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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.245 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.31447/as00032573.2022245.13 

Recensão

Recensão: Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth Century

João Pedro Marques1  , Investigador independente
http://orcid.org/0000-0002-0440-4104

1 Investigador independente. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Portugal. jpm2@netcabo.pt

Nafafé, José Lingna. ., Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth Century. ,, Nova Iorque: ,, Cambridge University Press, ,, 2022. ,, 468p. pp. ISBN, ISBN: 9781108974196.


Trata-se de uma obra de grande fôlego e ambição, que impressiona pelo trabalho de pesquisa que tem subjacente. Ao longo das suas páginas, acompanhamos o príncipe angolano Lourenço da Silva Mendonça, desde o seu nascimento em Pungo-Andongo até Roma, onde, de 1684 a 1686, perante a Congregação da Propaganda Fide e agindo como advogado em representação de muitas irmandades de escravos africanos - Nafafé nunca nos diz exatamente quantas e quais -, terá intentado uma ação em tribunal contra o Vaticano, os governos de Portugal, Espanha e Itália e os cristãos envolvidos no tráfico de escravos (p. 414). Convém referir que a investigação anterior classificara a iniciativa de Mendonça como uma simples petição (Gray, 1987), e que Nafafé não é convincente na tese de que seria mais do que isso. Aliás, as próprias figuras históricas que cita falam em “petição” (p. 316, por exemplo) e não em ação em tribunal.

Mas regressemos à panorâmica geral do livro para assinalar que Nafafé tenta relacionar o trajeto de vida de Lourenço da Silva Mendonça em África e, depois, no exílio no Brasil, em Portugal e Espanha, com a história de Congo/Angola, com a influência ou tomada de poder dos portugueses sobre esses dois reinos e com as engrenagens políticas e legais do mundo católico. Todo o texto assenta numa investigação meticulosa e profunda, e é servido por uma extensa e adequada bibliografia. É, por isso, uma pena que enferme, desde o início, de um indisfarçável parti pris.

De facto, Nafafé procura demonstrar duas grandes teses que não decorrem da documentação, mas sim de uma ideologia. A primeira é a de que não existiria escravidão no Congo/Angola antes da chegada dos portugueses, e que teriam sido estes que, de forma ilegal e pela força das armas, aí a introduziram, bem como ao tráfico de escravos (pp. 72-73 e 135). Essa tese, que contraria e desautoriza, como o próprio Nafafé admite, as conclusões de John Thornton, Joseph C. Miller, Linda M. Heywood e de muitas dezenas de outros sólidos historiadores, é ideologicamente central para Nafafé, que quer assumidamente inocentar os africanos das responsabilidades que lhes atribuem no tráfico transatlântico de escravos. Por isso avisa que há que ter todo o cuidado “so as not to make Africans participants in a crime they did not commit” (p. 73).

Para tentar provar que não haveria escravatura no Congo/Angola antes da chegada dos portugueses, Nafafé segue três linhas indiretas de raciocínio. Através da primeira, esforça-se por desacreditar as fontes que atestam a existência de escravos naquelas regiões, independentemente da presença europeia. O missionário Cavazzi, por exemplo, é considerado não fiável (p. 61) por várias razões pouco ou nada atendíveis, nomeadamente a de nunca ter condenado o tráfico negreiro ou a escravidão. É um argumento débil pois, para caracterizar, situar e identificar a escravatura, não é preciso ser contra ela. O facto de Cavazzi não ser abolicionista não implica que não estivesse a falar verdade e que não seja uma fonte credível.

A segunda linha de raciocínio é dedutiva e parte das palavras usadas por Lourenço da Silva Mendonça perante o tribunal eclesiástico. Nafafé pressupõe que se houvesse escravatura no Congo/Angola, Mendonça tê-lo-ia explicitado quando apresentou os seus argumentos no Vaticano (p. 327). Ou seja, se o advogado não falou nesse assunto, então é porque ele não existia, o que não é um argumento historiograficamente válido.

Numa terceira linha de argumentação, igualmente dedutiva, Nafafé afirma que o facto de os escravos fugirem à escravidão no Brasil, para fundarem quilombos, mostraria que não haveria escravidão em África, pois, se a houvesse, ter-se-iam resignado à sua sorte (p. 244). Trata-se de um raciocínio surpreendente, dado que o comportamento dos escravos africanos nas Américas dependia de muitos fatores, nomeadamente dos próprios escravos e do tipo de trabalho e grau de violência a que estavam sujeitos, mas de modo algum prova que não teriam estado, anteriormente, sujeitos a situações de escravidão. Nafafé parece ignorar que também existiram quilombos em África, em Zanzibar, por exemplo. Parece desconhecer, também, aspetos culturais e psicológicos das populações africanas escravizadas bem descritos e estudados, e, por isso, permite-se dizer que alguns africanos preferiam suicidar-se em vez de serem levados como escravos para as Américas, o que demonstraria que a escravidão não era praticada nas comunidades de onde essas pessoas provinham (p. 426). Ora, na verdade, o suicídio não prova nada disso. Prova, isso sim, que aquelas pessoas tinham um verdadeiro pavor em atravessar o mar e ir para a Américas, viagem que, para muitos deles, como Joseph Miller (1988, pp. 4-5) mostrou, estava conotada com morte e com fantasias aterrorizadoras.

Em suma, são três linhas de raciocínio tão frágeis que não permitem escorar a sua tese. E a falta de solidez agrava-se, ainda, porque há uma recorrente inconsistência nas afirmações de Nafafé. Depois de garantir taxativamente que “slavery did not exist in Angola and Kongo before the arrival of the Portuguese” (p. 135), o autor admite, duas páginas depois, que aí haveria alguns escravos, numa contradição que se repete ao longo do livro (p. 359, por exemplo). Esta flutuação nas afirmações é um dos vários calcanhares de Aquiles da sua obra e manifesta-se, também, no caso do abolicionismo, desde logo porque Nafafé o confunde com melhoracionismo (a atitude tendente à melhoria das condições de transporte e tratamento dos escravos africanos) e com toleracionismo (o reconhecimento da iniquidade do sistema escravista, que ainda se tolerava, dadas as condições do mundo; Marques, 1999, pp. 30 segs.). Por laborar nessa confusão, Nafafé afirma que as vozes contra a escravidão eram frequentes - algo que não demonstra. O autor também assegura que as revoltas de escravos a bordo dos navios negreiros eram frequentes e quantifica-as: 392 (p. 332). Não refere, porém, que terá havido cerca de 36 mil viagens de navios negreiros de África para as Américas e mais de 11 mil viagens de transporte de escravos entre portos americanos, o que equivale a dizer que as supostamente frequentes revoltas a bordo aconteceram em apenas 0,8% dessas viagens.1

Mas voltemos à problemática da abolição, que nos leva à segunda grande tese do livro de Nafafé: a de que o primeiro movimento abolicionista terá sido negro e terá surgido no século XVII por intermédio de Lourenço de Silva Mendonça, ou seja, muito antes do abolicionismo euro-americano e branco de meados do século XVIII em diante. Mais uma vez, Nafafé diverge radicalmente das conclusões de grandes historiadores como David B. Davis, Orlando Patterson ou Seymour Drescher, por exemplo, que estudaram a fundo o abolicionismo e as atitudes das várias culturas face à escravidão. Não é isso, porém, que desvaloriza a sua tese. A História faz-se debatendo, apontando fragilidades no conhecimento herdado, propondo novos caminhos e novas explicações. O problema é que a tese em questão é, tal como a anterior, muito frágil e nada convincente.

Nafafé julga ter identificado um movimento anti-escravista encabeçado pelo príncipe e advogado angolano, e afirma que esse movimento “achieved greater international solidarity even than the anti-slavery movements of the eighteenth and nineteenth centuries” (p. 419). Esta afirmação não pode deixar de surpreender e levanta um primeiro problema de fundo. Se considerarmos que o anti-escravismo na Grã-Bretanha, por exemplo, foi o maior movimento de massas que o mundo até então vira, com ramificações para vários países ocidentais e, se acreditarmos naquilo que Nafafé nos diz sobre o (suposto) abolicionismo negro liderado por Mendonça, confrontamo-nos necessariamente com as seguintes perguntas: porque é que esse amplo e poderoso abolicionismo negro, maior, ainda, do que o de Wilberforce, não teve repercussão pública? E por que razão, a ter existido, se evaporou de súbito, extinguindo-se sem deixar sucessão? E se acreditarmos que se tratou de uma cruzada unipessoal de Lourenço da Silva Mendonça, por que razão o angolano não prosseguiu o seu empenho alegadamente abolicionista para além da iniciativa no Vaticano, e se deu por satisfeito com o escasso ou nulo resultado alcançado? Trata-se de perguntas lógicas importantíssimas que Nafafé não formula e a que, obviamente, não responde.

Opta, antes, por atribuir um efeito prático à iniciativa de Mendonça no Vaticano, ao presumir - pois nenhum documento o atesta - que ela terá sido a principal motivação para a lei de D. Pedro II, de 1684 (pp. 380 e 386), uma medida que não pretendia acabar com o tráfico negreiro, mas tão só melhorar o transporte e tratamento dos escravos. Ou seja, na hipótese mais favorável, terá sido apenas isso que resultou do esforço do advogado angolano. Nafafé insiste, todavia, que, mesmo tendo ficado aquém do objetivo, o seu propósito era abolicionista, o que tem duas dificuldades sérias. Esse propósito, a ter existido, seria tão pouco claro que não foi percebido pela recente historiografia nem por D. Pedro II, como Nafafé reconhece em ambos os casos (pp. 23-24 e 408, respetivamente). Ora, se é admissível que os historiadores não tenham visto bem e não tenham entendido o que estava em causa, é muito menos admissível, para não dizer impossível, que os contemporâneos e principais interessados - as autoridades portuguesas - também o não tenham percebido.

O livro de Nafafé vale pelo que informa e explicita e tem a virtude de colocar um africano como personagem importante na reprovação do escravismo. Mas por cima desta virtude tem a fragilidade de ser, essencialmente, História conjetural, assente em hipóteses que, não sendo impossíveis, não estão confirmadas por nenhum documento, como Nafafé reconhece (p. 259, por exemplo), pelo que nenhuma das suas teses tem solidez suficiente para se manter de pé.

Um outro óbice é que o livro se derrama muito para lá do seu objeto. Como tem por tema um pequeno acontecimento - a petição ou ação apresentada no Vaticano entre 1684 e 1686 - e o autor quis alongar-se por centenas de páginas, isso acaba por ter dois efeitos colaterais. Por um lado, fez com que o texto transbordasse frequentemente para problemas e épocas muito distantes do cerne do livro. Na verdade, o verdadeiro assunto só é tratado em dois dos seis capítulos da obra, os outros quatro são dedicados a questões acessórias. Por outro lado, tornou o texto repetitivo. De facto, Nafafé repete regularmente as mesmas informações e o mesmo argumentário, e o leitor fica, por isso, com a sensação de andar em círculos e de frequente déjà vu.

Referências bibliográficas

GRAY, R. (1987), “The Papacy and the Atlantic slave trade: Lourenço da Silva, the Capuchins and the decisions of the Holy Office”. Past and Present, 115, pp. 52-68. [ Links ]

MARQUES, J. P. (1999), Os Sons do Silêncio: O Portugal de Oitocentos e a Abolição do Tráfico de Escravos, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais. [ Links ]

MILLER, J. C. (1988), Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison, University of Winsconsin Press. [ Links ]

1 Documenting Slave Voyages (emory.edu).

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