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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.245 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022245.0 

Artigos

O teatro comunitário em Portugal: uma análise sociológica a partir do estudo de caso da associação Pele_Espaço de Contacto Social e Cultural.

Community theater in Portugal: a sociological analysis based on the case study of the association Pele_Espaço de Contacto Social e Cultural.

1 Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n - 4150-564 Porto, Portugal. irene.serafino85@gmail.com


Resumo

Após uma reconstituição diacrónica das experiências que podem ser classificadas enquanto bases do teatro comunitário, propõe-se uma reflexão sobre as práticas artísticas comunitárias à luz dos estudos de Pierre Bourdieu e do seu conceito de arte social. Dialogando com alguns dos principais estudiosos que se debruçaram sobre a relação entre teatro e sociedade e a partir da análise da associação portuguesa Pele_Espaço de Contacto Social e Cultural, analisa-se o teatro comunitário como fenómeno social. Apresenta-se uma experiência de teatro comunitário portuguesa que se insere entre as metodologias de âmbito teatral que, por um lado, procuram estimular uma abordagem crítica da arte e, por outro, se colocam em diálogo com os contextos sociais, com objetivos participativos, pedagógicos, educacionais e políticos. A partir de um trabalho teórico-prático são, assim, apresentadas as caraterísticas do teatro comunitário contemporâneo no contexto português.

Palavras-chave: teatro comunitário; arte social; Portugal; estudo de caso

Abstract

After a diachronic analysis of the theatrical experiences in which community theatre can be inserted, a reflection on community artistic practices is proposed. In the framework of Pierre Bourdieu’s studies and his concept of social art and from the analysis of the Portuguese association Pele_Epaço de Contacto Social e Cultural, community theatre is though as a social phenomenon. An experience of Portuguese community theatre is presented. It is inserted among theatrical methodologies that, on the one hand, seek a critical approach to art and, on the other hand, place themselves in dialogue with social contexts, with participatory, pedagogical, educational and political goals. Based on a theoretical-practical work, the characteristics of contemporary community theatre are presented in the Portuguese context.

Keywords: community theatre; social art; Portugal; case study

As origens da representação teatral podem ser encontradas no ritual e na máscara. Com o seu caráter relacional dialético, o teatro é produto da representação (dos produtores) e da perceção (dos recetores) num específico espaço-tempo situacional construído simbolicamente e intencionalmente para produzir uma experiência estética (Adame, 2009).1 As condições políticas, económicas, sociais e culturais de cada época tiveram um forte impacto na criação artística teatral e nas suas abordagens estéticas. No ocidente canonizaram-se as práticas cénicas que se baseavam num texto dramático, como o teatro burguês do século XIX, marginalizando outras expressões performativas que pertencem a sistemas culturais não hegemónicos, como o clown, o mimo, as cerimónias, a dança-teatro e a performance (Adame, 2009).

No início do século XX, surgiram movimentos artísticos que reintroduziram com força o cariz político, social e terapêutico do teatro ocidental, devido à difusão do marxismo a nível político, ao descobrimento da psicanálise em âmbito terapêutico e à criação da profissão do diretor artístico no teatro, profissão que não existia até então e que se coloca como mediador entre um texto (eterno) e um público (mutável) levando à experimentação de novas estéticas (Salatino, 2011). O teatro torna-se, assim, um espaço mais aberto de experimentação do espírito crítico, de conscientização e análise.

Neste sentido, para Walter Benjamin (2012), o teatro épico de Bertolt Brecht promoveu um distanciamento dos estereótipos históricos e psicológicos e da análise das mudanças de atitude e de hábitos do ser humano, mostrando as contradições da ordem social vigente. Através da experimentação, procurou abrir o diálogo entre o palco e a plateia, questionar o caráter de diversão atribuído ao teatro, possibilitar uma variedade de opções de acontecimentos e considerar o teatro uma consciência incessante, viva e produtiva, que, ao longo de um processo, investiga e produz conhecimento sem querer sugerir um esquema global de interpretação unívoco (Benjamin, 2012).

Para Francesca Caruso (2018), as propostas de Jacob Levy Moreno (criador do psicodrama) e de Bertolt Brecht, mesmo tendo profundas diferenças entre elas, moveram o eixo de justificação do teatro, do lúdico ao da experiência (política e social) e promoveram uma nova afirmação da utilidade social e política do teatro. As origens mais recentes das metodologias teatrais com forte cariz político e social podem ser encontradas nos movimentos de emancipação dos anos 1960 e 1970. Neste período de específicas conjunturas geopolíticas marcado por conflitos, ditaduras e de mudança cultural em diferentes partes do globo, surge uma nova vanguarda, a que Eugene Van Erven (2015) chama de “velha guarda dos precursores das artes comunitárias nos países ocidentais” (p. 70).

Ao longo da década de 1960, os meios de comunicação de massa transformaram as expectativas culturais dos públicos e determinaram uma profunda crise do teatro, tirando a sua ritualidade e marginalizando a sua importância e significado social (Caruso, 2018). A partir deste desafio, foram elaboradas novas formas representativas como o Happening, o teatro dos sentidos e o Living Theatre. Estes métodos teatrais colocaram em discussão os critérios convencionais da comunicação numa época de hegemonia dos mass media, promovendo a renovação da arte, a rebelião simbólica contra o sistema político e colocando-se como alternativa ao teatro comercial (Caruso, 2018).

No âmbito das contestações de 1968 em países como Itália, França, Alemanha e Estados Unidos, foi proposto o uso de técnicas-base de teatro enquanto instrumento educativo, de comunicação, de livre expressão, interação, criatividade de crianças e jovens, estímulo para a compreensão dos condicionamentos externos e de planeamento de soluções concretas (Caruso, 2018). Propostas fundadas também nos escritos de Walter Benjamin (1969) sobre o programa para um teatro proletário das crianças, onde a animação teatral se encontra associada à formação e à educação escolar, num modelo pedagógico fundado no exercício coletivo de técnicas expressivas.

Nos anos 1970, no Brasil, Augusto Boal (1931-2009) criou o Teatro do Oprimido (TO), pensado como modalidade de intervenção coletiva e de participação, que teve um papel de relevo pela experimentação e ressignificação do teatro político e social em épocas mais recentes. Assente na ideia da importância do pensamento sensível como arma de poder e na existência de múltiplas estéticas, alia a arte à mudança subjetiva e à ação social (Boal, 1975, 2009). Contrapondo-se à ideia de teatro como instrumento de poder das classes dominantes, que Boal considerava um mecanismo de doutrinação coercitiva utilizada ao longo das diferentes épocas e países, o TO objetiva transformar a realidade individual e coletiva. Para isso, promove o trabalho de grupos, considerando o aspeto social do ser humano e contrariando lógicas competitivas. Na perspetiva do TO, toda a opressão psicológica-individual é também sociopolítica, e as problemáticas individuais são sempre derivadas também de um contexto. Através de jogos e práticas teatrais que permitem experimentar novos movimentos corporais e novas ações, propõe-se o contraste à imposição do pensamento único (Boal, 2009), o bem-estar psicofísico e a experimentação de formas de viver comunitárias. Partindo da poética brechtiana, do trabalho sobre o ator de Stanislavskij e da pedagogia do oprimido de Paulo Freire (1921-1997), o TO foi um método teatral que surgiu no Sul e conseguiu ressignificar-se e expandir-se para o hemisfério Norte, mas também para o Leste, e que foi utilizado em múltiplos contextos de exclusão e de constrangimentos políticos e sociais.

As experiências de teatro comunitário (TC) moveram-se a partir do mesmo pressuposto boaliano que entende a arte como um direito de todos, justificando a apropriação dos meios de produção artísticos. Numa Buenos Aires dos anos 1980 que se deparava com uma situação de diferenças sociais, fragmentação e saída de uma violentíssima ditadura militar, os vecinos-actores, ou seja, os vizinhos, habitantes de uma comunidade, que participam da prática artística, constituíram a origem de uma das formas mais significativas do TC (Bidegain, 2007; Bidegain, Marinetti e Quain, 2008; Rosemberg, 2009; Russo, 2011). Em épocas mais recentes, o TC teve, sempre na Argentina, uma nova força expressiva a partir de 2001, com a criação de mais de 40 grupos, decorrente das contingências da crise económica (Andrade, 2013). O argentino pode ser considerado um dos movimentos de TC mais estruturados, mas é interessante observar como hoje em dia podem ser encontradas diversas ramificações que englobam práticas muito diversas relacionadas com diferentes modalidades artísticas.

O termo TC começa a ser utilizado no início do século XX (Erven, 2001). As suas raízes estão relacionadas com várias formas de contracultura que, nos anos 1960 e 1970, adquiriram facetas diferentes em vários países. Nos continentes africano e asiático, encontra-se relacionado com movimentos de luta anticolonial e com as campanhas de sensibilização sobre temáticas de saúde pública. Na Europa e nos Estados Unidos, é com mais frequência associado aos movimentos políticos radicais. Na América Latina, com movimentos estéticos com uma forte componente política e educativa (Erven, 2001). Engloba expressões artísticas diversas que estão profundamente relacionadas com as tradições locais e com os movimentos políticos, sociais e artísticos do contexto no qual as experiências se desenvolvem (Andrade, 2013, p. 18).

Os estudos de antropologia teatral do estadunidense Richard Schechner, efetuados ao longo dos anos 1970 e 1980, evidenciaram a heterogeneidade da categoria teatro, destacando a existência de teatros enquanto modos produtivos e expressivos muito diversificados, com formas de fruição, tradições, públicos e finalidades diferentes (Schechner, 1984; Caruso, 2018). Schechner (1984), através de leituras antropológicas e de observações no campo, sublinhou como as novas vanguardas teatrais possuíam alguns elementos próprios do ritual primitivo, tornando-se algo parte da realidade social humana. Para o autor, este teatro, assim, deixava de ser arte enquanto imitação da vida e tornava-se numa experiência ritualística expressiva em si.

Por meio das experiências teatrais aqui consideradas, para Salatino (2011), o teatro recupera e emana de forma plena a sua vocação sociopolítica e terapêutica. Movido por uma necessidade pessoal dos envolvidos e, também, social, o teatro reencontra-se com a sua vocação originária descobrindo novamente a sua função ritual, que foi a base da conceção do teatro ocidental.

O exercício de análise diacrónica destas experiências teatrais apontou para uma certa ciclicidade da aproximação entre teatro e política que aumenta em épocas pós-bélicas, (pós-)revolucionárias ou de crise socioeconómicas ( Serafino, 2019a), indo ao encontro das afirmações do sociólogo Georges Gurvitch (2011) sobre a relação de interdependências entre sociedade e teatro. Os contributos teatral-sociológicos ciclicamente acompanharam a reflexão sobre teatro e sociedade, com alguns períodos de quase sobreposição das disciplinas, onde o teatro era utilizado como modalidade de experimentação social.

Caruso (2018), referindo-se à fase atual, aponta para uma certa redundância de conceções teóricas e a ausência de percursos recentes alternativos e originais, sendo os últimos associados às vanguardas dos anos 1970-1980. No mesmo rumo, o estudo efetuado por Laura Gobbi e Federica Zanetti (2011) aponta para a necessidade de superar as discussões predominantemente terminológicas, dando, assim, espaço a reflexões mais consistentes sobre as realidades contemporâneas, ricas e variadas, que se podem encontrar.

Acerca do contexto português, há já uma compilação de trabalhos que tratam da questão aqui discutida. Alguns dos principais exemplos são: o trabalho de Graça Mota e João Teixeira Lopes (2017) que reflete sobre a associação de práticas artísticas à inclusão social; as reflexões sobre as intervenções pela arte pública (Pinto, 1995; Ferro et al., 2014); a pesquisa de Fernando Ferreira (2013) sobre animação sociocultural e TO em Portugal. Acerca da especificidade teatral portuguesa, apontam-se também os estudos de Vera Borges (2007; 2018) que analisam os percursos profissionais dos artistas e as formas de organização dos grupos de teatro em Portugal; a pesquisa de João Teixeira Lopes e Sara Joana Dias (2014) sobre os públicos teatrais; a monitorização externa de um projeto teatral em âmbito sociológico, de Natália Azevedo (2012); a problematização, efetuada por Sara Melo (2014), sobre o papel das artes de rua para a definição e projeção de uma política cultural local partindo do projeto teatral “Texturas”; e os contributos presentes na coletânea Arte e Comunidade, organizada por Hugo Cruz (2015).

Inserida neste âmbito mais específico a respeito do contexto português, a pesquisa de doutoramento que sustenta este escrito concentrou-se na análise multidimensional de uma experiência socialmente e sociologicamente interessante pela variedade e consistência das suas ações. A escolha do estudo de caso, que permitiu, metodologicamente, um raciocínio abdutivo, foi selecionada a partir da fase exploratória, que detectou 43 instituições potencialmente analisáveis, realizada no concelho do Porto entre março e setembro de 2014 ( Serafino, 2019a). Foi, assim, selecionada e acompanhada a associação Pele_Espaço de Contacto Social e Cultural (Pele_ECSC), que nos seus primeiros dez anos de atividade na cidade do Porto (Portugal) promoveu 54 projetos artísticos em forte diálogo com o TO e o TC (Serafino, 2019a).

Ao longo da pesquisa, procurámos compreender como e em que medida as ações da sociedade civil de caráter cultural e artístico consideradas proporcionam alternativas às formas de exclusão e segregação social. Estudámos a trajetória e o funcionamento da associação, tendo sido dada particular atenção à análise dos impactos sociais dos projetos nos seus participantes.

A nível metodológico, foi efetuado um estudo etnográfico (Magnani, 2002) de 36 meses, que contou com técnicas mistas para proporcionar uma análise multidimensional do estudo de caso (Valles, 2007; Yin, 2009), que são as seguintes: a observação participante (Costa, 2007; Velho, 1987), a análise de documentos, o inquérito por questionário (Ghiglione e Matalon, 2005) aplicado a 61 atores e as 43 entrevistas individuais semiestruturadas2 (Strauss e Corbin, 2008) com os fundadores da associação, os atores e os representantes de instituições parceiras. A seleção dos métodos e das técnicas decorreu do trabalho de campo e do constante diálogo entre a complexidade do objeto, o estado da arte e o investigador e as suas reflexões (Serafino, 2019b).

O teatro comunitário: caracterizações sociológicas a partir do estudo de caso da associação pele_espaço de contacto social e cultural

Partindo da nossa investigação situada (Serafino, 2019a), o TC pode ser sociologicamente analisado à luz dos estudos de Pierre Bourdieu (2013) e, mais especificamente, na sua definição de arte social. Uma arte em contraposição à arte pela arte, que reivindica uma autonomia estética própria, e à arte burguesa, que segue lógicas dominantes e hegemónicas, subordinada aos campos políticos e económicos.

Para Bourdieu (2013), o conceito de campo representa um espaço social habitado por pessoas que se relacionam umas com as outras e que agem (os agentes). São campos de relações de forças e campos de lutas (simbólicas) entre agentes com meios e fins diferenciados, conforme as suas posições mutáveis adquiridas na estrutura do próprio campo de forças. No trabalho de reconstrução histórica que explica o funcionamento e a estrutura do campo literário francês, elaboração teórica e análise das categorias de perceção e avaliação de estéticas dominantes na tradição ocidental, o autor propõe um modelo que promove trabalhos de investigação epistemologicamente fundamentados e controlados. Sobre a questão específica, Bourdieu sublinha que, nos diferentes polos internos do campo, existem possibilidades de autonomia às pressões e seduções exercidas pelo mercado, constituindo uma economia do simbólico por certos aspetos paradoxais (Bourdieu, 2013, pp. 142-146; 185-187; 207-243).

De forma específica, Bourdieu explica esse aspeto paradoxal como um mundo económico ao contrário, onde há uma relação inversamente proporcional entre o destaque no campo de posições na dimensão simbólica e na dimensão económica. O autor evidencia como os princípios de diferenciação independentes e hierarquizados do campo, que levam à oposição entre a produção pura para o mercado restrito dos produtores e a grande produção para o mercado voltado para o grande público, geram dicotomias entre o simbólico e o económico no campo artístico. Assim, as especificidades do campo artístico apontam para lógicas próprias no que diz respeito aos bens simbólicos, que, ao mesmo tempo, constituem mercadorias e significados, que possuem seja um valor de mercado seja um valor simbólico, respondendo, assim, contemporaneamente, a lógicas independentes. Dentro desta oposição dicotómica, da subordinação total ao mercado à independência absoluta dele em função do simbólico, podem ser colocadas as dinâmicas observáveis das experiências de produção artística que se movem num continuum que não pode prescindir da complexidade dada pelas especificidades do próprio campo artístico.

Tendo em vista este contexto, a arte social pode ser caracterizada como uma arte que reivindica a sua função social e política, que mostra proximidade e solidariedade com os dominados e que engloba as manifestações que vislumbram engajamento e participação no fazer artístico. Mesmo os seus pressupostos, a arte social não deixa de estar inserida em lógicas do campo artístico, este último, por sua vez, inserido num desenho sociopolítico mais amplo caracterizado também pelas tensões entre múltiplas formas de jogos de poder.

A diferença entre arte “convencional” e arte “engajada” foi um tópico que surgiu em diferentes momentos da pesquisa, encontrado nos discursos dos entrevistados e nos debates artísticos e científicos sobre o TC observados.3 A observação no terreno feita ao longo do processo de investigação trouxe à tona a importância do debate, seja para compreender as dinâmicas de afirmação e legitimação do TC dentro do campo teatral seja para entender as peculiaridades intrínsecas ao TC. À luz do conceito de arte social, na tabela que se segue, foram sintetizadas as principais caraterísticas encontradas que mostram as especificidades do TC e que levantam pontos importantes para esta discussão.

As categorias surgiram do diálogo entre o estado da arte e o trabalho de campo que se concretizou na análise do estudo de caso. Para este efeito, junto à triangulação dos dados recolhidos (Valles, 2007; Strauss e Corbin, 2008) a partir do trabalho etnográfico de três anos, efetuado entre outubro de 2014 e setembro de 2017, as entrevistas aprofundadas com os três sócios fundadores da Pele_ECSC, com 17 parceiros4 que integram a sua rede e com 21 atores participantes5 dos projetos/ workshops promovidos pela associação, foram centrais (Serafino, 2019a; 2019b).

Quadro 1 O Teatro Comunitário enquanto exemplo de arte social 

Fonte: Elaboração feita a partir de Serafino (2019a, p. 278).

1 É um teatro próximo às pessoas da comunidade

A partir do estudo do trabalho da associação Pele_ECSC foi observado como os projetos de TC tinham o propósito explícito de envolver a comunidade. As atividades propostas eram abertas para qualquer pessoa que quisesse participar, sem custos para os participantes e sem seleções, castings ou requisitos particulares. Os fundadores e diretores artísticos da associação assumiam a importância de se abrir a toda a comunidade, incluindo participantes com diferentes capacidades artísticas, graus de ensino, idade, faixa económica, dando prioridade às pessoas que não costumam ter acesso a estas experiências. Os trabalhos de aproximação e inclusão eram feitos a partir de parcerias com outras instituições do território, de baixos ou nulos custos associados à participação e de metodologias inclusivas que evitam julgamentos sobre capacidades e saberes artísticos ou intelectuais.

Neste sentido, os trechos das entrevistas que se seguem de uma parceira da associação e de dois atores participantes apontam para a facilidade das pessoas se sentirem à vontade e poderem integrar os projetos teatrais de múltiplas formas sem existir regras rígidas:

Eu acho que a Pele consegue chegar a todos, tanto à pessoa que tenha a quarta classe, que não tenha um saber escolar, académico, mas tenha outros saberes, como chega a um doutorado, chega a todos. E a Pele percebe isso, sabe trabalhar e respeitar isso. E isso é que é importante, porque a arte elitista não chega a todos, e as pessoas nem entram porque sentem medo, até se sentem constrangidas [Entrevista parceira 7].

Em primeiro, é um teatro que é para toda a gente. Porque normalmente as peças de teatro comunitário são gratuitas e são feitas com pessoas da comunidade, que tentam demonstrar à nossa comunidade os valores da comunidade, […] para que as pessoas comecem a solidarizar umas com as outras, conviver mais umas com as outras. Mas, essencialmente, o teatro comunitário é que engloba toda a gente. Que seja rico ou pobre, mais carenciado ou menos carenciado, as pessoas podem assistir e podem, se quiserem, participar. Teatro comunitário é como o nome diz, quer dizer comunidade, logo, toda a nossa comunidade [Entrevista ator participante 8].

Somos pessoas perfeitamente comuns, as idades são muito variadas, portanto, é toda gente da comunidade… E o convite fica aberto para quem quiser aparecer. […] É a comunidade que está a fazer para a comunidade. E quase sempre os espetáculos são apresentados em sítios onde realmente há uma ligação grande com a comunidade [Entrevista atriz participante 1].

Estes discursos encontraram confirmação nas observações feitas ao longo do trabalho de campo e dos dados estatísticos recolhidos que dizem respeito às questões sociodemográficas dos participantes. Tais dados permitem fazer afirmações sobre o elevado grau de diferenciação interna a nível etário, estado civil, composição do núcleo familiar, tipo de habitação, meios de transporte utilizados, habilitações literárias - grau de ensino -, situação profissional, experiências teatrais - como espetadores e como atores - (Serafino, 2019a, pp. 196-216).

2 É um trabalho com, pela e na comunidade

Sem intenções, no âmbito restrito deste artigo, de aprofundar o debate terminológico das práticas artísticas para, pela, com, da e/ou na comunidade (Andrade, 2013; Nogueira, 2007; Bezelga, 2015), torna-se, por outro lado, importante apontar que os projetos observados possuem uma forte relação com os territórios e com os seus habitantes. Como o debate sobre as diferentes facetas das práticas artísticas aponta, existem possíveis contradições e dissonâncias entre os diversos trabalhos comunitários. Diferentes pelos tipos de envolvimento que possuem para com os territórios, podem tornar-se experiências artísticas com objetivos muito diferentes e em contraposição entre elas pelos seus pressupostos artísticos, sociais e económicos.

No caso específico analisado, identificou-se como as práticas artísticas podem ser consideradas o resultado de uma investigação sobre determinada comunidade, feita também junto a ela. As pessoas participam do processo criativo e tornam-se os protagonistas do próprio espetáculo que costuma ser encenado pela comunidade em espaços significativos do mesmo território para um público local.

3 É uma arte politizada que pode [tenta] mudar a sociedade

À luz da análise em questão, é possível afirmar que se trata de uma arte politizada no sentido em que explora temáticas políticas e que predispõe à participação, tentando mudar a sociedade. Nas apresentações públicas, adquire o seu cariz político enquanto dá voz a grupos não hegemónicos que podem contar as suas vidas e contextos, propondo alternativas aos pontos de vista convencionais. O palco torna-se num espaço de interação entre poética e política. Uma possibilidade de exprimir esteticamente e de forma irónica um problema social, um período histórico complexo ou as condições de vida de uma comunidade.

De forma experimental, interna ao grupo, o discutir e o debate coletivo sobre as dinâmicas políticas e sociais aumenta a conscientização das pessoas sobre assuntos por vezes distantes. Nas entrevistas recolhidas junto aos atores participantes, foi em muitos casos apontado como as atividades teatrais os aproximou ao debate político, incentivando as suas capacidades de entender as dinâmicas e as suas vontades de participar em outros tipos de atividades políticas:

Depois também fizemos algumas intervenções e fomos em manifestações que foram importantes e fizeram parte do nosso percurso de crescimento pessoal e social, de consciência social, que os momentos políticos nos obrigam a ter. Uma [participação] focalizava nas condições de vida das pessoas, nos seus trabalhos. E também fizemos participações nas comemorações de 25 de Abril, numa forma muito poética […] [Entrevista atriz participante 4].

Os jogos teatrais também promovem a procura de novas formas de expressão pessoal e de solução das problemáticas identificadas, incluindo a perspetiva de um uso da arte enquanto ferramenta de transformação social. Como aponta uma atriz participante no trecho que se segue, é um teatro que estimula o diálogo e a reflexão sobre as condições humanas e sociais e tenta modificar as situações problemáticas:

Acho que nestes tipos de teatro mostram-se os inúmeros problemas que existem na sociedade. E que as pessoas procuram lutar para resolver estes problemas. Nós sentimos que o teatro nos dá voz para tentar mudar estes problemas. Para enfrentar as dificuldades. Surdos e ouvintes têm dificuldades na vida e precisam lutar para modificar estas situações. […] Antes da Pele, eu não pensava nisto. Não pensava que o teatro poderia influenciar as coisas que podem ser mudadas na sociedade. Nem pensava que o teatro tinha esta mensagem, para mim era mais cómico. Depois da Pele, eu percebi que sim, que há teatro que pode mudar a sociedade [Entrevista atriz participante 3].

4 É um trabalho ligado aos contextos territoriais (sobre o passado, o presente e a reflexão das possibilidades futuras).

O teatro comunitário envolve a comunidade a falar de si e, neste sentido, as pessoas e as suas histórias constituem o próprio TC, que, através delas, adquire sentido. São experiências teatrais que, tendo um pano de fundo sugerido pelos diretores artísticos aberto a modificações sucessivas, partem das cotidianidades, memórias e desejos das pessoas. O TC coloca a sua ênfase nas histórias pessoais vivenciadas pelos seus intervenientes, processadas através de jogos de improvisação e experimentação teatral e organizadas sucessivamente em representações teatrais com o auxílio de diretores artísticos, profissionais ou não. As histórias individuais passam, assim, a ser retratadas enquanto representações de condições sociais comuns. Ou seja, os residentes das comunidades envolvidas, construídas frequentemente por grupos de pessoas ligadas a algum tipo de marginalização ou exclusão social, participam no processo criativo, trazendo experiências, ideias, reflexões, textos de própria autoria, canções populares, anedotas, episódios e experiências que atravessaram as suas vidas e as suas comunidades.

Não se propõe como espaço de fruição “passiva”, mas envolve a comunidade e convida-a a falar de si, dos seus problemas e memórias. No diálogo e na partilha das narrações, a comunidade torna-se num grupo produtor de saberes e de obras estéticas coletivas. Parece que no TC, que associa um estudo sobre vivências e recordações de pessoas e comunidades com uma experiência coletiva do presente, a experiência em relação com o passado e a experiência vivida juntam-se num projeto comum que visa um exercício narrativo.

Dialogando com a problematização de Walter Benjamin (2012) acerca do fim da arte de contar estórias (erfahrung), associada ao mundo capitalista que prioriza a experiência vivida do presente, esta especificidade do TC sugere reflexões importantes. Para Benjamin (2012), que, como vimos, observava com interesse as experiências teatrais de Bertolt Brecht e que tinha elaborado um programa para um teatro proletário das crianças (Benjamin, 1969), tornava-se necessário construir uma narração em conjunto ou criar-se-iam “heróis solitários”, formas típicas presentes no discurso hegemónico da sociedade burguesa moderna e no romance clássico:

No momento em que a experiência coletiva se perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas narrativas tornam-se predominantes. Enquanto a narrativa antiga se caracterizava por sua abertura, o romance clássico, em sua necessidade de resolver a questão do significado da existência, visa a conclusão [Benjamin, 2012, pp. 14-15].

As narrações, a memória e o conhecimento (coletivo) são, portanto, centrais para o processo criativo de TC, que neles se baseia. Neste sentido, o TC parece uma possibilidade nos dias de hoje de criar uma nova forma de narratividade que se opõe às dinâmicas apresentadas por Benjamin, uma vez que propõe alternativas para as sociedades constituídas por indivíduos solitários (Benjamin, 1969).

5 É um trabalho de coconstrução participativa

Como o termo comunitário já sugere, o TC é uma prática de grupo onde a interação e a colaboração são essenciais. Na fronteira entre artes performativas e intervenção sociocultural, o TC propõe-se como espaço aberto para o envolvimento direto das pessoas. Neste sentido, promove o encontro entre as pessoas da comunidade que se juntam em torno de um objetivo comum. O TC torna-se, assim, um espaço de trocas e confrontos, em que os participantes podem ensinar e aprender reciprocamente. Estes colaboram na criação das peças e nas suas execuções, efetuando uma coconstrução participativa. A criação coletiva, entendida enquanto processo aberto formado por sucessivas modificações efetuadas em conjunto e a partir do diálogo, torna-se a base das apresentações artísticas e pode ser considerada uma caraterística central na própria definição do TC.

A partir destas considerações, foi evidente a importância do trabalho de grupo, organizado e orientado pelos diretores artísticos que cria e reforça laços sociais, promovendo dinâmicas colaborativas e de cidadania ativa. A partir da observação e análise de diversas experiências teatrais feitas ao longo da nossa pesquisa, foi apontada a mais valia dada pela criação de grupos mistos. Grupos heterogéneos com caraterísticas socioeconómicas e culturais variadas acentuavam os impactos positivos do trabalho, favorecendo a alteridade com o encontro com “outros” (Serafino, 2019a).

Trabalho coletivo que favorece, como apontado anteriormente, a colaboração entre grupos populacionais diferentes sob múltiplos aspetos. Neste sentido, o trecho do ator participante que se segue evidencia o encontro e a colaboração entre as pessoas de gerações diferentes, dinâmica que valoriza a passagem de conhecimento entre gerações:

O teatro comunitário é uma forma de juntar as pessoas. De conseguir com que elas interajam umas com as outras, que elas consigam obter ali um momento de lazer, de convivência. Podemos partilhar histórias, conviver com pessoas mais velhas, com pessoas mais novas, em que tanto nós podemos ensinar a elas como também podemos aprender. [Entrevista ator participante A8].

6 É uma arte com dificuldade em ser reconhecida pelo campo artístico

Ao descrever e analisar a trajetória da associação Pele_ECSC, foi observado como o TC é uma arte que possui dificuldades em ser reconhecida no próprio meio artístico, ou campo, como o denominaria Bourdieu (2013). A centralidade dos objetivos políticos e sociais da associação auxiliaram um reconhecimento no campo educativo e de serviço social, mas dificultaram o reconhecimento estético no meio artístico. O processo de reconhecimento e afirmação artística foi muito longo, e os fundadores apontaram inúmeras dificuldades em serem considerados artistas, como evidenciam os relatos que seguem:

Os primeiros três, quatro anos foram a partir pedras e de resistência pura e dura. Porque eu tinha os meus colegas a me dizer constantemente que tudo o que fazíamos era apenas um teatrinho e que nem sequer podia ser chamado de arte [Entrevista fundador/a da Pele_ECSC 1].

Eu acho que o grande obstáculo é fazer o trabalho de contracultura. Eu acho que nem nós tínhamos consciência que o que fazíamos era um trabalho de contracultura em determinada altura. Ou pelo menos não tínhamos consciência que era assim tanto. […] Portanto, tu estás numa lógica contrária à que funcionam os teus parceiros, às pessoas com quem trabalha, aos teus financiadores [Entrevista fundador/a da Pele_ECSC 3].

As pessoas que trabalharam conosco e as pessoas que nos recebiam [em teatros e outros espaços legitimados e simbolicamente importantes no contexto artístico] não nos veem como artistas. Veem-nos como pessoas amadoras que estão ali a fazer um teatrinho, não atrizes ou atores que vão ali a fazer um teatro, um espetáculo [Entrevista atriz participante 12].

7 É uma arte sujeita ao “perigo da institucionalização”

A última questão que surgiu associada à arte social, e que também dialoga com as caraterísticas apontadas nas linhas teóricas de Bourdieu (2013), remete à institucionalização destas experiências. Se, por um lado, são práticas que possuem a dificuldade de serem aceites no campo artístico, deve haver cuidados específicos para gerir o “perigo da institucionalização” de uma arte que se diz espontânea, política e com objetivos de transformação social. O conteúdo nos discursos dos representantes da arte social nem sempre corresponde à realidade e não raras vezes estes agentes e instituições acabam por se encontrar inseridos em lógicas alheias aos seus pressupostos básicos. O trabalho de campo confirmou a complexidade das dinâmicas sociais, económicas e políticas que podem comprometer a possibilidade de perseguir e alcançar os objetivos intrínsecos destas artes.

A afirmação do TC, num jogo de legitimação e negociação, deriva dos padrões de apreciação do teatro convencional e de pressões internas por parte de financiadores e promotores (Bezelga, 2015). Geralmente distinto da alta cultura, da cultura de massas e do mainstream, bem como do teatro vanguardista, costuma ser identificado como forma de arte periférica (Bidegain, 2007; Erven, 2001; 2015). Hoje, porém, podem contar-se inúmeras tentativas de catalogação do TC que o entendem como um campo próprio de ação artística e política, com uma sempre maior valorização e reconhecimento (também artístico) do fenómeno.

Conforme foi apontado pelos próprios fundadores da Pele_ECSC, o crescer e adquirir visibilidade e reconhecimento social e artístico criou atritos internos e dificultou o alcance do equilíbrio entre ética e estética. As dinâmicas económicas também podem colocar em questão os princípios éticos e políticos, priorizando a sobrevivência financeira.

Como sugere o relato que se segue, estas experiências artísticas, mais experimentais e questionadoras, em muitos casos acabaram por se tornar inovadoras e ser englobadas nas lógicas de mercado, perdendo as suas autonomias:

O perigo que tem nessas coisas é quando é demasiado contracultura e de repente é absorvida pela cultura vigente. Tu tens que estar muito bem equilibrado. Tudo isso: comum, comunitário. Hoje, em 2016, já é um tema de estudo, mas em 2008 não se falava em teatro comunitário […]. E automaticamente me lembro daquilo que eu te dizia há um bocadinho: eu tive muitos colegas, quando a Pele apareceu, que acharam isso deplorável. Muitos deles agora estão a desenvolver coisas com comunidades por aí. Um sítio que não era reconhecido como arte, tornou-se uma espécie de salvação [para os artistas]. Parece-me uma coisa muito de maquilhagem. Parece-me uma coisa de muita plasticidade. O teatro deste tipo é uma coisa linda. Se institucionalizado, vira uma Igreja e vira uma Roma. […] A Pele já não é contracultura há muito tempo. A Pele ditou regras, a Pele ajudou a mudar a forma que se olha para a cultura neste caminho do envolvimento comunitário [Entrevista fundador/a da Pele_ECSC 1].

Na nossa pesquisa observou-se como o reconhecimento pelas políticas públicas da arte como aliado eficaz ao trabalho social, elemento associado a um contexto de crise económica e crise do teatro, levou a uma nova consideração da aliança arte-trabalho social no campo artístico. Se, por um lado, aumenta a visibilidade, o reconhecimento e até a estabilidade financeira, diminui o espaço de manobra e de contestação. Foi apontado, também, como estas dinâmicas diluem as batalhas políticas e englobam novas lógicas e novos protagonistas, como os artistas que não possuíam intenções políticas e sociais a priori e que se aproximaram a este tipo de arte enquanto uma possibilidade concreta para atingir fundos da União Europeia e garantir a sobrevivência das companhias, como aponta o trecho a seguir:

Eu acho que há projetos neste momento preocupados com as comunidades que trabalham de formas muito diferentes, com metodologias com as quais até concordo, mesmo sendo diferentes, e com que eu concordo e que acho que podemos chamar de comunitário. Mas têm outras que não reconheço minimamente como prática comunitária, pelo contrário, acho até práticas muito perversas. E, portanto, acho que vivemos um fenómeno de moda. A criação artística ancorou-se muito a este trabalho comunitário para justificar a sua existência num tempo de forte crise, e eu acho que isto é uma asneira por questões óbvias […]. Acho que muitas vezes os processos são muito perversos, muito mais centrados no processo artístico do que propriamente no processo de trabalho [Entrevista fundador/a da Pele_ECSC 3].

Dinâmicas que, citando o entrevistado, criam lógicas perversas, tornando espetáculo e produto de consumo o que se propunha como trabalho educativo, de empoderamento de populações em situações de exclusão e vulnerabilidade, perdendo as suas capacidades transformativas de contraste às desigualdades e favorecendo o elo mais forte. A nossa pesquisa evidenciou a existência de inúmeras experiências que continuam a seguir os seus propósitos iniciais e outras que enfraquecem e colocam em discussão os esforços das primeiras.

Considerações finais

Visou-se, ao longo do texto, produzir uma reflexão sobre as práticas artísticas comunitárias, a partir dos estudos de Pierre Bourdieu e do seu conceito de arte social. Mantendo o diálogo com alguns dos principais estudiosos que se aprofundaram sobre a relação entre teatro e sociedade, procurou-se, mais especificamente, analisar o caso da associação portuguesa Pele_ECSC, no intuito de discutir o teatro comunitário como fenómeno social no contexto português. Verificou-se uma experiência que se insere entre as metodologias de âmbito teatral que, por um lado, procuram estimular uma abordagem crítica da arte e, por outro, se colocam em diálogo com os contextos sociais, com objetivos participativos, pedagógicos, educacionais e políticos.

De uma forma geral, a pesquisa confirmou a eficácia destas experiências enquanto possibilidade de participação na vida social, criação de novos laços, valorização do aspeto criativo da produção, valorização das culturas, troca intergeracional, educação, transmissão de conhecimento, libertação da alienação do trabalho e da sociedade industrial, como já era apontado para Jane Addams (2012), ativista, pacifista, feminista, socióloga e referência mundial para o serviço social. Observaram-se impactos a nível intrapessoal e relacional, tocando múltiplas esferas dos indivíduos participantes.

Em termos mais específicos, as práticas da associação Pele podem ser identificadas enquanto “arte social” a partir dos seguintes pontos verificados no seu âmbito de atuação: 1) o facto de ser um teatro próximo das pessoas da comunidade, servindo como importante meio de acesso sobretudo aos que não possuem o hábito ou acesso facilitado a este tipo de fruição artística; 2) por ser realizado dentro do território da comunidade; 3) por possuir um viés politizado, com intenções que extravasam o âmbito da dimensão estética pura e simples, propondo mudanças sociais; 4) pelo facto de as obras estarem intimamente relacionadas com os contextos territoriais (passado, presente e futuro) onde são concebidas; 5) pelo facto de os trabalhos serem concebidos e realizados em (co)participação com os membros dos territórios; 6) pela dificuldade em ser reconhecida por alguns segmentos mais canonizados do campo artístico; 7) por ter constantemente de lidar com o “perigo da institucionalização”, por parte das instâncias oficiais de apreciação e disseminação artísticas, uma vez que se apresenta e se propõe enquanto arte espontânea de “contracultura”.

Portanto, à luz dos jogos de poder que existem e influenciam as práticas artísticas como o TC, e numa lógica sociológica de compreensão e entendimento dos fenómenos de forma crítica, consideramos a importância necessária e imprescindível de análises intensivas, prolongadas e aproximadas, que evitem considerações ingénuas (Serafino, 2019b). Estas pesquisas, assim, podem: 1) aprofundar o entendimento das dinâmicas tendo em consideração a complexidade do contexto; 2) evitar generalizações dicotómicas sobre “o bem” ou “o mal” das experiências estudadas; 3) sugerir caminhos virtuosos para o prosseguimento de boas práticas; 4) evitar uma discussão estéril sobre conceitos e terminologias que reduzem o TC a um mero objeto de estudo.

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1 O presente artigo assenta na tese de doutoramento europeu em Sociologia intitulada Práticas Artísticas e Inclusão Social: Estudo de Caso da Associação Portuense Pele_Espaço de Contacto Social e Cultural, realizada no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/100168/2014).

2 O tratamento do material recolhido nas entrevistas em profundidade foi feito a partir do esquema de análise de entrevistas aprofundadas proposto por Isabel Guerra (2014).

3 Ao longo da investigação, foram observados ensaios e apresentações públicas dos espetáculos da Pele_ECSC, presenciaram-se reuniões com a direção da Pele_ECSC, fóruns de grupos de TC do Porto, fóruns no âmbito do projeto Ecoar da Pele_ECSC e reuniões sobre o Festival Mexe III e IV. Participou-se também a palestras e encontros científicos em Portugal como: Eirpac I e II, EthnoArts, Perspectives of Arts Education and Sustainable Development and ENO meeting. Para aprofundar as questões metodológicas sobre a pesquisa remete-se para Serafino (2019b).

4 Foram feitas 7 entrevistas com representantes de associações, serviços sociais e educativos do Porto, 9 com representantes de Estabelecimentos Prisionais do Porto e 1 com a Direção Geral dos Serviços Prisionais e Reinserção. Para aprofundar sobre o retículo interorganizacional da Pele_ECSC e as especificidades dos parceiros entrevistados veja-se o capítulo 2.4 da tese de doutoramento (Serafino, 2019a, pp. 128-163).

5 A escolha dos entrevistados parceiros e atores participantes foi feita procurando um bom grau de diversidade interna ao grupo, seguindo os critérios de diversificação e saturação da informação.

Recebido: 23 de Março de 2020; Aceito: 24 de Março de 2022

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