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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.245 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022245.07 

Dossiê

Vidas em fuga da pobreza: a mobilidade social nas classes trabalhadoras em contextos de realojamento (2007-2010).

Lives escaping from poverty: social mobility in working-class contexts of relocation (2007-2010).

José Cavaleiro Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0003-4176-7438

1 ESCS - Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa e CRIA, Escola Superior de Comunicação Social, Campus de Benfica do IPL - 1549-020 Lisboa, Portugal. jrodrigues@escs.ipl.pt


Resumo

Desde o princípio do século, um conjunto de pesquisas longitudinais veio comprovar as evidências já existentes de que uma parte das classes trabalhadoras afetada por episódios de pobreza não se tornava cronicamente pobre. Com base numa etnografia com 28 famílias de dois bairros sociais metropolitanos de Lisboa, procurou-se aprofundar o conhecimento sobre estes movimentos bem-sucedidos de fuga e ficar a saber como a pobreza surgiu nas suas vidas, em que condições foi possível a sua ultrapassagem e de que maneira os sujeitos passaram a identificar as posições que conquistaram, no quadro das suas representações e formas de conceber a estrutura de desigualdades e as hierarquias sociais contemporâneas.

Palavras-chave: pobreza; classes trabalhadoras; mobilidade e identidade social

Abstract

Evidence gathered since the late 2000s has suggested that a part of the working class goes through episodes of poverty without becoming chronically poor. Drawing on a project conceived to capture successful movements that escape severe or extreme destitution and deprivation, and based on an ethnography of28 families in two public housing estates in the metropolitan area of Lisbon, this article shows how poverty emerged in their lives, under what conditions it was possible to overcome it, and how they identify the positions they have conquered within structures of inequalities and social hierarchies..

Keywords: poverty; working classes; mobility and social identity

Introdução

Este texto apresenta parte das conclusões do primeiro estudo feito em Portugal sobre processos de mobilidade entre as classes trabalhadoras, em segmentos dessa população afetados, durante parte das suas vidas, por episódios ou períodos longos de pobreza (Rodrigues, 2019). O estudo seguiu uma dupla orientação, procurando, num primeiro momento, ir ao passado e, com base nas histórias de vida, pessoais e familiares, reconstituir as passagens pela condição de pobreza e os fatores e iniciativas subjacentes à sua ultrapassagem, para, num segundo momento, se focar nas representações dos sujeitos sobre as desigualdades contemporâneas da sociedade portuguesa. Afere também a posição que os próprios se atribuem dentro da estrutura de classes. Para o efeito, foi constituída uma amostra intencional de 28 famílias, diversa na sua composição em termos de grupos de idade e fases do ciclo de vida, de níveis de escolaridade, de categorias socioprofissionais e da origem nacional ou “étnica” dos seus membros ativos. Esta última variável, introduzida de forma a assegurar a presença na amostra de imigrantes africanos e afrodescendentes, proporcionalmente sobrerrepresentados nas classes trabalhadoras pobres urbanas, obrigou a uma repartição da seleção de famílias entre dois bairros de construção pública, um situado na coroa externa da cidade de Lisboa, com uma maioria de residentes nacionais, aqui chamado de Bairro Novo1, e um outro, localizado na periferia próxima da capital, quase exclusivamente ocupado por primeiras e segundas gerações de populações africanas, que recebeu a designação de Quinta da Esperança.2 Estando no passado, os processos de realojamento não foram objeto de análise, e os bairros não figuraram tanto como unidades residenciais, mas como espaços sociais − contextos relacionais constitutivos das identidades destes segmentos das classes trabalhadoras urbanas.

Os primeiros contactos com ambos os bairros iniciaram-se em 2007, e o trabalho de campo decorreu até 2010 - numa época em que já se começavam a sentir os efeitos da passagem das crises financeira e da dívida pública para as economias, gerando encerramento de empresas, desemprego e políticas de austeridade, com cortes nos salários e em prestações sociais, particularmente gravosos ao atingirem populações muito vulneráveis, como aquelas sobre as quais o estudo foi realizado.

O projeto de tomar como objeto de estudo a mobilidade social a partir de situações de pobreza surgiu da observação repetida, em diferentes contextos, de comportamentos e atitudes na relação entre moradores de bairros sociais, e destes com os espaços de coabitação, que revelavam a existência de diferentes ethos. Diferenciações internas e lutas de classificação, processos divisivos e hierarquizantes que evidenciavam, a nível local, um conjunto de disposições derivadas das lógicas de relação próprias das estruturas de desigualdade e das formas de distinção prevalecentes nas sociedades contemporâneas. Foi da repetida constatação destas (o)posições dentro das classes trabalhadoras e da sua infraclasse, mais até do que das diferentes situações socioeconómicas objetivas das famílias, que resultou o projeto de revelar esse segmento menos conhecido da população realojada, apostado na mobilidade e no deslocamento para lugares menos desfavorecidos da estrutura de classes (Rodrigues, 1997; 2003).

É importante sublinhar que os processos observados à época, decorridos nos anos imediatamente subsequentes aos realojamentos, evidenciavam transformações provocadas ou potenciadas pela mudança da condição habitacional e pelo modo como esta estimula a reconfiguração das relações nos lugares onde habita a pobreza urbana e as estratégias com que no seu interior se movimentam os atores sociais. Os realojamentos geram expetativas3 e provocam disputas, dividem e criam diferenças, expõem condições asseguradas ou predisposições para a mobilidade que se encontravam latentes, ao mesmo tempo que tornam mais visível a falta de recursos de muitos para alterar a sua condição. Não são responsáveis por toda a variedade de situações e modos de vida que se encontram nos bairros sociais, e que são próprios da pobreza e das classes trabalhadoras, mas avivam contrastes e tornam mais tangíveis as divergências e os vários os caminhos possíveis. Uns encontram no novo contexto residencial condições para continuarem a construir a autonomia dos seus projetos; outros sentem que se tornam mais evidentes as suas incapacidades, ao passo que muitos se confrontam com os mesmos entraves estruturais de sempre, cujas causas não podem ser enfrentadas a partir de intervenções centradas exclusivamente no problema da habitação. É nesse sentido que a dinâmica introduzida pelo realojamento favorece a formação ou a maior exposição de hierarquias e distinções internas - em espaços mediática e politicamente representados como homogéneos -, fornecendo um contexto propício para a observação de percursos de mobilidade nestas populações.

A possibilidade de transformar os espaços sociais de realojamento num quadro de pesquisa diferente, especificamente orientado para os segmentos em mobilidade, foi ganhando consistência até se transformar num projeto teórica e empiricamente mais sustentado, graças, por um lado, à revitalização das perspetivas críticas e das teses estruturais dentro das teorias da pobreza e, por outro lado, ao conhecimento resultante do aparecimento de novas formas de medir e avaliar as temporalidades, as permanências e os movimentos de rutura dos pobres com a condição de pobreza, uma fatalidade tão própria da vida das classes trabalhadoras urbanas. Recuperemos, então, para enquadrar a nossa análise, as evoluções registadas no campo de estudos da pobreza.

Confrontações teóricas e evidências empíricas: novas abordagens à pobreza

As teorias da pobreza, alinhadas em dois eixos explicativos contraditórios - um apontando para causas estruturais e outro para determinantes individuais -, refletem sobremaneira sobre as grandes divergências entre paradigmas sociológicos e os seus prolongamentos ideológicos. Um balanço histórico mostra que as interpretações de tipo individualista, tratando o fenómeno como uma consequência das diferentes capacidades e aptidões dos indivíduos, chegaram a rivalizar, sobretudo no pós-guerra, com os enfoques estruturais, predominantes desde a origem do campo, ele próprio um produto do pensamento liberal-reformista anglo-saxónico do final do século XIX (O’Connor, 2002).

É provável que a história tivesse sido diferente, caso a teoria weberiana das desigualdades ou o pensamento social de Marx tivessem deixado um maior legado neste domínio. Efetivamente, não foi isso que aconteceu e em nenhum dos paradigmas clássicos se encontra um tratamento direto ou uma abordagem específica dirigida às questões da pobreza. A análise de Weber - embora o tema da mobilidade seja parte integrante da agenda - faz mais referências às life chances das classes médias, do que à ausência de recursos económicos, poder e status, dos desfavorecidos. Ao contrário de Marx, cuja visão transformadora das relações sociais era mais otimista para as classes trabalhadoras, para Weber (1978), a tendência para a racionalização e burocratização das sociedades modernas fazia prever o aparecimento de novas desigualdades sociais. Autores contemporâneos em que é visível a influência de Weber, como Bourdieu, complexificam as abordagens da estrutura de classes, reforçam a dimensão temporal das trajetórias sociais, mas continuam a não dar particular relevo ao conjunto das chamadas “classes populares”. Em Bourdieu (1993), particularmente nos trabalhos sobre os que mais sofrem com a escassez de recursos, inclusive os que são materialmente pobres, essa misère de condition é secundarizada face ao que lhe parece importante destacar, a misère de position, uma forma moderna de miséria social que priva as classes populares e as pequenas burguesias de realizar as suas legítimas aspirações estatutárias e de posição, em sociedades dominadas pela ideologia da mobilidade.

Na teoria marxista, por outro lado, o que existe e marca os principais textos é uma abordagem relacional que analisa as desigualdades enquanto propriedade dos sistemas sociais e permite perspetivar a pobreza como reverso e contraponto da riqueza. Mais do que um dano colateral da economia, a pobreza é resultado do funcionamento do modo de produção capitalista, um efeito da acumulação de capital e do modo como a riqueza de uma classe fica dependente da exploração e da subtração de recursos a outras classes. Marx enunciou esta interdependência sob a forma de uma lei, que tornava a “accumulation of misery a necessary condition, corresponding to the accumulation of wealth. Accumulation of wealth at one pole is, therefore, at the same time accumulation of misery, the torment of labour, slavery, ignorance, brutalisation and moral degradation at the opposite pole (1976 [1867], p. 799).

A matriz marxista explicita os mecanismos do sistema e, indiretamente, a origem da pobreza, introduzindo duas noções fundamentais: a da existência do “exército industrial de reserva” e a do processo de “pauperização”. O papel do “exército industrial de reserva”, constituído por trabalhadores excedentários, é servir de regulador salarial, impedindo que os rendimentos do trabalho acompanhem os aumentos de produtividade, aumentando, dessa forma, a exploração. É este efeito de empobrecimento relativo que consubstancia a tendência para a “pauperização”.

Caberá aos autores neomarxistas contemporâneos aprofundar os critérios de identificação das posições de classe e a localização dentro das classes trabalhadoras dos mais pobres. Em 1995, Wright vem distinguir duas situações: a pobreza “gerada no interior das relações de exploração” e a pobreza “gerada pela opressão não exploradora”. À primeira, corresponde uma fração das classes trabalhadoras, com baixas qualificações e obrigada a aceitar postos de trabalho mal remunerados e sem garantias, no chamado “mercado secundário de trabalho”.

Os pobres que estão na segunda situação integram a “infraclasse”. Na definição neomarxista, o conceito aplica-se “aquella categoría de agentes sociales que están económicamente oprimidos pero no permanentemente explotados dentro de un sistema de clases dado” (Wright, 1995, p. 147). No caso da infraclasse e da fase avançada do capitalismo, não existe uma capacidade laboral utilizável de modo produtivo, nem viabilidade para a sua requalificação, logo, o trabalho dos indivíduos que a integram não representa valor.

Com o contributo de Wright, a pobreza ganhou finalmente estatuto teórico para o marxismo e ficou delimitada com clareza aquela que é a participação dos pobres no sistema económico e nas relações sociais capitalistas: dentro do sistema, constituindo um segmento do proletariado, uma subclasse de trabalhadores irregulares pobres; e, fora do sistema, como um corpo social “prescindível do ponto de vista da racionalidade capitalista” (1995, pp. 148-149), a infraclasse.

Giddens (1973), Runciman (1990) e Esping-Anderson (1993) são três outros autores que, já fora do paradigma marxista, procuraram soluções para o problema da identificação dos pobres no quadro das relações de desigualdade. Se para uma parte da sociologia das classes existem, portanto, bons argumentos para propor novas localizações para os economicamente excluídos, esta hipótese continua a não ser consensual e é raro ver a sua inclusão nas grelhas de análise das posições de classe. Morris (1996, p. 189), por exemplo, considera que os desempregados de longa duração e outros trabalhadores com histórias laborais fragmentadas podem não sofrer de desvantagens idênticas na relação com o mercado de trabalho, mas que as diferenças que os separam já se encontrariam refletidas nalgumas grelhas de desigualdade através do critério das qualificações profissionais. Outros sociólogos recusam uma localização específica dos pobres porque, embora reconheçam a existência de diferenças internas significativas no acesso a recursos, consideram que as classes trabalhadoras apresentam, mais do que qualquer outra, uma elevada probabilidade de terem a pobreza como experiência e perspetiva de vida. Zweig resume essa premissa de unidade de forma expressiva ao afirmar que a pobreza “happens to the working class” (2000, p. 223).

Quando se olha retrospetivamente para os estudos da pobreza, aquilo que se encontra desde a sua origem, no final do século XIX, é um domínio incontestado na literatura das perspetivas aplicadas. Só à medida que nos aproximamos do final do século XX, é que estas problemáticas e os modelos conceptuais que as suportam começam a ser criticados. A investigação produzida até esta altura estava centrada, sobretudo, em objetivos práticos, orientada pela necessidade de apoiar a decisão e a intervenção políticas, definindo a condição económica de pobreza, contabilizando efetivos e os diferentes graus de incidência do fenómeno, verificando os impactos ao nível habitacional, da educação ou da saúde. Apesar da utilidade desta abordagem, o modelo era bastante restritivo.

Segundo Lister (2000), os estudos tradicionais da pobreza eram afetados por três tipos de limitações. Em primeiro lugar, ao se debruçarem sobre a pobreza enquanto condição, concentravam-se no momento em que essa condição já se encontrava realizada. Podiam fornecer imagens completas de situações, mas faziam-no de um modo estático, sem perspetivar as dinâmicas históricas e biográficas que conduziam até aos contextos em análise. Em segundo lugar, os estudos da pobreza mais antigos só deixavam ver massas homogéneas, e características tidas como universais. A ausência dos grandes fatores de desigualdade − a classe social, o género, a raça e a etnia, a relação estrutural e o modo como se combinavam para diferenciar internamente a condição de pobreza − impedia o conhecimento das diversas formas de se cair na pobreza, de se ser pobre ou de se aspirar a outra condição e estatuto social. Por último, o modelo clássico tomava os pobres como atores passivos, sem capacidade para reagir às condições adversas que lhes eram impostas. A possibilidade desses constrangimentos nos estudos da pobreza serem ultrapassados só surge quando o objetivo de alguns investigadores passa a ser captar as estratégias desenvolvidas para sobreviver nos quadros de pobreza ou, em situações menos frequentes, quando os pobres se revelam capazes de mudar a sua condição social.

Identificar as dinâmicas de mobilidade no âmbito da pobreza é um enfoque que vai ganhando forma à medida que se avança para a segunda década do nosso século, em estudos de caso ou recorrendo à etnografia, isolando categorias particulares de pobres, como os jovens ou as mulheres, em contextos que valorizam o papel da família, da escola ou de programas específicos de combate ao fenómeno. Os investimentos parentais na educação (Gillies, 2005; Boyden, 2013), a progressão através do trabalho e de carreiras como a desportiva (Spaaij, 2009; Singer, 2010), as estratégias matrimoniais (Still, 2011), os aspetos simbólicos e as implicações relacionais das identidades (Lister, 2015; Ray, 2017), são alguns exemplos do que tem vindo a ser feito. Mas esse já vasto e diverso conjunto de pesquisas parece apontar para duas conclusões essenciais: a primeira é que os ganhos de posição são modestos e, para muitos, mesmo inexistentes e, a segunda, que de algum modo explica a primeira, é que a mobilidade é um fenómeno complexo e multidimensional, um puzzle que frequentemente os jogadores não conseguem completar porque lhes faltam peças ou as que possuem não são compatíveis entre si (Ray, 2017, pp. 9-10).

Paralelamente, regista-se um outro avanço decisivo para o estudo das mobilidades a partir da pobreza: quando são publicados os resultados das primeiras pesquisas longitudinais em painel, em particular aquelas que incluem países com taxas de incidência iguais ou superiores às de Portugal (Arranz e Cantó, 2010; Cellini, McKernan e Ratcliffe, 2008; OCDE, 2008). Sobre o nosso país não existem, por enquanto, estudos sobre as dinâmicas da pobreza, nomeadamente em observações mais longas, abrangendo duas ou mais gerações. Todavia, há alguns indicadores em fontes internacionais que nos permitem aceder a aspetos das dimensões processuais do fenómeno e confrontar a situação nacional com a de um conjunto diferenciado de países. Bruto da Costa et al. (2008) fizeram-no, recorrendo a estatísticas europeias para introduzir a variável tempo num estudo de caracterização da pobreza nacional. O interesse dos autores recai sobre a análise dos problemas colocados pela persistência do fenómeno, daí que a sua forma de incluir a dimensão temporal esteja orientada para a duração das situações e não para a medição dos fluxos de entrada e saída da pobreza. Segundo os dados que nos apresentam, no período de seis anos, compreendido entre 1995 e 2000, perto de 28% dos indivíduos que passaram pela pobreza estiveram nessa situação num único ano. Usando as mesmas fontes, Pereirinha (2008) coordenou outra equipa nacional num estudo sobre a pobreza no feminino, para nos revelar que 41% dos portugueses foram pobres durante os anos de 1995 a 2001, mas 24% desses viveram a situação de forma transitória, passando por um período circunscrito de pobreza que conseguiram ultrapassar. Ainda assim, os dados sobre Portugal não são particularmente positivos quando comparados internacionalmente. Em 2008, num conjunto de países da OCDE, não só as taxas de transitoriedade eram maiores que em Portugal (55% contra 36%) como eram em maior número aqueles que, ao sair da pobreza, alcançavam ou ultrapassavam os rendimentos médios nacionais (18% face a 12%).

Mais recentemente, uma primeira observação longitudinal realizada sobre a pobreza em Lisboa veio trazer mais elementos sobre a possível transitoriedade dessa condição - se bem que, dos 47 elementos acompanhados, apenas dois tenham conseguido sair e permanecer fora da pobreza, nos seis anos sob observação (Costa, 2017). Apesar da ausência de dados mais extensivos, temos elementos para admitir que mobilidades mais duradouras existem no nosso país, tal como, aliás, previram Ferreira de Almeida et al. (1992) ao tipificar um modo de vida que designaram por “investimento na mobilidade”.

A reprodução da pobreza entre as classes trabalhadoras, encerrando largos setores destas numa condição intransponível, é um fenómeno empiricamente comprovado, cujas causas são suficientemente conhecidas. Há, ainda, muito para compreender nos movimentos de entrada e saída dessa condição, nos fatores e disposições que os favorecem ou limitam. A exposição dos trabalhadores à condição de pobreza não nos deve fazer esquecer que um conhecimento mais profundo dos seus modos de vida, da sua consciência e das suas aspirações sociais requer, por um lado, que se termine com o seu isolamento analítico, ao serem definidos apenas pela insuficiência económica, e, por outro, que se adote uma perspetiva processual, escalas de análise e grelhas mais finas, capazes de identificar as diferentes formas de estar e de passar pela infraclasse, revelando os dinamismos que se verificam na base da estrutura de desigualdades.

Da pobreza para fora da pobreza: mobilidades nas classes trabalhadoras

No quadro destas problemáticas diversas que marcam este campo de estudos, a primeira interrogação para a qual procurei resposta foi saber em que condições se tornavam possíveis as mobilidades, tidas por tão improváveis, a partir de situações de pobreza. Há fatores estruturais, conjunturas históricas, políticas e económicas que impulsionem esses movimentos em determinadas camadas da população mais pobre, ou eles existem sobretudo quando são desencadeados pela iniciativa e projetos de cada indivíduo e família e pelas estratégias que os mesmos engendram na prática? Uma vez reconstruídas as trajetórias dos protagonistas e as disposições que as favoreceram, interessou-me igualmente retratá-los na pluralidade dos modos de vida que construíram, e na maneira como se identificavam socialmente a si próprios, olhando para as posições conquistadas e as aspirações que ainda alimentavam. Esta segunda dimensão das identificações implicou uma terceira: a de conhecer as representações dos sujeitos sobre o conjunto mais amplo da estrutura de desigualdades e hierarquias - das posições mais desfavorecidas, que experimentaram pessoalmente, aos lugares privilegiados, a que só a imaginação lhes permite aceder.

Para acompanhar a vida das 28 famílias escolhidas, observei durante dois anos e meio o quotidiano dos dois bairros de habitação social em que residiam, as atividades diárias e a vida de bairro, as deslocações para o trabalho e para a escola, os eventos e as festas, as associações locais e as relações com os vários poderes instituídos. Sendo ambos os bairros produto de realojamentos locais,4 de dimensão média,5 com menos de 1500 moradores, são sítios em que quase todos se conhecem, por serem, além de vizinhos, parentes, conterrâneos, colegas de trabalho, cujos relacionamentos mais antigos tinham 30 e mais anos.6 A escolha do bairro “africano”, a Quinta da Esperança, foi, como já referi, intencional, uma vez que tornava possível juntar a um primeiro eixo de análise − o das desigualdades socioeconómicas e de classe − a exploração de um segundo, o das desigualdades étnico-raciais, esperando que essa sobreposição permitisse comparações e a descoberta de eventuais diferenças nas definições identitárias e nos sistemas de representações. Acresce, além do mais, que a ancoragem local facilitava a imersão nas vivências de lugares e pessoas e a recuperação de uma história conjunta, assim como estabelecia uma base contextual mais densa para um trabalho que dependeria, em boa parte, de entrevistas etnográficas.

Este género de entrevistas, ligadas à prática etnográfica, mantem uma relação estreita com a observação direta. São flexíveis, tanto na sua estrutura como na aplicação. O primeiro guião foi sendo objeto de pequenos ajustes, especificações introduzidas em função das descobertas proporcionadas pelo avanço das interações nos terrenos. Do mesmo modo, existindo um conhecimento dos entrevistados que resultava de contactos prévios, no momento formal das entrevistas havia questões para as quais já tínhamos obtido suficientes elementos de resposta, o que aligeirava e resumia o procedimento. A retroalimentação entre as práticas observadas no quotidiano e a condução da recolha de depoimentos é o elemento distintivo desta forma particular de etnografia.

Para obter as variáveis sociodemográficas gerais de caracterização do conjunto das populações, em termos de ocupações profissionais, rendimentos e escolaridade, e face à inexistência de dados atualizados ao nível das unidades residenciais nas fontes estatísticas nacionais, recorri aos estudos promovidos pelas entidades gestoras dos bairros e, complementarmente, ao tratamento de informação disponível nas bases de dados das instituições responsáveis pelos programas e medidas de apoio social local.

A existência de dois terrenos separados prolongou a fase de trabalho de campo. Os primeiros meses foram exclusivamente ocupados a garantir o acesso, obter a cobertura institucional para o projeto e conhecer ou recuperar contacto com os principais protagonistas dos bairros, de forma a que a generalidade da população fosse reconhecendo a minha presença e os motivos da estada. Posteriormente, o tempo de trabalho foi organizado em tranches, com dois meses de permanência alternada em cada bairro, o suficiente para dar continuidade às operações no terreno, dando a conhecer as ausências e as datas de regresso. Dois acontecimentos significativos, um particularmente grave e com repercussões na imagem externa do bairro, forçaram uma alteração pontual no calendário estabelecido.

Em cada um dos bairros, fui lentamente identificando e acompanhando 14 famílias em processo de mobilidade, juntando, no total, 28 casos em que os percursos ascendentes se encontravam ou mais ou menos estabilizados em situações consolidadas, ou em fase de trânsito, mas ainda sujeitos à precariedade. Na identificação das deslocações, os critérios determinantes foram os grupos socioprofissionais e o rendimento, por vezes acompanhados por fatores auxiliares, a mobilidade derivada das credenciais e qualificações escolares e a mobilidade residencial. O principal critério utilizado na seleção das famílias foi o de cobrir a maior diversidade possível de situações, tanto quanto à época e duração da condição de pobreza como das vias seguidas para a sua ultrapassagem. Os quadros 1 e 2 identificam, com nomes fictícios, respetivamente para o Bairro Novo e a Quinta da Esperança, os 28 entrevistados e os seus cônjuges, relativamente às ocupações profissionais e às classes sociais em que se enquadram.7

Quadro1 Perfis de Classe no Bairro Novo 

Quadro 2 Perfis de Classe na Quinta da Esperança 

A primeira evidência do estudo é a heterogeneidade de experiências de pobreza retratadas, tanto ao nível da duração como das fases do ciclo de vida em que ocorreram e da intensidade com que atingiram os sujeitos. Em dois terços das biografias, a pobreza surge em episódios pontuais, passagens curtas até um ano de duração, ou em períodos mais longos, continuados ou intermitentes, mas sempre biograficamente isolados; nas restantes, as situações de destituição assumem carácter mais duradouro e podem prolongar-se por mais de uma década. Armanda conta-nos uma dessas experiências, no seu caso a única por que passou:

Armanda - Em relação à saúde do meu filho, que tive que ficar quatro anos em casa de baixa com ele, senti muito, e a minha vida deu uma volta de 360º, por completo… Habituada a ter o meu dinheiro, e poder juntar e poder estar bem; prontos, não digo 100% bem, mas estar folgada, sem problemas nenhuns, de um momento “pró” outro, […] descambou por completo. […] Houve alturas que queria comprar leite “pró” Filipe porque o Filipe tinha um leite especial, e não ter, não ter dinheiro para tal, não é… e o meu marido não estar a trabalhar […], a Segurança Social ainda não me ter pago. Não há dinheiro…

As passagens temporárias pela pobreza, em ocorrências isoladas ou apresentando reincidências, têm igual probabilidade de surgir em qualquer idade ou período das histórias pessoais, exceto no caso particular dos imigrantes da Quinta da Esperança. Chegados na sua maioria a Portugal enquanto jovens adultos ou um pouco mais velhos, passam, de forma quase obrigatória e independentemente das suas qualificações, por um ou mais anos de dificuldades económicas, por vezes severas, antes de conseguirem uma melhor inserção laboral e condições remuneratórias que lhes permitem viver de forma mais autossuficiente. Foi o caso de Mário, fiscal de obras e chefe de vendas, funcionário do Estado em São Tomé e Príncipe, que teve de aceitar trabalho na construção civil, e só mais tarde pôde mandar vir a família:

Mário - Tive uma vida anteriormente estável, depois caiu para o poço. Eu não esperava vir trabalhar de picareta em Portugal. Deixar a vida que já tinha, vir dormir num quartinho emprestado de dois metros quadrados. Deixar a família toda na terra. Passar frio e passar fome, às vezes.

As experiências mais prolongadas de pobreza atingiam um terço das biografias de mobilidade analisadas e tinham maior expressão na vida dos indivíduos do Bairro Novo nascidos ou residentes em Portugal durante a fase em que viveram e estiveram dependentes das suas famílias de origem: famílias oriundas de áreas rurais, maioritariamente camponeses e jornaleiros sem terra, que vieram em idade jovem para Lisboa à procura de melhores condições de vida. Segundo os levantamentos sociodemográficos municipais consultados, quase todos constituíram famílias numerosas e muito numerosas, muitas vezes dependentes de rendimentos irregulares, com um ou vários elementos ativos, mas sem empregos estáveis, em setores secundários e desprotegidos do mercado de trabalho ou ligados a práticas económicas informais. Histórias de vida em que, mesmo não funcionando como primeiras causas, os acidentes de trabalho, os problemas graves de saúde e acontecimentos familiares, como as separações conjugais, representam golpes definitivos em situações económicas já de si precárias. Condições extremamente difíceis que nestas famílias só podiam ser enfrentadas, à época, explorando ao máximo a mão-de-obra familiar. Foi por isso que alguns dos meus entrevistados, sobretudo os mais velhos, começaram a trabalhar ainda como aprendizes, aos 10 e 12 anos de idade, e iniciaram, desse modo, um caminho que havia de ajudar as suas famílias, abandonando a escola.

Na última década do século passado, a idade legal para trabalhar foi regulada e aplicada de uma forma mais restritiva, mas a multiplicação dos salários continuaria a ser a única maneira de muitas daquelas famílias subsistirem e angariarem um mínimo de recursos. A condição social de origem dos imigrantes da Quinta da Esperança que entrevistei é completamente distinta. Eram filhos de proprietários, pequenos comerciantes, quadros com formação técnica e empregados da administração colonial, pessoas com algum estatuto nas sociedades locais, cujos modos de vida, no contexto dos países subdesenvolvidos, estavam longe de corresponder aos dos estratos mais carenciados da população.

Todos os meus entrevistados conheceram a pobreza, os mais novos no seio das famílias em que nasceram, ou durante a sua vida adulta, mas a intensidade com que viveram a escassez de recursos foi bastante variável. Há os que passaram por períodos longos de indigência e dependência assistencial continuada; quem tenha sobrevivido anos com rendimentos incertos e grandes carências, contando frequentemente com a solidariedade de familiares; e quem tenha apenas experimentado um ou outro episódio de maior necessidade, nalguns casos nos últimos anos. As narrativas de muitos, todavia, negam ou diminuem o impacto dessa ausência de meios, preferindo admitir que passaram “dificuldades”, sem reconhecer nelas situações de pobreza. Ser ou ter sido pobre é algo que muito poucos aceitam, recusando usar a palavra para falarem de si próprios. A convivência com quadros de existência social em que a regra é ser pobre − por vezes muito pobre durante muito tempo − vulgariza a pobreza, torna-a uma condição comum e, portanto, normal. Num cenário deste género, as representações deslocam a categoria e empurram-na para situações de privação extrema, relativamente às quais a dissociação fica facilitada, sobretudo por parte daqueles que deixaram de ser pobres e podem agora olhar para esses episódios do seu passado como pouco mais do que incidentes biográficos.

São muitos e variados os caminhos seguidos para se sair da pobreza, porventura tantos como as múltiplas causas que a ditaram. Mas nenhuma das minhas 28 famílias teve a trajetória singular dos Castro, uma família mexicana de “novos-ricos”, cujo dia-a-dia Óscar Lewis nos descreve de uma forma tão viva em Five Families e que, no espaço de uma geração, sai da situação de pobreza para passar a viver dentro dos padrões dos grupos sociais mais abastados do seu país. Com casos extraordinários como este, nunca me cruzei na realidade portuguesa, apesar de, em cada lugar, ter ouvido contar histórias de “milionários”: narrativas sobre famílias pobres que teriam acabado por ser muito bem-sucedidas, e cujos destinos as levaram para longe dos seus bairros, fazendo-as desaparecer para sempre na paisagem social urbana.

Os percursos que aqui se analisam são bem mais modestos. Para aqueles cujas insuficiências estavam nas famílias em que nasceram, o começo de uma vida independente pôde constituir o ponto de partida para a ultrapassagem da pobreza, aproveitando, por vezes, a experiência de um ofício em que se começou a trabalhar muito cedo e baseando nele uma carreira profissional duradoura. Outros precisaram de agarrar oportunidades surgidas em épocas de expansão económica, transitando para setores mais regulados do mercado de trabalho e deixando para trás ciclos sucessivos de empregos pagos à tarefa ou ao dia, contratos precários, mal remunerados e sem coberturas sociais. Uns poucos valeram-se das qualificações, de diplomas de estudos superiores ou de complementos de estudos adquiridos na idade adulta; outros, da estabilidade garantida pelo ingresso no funcionalismo público. Deste último caso, é exemplo Maria Idalina, uma assistente administrativa:

Maria Idalina - Entretanto fiz as Novas Oportunidades, surgiram as Novas Oportunidades e eu fui. Há muito pouco tempo, foi o ano passado. […] Fiz o nono […] para subir em termos de trabalho. […] agora é tudo através da pontuação, da bonificação, que somos pontuadas. […] Eu tenho tido sempre muito bom, o muito bom também me tem facilitado muito.

A mão do Estado e das políticas sociais está frequentemente presente, direta ou indiretamente, em muitas destas progressões: criando emprego ou subsidiando instituições que o criam, nomeadamente no setor social, disponibilizando apoios - de que estas 28 famílias beneficiaram -, como a atribuição de casas a rendas sociais, de pensões por deficiência ou invalidez, de complementos de reforma, de abonos de família e respetivas majorações, de bolsas de estudo; ou, pelo menos, exercendo, através da ação legislativa, um maior controle e restringindo as situações de subemprego.8

Apesar de todas as famílias incluídas no estudo estarem acima do limiar de pobreza, as disparidades de rendimentos entre elas eram muito consideráveis. As diferenças exprimiam-se desde logo ao nível dos rendimentos individuais, com salários e pensões a começarem nos 450 euros e a chegarem aos 1300 euros; mas acentuavam-se ainda mais quando se consideravam os rendimentos englobados das famílias: os rendimentos mais baixos estavam na casa dos 500 euros, os mais altos estendiam-se até aos 2200 euros. Em média, o rendimento disponível situava-se nos 1145 euros, mas, desagregando os dados, verificava-se que os 1031 euros de rendimento médio das famílias imigrantes da Quinta da Esperança estava cerca de 20% abaixo dos 1245 euros das famílias nacionais do Bairro Novo. Num e noutro caso, as distâncias em relação ao limiar de sobrevivência podiam ser mínimas, ou os rendimentos auferidos situarem-se acima da média nacional.

As diferenças de rendimentos entre os dois bairros não existiam apenas nas famílias em mobilidade integradas na amostra. Quando olhamos para o conjunto, nos escalões mais elevados, 20,5% dos agregados residentes no Bairro Novo tinham rendimentos iguais ou superiores a 1031 euros, ao passo que na Quinta da Esperança apenas 11,1% conseguiam um rendimento equivalente a 1017 euros ou mais. Se procurarmos o escalão onde se encontra a maior percentagem de agregados, descobrimos que no Bairro Novo esse escalão é o 3.º, correspondente ao intervalo de rendimentos entre 644 e 1031 euros, e nele se situam 34,5% das famílias; já na Quinta da Esperança o escalão que reúne mais famílias é o 5.º, com 33% dos agregados a recolherem rendimentos mensais entre 407 e 611 euros.

Os perfis de habilitações mostram que a maioria dos inquiridos completou o 3.º ciclo do ensino básico, ou prosseguiu estudos para o secundário, conseguindo alguns dos mais novos frequentar ou terminar cursos superiores. O investimento na educação é uma atitude generalizada e presente tanto nas famílias nacionais como nas de origem africana. A importância reconhecida ao fator educativo reflete-se no cuidado e no acompanhamento que é dado às gerações mais novas, desde a escolha das escolas, à vigilância exercida nas relações entre pares. Quem tem filhos em idade escolar insiste sempre que eles são a sua primeira prioridade e que é pela via da escolaridade que procuram garantir o seu futuro.

Antonieta - E falarmos a nível pessoal, é assim, quem tem filhos tem primeiro um objetivo na vida que é encaminhá-los, nós estamos em segundo plano. O meu principal objetivo, bem futuro, é as minhas filhas, como é lógico. Conseguir dar-lhes aquilo que eu não consegui ter. [Estou a falar] da faculdade, da realização profissional muito mais alargada. Porque, na sequência da sua formação profissional, formação académica, também reflete na vida pessoal. Uma coisa arrasta a outra e vice-versa. Estamos encaminhadas, tudo está canalizado para isso. E espero que continue.

No entanto, apesar das habilitações escolares serem mais elevadas entre a população imigrante da amostra residente na Quinta da Esperança, as mesmas não tinham correspondência nos postos de trabalho ocupados, ou seja, os detentores de mais qualificações dispunham, quando muito e em termos médios, das mesmas oportunidades dos menos habilitados.

A distribuição dos inquiridos pela estrutura ocupacional evidenciava uma maioria de trabalhadores dos serviços e comércio e de operários, em números equivalentes, mas existiam igualmente trabalhadores independentes e profissionais técnicos. Numa análise desagregada, verificava-se que entre os ativos imigrantes da Quinta da Esperança predominavam os empregados do setor terciário, com uma minoria de operários, em ocupações mais precárias e menos exigentes do ponto de vista das qualificações. Em relação à geração anterior, o conjunto dos entrevistados nacionais acompanha grosso modo a recomposição da estrutura socioprofissional ocorrida em Portugal durante o último quartel do século XX, com a extinção do campesinato, a decadência de muitos ofícios independentes e a terciarização do emprego (Ferreira de Almeida et al., 2007). Este arrastamento estrutural, largamente provocado pela reconversão da base produtiva do país, não explica, por si só, a melhoria da condição socioeconómica dos ativos da geração mais nova. É preciso ter presente − e a maior parte das grelhas de análise da estrutura de classes não o permite ver − que os independentes dos ofícios manuais e os camponeses proprietários do minifúndio rural viviam, na realidade, em condições bem mais difíceis do que aquelas em que os seus filhos assalariados dos serviços e da indústria vivem hoje. Uma análise dos rendimentos mostra uma situação dos primeiros muito próxima da infraclasse, sem trabalho regular ou meios de produção para gerar rendimentos suficientes, em setores decadentes ou em vias de extinção, enquanto os empregados e os operários assalariados atuais incluídos na amostra auferem vencimentos que lhes permitem situar-se pelo menos acima das linhas de pobreza. As mobilidades positivas que neste estudo se evidenciam nem sempre são as da ascensão em estruturas que hierarquizam em função da propriedade, das qualificações ou do prestígio das atividades profissionais; em muitos casos a mobilidade vertical é apenas entre estratos de rendimentos, dentro de uma mesma classe ou de classes muito próximas.

Mas a mobilidade intergeracional representa apenas uma parte da ultrapassagem das situações de pobreza. Muitos dos movimentos transformativos da condição económica verificam-se intrageracionalmente e resultam de reconversões profissionais e de deslocações horizontais dentro da mesma classe, entre frações com níveis de remuneração e condições laborais diferentes das classes trabalhadoras ou das baixas classes médias. Já entre os imigrantes da Quinta da Esperança, à imigração, por vezes forçada, corresponde frequentemente um abaixamento da condição social em relação à geração dos pais − ou mesmo à situação que os próprios tinham antes de emigrarem, movimento descendente que pode demorar uma ou mais gerações a ser compensado no país de acolhimento.

Como já referido, além da reconstituição dos pontos de partida e de chegada e das trajetórias que tiraram os indivíduos da pobreza, o estudo realizado explorou também o modo como estes se identificavam socialmente, como definiam as posições por si ocupadas e as aspirações que ainda mantinham, enquadrando-as numa representação da estrutura de desigualdades e nos critérios por si empregados nessa construção.

As 28 famílias que entrevistei veem as desigualdades socioeconómicas ou de classe como um sistema tripartido de posições, com base num critério implícito que é o do nível de vida: ricos, pobres e uma classe intermédia, constituem para eles a estrutura de classes. Para responderem ao desafio de se identificarem, recorrem sempre a comparações, estabelecendo a sua posição pela proximidade e distância relativamente a outras posições. O tipo de profissão, manual ou não manual, não é nem condição de acesso nem fator de exclusão nesta classificação, mas as qualificações, sobretudo superiores, são referidas como fator de sucesso, para os próprios ou para os seus filhos.

Um dos poucos licenciados representados no estudo destaca o diploma como fator determinante da posição de classe, encontrando nele a diferença que o distingue do seu meio social:

Samir - Nós, a minha família, apesar de vivermos num foco socialmente desfavorecido, somos da classe média baixa. Não digo classe baixa porque os rendimentos que temos, que cada um aufere, a nível da escolaridade, da capacidade de singrar na sociedade, temos um potencial maior do que famílias de baixa escolaridade, que têm pais que trabalham só em contextos de limpeza ou construção civil, como serventes ou pedreiros. Há uma projeção diferente.

Mas, para quase todos os outros que se definem como pertencendo à classe média, o rendimento ou o estilo de vida é que marcam geralmente as diferenças:

Adão - Sou remediado. Remediado, porque eu tenho um ordenado que não chega a 700 euros. […] A minha mulher está reformada com 260 euros, anda à volta disso. 50 contos. […] e conseguimos ter uma casa, não é uma casa rica, mas é uma casa decente. Tenho telefone, tenho uma televisão em cada quarto, na cozinha, tenho LCD, tenho um sofá grande, tenho o chão todo arranjadinho com azulejos […]. gosto de passear ao fim de semana, ir dar uns passeios. Ou quando o meu miúdo joga, andamos sempre atrás dele. […]. Mas é um passeio, umas férias. Gosto de fazer umas feriazitas […]. Mas outras pessoas daqui a fazerem férias, sei lá são 30%.

A maioria identifica-se, portanto, com a classe média, mas mesmo os poucos que se assumem como pobres participam num discurso coletivo muito forte sobre o fim da classe média, num tempo histórico que é o do prenúncio da austeridade.

Armanda - No passado, as coisas, se calhar, estavam um pouco mais… também havia o pobre, o rico e o intermediário e nós agora já não temos o intermediário. Há o pobre e o rico. E vamos por aí: ou ganhas muito e consegues ou ganhas pouco e não consegues.É um bocado por aí, deixou de haver o meio-termo, deixou de haver a família média. Porque é impossível termos a família média, então com a transição do escudo para o euro acabou mesmo a família média.

Tanto uns como outros atribuem a queda da dita classe média a fatores contemporâneos de ordem social e económica que os transcendem enquanto indivíduos. O discurso dos primeiros, os que se identificam com as posições intermédias, também se foca na fragilidade da sua condição e no risco de virem a perder as posições que ocupam, ao passo que os que se intitulam pobres, oscilam entre o enaltecimento modesto do que conseguiram na vida e o lamento sobre a impossibilidade de concretizarem uma parte das suas aspirações.

Todos, tendo mais ou menos alcançado aquilo que pretendem, podendo dar-se ao luxo de gastar alguns excedentes de rendimento ou vivendo à justa com o que ganham, não deixam de exaltar um sentimento de honra e de satisfação por, comparativamente com outros, terem um maior controle das suas vidas económicas. Fazem-no introduzindo um segundo corte hierárquico que secciona transversalmente as três classes identificadas: manipulando critérios muito carregados moralmente, distinguem comportamentos económicos e de gestão de rendimentos. Obtém-se, deste modo, uma divisão de cada uma das três classes em duas frações, uma positivamente valorizada, formada por aqueles que não exibem a pretensão de ter o que não têm (ou de ser o que não são) e sabem gerir equilibradamente as suas posses, e outra, negativamente valorizada, para a qual são remetidos todos os que se fazem passar pelo que não são (ou simulam ter o que não têm) e gastam o pouco ou muito que ganham ou lhes é dado de forma reprovável. Ao estabelecerem este segundo eixo de diferenciação, os meus entrevistados estavam simultaneamente a criar uma hierarquia moral dentro da qual, independentemente da posição de classe ocupada, levavam vantagem, em função da correção e superioridade dos seus comportamentos e da virtude dos seus juízos.

Joaquim - Eu vou-lhe dizer uma coisa e pronto, isto é mesmo assim. Você sabe que eu trabalhei com pessoas com nível um bocadinho superior ao meu. E se eu lhe disser, assim, que essa pessoa com um nível superior ao meu chegava ao fim do mês, não tinha dinheiro.E eu ainda tinha uns trocos. Está a ver onde eu quero chegar? […] Aqueles com muito dinheiro que não sabem viver também. […] Isso é uma questão de uma pessoa não saber ocupar o lugar que tem. Que é o meu ponto fundamental, é saber ocupar o lugar onde eu estou.

No caso dos entrevistados nacionais do Bairro Novo, emerge também nos discursos a condenação veemente dos “falsos pobres” ou “pobres de espírito”, os que, segundo eles, recusavam o trabalho e viviam ilegitimamente de subsídios, categoria em torno da qual se condensava a aplicação punitiva da sua moral social.

Henriqueta - A pobreza às vezes faz é a gente. […] Pobres há, mas… Sim senhor, que há aí pobres que não devia haver. Mas há outros que se fazem sem o ser. Porque eu vejo…. Vão à Santa Casa, trazem. Vão aqui, trazem. […] Às vezes fazem-se pobres e não são pobres. […] São novos, não querem trabalhar. Mas têm, têm rendimentos mínimos, têm… uma data de filhos. Mas… ali naquela casa… é isto, é aquilo. Têm tudo.

Esta construção que os próprios estabelecem, também para se demarcarem de grupos socialmente muito próximos, nomeadamente daqueles com quem partilham o espaço de residência, é sempre enunciada entre as famílias nacionais, mas nunca aparece entre as famílias imigrantes. Em nenhum momento, as famílias da Quinta da Esperança aceitam acusar ou diminuir os comportamentos de outros residentes e conterrâneos com os quais, reconhecem, há uma partilha da condição de imigrantes e africanos e uma identidade de interesses. Em todos os depoimentos recolhidos entre as famílias africanas ou afrodescendentes se manifesta a convicção de que a principal linha de divisão é a que os separa do conjunto da sociedade de acolhimento, e recrimina-se a desigualdade de tratamento face à população portuguesa. E todos os dados que recolhi parecem dar-lhes razão. Quando comparados com as famílias nacionais, os entrevistados de ascendência africana e os membros dos seus agregados vão mais longe nos estudos e têm habilitações médias mais elevadas, mas nem por isso deixam de estar acantonados num conjunto restrito de profissões, com funções menos qualificadas e mais mal remuneradas. Se alargarmos a comparação ao total das populações residentes nos dois bairros, verificamos que outros indicadores de marginalização económica, como o desemprego e o trabalho sem vínculos e desprotegido, penalizam muito mais a comunidade africana. Não admira, por isso, que exista esta consciência interiorizada e difundida que nos sinaliza e chama a atenção de imediato para o problema da diferença racial no acesso a recursos, quando nos propomos falar sobre desigualdades.

Kedar - Existem grandes desigualdades, imensas, existe um fosso tremendo. Existem ainda pessoas que são reticentes em aceitar e abrir as portas aos outros. Entre ricos e pobres… e associa-se logo que um preto é pobre. Há uma desigualdade entre ricos e pobres e há uma associação completa em que todos os imigrantes são pobres. Como a maior parte dos imigrantes cá em Portugal são os africanos, há sempre essa associação, africanos-pobres, imigrantes-pobres.

Embora prefiram negar ou diminuir o peso da discriminação racial na sua vida pessoal, quando a reconhecem dão exemplos que denunciam a existência de práticas que, de forma mais ou menos velada, se encontram instituídas.

Maisha - Eu falava muito com essa professora. Quando fiz o 12.º ano, ela perguntou-me: − “Então o que é que queres fazer agora?”. − “Não sei, queria ir para a faculdade, mas não sei se dá”. − “Ah, dá, dá”. Ela é que me deu mais força para ir. Quando terminei o 12.º ano, ela disse: “Olha, tenho amigas que têm muitas lojas, se quiseres trabalhar no verão, eu posso dar o contacto dessas amigas”. Deu-me a referência. “Vai à loja X, está lá uma pessoa…” Uma das lojas que eu fui, não estava essa amiga, que era dona da loja, estava uma funcionária. Ela registou os meus dados todos e no fim vi ‘P’, na folha seguinte: ‘P’. Depois fiquei a pensar “O que é que será esse P?” [Mais tarde] a amiga perguntou à professora: “Então, já enviaste para cá a aluna que disseste?”. “Sim, já enviei, ela já foi à entrevista há dois dias, não foi chamada ainda”. A amiga não sabia que eu era preta. Foi verificar e disse: “Tenho aqui três pessoas que são pretas; na minha loja não trabalho com pretos”.

Considerações finais

Aqui chegados, importa recordar as questões de partida e interrogarmo-nos acerca da pertinência em querer valorizar os deslocamentos socioeconómicos para fora da pobreza e torná-los um objeto significativo para a análise social. Sendo inquestionáveis as evidências estatísticas sobre o aprisionamento social a que está condenada a generalidade dos pobres, reconhecida a eficácia dos mecanismos de “reprodução alargada” que determinam a perpetuação das desigualdades, em particular nos grupos de mais frágil condição, porquê fazer incidir a nossa atenção sobre aqueles, poucos, que, por razões aparentemente excecionais, conseguem concretizar mobilidades que transgridem algumas barreiras de classe, mesmo que mínimas e situadas na base da “pirâmide social” capitalista?

Fundamentalmente, por duas ordens de razões, ambas de natureza político-social. Em primeiro lugar, embora as famílias que se encontram em processos de mobilidade, ou os tenham “terminado” - tendo alcançado situações de autossuficiência e de acesso aos recursos essenciais ao seu bem-estar social -, tenham uma representação relativamente baixa, elas revelam uma outra realidade bem diferente das imagens que se manifestam na opinião pública sobre a passividade generalizada, a dependência assistencial ou a marginalidade atribuíveis a estas populações. A retificação destas representações negativas é indispensável para gerar o apoio a políticas públicas apostadas no combate à pobreza até à sua erradicação. E este é o segundo aspeto que valoriza o conhecimento dos casos reais das famílias em mobilidade. Através dos seus percursos de vida é possível constatar o valor insubstituível que tem a intervenção do estado na viabilização dos projetos individuais e familiares. Um sistema económico que progride baseado em princípios de acumulação ilimitada, sujeito a ciclos constantes de crescimento e retração, jamais poderá deixar de produzir pobreza. Sobretudo numa economia como a portuguesa, muito dependente de setores de mão-de-obra intensiva e pouco qualificada, refúgio laboral para segmentos numerosos das classes trabalhadoras, cabe ao estado e a medidas de discriminação positiva − como as que beneficiaram, num ou noutro momento, mas de forma decisiva, as 28 famílias estudadas − promover a condição social das classes desfavorecidas.

Num trabalho em que se recorreu muito à observação direta e a entrevistas, parte da análise decorre da mobilidade social objetiva, mas outra parte constrói-se a partir de pontos de vista subjetivos, de representações partilhadas, perceções acerca do modo como os sujeitos e as famílias concebem as classes, posições que definem relacionalmente, em função da propriedade e do rendimento, mas também de valores e de moralidades que exprimem princípios de ordenação das relações sociais. Mas a subjetividade experiencial de cada relato transporta outros elementos que as interrogações colocadas à partida não deixavam adivinhar. Em primeiro lugar, que os sujeitos não se limitam a uma descrição dos quadros de vida mais próximos em que estão ou estiveram implicados, enquadrando geralmente os comportamentos e as expetativas pessoais em conjunturas políticas e económicas, desdobrando-se em comentários sobre os efeitos da crise financeira, que já ameaçava tornar-se uma crise económica profunda e duradoura, ou sobre a eterna discriminação de uma estrutura social racializada. Esta “sociologia espontânea” revela a internalização de uma consciência sobre a ação de mecanismos societais, habitualmente não reconhecida nestes grupos sociais.

O terreno e as entrevistas em profundidade vieram igualmente reforçar outros dados recolhidos em observações anteriores. Quer retrospetivamente, nos pensamentos mais estruturados pela acomodação aos quadros de vida existentes, quer na simples expressão das ambições sociais de que eram portadores, havia sempre uma obediência a um princípio de realidade que percorria os discursos e se observava em diferentes aspetos da vida quotidiana. Na prática, reflexão e ação pareciam ser norteadas pela aplicação de máximas que ouvi verbalizadas: “não quero dar um passo mais comprido do que a perna” ou “não tenho mais escada para subir”. A este propósito, Bourdieu fala de um realismo que “caracteriza frequentemente a visão do mundo dos dominados” e que, no caso desta população, se traduz pela construção de categorias de perceção e classificação diversas, mas conformes às estruturas e condições objetivas de agentes que agem com “sentido de posição como sentido do que se pode ou não se pode ‘permitir’ a si mesmo” (1989, p. 141). Esta autolimitação e adequação das “esperanças subjetivas” a “oportunidades objetivas” por parte dos indivíduos é, diz-nos também Bourdieu, uma das repercussões sociais fundamentais do habitus (1980, p. 80).

Falta-nos, neste momento, uma base comparativa mais alargada para, indo além dos casos estudados, começar a interpretar o modo como estas micromobilidades para fora da pobreza podem afetar os sistemas de representações dos seus protagonistas.9 O conjunto de mobilidades mais representativas dos 28 casos estudados correspondem a deslocamentos de curto alcance, podem alterar a condição económica, diminuindo a vulnerabilidade, mas, perspetivadas em termos de estrutura de classes, correspondem a trajetórias horizontalizadas, para frações de classe próximas das classes trabalhadoras ou da baixa classe média, onde não se encontram mais protegidos, nem a salvo de recomposições sociais futuras. Vimos como os depoimentos coincidiam na representação de uma estrutura dividida em duas ou três grandes classes e como a maioria atribuía a si própria uma posição intermédia e exprimia, comentando os efeitos da depressão económica que alastrava, o medo de perder o que havia conquistado. E ainda como, entre a população nacional da amostra, se condenava uma pobreza “indigna” e improdutiva, atitude que se pode encontrar com frequência entre as classes médias baixas e que, enquanto princípio de ordenação moral, decorre da competição por recursos materiais e se conforma com a estruturação das relações sociais sob o capitalismo.

Poderá até não ser possível encontrar sempre alterações disposicionais que vão no mesmo sentido, quando os percursos, embora positivos ou ascendentes, são tão diferentes. Atente-se, por exemplo, no caso particular de desconforto das únicas duas famílias, africanas e afrodescendentes, em que estes movimentos foram acompanhados por mudanças de residência para bairros de classe média baixa, ao abrigo do programa PER FAMÍLIAS. As dúvidas que me exprimiram sobre a adequação dos seus comportamentos ao novo ambiente social, o receio de não serem aceites, são sentimentos que se podem comparar ao dos desenraizados, divididos entre duas pertenças, os trânsfugas de classe referidos primeiro por Hoggart (1975) e depois por Bourdieu (2004). Num certo sentido, e pese embora a diferença de amplitude das trajetórias aqui analisadas, poucas destas mobilidades estavam concluídas, e talvez fizéssemos melhor em as pensar não como integração em novas posições e identidades realizadas, mas enquanto movimento, próprio da deslocação entre dois lugares, um a que já não se quer pertencer e outro ao qual ainda não se acedeu ou pode nunca vir a aceder-se. Então, poderia ser útil mobilizar conceitos como os de “class passing” (Moon, 2001) e “transclasse” (Jaquet, 2014; Pasquali, 2014) e ver nestas disposições arranjos, construções fluídas de quem tem de articular presente e futuro, origem e destino, realidade e desejo.

Passou, entretanto, mais de uma década, e aos anos da austeridade sucederam os da retoma de 2016, e de novo tempos de crise, desta feita global e forçada por uma pandemia. Esta concentração, num tempo histórico relativamente curto de ciclos de expansão e retração económica, cria o contexto ideal para se dar continuidade ao estudo das mobilidades entre as classes trabalhadoras, avaliar a resiliência dos movimentos que identificámos e a forma como foram ou não afetadas as esperanças dos nossos protagonistas em alterar a sua condição social.

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1 Em ambos os casos, os nomes dos bairros são fictícios, de forma a preservar a identidade dos bairros e dos seus moradores.

2 A tendência para a concentração e segregação espacial dos imigrantes oriundos dos países africanos de expressão portuguesa, maioritariamente em concelhos à volta da capital, tem origem no próprio processo migratório e nas soluções precárias de autoconstrução. Os vários estudos existentes (Alves, 2019; Taviani, 2019) comprovam esta tendência para a racialização residencial na Área Metropolitana de Lisboa e o facto de as políticas de realojamento, desenvolvidas a partir dos anos 90, não terem sido pensadas para alterar esta situação.

3 Entre 2000 e 2001, conduzi um conjunto de entrevistas em painel a 32 famílias abrangidas por oito processos de realojamento PER em Lisboa (Rodrigues, 2002). Realizadas imediatamente antes da transferência e nos primeiros meses após a instalação nas novas habitações, o objetivo era registar as expetativas, os projetos, e as primeiras impressões sobre a experiência da mudança para as novas casas e o novo bairro. Foi um processo vivido com grande entusiasmo e ansiedade, em que se procurava estar a par de toda a informação, corresponder às solicitações administrativas, conhecer as características das novas habitações e fazer planos quanto à sua ocupação. Às preocupações familiares juntava-se frequentemente a mobilização coletiva, com associações locais a organizarem a população, a assumirem a sua representação nos contactos e nas negociações com as entidades promotoras. A esta satisfação em que à casa - para muitos a primeira - aparece associada a esperança de uma vida nova, sucede, ainda nos primeiros anos, um tempo de deceção. Estudos dos anos 90 já referiam uma frustração de expetativas, um desgosto centrado nos bairros, onde se viam acumular comportamentos de “má vizinhança”, de apropriações e sociabilidades indesejadas nos espaços públicos e semipúblicos, sinais de degradação e marginalidade (CET-CML, 1993; Pinto, 1994), que faziam temer o regresso de antigos rótulos e estigmas, impedindo a afirmação de outro estatuto residencial.

4In situ, com demolição e construção de novos edifícios sobre os terrenos anteriormente ocupados pelos alojamentos precários e o realojamento total da população aí residente.

5 A classificação que adotei distingue bairros pequenos, abaixo de 1000 habitantes, bairros grandes, acima de 5000, e bairros médios entre 1000 e 5000 habitantes. Em Lisboa, concelho do Bairro Novo, à data do início do trabalho de campo, em 2007, havia, entre os 67 bairros administrados pela empresa municipal de habitação, 5 bairros com 5000 ou mais habitantes (Santos, Estivill e Aires, 2007), mas crescia o número de “bairros”, de construção recente, em pequenos núcleos residenciais e lotes isolados. O concelho suburbano onde se localiza a Quinta da Esperança, em 2009, para um total de 20 bairros sociais, tinha apenas dois bairros médios, sendo todos os outros pequenos (RSL, 2010).

6 O Bairro Novo é ligeiramente mais antigo e foi edificado no quadro do Plano de Intervenção de Médio Prazo (PIMP); a Quinta da Esperança é um produto do Plano Especial de Realojamento (PER). Mas, se considerarmos o tempo vivido nos alojamentos precários, a coabitação é muito anterior e remonta em ambos os casos à mesma época.

7 A matriz que aqui se adota foi criada em 1988 pela equipa de Ferreira de Almeida: Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais (EDPL), Profissionais Técnicos e de Enquadramento (PTE), Trabalhadores Independentes (TI), Agricultores Independentes (AI), Empregados Executantes (EE), Operários Industriais (OI) e Assalariados Agrícolas (AA). Na proposta original, Ferreira de Almeida agrupava as sete frações em três classes: Burguesia (EDPL), Pequena-Burguesia (PTE; TI; AI; EE) e Operariado (OI; AA). Em textos mais recentes (Costa, Mauritti, 2018), as designações alteram-se, respetivamente, para Classes Dominantes, Classes Médias e Classes Populares, e, nesta última, passam a ser integrados os Empregados Executantes, retirados às Classes Médias. A designação Classes Trabalhadoras, que se escolheu empregar neste texto, provém da tradição neomarxista, mas engloba exatamente as mesmas frações neste autor apelidadas de Classes Populares.

8 A importância de políticas sociais - enquadradas na intervenção de agentes a que Bourdieu chamou “la main gauche de l’ état” (1998) - encontra-se bem visível na evolução da vida destas famílias. Entre 1993 e 2008, segundo Rodrigues (2011, p. 21), a percentagem do rendimento dos 5% mais pobres duplicou e aumentaram significativamente os rendimentos dos 10% e 20% de portugueses com menos dinheiro para viver. Medidas específicas de combate à pobreza, como as já citadas, ou as compreendidas em alterações à aplicação do Rendimento Social de Inserção e na criação do Complemento Solidário para Idosos, foram decisivas para os resultados alcançados nesta época.

9 Em Portugal, além dos trabalhos de Estanque (2005) e de Pinto et al. (2010) sobre o declínio das classes médias, e de Costa (2017), com alguns dados sobre famílias pobres com perfis de mobilidade, não se registam, até à data, outros estudos que permitam uma caracterização mínima das culturas e das identidades de classe nestes grupos de desigualdade.

Recebido: 02 de Julho de 2020; Aceito: 24 de Outubro de 2022

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