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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.246 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023246.02 

Artigos

Sob o espectro da crise. A história na era planetária.

The spectre of crisis. history in a planetary age.

1. Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Alameda da Universidade - 1600-214, Lisboa, Portugal. marcos.cardao@gmail.com


Resumo

As pandemias globais e as calamidades naturais vieram alterar os modos de viver e pensar e deram origem a vários discursos sobre o colapso do mundo. A omnipresença da ideia de “crise” tem conduzido a diversos questionamentos que percorrem diferentes áreas do saber. Neste artigo exploram-se os desafios que a atualidade coloca às formas de pensar e escrever a história e enceta-se uma problematização dos seus pressupostos, metodologias e práticas. Propõe-se realizar uma rota exploratória em torno de alguns autores e ideias suscetíveis de traduzir uma conjuntura marcada por transformações. Questionam-se temas como o “excecionalismo humano”, reequaciona-se a divisão entre história e teoria, interroga-se o tempo da modernidade e as noções de direção, fim e sentido da história, mas coloca-se também a hipótese de existirem histórias conectadas com diferentes temporalidades, outras formas de percecionar o tempo e ressignificar a agência humana.

Palavras-chave: história; teoria; antropoceno; alterações climáticas; pandemia.

Abstract

Global pandemics and natural disasters have changed the ways of living and thinking and have given rise to various discourses on the collapse of the world. The omnipresence of the idea of “crisis” has led to several questionings that cut across different areas of knowledge. This article explores the challenges that the present time poses to the ways of thinking and writing history and undertakes a problematization of its assumptions, methodologies, and practices. It aims to conduct an exploratory route around some authors and ideas, susceptible of translating a conjuncture marked by transformations. It questions themes such as “human exceptionalism”, rethinks the division between history and theory, questions modernity’s time and the notions of direction, end and meaning of history, but also poses the hypothesis that there are histories connected to different temporalities, other ways of perceiving time, and re-signifying human agency.

Keywords: History; theory; Anthropocene; climate changes; pandemic.

Introdução

A ideia de crise veio ocupar um lugar central nos debates sobre a contemporaneidade e tem suscitado diversas análises e interpretações, sobretudo após a emergência da crise pandémica, embora ela já estivesse presente na crise financeira de 2008, ou no debate sobre as alterações climáticas (Allonnes, 2012). A ideia de crise está associada a uma perturbação da ordem regular das coisas, disfuncionalidade do sistema, ou alteração da relação entre normalidade e exceção.

Ainda que possa ser explicada através de uma cadeia lógica de causas e efeitos, fundamentos e consequências, a crise pandémica veio agudizar as incertezas e colocou sob suspeita todas as formas de antecipar os riscos, incluindo as formas de explicação científicas, desafiadas na atualidade por teorias que contestam a evidência científica e instituíram o chamado regime da pós-verdade, ou dos factos alternativos, que conduziu a uma indistinção entre o verdadeiro e o falso.1 A crise pandémica colocou igualmente em risco a possibilidade de reinventar o futuro, cada vez mais ensombrado pela sensação de medo e insegurança, decorrente de um choque inesperado que afetou a relação com o tempo.

Com efeito, a proliferação de crises de ordens e âmbitos diversos transformou a forma de habitar o tempo, os horizontes de expectativa, e contribuiu igualmente para redefinir os regimes de historicidade. François Hartog sugere que cada época tem diferentes modos de experimentar o tempo, articular as categorias de passado, presente e futuro e colocar uma das categorias no centro das suas representações. A época atual seria marcada pelo triunfo da categoria de presente enquanto referência que dita a nossa relação com o tempo. Embora seja uma categoria sujeita a diversas leituras, o presentismo é, segundo François Hartog, o regime de historicidade no qual o presente absorve o futuro e se impõe como evidência de um “presente omnipresente”.2

O fim da crença no progresso e de uma ideia de futuro, enquanto horizonte de esperança e superação histórica, foi antecedida pelo chamado “fim das utopias”, simbolizada pela queda do Muro de Berlim, prolongou-se nas primeiras conferências sobre o estado global do planeta, e ganhou nova centralidade com os atuais debates sobre o Antropoceno.3 Estes debates colocaram o homem como agente determinante de um novo tempo ou era geológica, expuseram os limites das grandes narrativas teleológicas, predicadas numa ideia de progresso e desenvolvimento contínuo, e problematizaram o antropocentrismo que governa as histórias sobre o destino da humanidade (Tsing et al., 2017). A atual crise pandémica é um dos desdobramentos da crise do futuro e um sintoma do colapso generalizado das futurologias assentes na crença contínua da emergência do novo.

A reconfiguração da conceção moderna de tempo e, por conseguinte, dos regimes de historicidade, levou François Hartog a afirmar que estamos atualmente a assistir à emergência de uma nova forma de presentismo, denominada “tempo apocalíptico” (Hartog, 2020), que é marcada pela ideia de um fim, ou de um tempo limite, portador de uma catástrofe eminente (Stengers, 2015).4 A perceção de que o fim pode estar iminente, ou é mesmo inadiável, veio desorientar a relação dos humanos com o tempo, forçando-os a renegociar o seu tempo histórico com o tempo longínquo do planeta. Reaprender a viver numa época marcada pelo tempo do fim, determinada pelo imaginário de sucessivas catástrofes com consequências imprevisíveis, é, provavelmente, o maior desafio que os humanos enfrentam (Latour, 2017).

Embora a gramática da crise, com os seus discursos sobre o colapso do mundo, que encontra nas pandemias e calamidades naturais os principais causadores da transformação, possa condicionar as formas de responder aos desafios da atualidade, exigindo por exemplo soluções imediatas, ou a prescrição de novos caminhos, ela não tem obstaculizado o florescimento de diversos questionamentos. O esforço crítico tem percorrido várias áreas disciplinares, designadamente a história, que tem procurado articular os desafios do tempo presente questionando os seus pressupostos, metodologias e práticas.

Este artigo pretende explorar os desafios que o tempo presente coloca às formas de pensar e escrever a história e propõe-se percorrer o trabalho de alguns autores que têm contribuído para cartografar a situação atual. Em vez de um percurso sistemático, que avalie a qualidade dos diferentes questionamentos, disserte sobre a sua possível aplicabilidade e, consequentemente, esboce um futuro para a história - o que tende a naturalizar a ideia de que é necessário gizar uma “boa história”, ou uma história renovada, para imaginar que a sensação de crise foi definitivamente ultrapassada -, optar-se-á por realizar um rota exploratória em torno de algumas ideias suscetíveis de traduzir e problematizar o tempo presente (Foucault, 1984, pp. 381-390).

Numa conjuntura marcada por mudanças profundas, impasses e incertezas, afigura-se oportuno colocar uma série de questões, não tanto para as resolver ou tentar superar, mas para sondar criticamente os problemas da situação atual.5 Em vez de traçar linhas ou impor demarcações, procurar-se-á questionar de que modo a história pode articular as transformações em curso sem as encerrar numa narrativa de continuidade, descobrir a origem ou os antecedentes escondidos e, paralelamente, reequacionar a divisão entre história e teoria, interrogar o tempo da modernidade, as noções de direção, fim e sentido da história, e, ainda, considerar a possibilidade de dialogar com outras práticas e disciplinas e produzir novas traduções.

A ERA PLANETÁRIA

Identificar os fenómenos e ideias características do tempo atual, determinadas pelo espectro da crise, pressupõe interrogar a própria noção de presente e encontrar um descritor que possa delinear os seus contornos. Independentemente das controvérsias a respeito da sua data e definição (Haraway, 2015), o Antropoceno passou a ser o conceito utilizado para descrever a época atual, caracterizada por alterações profundas do sistema terrestre provocadas pela ação humana.6 O conceito teve o poder de construir uma narrativa, designar um protagonista e moldar as perceções.

A entrada numa nova época geológica ditou o fim de uma conceção da história que prometia mudança, desenvolvimento contínuo e progresso ilimitado sem atender às consequências ambientais. Ao imperativo de transformar as forças produtivas passou a opor-se a necessidade de fazer face à catástrofe ambiental. Um dos pressupostos é que os limiares já foram ultrapassados e tudo o que está a acontecer se tornou de certo modo irreversível.

A “súbita colisão dos humanos com a terra” conduziu igualmente ao desmoronamento da “episteme moderna” (Danowski e Castro, 2014, p. 26). O que veio desfazer a “grande divisão” entre humanos - vistos como seres dotados de racionalidade, ação, estratégias e interesses - e não humanos. Uma “grande divisão” que decorre de outra divisão, igualmente histórica, que produziu a separação entre “nós”, os ocidentais, e os “outros”, enquanto zonas ontologicamente distintas (Latour, 1991, p. 16). A separação entre os ocidentais e os “outros” que contribuiu ainda para estabelecer uma separação entre “modernos” e “pré-modernos”, que habitariam outro estádio da humanidade e se situavam aquém da modernização.

O fim da separação entre natureza e cultura conduziu à redefinição do humano, obrigado a descentrar o seu papel face à catástrofe planetária e a reescrever a sua história sem ter como propósito, objetivo ou finalidade a conquista da natureza.7 Abandonar as conceções antropocêntricas da herança iluminista, que concebia o humano como o ponto de chegada de uma evolução histórica e estava marcada pela ambição humana de dominar a natureza, implicaria que a natureza deixasse de ser um mero provedor de recursos, um objeto de contemplação, ou um espaço frágil destituído de agência a precisar do cuidado e proteção dos humanos.

A desnaturalização da “natureza humana” contribuiu ainda para reformular os fundamentos principais das humanidades (Horn e Bergthaller, 2020), que têm alguma relutância em aceitar os moldes dos debates científicos, sobretudo quando estes colocam em causa a separação sujeito/objeto e o “humanismo transcendental”.8 Ao contrariar a separação entre as humanidades e as ciências, mostrando como a atividade humana está ancorada em processos naturais9, os debates sobre o Antropoceno desencadearam um diálogo entre áreas disciplinares distintas, favorecendo o aparecimento de novas hipóteses interpretativas e abordagens complementares, que se traduziram em novas formas de pensar, imaginar e nomear, ou, por outras palavras, “recompor a relação entre sujeitos e objectos, palavras e mundo, sociedade e matéria, mente e matéria” (Latour, 2001, p. 306).

Os debates sobre o Antropoceno têm encontrado repercussão no trabalho de alguns historiadores, dos quais se destaca Dipesh Chakrabarty, que tem refletido de forma sistemática sobre os desafios que o tempo presente coloca ao pensamento histórico. A publicação do artigo “The climate of history: four theses” em 2008 inaugurou uma forma de conceptualizar e escrever a história e permitiu repensar as categorias elementares do pensamento histórico, como agência, periodização, escala, cultura e natureza, evidência e fonte ( Chakrabarty, 2009).

Apesar de o pensamento disciplinar procurar circunscrever um território particular e definir os objetos e métodos que lhes correspondem, há acontecimentos que acabam por desencadear alterações profundas no discurso e práticas da história e exigem novas categorias e mediações. Sobretudo quando conseguem reconfigurar por completo o entendimento entre proximidade e distância e deslocam o plano da perceção. Como sugere Dipesh Chakrabarty: “our usual historical practices for visualizing times, past and future, times inaccessible to us personally are thrown into a deep contradiction and confusion” (Chakrabarty, 2009, p. 198).

A dificuldade em aceder a tempos longínquos, intraduzíveis no plano da imaginação, uma vez que não existe nenhuma fenomenologia dos humanos enquanto espécie, e compreender aquilo que os humanos fizeram coletivamente ao planeta, isto é, a incapacidade de se autopercecionar como agente geológico, amplia a sensação de desconforto e desconexão. Um desconforto agravado pela proliferação de agentes não humanos (clima, atmosfera, micróbios, genes, pragas, plantas, natureza do solo, tecnologia, etc.) que interferem no comportamento, visão do mundo e nas sociabilidades dos humanos,10 que não estão preparados para articular as exigências de um mundo compósito, marcado por diversos entrelaçamentos, e para aceitar a sua própria vulnerabilidade.

Numa época caracterizada por desfazer as ontologias do ser e das essências, um dos desafios da história seria articular a tensão entre duas conceções do humano: os humanos como culturalmente diferentes e os humanos como espécie biológica, uma entre as outras espécies, mas cuja ação tem efeitos devastadores no planeta. Ao invés de se escolher uma ou outra conceção, como elas fossem mutuamente exclusivas, o desafio seria tornar essa tensão produtiva e redistribuir agências, combinando a capacidade de agir dos humanos com a sua incapacidade para fazer face aos cataclismos ambientais, isto é, permanecer de certa maneira “cega” às consequências das suas próprias ações. Tratar-se-ia no fundo de “permanecer com o problema” (Haraway, 2017), para ecoar uma formulação que se tornou célebre nos debates sobre o Antropoceno. Ter um entendimento processual da constituição do mundo, aprender “a viver com” em vez de estabelecer separações artificiais entre humanos e não-humanos, natureza e sociedade, factos e valores, ciência e política.

Além de esbater a dicotomia entre a história natural e a história humana, retirar os humanos do centro da história e atender à “completa redistribuição de todas as agências que compõem o mundo” (Latour, 2016, p. 168), Chakrabarty reconfigurou igualmente os regimes de temporalidade, sugerindo que o tempo passou delinear tempo simultâneo. Este caracterizar-se-ia por três histórias conectadas com diferentes temporalidades: “history of the planet, the history of life on the planet, and the history of the globe made by the logics of empires, capital, and technology” (Chakrabarty, 2019, p. 1).

Não só a história passava a funcionar em temporalidades substancialmente diferentes daquelas a que os humanos estavam acostumados e conseguiam percecionar, como os modelos lineares de causa/efeito, através dos quais se estabeleciam regularidades, mas também regimes de probabilidade que visavam reduzir as incertezas, perdiam eficácia com a multiplicação de agências. Mesmo os princípios fundamentais da análise histórica, como a rejeição do anacronismo, considerado o “pecado mortal dos historiadores”, uma afirmação de Lucien Febvre que se tornou axiomática,11 teriam de ser revistos, uma vez que a atualidade é caracterizada precisamente por uma confluência de histórias e não por uma história única com identidade fixa e conceitos acabados.

Numa história planetária, marcada por diversas cronologias, a existência de um tempo humano e um tempo da natureza transformou a forma de percecionar o tempo e renovou o significado de agência humana, agora colocada em escalas múltiplas e incomensuráveis.

Com o intuito de refletir em simultâneo sobre as alterações provocadas pelas alterações climáticas e o impacto da crise pandémica, Dipesh Chakrabarty publicou o ensaio “An era of pandemics? What is global and what is planetary about Covid-19”. Nele sugeriu que a crise pandémica requeria que olhássemos não só para as transformações decorrentes do processo de globalização, mas também para a história profunda da vida humana no planeta. Nesse sentido, a atual pandemia não passaria de um episódio inserido numa história mais longa, uma vez que as formas de vida microbiana existiam no planeta há muito mais tempo (3,8 bilhões de anos) do que a espécie humana (300 mil anos). À semelhança da reconfiguração dos regimes de temporalidades introduzidos pelo Antropoceno, hipótese anteriormente trabalhada por Chakrabarty (2020), a perceção de que as formas de vida que habitam o planeta têm diferentes temporalidades poderia transformar o modo de pensar e reagir à crise pandémica.

O espectro da crise contribuiu paralelamente para reorganizar a área disciplinar pela qual Dipesh Chakrabarty se tornou conhecido.12 Com efeito, os estudos pós-coloniais, decisivos na problematização dos mecanismos de produção de conhecimento, em particular, a ideia de que o “colonialismo foi central na formação do período que lhe sucedeu” (Seth, 2018, p. 46), crítica às narrativas teleológicas e às periodizações produzidas pelo ocidente, também se adaptaram à atual conjuntura e renovaram os seus temas principais.

No artigo “Postcolonial studies and the challenge of climate change”, Chakrabarty aborda a reconfiguração dos estudos pós-coloniais, começando por afirmar que o século XIX foi marcado pela circulação de ideologias internacionalistas e universalistas, entre as quais o marxismo e o liberalismo, ambas tributárias do pensamento iluminista, que incutiu a ideia de que há um caminho unívoco da barbárie para a “civilização” e que o futuro transporta a promessa da emancipação. O movimento anticolonial foi uma das decorrências do pensamento iluminista, que se traduziu em processos de descolonização assentes em projetos de modernização, afirmação da soberania política e emergência de novos sujeitos políticos.

Em diálogo próximo com a herança do movimento anticolonial13, os estudos culturais e a crítica pós-colonial vieram desconstruir as identidades essencialistas pensadas em termos binários, criando também uma literatura crítica sobre a globalização através da qual se procedeu a um inventário dos conflitos e se politizou a questão da diferença. Hoje, segundo Dipesh Chakrabarty, com a emergência do problema da sobrevivência da espécie, “todo o pensamento político progressista, incluindo a crítica pós-colonial, terá de registar a mudança profunda na condição humana”.14 Nesse sentido, já não seria a globalização, com a ideia de responsabilidade diferenciada, a força motriz da contemporaneidade. Sem secundarizar o domínio político do global e a “diferença antropológica” enquanto categoria analítica,15 a era planetária veio colocar a questão da “espécie” no centro da discussão, abarcando uma multiplicidade de formas de vida, entre as quais, as formas “mais-que-humanas”.16

Se os estudos da memória e os estudos pós-coloniais tiveram um papel crucial na reconfiguração da historiografia, uma vez que permitiram desenvolver modelos que questionavam, por exemplo, as pretensões de estudar o passado de forma neutra e distanciada,17 a era planetária veio reconfigurar os conceitos de época e periodização. Com efeito, a existência de diferentes temporalidades, ou temporalidades heterogéneas, veio complicar a tarefa de circunscrever os tempos históricos e definir as ruturas, descontinuidades, ou o início e o fim de uma forma inequívoca.18 Uma dificuldade que refletia a passagem de uma conceção de tempo linear, irreversível e progressiva, marcada pela conexão entre passado, presente e futuro, para uma conceção de tempo não linear e reversível, onde era possível coexistirem passado, presente e futuro, além de uma multiplicidade de agentes.

Dipesh Chakrabarty foi provavelmente o historiador que melhor sintetizou os diversos desafios que se colocam atualmente à história, contribuindo decisivamente para desfazer a divisão entre uma natureza inerte, desprovida de agência e recetora passiva da ação humana, e a cultura, que abarcaria as intervenções e os sentidos que os humanos lhe impuserem historicamente. No atual contexto, um dos reptos seria abandonar o excecionalismo humano, reproduzido por histórias em que o humano continua a ocupar um lugar privilegiado, e tentar aproximar-se mais das interações e não tanto dos eventos ou ações. Em paralelo, estar disponível para acolher um novo diálogo entre práticas e disciplinas, já não no âmbito da tradicional interdisciplinaridade, que no essencial se circunscreve ao diálogo entre as humanidades e as ciências sociais, mas resiste a abranger as ciências naturais.

A história profunda

A história profunda é um termo usado para descrever o passado distante da espécie humana e constitui uma das formas de responder aos desafios que se colocam atualmente à história (Shryock e Smail, 2011). A história profunda procura redesenhar as divisões entre a história e a pré-história, que foi responsável por impor uma fronteira temporal fictícia, associando a história ao aparecimento da civilização humana e ao uso de fontes escritas, sendo as fontes não escritas reenviadas para a pré-história, considerada um tempo antes da história.

A história profunda pretende ainda reequacionar os pressupostos da escrita da história, o que significa classificar um evento como histórico, privilegiar certos modos narrativos, parte deles assentes em noções de progresso e domínio humano sobre a natureza, e acabar com a separação entre as humanidades e as ciências. Um dos argumentos é que a atividade humana está assente em processos naturais e que outras disciplinas, como a genética, neurobiologia, ou a neurofisiologia, podem igualmente estudar o passado, em particular, temáticas como a evolução biológica, as transformações ambientais, os padrões de propagação de doenças, etc.

Ao sugerir que os documentos escritos produzem uma evidência parcial, os praticantes da história profunda procuram alargar a história a outro tipo de fontes, mais dispersas e refratárias, e assim desenvolver novos métodos de investigação histórica. De acordo com Daniel Smail (2008, p. 48), “lumps of rock, fossils, mitochondrial DNA, isotopes, behavioral patterns, potsherds, phonemes: all these things encode information about the past.”19

A multiplicação do que é considerado documento histórico reorganizou a noção de evidência e contribuiu para desmoronar um dos preceitos metodológicos mais caros à historiografia: a confiança no registo escrito do passado, a partir do qual se escreve a história. Se há vários materiais que deixam vestígios do passado, e estes podem constituir uma evidência histórica, as metodologias clássicas da história deixam de fazer sentido. Mais do que ter um entendimento mais alargado sobre documento histórico, através do qual se procura incluir mais objetos que codificam informações sobre o passado, seria conveniente reequacionar a indispensabilidade de metodologias que pretendem aferir a credibilidade das fontes, analisar as condições de produção dos documentos, ou proceder à célebre diferenciação entre documentos e monumentos. Embora seja uma exigência da historiografia, a reflexão crítica em torno da noção de documento teria de reconsiderar a sua indispensabilidade e aceitar as suas limitações.

A história profunda desafia igualmente o excecionalismo humano, afastando-se da propensão da história estudar quase exclusivamente a atividade dos humanos no passado, seja contemplando as suas ações, desejos e intenções, ou recorrendo a categorias como o sujeito da história. Sustentando que a história não começa com o seu registo, ou a catalogação em arquivos, a história profunda reenvia o historiador para um passado longínquo, um tempo em que os humanos ainda não existiam.

Pretender equivaler o estudo do passado apenas ao passado humano, presumindo que só este é dotado de significado, e que a natureza é um mero palco onde a ação humana se desenrola, não passaria de uma construção historicamente situada. Do mesmo modo, os códigos e práticas representacionais da história tendem a excluir outras formas de se relacionar com o passado, geralmente afastadas por “deturpar” a história, pressupondo que o passado existe independentemente das nossas representações.

Com o intuito de questionar o “código da história”, em particular, os pressupostos antropológicos e humanistas que o condicionam, mas também a sua racionalidade científica, Sanjay Seth nota: “deep history thus rejects what I have called the anthropological and humanist presumption that is part of the code of history. One consequence is that the discipline of history, as a discipline specifically authorized to investigate the past, loses its remit” (2021).

O facto de os praticantes da história profunda se desfazerem em parte dos pressupostos antropológicos e humanistas, o que lhes permite perscrutar o passado sem recorrer ao excecionalismo humano, não significa que o passado se torne mais transparente ou objetivável. Como observa Sanjay Seth, a história profunda pode até reformular alguns pressupostos da história, mas não apaga as “pressuposições profundas” que caracterizam o código da história (Seth, 2021, p. 112). Nesse sentido, acaba por omitir que a história é apenas uma maneira particular de constituir e se relacionar com o passado, entre muitas outras, que não estão integradas em narrativas, séries ou cronologias (Seth, 2004).

Ainda que não se inscreva no campo disciplinar da história profunda, o trabalho colaborativo de David Wengrow e David Graeber, que cruza a antropologia e a arqueologia, permitiu igualmente refletir sobre os pressupostos da escrita da história. Designadamente sobre as grandes narrativas organizadas sob a forma de teleologia, que pressupõem que a história deve ser explicada segundo um processo que se direciona a um fim. Com efeito, as teleologias históricas providenciam noções de direção e finalidade, presumem que a história evolui de uma forma linear, garantem a unidade dos objetos descritos e são um dos veículos para formular entendimentos universalistas da história humana (Chakrabarty, Trüper e Subrahmanyam, 2015, p. 1).

No livro The Dawn of Everything. A New History of Humanity, David Wengrow e David Graeber procuram desmontar a ideia de uma história linear, uniforme, com etapas sucessivas, concebida como um processo progressivo de aperfeiçoamento da humanidade, que evolui do mais simples para o mais complexo. Opondo-se a uma forma de conceber a história da humanidade assente em representações primitivistas, segundo as quais a humanidade evolui do elemento “primitivo” para o elemento mais “evoluído” ou “complexo”, David Wengrow e David Graeber esforçam-se por eliminar os lugares-comuns que existem na história do desenvolvimento das sociedades humanas nos últimos 30 000 anos. Um intervalo de tempo bastante vasto, que costuma convocar uma série de desejos e fantasias sobre a história da humanidade, por vezes traduzidos em histórias unívocas das sociedades “primitivas”, ainda presas aos grilhões da tradição, destituídas de racionalidade científica, e dependentes de mitos, deuses e magia. Uma representação banalizada que pressupõe um estado natural e é sintomática da condescendência com que são retratas as sociedades primitivas. Segundo David Wengrow e David Graeber:

Just as they pretended a ‘rational Western individual’ (say, a British train guard or French colonial official) could be assumed to be fully self-aware all the time (a clearly absurd assumption), they argued that anyone classified as a ‘primitive’ or ‘savage’ operated with a ‘pre-logical mentality’, or lived in a mythological dreamworld. At best, they were mindless conformists, bound in the shackles of tradition; at worst, they were incapable of fully conscious, critical thought of any kind. [Graeber e Wengrow, 2021, p. 105]

Com efeito, os povos classificados de “primitivos” foram historicamente relegados para um “estádio de progresso” inferior, praticamente fora da humanidade, e considerados incapazes de estabelecer formas de organização política complexas. Em vez de um curso inelutável da história em direção à justiça, igualdade e emancipação política, um processo que culminaria inevitavelmente nas sociedades atuais, David Wengrow e David Graeber sugerem que as sociedades primitivas experimentaram diferentes formas de organização política, mais ou menos igualitárias, que não se encaixam na grelha evolutiva que vai das formas de organização tribal até à fundação dos Estados modernos. Tratar-se-ia, no fundo, de abandonar um entendimento da história enquanto processo cumulativo, uniforme, progressivo e guiada pelo triunfo da razão.

Ao abandonar as narrativas do progresso, as representações evolucionistas e o historicismo, que encara as descobertas do passado como derivadas das estruturas que existem no presente, o livro de David Wengrow e David Graeber assinala a contingência que existe na história das sociedades humanas. Nelas existiria sempre a possibilidade de deslocar os limites impostos pelo poder e redirecionar politicamente as sociedades onde se vive. Em vez de predicada na necessidade, a história seria um campo aberto de possibilidades.

Ainda que tenha o mérito de reescrever e complexificar a história humana, retirando-a das narrativas restritivas do progresso, que olham para o passado de forma mitificada, o livro de David Wengrow e David Graeber não deixa de recriar uma variante de “humanismo transcendental” através da tentativa de resgatar uma espécie de utopia perdida da humanidade.20Nesse sentido, é uma história assente na ideia de um sujeito dotado de agência, motivos, intenções e consciente das sua ações, características indispensáveis para que a capacidade transformadora da própria espécie possa subsistir. Dela depreende-se que há um único homem, ou que há um sujeito por detrás de cada ação, e que é possível contar diversas histórias a seu respeito. David Wengrow e David Graeber apresentam histórias plurais, descrevem diferentes formas organização política e cooperação social, incluindo formas “ancestrais de anarquismo” (Appadurai, 2022), sem, todavia, deslocar o humanismo e os “pressupostos profundos” da escrita da história.

História e teoria

As relações entre história e teoria suscitam invariavelmente desconfiança junto da comunidade historiográfica. Um manifesto assinado pelo coletivo Wild On, do qual fazem parte os historiadores Ethan Kleinberg, Joan Wallach Scott e Gary Wilde, procurou sinalizar o desconforto dos historiadores com a teoria, argumentando que a história académica continua a ser uma disciplina essencialmente empírica sustentada por factos e argumentos realistas. O manifesto “Teses sobre a teoria da História” afirma que a história “promove um essencialismo disciplinar fundado sobre o fetichismo metodológico” (Kleinberg, Scott e Wilde, 2018). Ou seja, a história dedica-se fundamentalmente a recolher factos, produzir interpretações a partir de contextos circunscritos, com inícios e fins bem definidos, colocadas posteriormente em narrativas cronológicas, realistas e autoevidentes. Segundo os autores, “a metodologia empirista e o realismo epistemológico” obstaculiza a utilização de instrumentos teóricos e conceptuais na história. A resistência à teoria tem como consequência a renitência em problematizar categorias como evidência, realidade, subjetividade, agência humana, contexto, causalidade, cronologia e regimes de temporalidade.

A revista History & Theory acolheu recentemente um novo projeto de pesquisa coordenado por Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm, que têm publicado uma série artigos em que investigam as diferentes modalidades de “futuros históricos”. Na esteira do trabalho desenvolvido por Dipesh Chakrabarty, que tem refletido sobre os desafios que o tempo presente coloca ao pensamento histórico, Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm têm igualmente trabalhado no cruzamento entre o pensamento histórico e os desafios do tempo presente, marcados pelas alterações climáticas, riscos de extinção nuclear, catástrofes existenciais e transformações sociopolíticas. O propósito dos autores é reordenar o próprio sentido da história, dando conta da “pluralidade de relações entre as apreensões do passado e os futuros antecipados” (Simon e Tamm, 2021, p. 3), esboçar novas relações entre o passado e o futuro e apreender a coexistência de múltiplas temporalidades em diferentes domínios da vida, seja nos sistemas sociais e naturais, ou nas práticas culturais e tecnocientíficas.

Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm propõem-se explorar os “futuros históricos”, caracterizados por ruturas e mudanças sem precedentes, através de três questões. A primeira abrange os tipos de transições do passado para o futuro; a segunda compreende as práticas antecipatórias que se podem traçar em diferentes domínios; a terceira abarca os diversos registos através dos quais os futuros históricos podem ser interpretados (Simon e Tamm, 2021, p. 15).

A primeira refere-se às principais formas de transição associadas à modernidade: desenvolvimento, progresso, emancipação e revolução. Categorias que ainda informam as práticas contemporâneas de antecipação e criação de futuros vinculadas a um processo de transformação desenvolvimentista. Segundo os autores, estão a emergir outras formas de transição na atualidade, já não ligadas aos domínios sociopolíticos, e que se desdobram em teleologias, mas sim aos domínios tecnocientífico, ecológico e ambiental. Trata-se de formas de transição distintas do projeto modernizador, que procurava encontrar a melhor configuração política para os humanos. Um dos exemplos de formas transição são as chamadas Ciências do Sistema Terrestre, que associam as transformações atuais aos pontos de inflexão climáticos e aos limites do planeta, sobre os quais se adivinham transformações inesperadas e abruptas.

Relativamente às práticas antecipatórias, os autores mencionam as utopias e distopias que fornecem múltiplas modalidades de futuro. Neste domínio incluir-se-iam as utopias ecológicas ou ecotopias, que afirmam a possibilidade de futuros ambientais sustentáveis, mas também as distopias, presentes principalmente nos filmes de ficção científica das últimas décadas, que criam visões apocalípticas e sugerem a necessidade de encarar o tempo presente como o tempo do fim. As distopias apocalípticas abrem novas formas de conhecimento que podem funcionar como práticas antecipatórias do futuro.

Os autores mencionam ainda os diferentes tipos de registo, entre os quais os registos de tempo, escala, valor e conhecimento. Este último abarca as práticas de “futurização”, que abrem o futuro de modo a lidar com as incertezas; e as práticas de “defuturização”, que diminuem a abertura ao futuro, valorizando antes as formas de planeamento, prognóstico e previsão.

Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm propõem uma forma de explorar os “futuros históricos” que procura transcender a oposição entre história e teoria. Uma oposição que decorre de um debate antigo sobre a natureza da história, que teve como desdobramento a tentativa de “reprimir o aparato conceptual” nas narrativas históricas e passou por delinear uma linha imaginária entre a história e a teoria, ou filosofia da história. Como Hayden White não cessou de assinalar, o facto de não se reconhecer que todas as narrativas históricas abarcam uma filosofia da história, diluída ou implícita no interior da narrativa, só reforça as convenções realistas e o empirismo da história. Segundo Hayden White:

Every discipline is made up of a set of restrictions on thought and imagination, and none is more hedged about with taboos than professional historiography - so much so that the so-called “historical method” consists of little more than the injunction to “get the story straight” (without any notion of what the relation of “story” to “fact” might be) and to avoid both conceptual overdetermination and imaginative excess (i.e., “enthusiasm”) at any price. [White, 1978, p. 126]

Foram precisamente as restrições ao pensamento e à imaginação criadas pela historiografia profissional que contribuíram para estabelecer uma separação artificial entre a história, que trata pretensamente de assuntos concretos e é executada por historiadores que se propõem fazer uma reconstrução minuciosa dos acontecimentos passados, e os teóricos da história, que se encarregariam de abordar os aspetos interpretativos, ou os sentidos da história vistos como um processo e uma construção. A separação entre história e teoria está também associada a uma desqualificação de quem se ocupa da “teoria” por se entender que esse é um trabalho meramente abstrato e especulativo.

Procurando estudar a condição histórica atual sem recriar divisões artificiais entre história e teoria, compromisso analítico e especulação, Zoltán Boldizsár Simon e Marek Tamm oferecem um exemplo de uma forma de mapear a nova condição histórica. O projeto de publicação em série que neste momento desenvolvem na History & Theory tenta abrir o campo de possibilidades do trabalho colaborativo e proporcionar outras formas de entender a relação entre o passado e o futuro. O caráter exploratório do projeto faz jus aos desafios colocados pelo tempo presente, em particular, porque expõe as insuficiências do projeto histórico moderno, que permanece dependente de formas de historicização que acomodam a mudança e desejam conferir ordem e regularidade ao passado.

Novas traduções

A história enquanto disciplina está ligada à emergência dos Estados-Nação modernos, ao progresso, racionalidade científica e à separação entre o passado e o presente. A história serviu, por exemplo, para descrever os processos de construção nacional, as narrativas de justiça social, aquisição de cidadania, todas elas enquadradas por formas graduais de empoderamento. Hoje afigura-se implausível continuar a efetuar o mesmo género de história e presumir que os desafios do tempo presente têm uma origem, esta pode ser datável ou calendarizável, uma causalidade que os governa, um padrão de desenvolvimento e, desejavelmente, um fim definitivo. Por outras palavras, hoje afigura-se pouco condicente continuar a narrar a história de um sujeito, seja ela traduzida ou substituída pela figura da humanidade, liberdade, emancipação, ou razão. Do mesmo modo que destoa a tentativa de associar a mudança a estádios de desenvolvimento, ou encontrar nos acontecimentos passados a chave do presente.

Se o Antropoceno implica a colisão do mundo humano com o mundo natural, e se as ciências sociais e humanas separam o humano do natural, só um deslocamento das práticas disciplinares permitiria investigar um mundo constituído por diversos entrelaçamentos, em que o mundo é um só, simultaneamente natural e social, ou natural e cultural (Simon, Tamm e Domańska, 2021). O estudo crítico do Antropoceno requer, por isso, novas mediações, até porque os grandes conceitos totalizadores deixaram de servir, inclusivamente porque não existe uma causa única suscetível de explicar integralmente o fenómeno. Mesmo quando se procura atribuir responsabilidades pelas alterações climáticas, na tentativa de imputar responsabilidades pelo atual estado de coisas e ilusoriamente recuperar uma sensação de controlo, dificilmente se sai das questões morais ou políticas. Estas estão fundamentalmente associadas à avaliação das intenções e motivações dos humanos e deixam de lado o papel desempenhado por outras agências, e tendem a omitir a discussão sobre as questões geológicas ou naturais.

De acordo com os atuais pressupostos que caracterizam a história, seria impossível falar em “mudanças sem precedentes” (Simon, 2019), uma vez que na história nada existe sem precedentes, há sempre uma causa, um razão, uma analogia, uma semelhança ou comparação que permite assegurar o sentido da história e preparar para um acontecimento inaudito. Ou seja, há sempre um princípio de organização dos acontecimentos, uma forma de criar identidades, diferenças e estabelecer continuidades que tende a atenuar a estranheza do futuro, ou a sua imprevisibilidade. Mais do que afirmar que a história tem uma direção própria e avança de forma linear, o princípio de organização dos acontecimentos procura atribuir espessura histórica a um acontecimento, apartar os acasos e as contingências, e dar aos “deslocamentos a forma da reconciliação” (Foucault, 1979, p. 17).

Dissolver um acontecimento singular numa continuidade ideal, ou encadeamento natural, obscurece o facto que um acontecimento é por natureza único e inédito. Designe-se “mudança sem precedentes”, ou “mudança de época”,21 os chamados “tempos catastróficos” convidam a pensar, sentir, imaginar e atuar de forma diferente. Desde logo porque não há um contexto onde se possa colocar o acontecimento, nem a possibilidade de contar o antes e o depois de uma história que ainda está em curso e cujas características não se enquadram nas narrativas convencionais.

É igualmente insuficiente dizer-se que o Antropoceno opera uma descontinuidade no tempo histórico, uma descontinuidade que pode até desfazer a fixidez evolutiva, quebrar identidades e suspender analogias, mas que não deixa de ser o reverso da continuidade. Ou seja, funciona segundo a mesma lógica, obedece ao princípio da realidade e permanece ocupada em estudar o destino da humanidade. Nesse sentido, a descontinuidade limitar-se-ia a acomodar as ruturas e as mudanças bruscas que acontecem na história da humanidade, não prescindindo dos pressupostos antropológicos inscritos na história. Atribuir um estatuto temporal singular a fenómenos que não obedecem ao princípio da semelhança ou repetição, fazer histórias “melhores”, ou mais complexas, não significa abandonar o antropocentrismo que governa a história, nem expor a sua inadequação para cartografar a “proliferação dos híbridos” que caracteriza a situação atual.

Com efeito, a vontade de “purificação”, que atravessa diversas disciplinas e instituições científicas e insiste em separar a natureza da sociedade, ou os sujeitos dos objetos, tem dificultado a tarefa de produzir novas traduções, multiplicar os híbridos e ousar novas combinações. Como Bruno Latour sugere:

Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte e a noção de tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas. [Latour, 1991, p. 9]

Ao esboçar redes de objetos híbridos, não distinguindo o humano do não-humano, ou o natural do social, Bruno Latour tem sido um dos principais responsáveis por abrir espaço para novas traduções, distintas do projeto moderno de purificação que caracterizou a emergência das ciências sociais e humanas. Resultante do projeto moderno, a história familiarizou os humanos com a mudança e acomodou os acontecimentos e as ocorrências mais improváveis num arco temporal maior, circunscrevendo as principais tendências e regularidades. O sucesso relativo em atenuar o impacto do novo, garantir alguma estabilidade e previsibilidade, não impediu que o tempo moderno, com as suas profecias e horizontes de possibilidade, colidisse com o “tempo apocalíptico” da atualidade, marcado pela proliferação de pandemias e catástrofes naturais.

Para além de colocar questões de escala diferentes, determinando o fim dos espaços de fuga imaginária, idilicamente resguardos, que animaram diversas utopias políticas, a era planetária transformou definitivamente a categoria de tempo. A “sensação de novidade emergente” foi responsável por colocar questões existenciais inéditas que se distinguiam das experiências humanas anteriores (Simon, 2019, p. xi). Com o Antropoceno já não se trata de saber como será o mundo após a crise, admitindo que esta é mais uma crise que pode ser superada na expectativa de regressar à desejada normalidade, mas aceitar que o inesperado, a chamada sexta grande extinção, que projeta uma catástrofe simultânea e comum pode mesmo acontecer.

Conclusão

Uma disciplina define-se por um conjunto de métodos adequados a um determinado objeto e é a demonstração de uma determinada ideia de conhecimento, isto é, de uma “certa ideia da relação entre o conhecimento e uma distribuição de posições” (Rancière, 2021). À semelhança de outras disciplinas, a constituição da história enquanto disciplina autónoma fez-se através da criação de um sistema de interditos (White, 1978, p. 126). Cultural e historicamente situadas, as normas disciplinares foram sendo questionadas em diferentes contextos e ocasiões. Um questionamento que voltou a ganhar visibilidade com os debates sobre o Antropoceno, que têm favorecido a revisão dos pressupostos antropológicos e humanistas que governam a história e contribuído para desconstruir a noção moderna de tempo, orientada para o futuro, que colide com o chamado tempo do fim, portador da catástrofe eminente e que expõe a fragilidade de um tempo que os humanos fabricaram para o seu próprio uso.

Ao longo do artigo pretendeu-se sinalizar como o espectro da(s) crise(s) colocou desafios acrescidos à história, sintetizados por temáticas como a emergência de um novo regime de temporalidade, as modalidades de “futuros históricos”, a ressignificação da separação entre história e teoria, a produção de evidência, as questões de escala e agência, a convivência entre as espécies, a redefinição do humano, o fim da separação entre humanos e não humanos, ou entre a natureza e a cultura.

Na era planetária, marcada pelo esboroamento dos essencialismos disciplinares, caberia à história questionar as “histórias” que conta, reconhecendo as suas limitações, para poder contar “histórias” mais abrangentes e plurais, ou ter disponibilidade para aceitar que a transição para uma nova economia dos saberes, que redistribui as posições disciplinares, pode eventualmente prescindir da “necessidade” da história. Não só da história tal qual a conhecemos, com os seus pressupostos e metodologias, mas também da história que se pretende reformar ou melhorar. Mais do que prescrever um futuro para a história, gizar novas formas de interpretar o tempo e a mudança, talvez se possa aproveitar o impasse atual para ensaiar novas traduções.

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Notas

1 A contestação dos factos científicos estabelecidos e a proliferação das chamadas teorias da conspiração e fake news veio introduzir o termo “negacionismo” para descrever pessoas ou grupos que negam o aquecimento global, contestam a teoria da evolução, ou desconfiam da eficácia das vacinas. Ver Deborah Danowski (2018) e Lee McIntyre (2018).

2 Nas palavras de François Hartog: “As a historian who tries to be attentive to his time, I have, like many others, observed how the category of the present has taken hold to such an extent that one can really talk of an omnipresent present. This is what I call presentism here” (Hartog, 2015, p. 8).

3 Ver capítulo “O Miraculoso ano de 1989” em Latour (1991, pp. 13-15).

4 No campo da arte e literatura também se encontram vários exemplos sobre a temática da catástrofe. Ver Mark Bould (2021).

5 Num dossier temático da revista Theory, Culture & Society, intitulado “Problematizing the Problematic”, que pretende questionar o tempo presente, condicionado por questões sanitárias globais, instabilidades geopolíticas e devastação ecológica, Martin Savransky problematiza a forma tradicional de abordar os problemas, equiparando-os normalmente a obstáculos a ser superados, seja através do conhecimento, ou do progresso tecnocientífico. Ver Savransky (2021).

6 Em vez de Antropoceno, algumas correntes têm sugerido o uso do conceito capitaloceno, procurando deste modo responsabilizar o sistema capitalista e a aliança entre a economia e a tecnologia pelas alterações climáticas. Ou seja, mesmo nas chamadas questões ditas planetárias, em que o tempo se reconfigura e expande para além da perceção humana, o capitalismo continuaria a ser a força motriz. Ver Bonneuil e Fressoz (2016).

7 Como referem Deborah Danowski e Eduardo Viveiros De Castro, “na contagem do relógio evolutivo do homo sapiens, parece apontar para a conclusão de que a humanidade ela própria e uma catástrofe, um evento súbito e devastador na história do planeta, e que desaparecera muito mais rapidamente que as mudanças que terá suscitado no regime termodinâmico e no equilíbrio biológico da Terra. Nas narrativas dessa ‘História Profunda’ que vai sendo construída por historiadores, paleontólogos, climatólogos e geólogos, os humanos desempenham ao mesmo tempo um papel crucial, tardio e muito provavelmente efémero” (Danowski e Castro, 2014, p. 27).

8 Como sugere Michel Foucault: “o homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique o seu fim”. (Foucault, 1998, p. 421).

9 O desafio seria desenvolver uma conversa entre as humanidades e as ciências naturais numa “perplexidade compartilhada” (Stengers, 2000, p. 65).

10 Segundo Bruno Latour, “To be a subject is not to act autonomously in front of an objective background, but to share agency with other subjects that have also lost their autonomy. It is because we are now confronted with those subjects - or rather quasi-subjects - that we have to shift away from dreams of mastery as well as from the threat of being fully naturalized” (Latour, 2014).

11 Visto genericamente como uma expressão da falta de alinhamento, ou correspondência com uma época, o anacronismo “impede” os historiadores de interpretar o passado com as “lentes do presente”. Ver Rancière (2015).

12 Ver, por exemplo, o dossier temático que a revista Práticas da História - Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past dedicou aos vinte anos da publicação de Provincializing Europe, um livro considerado um marco nos estudos pós-coloniais e na crítica das assunções eurocêntricas que percorriam diversas áreas disciplinares, nomeadamente as ciências sociais e as humanidades (Cardão e Neves, 2020).

13 Ver capítulo “An anti-colonial history of postcolonial thought” (Chakrabarty, 2018b, pp. 57-77).

14 Segundo Dipesh Chakrabarty: “Humans today are not only the dominant species on the planet, they also collectively constitute - thanks to their numbers and their consumption of cheap fossil-fuel-based energy to sustain their civilizations - a geological force that determines the climate of the planet much to the detriment of civilization itself. Today, it is precisely the “survival of the species” on a “world-wide scale” that is largely in question. All progressive political thought, including postcolonial criticism, will have to register this profound change in the human condition” (Chakrabarty, 2012, p. 15).

15 Como sugere Dipesh Chakrabarty: “If critical commentary on globalization focuses on issues of anthropological difference, the scientific literature on global warming thinks of humans as constitutively one - a species, a collectivity whose commitment to fossil-fuel based, energy-consuming civilization is now a threat to that civilization itself. These views of the human do not supersede one another. One cannot put them along a continuum of progress. No one view is rendered invalid by the presence of others. They are simply disjunctive” (Chakrabarty, 2012, p. 2).

16 Segundo Anna Tsing, para apreciar as socialidades mais-que-humanas é necessário contornar as limitações de um conhecimento científico centrado no humano e adopta um significado mais amplo do que significa agir (Tsing, 2013, pp. 37-52).

17 Partindo do princípio de que o passado é absoluto e irreversível, a historiografia tende a estabelecer uma fronteira entre o passado e o presente, adotando uma conceção de tempo que não permite a existência de tempos particulares ou relativos. Olhar para o passado como um tempo distante e irrecuperável é fulcral para distinguir o ator envolvido, interessado em politizar o passado, do observador objetivo e imparcial, o historiador, um profissional dotado de capacidade analítica. Ver Bevernage e Lorenz (2013).

18 Como nota Dipesh Chakrabarty, a ideia de múltiplas temporalidades não é nova na historiografia, já Fernand Braudel em O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico chamava a atenção para a temporalidade específica do ambiente natural do Mediterrâneo. Fernand Braudel distinguiu três velocidades históricas - a do tempo individual, do tempo social e do tempo geográfico -, sugerindo que existia um tempo rápido do acontecimento, considerado político, um tempo intermédio dos ciclos económicos e um tempo lento das estruturas. O tempo geológico operava em diversas temporalidades; porém, o chamado “geo-histórico” era visto, segundo Chakrabarty, como sendo essencialmente mecânico, repetitivo e destituído de agência ou poder. Nele predominaria ainda uma história marcada pela repetição constante e por ciclos recorrentes. Ver Chakrabarty (2009, p. 204). Ver igualmente a forma original como Catherine Malabou coloca em diálogo a obra de Dipesh Chakrabarty e Fernand Braudel, propondo uma releitura do conceito de “mentalidade”, avançado por Braudel, de modo a explorar a ligação entre a constituição atual do cérebro como sujeito da história e o tipo de consciência exigida pelo Antropoceno (Malabou, 2017).

19 Ver igualmente o artigo em que Daniel Smail (2012) assinala como as neurociências podem melhorar a capacidade para compreender os padrões e processos do passado.

20 A propósito dos usos políticos do passado e, mais concretamente, da viragem ontológica na antropologia, que genericamente procurou atender ao que os “outros”, os chamados “não modernos”, pensam, fazem e percebem, independentemente das categorias de mediação ocidentais, ver a polémica que opôs Eduardo Viveiros de Castro a David Graeber (Viveiros de Castro, 2015; Graeber, 2015).

21 Ver o capítulo “The epoch has changed” (Stengers, 2015, pp. 29-36).

Recebido: 18 de Janeiro de 2022; Aceito: 29 de Julho de 2022

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