposta política à crise ultramarina, como parecia atestar a chamada ao governo de indivíduos que partilhavam algumas das preocupações dos abrilistas (casos de Adriano Moreira e Franco Nogueira).

Se nos lembrarmos daquilo que os restantes meses de 1961 ainda reservavam para a muito abalada nau imperial - da vertigem autonomista em Angola à queda do Estado da Índia -, as expectativas para a sequela deste tour de force não podiam ser mais altas.

Referências bibliográficas

OLIVEIRA, P. A. de (2022), RecensãoOs Desastres da Guerra. Portugal e as Revoltas em Angola (1961: janeiro a abril), Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021”. Análise Social, 243, LVII (2.º), pp. 441-445. [ Links ]

1 Recenseado por Diogo Ramada Curto no n.º 228 da Análise Social (2018), pp. 813-821. http://analisesocial.ics.ul.pt/documento s/n228a16.pdf.

2 Já depois desta obra chegar às livrarias, o semanário Expresso (09-10-2021) publicaria um artigo do jornalista António Valdemar no qual este tomava um dos colaboradores da Seara Nova por informador da PIDE, equívoco cometido na linha das abordagens mais desprevenidas que Alexandre justamente assinala. Valdemar assumiria depois o seu erro, na sequência de várias chamadas de atenção por investigadores nas redes sociais e na imprensa.

3 Bittencourt, M. (2008), “Estamos Juntos!”: O MPLA e a Luta Anticolonial (1961-1974). Luanda, Kilombelombe, 1.º Vol.

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