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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.246 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023246.04 

Artigos

A leitura do par privilégio-opressão no contexto pandémico brasileiro pelas teorias críticas decoloniais: uma proposta de metodologia decolonial.

The reading of the privilege-oppression pair in the Brazilian pandemic context by decolonial critical theories: A proposal of a decolonial methodology.

Rogério de Souza Medeiros1 
http://orcid.org/0000-0001-6292-4995

Bruno Ferreira Freire Andrade Lira2 
http://orcid.org/0000-0003-1869-1017

1. Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Av. Manoel Cavalcanti de Souza, 122/2021, Cabo Branco - CEP 58045-090 João Pessoa, Paraíba, Brasil. rogerio.medeiros@academico.ufpb.br

2. Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (DCS/UEM). Av. Colombo, 5790, Jd. Universitário - CEP 87020-900 Maringá , PR, Brasil. bffalira2@uem.br


Resumo

A pandemia da Covid-19, espraiada pelo mundo desde 2020, tem aprofundado as desigualdades interseccionais no Brasil, aquelas que se sedimentam no entrecruzamento entre as opressões de classe, raça, género e sexualidade. Para a compreensão destas apoiamos-nos aqui nas teorias críticas decoloniais através da construção de uma metodologia decolonial centrada na tensão colonialidade-decolonialidade. A questão central passa por perceber como é que uma metodologia decolonial pode ajudar a compreender aspetos da realidade pandémica brasileira, situada no par privilégio-opressão? Espera-se, com isso, contribuir para uma ecologia de saberes latino-americanos e caribenhos, propondo uma metodologia que valorize os conflitos sociais e as experiências de (r)existência.

Palavras-chave: marcadores sociais da diferença; metodologia decolonial; privilégio-opressão; pandemia.

Abstract

The Covid-19 pandemic, which has been beached worldwide since 2020, has deepened the intersectional inequalities in Brazil, which are at the crossroads of the oppressions of class, race, gender and sexuality. For the understanding of these, we rely here on decolonial critical theories through the construction of a decolonial methodology centered on coloniality-decoloniality tension. The central question here is: how can a decolonial methodology help to understand aspects of the Brazilian pandemic reality, situated in the privilege-oppression pair? It is expected, therefore, to contribute to an ecology of Latin American and Caribbean knowledge, proposing a methodology that values social conflicts and the experiences of (r)existence.

Keywords: social markers of difference; decolonial methodology; privilege-oppression; pandemic

Considerações iniciais

O cenário de crise, agravado pela pandemia, tem contribuído para pôr a nu a dicotomia privilégio-opressão, centrada na relação entre as abissais desigualdades interseccionais, ou seja, os entrecruzamentos entre marcadores sociais de raça, género, classe e sexualidade que maculam a colonização da vida social. Verifica-se o fortalecimento das formas de classificação e hierarquização social que historicamente configuram posições supostamente naturalizadas de privilégio, ao mesmo tempo que se renovam os mecanismos que mantêm grupos sociais em condições de vulnerabilidade e de opressão. Como exemplo, podemos pensar na própria situação pandémica, em que poucos são os que se podem proteger, permanecendo em suas casas, face a tantos outros, especialmente pessoas racializadas e ligadas a formas de ocupação precárias, que precisam de se arriscar a contrair a doença para manter as suas condições de sobrevivência socioeconómica.

Esse quadro de agravamento revela como é necessário o uso de renovadas ferramentas sociológicas de análise que não arrisquem desperdiçar o saber construído nas experiências das lutas sociais contra a opressão. Neste artigo enfatizamos a emergência do pensamento decolonial surgido nos anos de 1990 a partir do grupo Modernidade/Colonialidade (M/C). Essa corrente de pensamento empreende uma consistente crítica ao ideal de modernidade, identificando a permanência de uma colonialidade do poder, centrada no contínuo processo de classificação e racialização da vida social (Quijano, 2000). De acordo com esta corrente de pensamennto, o sistema-mundo moderno/capitalista/colonial coloniza a periferia a partir de um racismo estrutural que promove classificações sociais e subalterniza grupos racializados. Todavia, esta perspetiva analítica vai além do grupo M/C, tornando-se uma vasta e heterogénea rede de pesquisa, mobilizando temas e enfoques entre os quais se destacam: i) o bien vivir (Walsh, 2007; Escobar, 2010; Cusicanqui, 2018), com uma outra cosmovisão da vida social baseada numa relação horizontal entre natureza e ser humano; ii) o pensamento afrodiaspórico latino-americano e caribenho (Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel, 2019), que explora a formação de uma comunidade imaginária centrada na valorização da negritude; e iii) o feminismo decolonial (Lugones, 2014; Segato, 2014), pondo ênfase na matriz de dominação de género e de sexualidade imbricada nas questões raciais e de classe.

Diante desta multiplicidade de perspetivas, sugerimos tratá-las como teorias críticas decoloniais, a partir das suas elaborações conceptuais que contribuem para uma crítica anticapitalista, antirracista e anticisheteropatriarcal. A partir desse conjunto teórico-epistémico, temos buscado construir uma metodologia decolonial centrada na tensão entre colonialidade e decolonialidade.1 Enquanto a colonialidade se refere à permanência de matrizes de subordinação e opressão que geram o par privilégio-opressão, tomamos a decolonialidade como a zona da (r) existência2 em que, através das lutas sociais contra a subalternização dos grupos sociais, se torna possível que eles continuem a existir e a resistir. Localizado esse tensionamento de conflitos e disputas violentas encontramos o sujeito e o seu corpo, definido pelos marcadores sociais da diferença - raça, sexo, etnia, classe e género - ambivalentes e interpretativos.

Estabelecidos esses elementos iniciais, temos como objetivo neste artigo compreender de que modo a metodologia decolonial pode auxiliar no entendimento do contexto pandémico brasileiro, situada nesse par privilégio-opressão. Para isso buscamos estruturar o argumento em três momentos: i) o primeiro consiste em sistematizar os principais elementos teórico-epistémicos das teorias críticas decoloniais - sistema-mundo moderno/capitalista/colonial, colonialidade e decolonialidade; ii) o segundo é entender a metodologia decolonial a partir do par privilégio-opressão e no tensionamento entre colonialidade e decolonialidade, como forma de compreensão dos marcadores sociais da diferença; iii) por fim, tratamos de refletir como operacionalizar os elementos centrais da metodologia decolonial para compreender o cenário de pandemia no Brasil, focando-nos na política pública do auxílio emergencial.

As teorias críticas decoloniais

O debate decolonial tem sido matéria das nossas pesquisas (Medeiros e Lira, 2020) e objeto de longos debates. Nestes circuitos, o esforço analítico-metodológico tem propiciado construir a sistematização e uma metodologia própria das teorias críticas decoloniais. Assim, o pensamento decolonial surge a partir do coletivo Mordenidade/Colonialidade (M/C) no final da década de 1990, formado por autores latino-americanos e caribenhos3 (Escobar, 2003). Aqui inaugura-se uma rede de investigação plural e diversa que, ao longo dessas últimas três décadas, tem crescido e se difundido, especialmente pela região, constituindo uma ecologia de saberes.

Diante dessa diversidade que se tem construído, optamos por identificar este pensamento como teorias críticas decoloniais (TCD), por reconhecer nelas a representação da pluriversalidade crítica que parte de um mesmo marco central: a produção da colonialidade a partir do projeto civilizacional da modernidade e do capitalismo. Apesar de uma vasta e diversa produção, as TCD aparentam carecer de uma sistematização teórico-epistémica mais profunda que seja coerente com o seu caráter dinâmico e plural. Por outras palavras, busca-se aqui, a partir da sua ecologia de saberes, apontar como esta consistente reflexão crítica pode possibilitar a formulação de uma metodologia decolonial que não se encerre em si mesma, nem leia as diversas realidades sociais de forma fechada e/ou estática. Para isso vamos primeiro sistematizar criticamente, mas não de forma exaustiva, aspetos centrais das TCD.

O primeiro elemento crítico a ser trazido é o ideal de modernidade e a sua indissociabilidade do capitalismo e dos processos de colonização. É importante colocar esta premissa, pois este par moderno/capitalista circunscreve-se numa narrativa/projeto civilizacional que permanece até aos dias atuais como representação de progresso, civilidade e racionalidade. Aqui tem-se uma romantização que trata de ocultar os processos de colonização que ocorrem sob a égide da exploração/opressão/violência. Portanto, é urgente que tratemos de pensar um sistema-mundo moderno/capitalista/colonial (Grosfoguel, 2010) que se mantém baseado em diferentes retóricas de progresso, obliterando as estruturas hierárquicas e de classificação social.

Exposto isso, é necessário compreender como se reproduz a estrutura que mantém o sistema-mundo capitalista/moderno/colonial. Para tal, Quijano (2010) traz consigo o conceito de “colonialidade do poder”, enquanto uma matriz de poder colonial que hierarquiza, racializa e classifica os sujeitos em oposições binárias de superioridade e inferioridade - natureza/cidade; homem/mulher; branco/negro; branco/indígena. É importante diferenciar este conceito do de “colonialismo”, que se refere a uma dominação (controlo ou autoridade) política, económica, cultural e/ou religiosa exercida sobre um território ocupado através de um poderio militar, centrada na relação de subalternização da colónia em relação à metrópole. No caso da colonialidade, esta configura-se como um padrão de poder colonial que normaliza um sujeito superior - homem/branco/rico/heterossexual/cristão/militar - e inferioriza os demais, colocando-os enquanto oposições atrasadas e selvagens. A colonialidade diz respeito ao processo de reprodução histórica dos padrões de dominação colonial, ao prolongamento no tempo das relações de dominação típicas do colonialismo. A introdução desse conceito no debate acerca da experiência colonial na América Latina e Caribe exige do pensamento crítico a identificação dos mecanismos e processos que fazem perdurar - em estruturas, em formas de subjetividade, em padrões de sociabilidade - formas de dominação tipicamente coloniais.

Feita essa distinção, é importante assinalar que a colonialidade do poder se desdobra em três padrões de poder colonial: o saber, o ser e o de género. O primeiro refere-se ao modo como o poder colonial é exercido através da monopolização do conhecimento pelo pensamento moderno ocidental. Aqui exerce-se domínio no âmbito de uma geopolítica do conhecimento (Mignolo, 2017; Connel, 2017), em que o Norte global4 se coloca enquanto produtor legítimo de conhecimento e determina ao Sul global5 o papel de fornecedor de dados, de matéria para a produção de conhecimento acerca do mundo. Ademais, destaca-se a linearidade temporal que define a história do desenvolvimento humano a partir da Europa. A premissa, segundo Maldonado-Torres (2019), está fundamentada no Ego Cogito de Descartes - “penso, logo existo”. Nessa referência, o indivíduo é representado enquanto um sujeito racional que faz as suas escolhas a partir de uma neutralidade axiológica. Este ser racional estabelece-se na figura masculina, visto que a colonialidade de género (Lugones, 2014; Segato, 2014) trata-se, num primeiro momento, na essencialização do ser homem e ser mulher. O primeiro, que domina a vida pública, representa a virilidade e ocupa os locais de poder; enquanto o feminino é restringido ao âmbito doméstico, representado pelas características da fragilidade e emotividade, incapaz de ser plenamente racional. Com isso se estabelece uma divisão sexual tanto da vida social, quanto do trabalho, em que o homem se autodetermina como dominante e ocupante dos espaços de tomada de decisão e a mulher é subalternizada dentro da esfera do cuidado e da família.

Apontados esses aspectos da colonialidade do ser, do saber e do género, é preciso destacar que estes se expandem numa proporção inédita a partir da invasão dos diversos territórios implicados no projeto de expansão colonial e da colonização de diferentes povos originários. Tal violência é parte essencial da expansão do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial, aprofundando a “colonialidade do ser”, conceito apresentado por Maldonado-Torres (2019) por influência direta do pensamento do intelectual martinicano Frantz Fanon (2008). Aqui, o outro é representado dentro de uma zona do não-ser, um não-sujeito caracterizado de forma pitoresca e animalizada. Os povos originários dos territórios hoje chamados América Latina, Caribe ou África são submetidos a um processo de desumanização e genocídio, incluindo o apagamento dos seus elementos socioculturais distintivos. Através disso interioriza-se coercivamente nestes supostos não-sujeitos a inferioridade e a necessidade de vestir máscaras brancas como forma de sobreviver. Trata-se de um processo de racialização que subjuga esses grupos sociais aprisionando-os a lugares de vulnerabilidade e condições de pobreza social. A associação destes três padrões de poder - género, ser e saber - permite identificar a tripla discriminação da qual falam Lugones (2014), Gonzalez (2020) e Vergès (2020) quando se verifica que as feminilidades racializadas (negras e indígenas) têm os seus corpos tomados ao serem sexualizadas e exploradas, ocupando literalmente o chão do sistema-mundo - enquanto trabalhadoras domésticas, serventes, cuidadoras.

A colonialidade do poder, desdobrada nas colonialidades do saber, do ser e de género, é a matriz de poder colonial que permanece até hoje a manter as estruturas hierárquicas do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial. A partir da compreensão dessa estruturação, os teóricos críticos decoloniais trataram de se questionar sobre quais as condições de possibilidade para resistir e romper com a colonialidade? É a partir desse ponto que se torna necessário refletir sobre o terceiro elemento, a decolonialidade. Esta caracteriza-se pelo giro decolonial, movimento de ruptura com a colonialidade, que se concretiza a partir da atitude decolonial (Maldonado-Torres, 2019), que é o ato de questionar, duvidar e criticar o colonizador e o sistema-mundo moderno/capitalista/colonial. Para além disso, trata-se de práticas sociais quotidianas que se referem a (r)existir ante a violências e opressões. É a emergência do corpo-político, em que o outro, subalternizado, se recusa a permanecer invisibilizado e violentado. Ainda, é a busca da emancipação e justiça social, mesmo em condições assimétricas. Seguindo Lugones (2014), tanto a viragem como a atitude decolonial apenas são possíveis a partir do locus fraturado,

[…] construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os “lados” do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla. [Lugones, 2014, p. 942]

O processo de colonização da vida social apenas é realizável de forma violenta e opressora, promovendo uma fratura ou ferida colonial (Jesus, 2019). As matrizes binárias que se instituem a partir do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial subalternizam e inferiorizam vários grupos sociais a partir da colonização das diferenças, promovendo um processo de desumanização. Todavia, nesse genocídio apontado aqui, estes/as sujeitos/as buscam a todo o instante, a partir de, e em relação à diferença colonial, (r)existir através do corpo político que se expressa e se movimenta em atitudes e viragens decoloniais. Se a colonialidade gera marcadores sociais nestes sujeitos através de processos de classificação das diferenças coloniais, o (r)existir emerge da ressignificação e valorização destas diferenças. Por exemplo, o termo indígena é tornado elemento positivo, na década de 1970, pelos diversos povos originários enquanto identidade política centrada na defesa do meio ambiente e no respeito às suas formas de vida (Krenak, 2019; 2020). A negritude, seja através do Atlântico Negro6 ou da América Latina7, são espaços de valorização da identidade negra dentro da sua diversidade, reconhecendo memórias, tradições e expressões. Aqui encontramos o pensamento fronteiriço que, a partir de Mignolo (2017) e Lugones (2014), trata de saberes construídos nos interstícios da fratura colonial, ou seja, no local marcadamente violento em que se exerce a colonialidade. A viragem e a atitude decolonial constroem-se produzindo conhecimentos de (r) existência. A decolonialidade emerge destes espaços híbridos construídos a partir da violência originada por essa ferida colonial.

Construindo uma metodologia decolonial

A sistematização crítica das TCD, dentro da tríade sistema-mundo moderno/capitalista/colonial, colonialidade e decolonialidade possibilita trazer elementos que contribuem para a construção de uma metodologia decolonial. Mas no que consiste? Trata-se de refletir criticamente uma metodologia que leia a realidade social a partir da associação entre capitalismo/modernidade/colonialidade, dando visibilidade a um mundo pluriversal constituído sobre as diferenças coloniais. Por outras palavras, busca-se reconhecer como o diverso e o plural emergem a partir de relações conflituosas e violentas engendradas na tensão entre colonialidade e decolonialidade.

Para isso é preciso primeiro localizar o par privilégio-opressão, que trata de estruturar as sociedades dentro do projeto civilizacional da modernidade/capitalismo. Etimologicamente, privilégio e opressão são coisas distintas, mas que operam em conjunto, num movimento de reforço mútuo. Ao tomar as duas palavras como elementos complementares, assumimos que a existência de um privilégio pressupõe (potencial ou factualmente) a existência de uma ou várias formas de opressão. Da mesma forma que a existência de qualquer forma de opressão pressupõe a existência (potencial ou factualmente) de desigualdades que se cristalizam na forma de privilégios. Pensemos num dos aspectos das várias opressões de género: a naturalização (tomar como dado da natureza) da dominação masculina é, ao mesmo tempo, a garantia da opressão do feminino pelo masculino (feito norma) e a estabilização dos privilégios de ser homem. Noutra forma de opressão, o racismo define, ao mesmo tempo e no mesmo processo de classificação-hierarquização, o lugar e a condição do negro oprimido - pela racialização e consequente desumanização - e o lugar e a condição do branco privilegiado - pelo encobrimento da sua racialidade e a consequente universalização da sua condição à definição de uma humanidade concebida em abstrato. Nesse sentido, a estruturação binária e os seus emaranhados hierárquicos colocam-se enquanto produtos de relações sociais reguladas por formas de poder. Aqui verificamos como o racismo, a misoginia, a homofobia, a aporofobia (Cortina, 2020) e o cisheteropatriarcado se estabelecem enquanto padrões de poder colonial que se naturalizam nas sociedades. Geram-se assim loci fraturados, em processos extremamente violentos,8 que constroem as situações de privilégio e opressão dentro da sociedade.

Porém, pensar a vida social apenas a partir desse par seria incorrer no erro de perceber o indivíduo e os grupos sociais enquanto sujeitos eminentemente passivos e reprodutores. Por isso, é importante localizar o segundo aspecto analítico da metodologia decolonial. Nesse caso estamos a falar de uma constante tensão entre colonialidade e decolonialidade. A violência em que é produzido o locus fraturado não gera apenas formas de manutenção/reprodução das situações coloniais e do padrão de poder colonial, há também (r) existências e atitudes decoloniais que buscam confrontar as imposições binárias a determinados grupos sociais a partir dos eixos raça, etnia, género, sexualidade. Se por um lado temos a colonialidade do poder, do ser, do saber e do género através do privilégio, da geopolítica do conhecimento e da zona do não-ser, por outro, mesmo em situações de opressão, tem-se buscado a partir do (auto)reconhecimento a valorização e ressignificação das diferenças coloniais decorrentes de giros e atitudes decoloniais de (r) existências pautadas na ecologia política, na pluralidade epistémica e no corpo-político.

O par privilégio-opressão constitui-se assim não de uma forma dicotómica, mas fundado no conflito de uma ferida ou fratura colonial, em que se estabelece através de formas de violência o ser universal e superior - homem/branco/heterossexual/burguês/cristão - e o não-ser subalternizado e inferiorizado pelos marcadores sociais da diferença. A permanência desse par, na atualidade, assenta sobre a violenta manutenção da colonização da vida quotidiana, em constantes tensionamentos (como logicamente possíveis ou empiricamente reconhecíveis) com (r) existências movidas por mudanças e atitudes decoloniais. Dito de modo sucinto, o par privilégio-opressão concretiza-se dentro desse constante tensionamento entre colonialidade e decolonialidade em que o sujeito (individual e/ou coletivo) se encontra inserido. Mas de que forma se expressa essa tensão no sujeito? Para isso é preciso identificar o terceiro elemento analítico que são os marcadores sociais da diferença, enquanto ambivalentes e interpretativos.

Os marcadores de raça, género, classe e sexualidade estabelecidos a partir das diferenças coloniais, são marcas que são disputadas dentro dessa tensão entre colonialidade e decolonialidade. De forma simultânea, enquanto se busca colonizar a vida social impondo escalas de superioridade e inferioridade através de marcas sociais - homem/mulher; branco/negro; branco/indígena; heterossexual/homossexual; rico/pobre - tem-se proposto também a (r) existir, ao ressignificar estes marcadores enquanto elementos que caracterizam outras memórias, valores e saberes. A negritude e o indígena, por exemplo, vistos não a partir do binarismo, mas sim enquanto matrizes plurais construídas dentro de lutas sociais de (r) existência que tratam de modos de vida, tradições e vivências diferentes.

A metodologia decolonial, a partir das TCD, configura-se na proposição de ler as realidades sociais alicerçadas na reprodução do par privilégio-opressão, oriundas do locus fraturado que se fomenta através de processos de violência. Aqui o conflito estabelece-se dentro de uma tensão entre colonialidade e decolonialidade, em que os diferentes sujeitos sociais disputam as suas posições em condições assimétricas (económica e politicamente), seja reproduzindo a colonialidade, seja produzindo algo diferente dela. Nesse tensionamento, marcadores sociais expressam essas disputas, dado o caráter ambivalente e interpretativo destes, atuando quer enquanto elementos de manutenção da colonialidade, quer de (r) existência.

A pandemia que vivenciamos, especialmente esta no Brasil desde março de 2020, exemplifica bem esse cenário, pois se, de um lado, temos aqueles/as que podem ter o privilégio de ficar em casa, de viajar para o exterior para se vacinar; do outro, há pessoas que precisam de se expor a situações de completa desproteção sanitária para trabalhar e encontrar formas de sustento ou, inclusive, colocadas em condições de fome e pauperização.

Refletir sobre a pandemia no Brasil dentro da tensão entre colonialidade e decolonialidade, na leitura do par privilégio-opressão, possibilita identificar que a ferida colonial erige não apenas diferenças de classe, mas também raciais, de género e sexuais. Aqui os marcadores sociais das diferenças são tornados como mecanismos de inferiorização e geradores de desigualdades socioeconómicas exemplificados pelo perfil do grupo social mais vulnerável da nossa sociedade - mulheres, negras e pobres (Gonzalez, 2020). Esse grupo populacional está entre aqueles que mais sofrem com as taxas de feminicídio, que exercem as formas de trabalho com status mais precários (Salata, 2016), são a maioria nos presídios (Ribeiro, 2019) e são chefes de muitas das famílias ( Valeriano e Tosta, 2021) que se encontram em condições de extrema pobreza e de rua.

Nesse sentido, propomos uma metodologia decolonial que busca interpretar o sistema-mundo moderno/capitalista/colonial e o seu par privilégio-opressão identificando um constante tensionamento entre colonialidade e decolonialidade. Nessa relação dialética, fundamentada no locus fraturado colonial, a diversa sociedade encontra-se imersa nessa tensão que subjaz de forma violenta, procurando manter a colonialidade e o par privilégio-opressão por um lado, e (r)existindo através do giro e da atitude decolonial que buscam romper com o par privilégio-opressão, por outro.

É importante destacar ainda que o sujeito (individual e coletivo), assim como as suas subjetividades, ocupa um lugar central nessa proposta metodológica, pois, a partir das condições materiais e da tensão em que está inserido, é o sujeito ativo que transforma/mantém tais condições. Mas como pôr em operação essa metodologia? Para isso vamos refletir criticamente sobre o cenário pandémico brasileiro. Para esta análise trabalharemos com dados secundários, tanto a partir de uma revisão bibliográfica, quanto de elementos de pesquisas anteriores.

A pandemia no brasil

O cenário de crise no Brasil estabelece-se já a partir de 2015, com a diminuição dos rendimentos médios da população e a pioria de indicadores sociais (Barbosa, Ferreira de Souza e Soares, 2020). A pandemia, chegada ao Brasil em março de 2020, agrava esse quadro social. Todavia, é importante apontar que ao buscar compreender esta crise total9 pela via de uma metodologia decolonial constroem-se alguns desdobramentos cruciais. O primeiro deles revela que a atenção dada ao par privilégio-opressão nos permite identificar que esta crise não se espalha de forma homogénea na sociedade, e sim de forma a acentuar assimetrias previamente existentes. Nesse sentido, o par converge com outras análises que identificam como o estado de crise tem aprofundado as formas de desigualdade social e os índices de pobreza existentes. Segundo Neri (2021), o índice de Gini saltou de 0,6279 em 2019 para 0,640 no segundo trimestre de 2021. A proporção de pessoas com renda correspondente à linha da pobreza (261 reais por pessoa) antes da pandemia era de 10,97% (2019), passando para 16,1% no primeiro trimestre de 2021, após a suspensão do auxílio emergencial pago pelo governo federal. Geraram-se aqui 25 milhões a mais de pessoas em condições de pobreza. Depois, mesmo com a retomada limitada do pagamento do auxílio a partir de abril de 2021, o número de pessoas em situação de pobreza é 27,7 milhões, uma percentagem de 12,98% da população brasileira - um aumento em relação aos dados anteriores à pandemia. Outro número é a taxa de desemprego da metade mais pobre da população, que durante a pandemia subiu de 26,55% para 35,98%. Temos, portanto, um cenário de profundo agravamento do quadro social, mas fortemente baseado no par privilégio-opressão, visto que “[…] na metade mais pobre (a) perda de renda é de -21,5%. A queda de renda entre os 10% mais ricos foi de -7,16%, menos de ⅓ da queda de renda observada na metade mais pobre” (Neri, 2021, p. 6).

Em segundo lugar, esse par privilégio-opressão estabelece-se através de interações de reforço mútuo entre formas de classificação social. De acordo com Pedro Ferreira de Souza, identifica-se como a diminuição do rendimento médio entre pessoas negras é maior que entre pessoas brancas.

Assim, enquanto nos períodos anteriores a soma das remunerações caiu entre 5% e 8%, sem diferenças substantivas por cor ou raça, em 2020, a massa salarial dos brancos caiu 19%, e a dos negros despencou ainda mais (23%). […] os negros foram muito mais afetados por demissões e pela eliminação de postos de trabalho, que provocaram queda de 12% da massa salarial entre trimestres, percentual cerca de duas vezes maior do que entre brancos. [Souza, 2021, pp. 38-39]

Outro dado relevante sobre a interseção da desigualdade de classe e raça está na presença de um número maior de casos e óbitos por Covid-19 entre a população que se reconhece enquanto negra. Em levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres, negros e pobres são os mais afetados pela pandemia de Covid-19.10 A cada dez pessoas que relatam mais de um sintoma da Covid-19, sete são pretas ou pardas. É preciso ainda ressaltar a incompletude desses dados, visto o não preenchimento dos campos cor/raça em alguns boletins epidemiológicos. Diante disso, é possível afirmar que as desigualdades interseccionais no Brasil são agravadas pela pandemia, aprofundando um corte racial e de classe.

Além disso, é preciso considerar com igual importância a intersecção com o marcador social de género, visto que entre as mulheres a pandemia resultou num aumento significativo da violência doméstica, das demandas por atividades do cuidado, dos riscos de saúde, dada a sua maior presença na linha da frente do enfrentamento da pandemia, além do acúmulo das jornadas de trabalho (remunerado e não-remunerado). Ao considerarmos esse aspecto do agravamento do quadro social brasileiro durante a pandemia, é preciso tratarmos especificamente de um subgrupo, as trabalhadoras domésticas. Segundo Valeriano e Tosta (2021), dados da PNAD11 referentes ao último trimestre de 2020 revelam que pouco mais de 90% no trabalho doméstico remunerado são mulheres, sendo que pouco mais de 60% se reconhecem enquanto negras - representando 18% das ocupações entre as mulheres negras. Outro dado relevante é que apenas 28% destas trabalhadoras estão formalizadas no mercado de trabalho (Tokarski e Pinheiro, 2021). Tais dados confirmam um agravamento significativo e crescente nos indicadores de vulnerabilidade social para um grupo social, como reflexo das desigualdades interseccionais existentes no Brasil.12

Sobre o trabalho doméstico, é importante ressaltar como esta atividade continua a não ser vista enquanto trabalho, especialmente no caso das mulheres, para quem este tipo de atividade é essencializado como uma aptidão natural. Aqui entramos na dimensão do cuidado e a imputação da matriz binária sexual nas relações trabalhistas. A objetificação das mulheres leva a uma exploração dos seus corpos, responsabilizando-a pelo cuidado da espécie. Dentro do agravamento da pandemia, o cuidar torna-se uma atividade essencial e parte da linha de frente do enfrentamento à Covid-19 (Valeriano e Tosta, 2021). Nesse sentido, as trabalhadoras domésticas vão ser coagidas a permanecer em seus postos em condições sanitárias precárias.

A primeira morte, contudo, aconteceu em 17 de março, na zona sul de São Paulo, um homem que trabalhava como porteiro, no bairro Paraíso. No Rio de Janeiro, a primeira morte por Covid-19 registrada foi de uma trabalhadora doméstica que trabalhava em uma residência no bairro Leblon e contraiu a doença de sua empregadora, que também havia recém-regressado de viagem à Itália (Pinheiro, Tokarski e Vasconcelos, 2020, s/p.)

Ademais, soma-se a essa precarização do trabalho doméstico remunerado o aumento do trabalho não-remunerado, visto que escolas, creches e serviços de acolhimento de idosos foram fechados durante a pandemia. Segundo Valeriano e Tosta (2021), dados do PNAD de 2019 apontam que a dupla (ou tripla) jornada de trabalho das mulheres é em média de 21,4 horas semanais, o dobro em relação ao género masculino. Destas, as sujeitas em condição de vulnerabilidade social atuam em média 24,1 h semanais em afazeres domésticos e de cuidado. É preciso destacar ainda que o cuidado não remunerado trouxe riscos sanitários consideráveis, pois muitos hospitais estavam com capacidades máximas e muitos outros precisaram permanecer em casa. Todavia o cuidado especializado para a Covid-19 aumentou a exigência da permanência destas trabalhadoras também na atividade remunerada.

[…] os sindicatos das trabalhadoras domésticas e a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) começaram a relatar um número crescente de denúncias de violação de direitos fundamentais. As denúncias contêm relatos de restrição de mobilidade, cárcere privado, além de jornadas exaustivas e do acúmulo de funções para além do acordado contratualmente, constituindo-se em uma terceira e grave situação de aumento da vulnerabilidade decorrente da pandemia de Covid-19. [Valeriano e Tosta, 2021, p. 60]

Assim, ler a realidade brasileira pandémica a partir do par privilégio-opressão revela um aprofundamento da desigualdade interseccional a partir da permanência da colonialidade do poder. Aqui a matriz de poder colonial racializa e genderiza as frações de classe mais pobres, revelando uma sociedade em que as desigualdades são naturalizadas através de processos de essencialização de categorias socioculturais que se transformam em poderosos mecanismos de classificação e hierarquização. Podemos ir mais além, afirmando que esta estruturação social se constitui a partir do projeto nacional da democracia racial que é construído por uma pequena parcela da sociedade que trata de ocultar o racismo e o cisheterepatriarcado na ideia de nação (Portela Jr. e Lira, 2022).

Por outro lado, orientados por uma metodologia decolonial, observar os marcadores sociais - classe, raça e género - apenas pelo prisma da colonialidade não revela a realidade social na sua totalidade. É preciso também identificar como tais aspectos das diferenças coloniais são ressignificados. Um dos possíveis caminhos para potencializar essa (r) existência é a esfera estatal, a partir da produção de políticas económicas com impactos sociais. A decolonialidade traduz-se aqui nas condições de possibilidade para que grupos e coletivos consigam ressignificar os marcadores sociais que lhes atravessam e se identifiquem e se afirmem enquanto sujeitos, mesmo em situações de vulnerabilidade social. A partir de grupos de pressão construiu-se o auxílio emergencial, enquanto política económica com impactos sociais focalizada em grupos vulneráveis. Nesse sentido, cabe retomarmos e aprofundarmos os elementos que compõem o Auxílio Emergencial.

Embora temporário, o Auxílio Emergencial é um marco para as transferências sociais não contributivas no país, pois alcançou cerca de 67 milhões de beneficiários em mais de 40 milhões de famílias, compostas por quase 130 milhões de pessoas (referente as duas primeiras parcelas no valor de R$ 600,00). Em outras palavras, mais de 60% dos brasileiros beneficiaram-se, direta ou indiretamente [Paiva et al., 2021. p. 8]

Segundo Neri (2021), essa política de transferência fez com que 4 milhões de pessoas saíssem da condição de pobreza, quando definida exclusivamente por dados da renda. Pedro de Souza (2021) vai identificar também o impacto que essa política teve na melhoria dos rendimentos de sujeitos negros, visto que são o grupo social que mais sofre o impacto da crise pandémica. Portanto, essa política de transferência de renda, embora de curtíssima duração e delineada (em relação à cobertura e ao valor de repasse) em meio a um conturbado processo de disputa política entre os poderes executivo e legislativo, tratou de imprimir efeitos imediatos sobre a desigualdade interseccional brasileira. Entretanto, e aqui recorremos ao enfoque da tensão entre colonialidade e decolonialidade, refletir sobre os sujeitos beneficiados por essa política não significa confirmar, em nenhuma dimensão reconhecível, um efeito mais duradouro de emancipação social. É preciso compreender como esse tensionamento, de manutenção da colonialidade do poder e das condições de (r) existência às opressões, se conforma dentro de um locus fraturado calcado no conflito e na violência - simbólica e/ou física. Os sujeitos que receberam o auxílio emergencial, por um lado, reuniram rendimentos que permitiram comprar elementos básicos para a sua existência, afastando momentaneamente o fantasma da fome e da miséria, mas, por outro, a crise estrutural do capitalismo e a pressão constante pela manutenção das taxas de lucro e acumulação ao nível global (com os seus reflexos na economia local) acentuam o caráter precário e flagrantemente insuficiente dessa política para romper com as amarras da colonização da vida social.

A tensão entre colonialidade e decolonialidade possibilita que compreendamos os indivíduos e os grupos beneficiados por essa política, incluindo a forma como eles são atravessados e significados por marcadores sociais, enquanto sujeitos que buscam (r)existir diante da negação de direitos (o que inclui o próprio direito básico à sobrevivência) por parte da estrutura desigual do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial. Se a política de transferência de renda possui elementos que a caracterizam enquanto mecanismo de manutenção da colonialidade, em que sujeitos em condições paupérrimas se mantêm dentro do ciclo de reprodução do capitalismo - continuam a ter poder de consumo para (re)produzir capital -, essa mesma política caracteriza-se por outros elementos de decolonialidade, dada a urgência em garantir rendimentos para que estas pessoas possam sobreviver e ter condições mínimas de sustento.

Esse é um exemplo extremo - tanto pela notória fragilidade dessa política pública, quanto pelas situações limítrofes em que ela incide -, que nos permite perceber, através da adoção de um olhar eminentemente relacional e multinível que uma metodologia decolonial pode proporcionar, que a colonialidade, quando observada na escala dos processos quotidianos de reprodução da vida social guardam uma tensão permanente entre manutenção e superação de desigualdades, entre anulação e potencialização de energias sociais, entre reafirmação e ressignificação de categorias sociais e mecanismos de hierarquização. Relembramos aqui as palavras de María Lugones, quando afirma que:

Quando penso em mim mesma como uma teórica da resistência, não é porque penso na resistência como o fim ou a meta da luta política, mas sim como seu começo, sua possibilidade. Estou interessada na proliferação relacional subjetiva/intersubjetiva de libertação, tanto adaptativa e criativamente opositiva. A resistência é a tensão entre a sujeitificação (a formação/informação do sujeito) e a subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento necessária para que a relação opressão →← resistência seja uma relação ativa, sem apelação ao sentido de agenciamento máximo do sujeito moderno. [Lugones 2014, p. 940]

Portanto, ao propormos uma leitura decolonial das formas de estruturação social que se reproduzem por meio da cristalização de privilégios e opressões, enfatizamos a necessidade premente de darmos visibilidade às condições de possibilidade (ainda que mínimas) para a emergência de (r) existências nas situações mais adversas, nos contextos mais improváveis. É preciso conhecer (e tornar conhecidas) experiências de criação de processos de produção económica que transgridem os padrões capitalistas de exploração e acumulação, mesmo nos contextos em que a tendência desumanizante do capitalismo opera de forma mais aguda, nas suas franjas. Também se faz necessário fortalecer e tornar mais e mais evidentes as formas de relação de género e de sexualidade que rejeitam e escapam ao aprisionamento de divisões sociais essencializadas, mesmo em contextos em que os pilares do cisheteropatriarcado nunca foram significativamente abalados.

Considerações finais

A metodologia decolonial, a partir da sistematização das TCD, demonstra grande potencial enquanto ferramenta teórico-analítica para ajudar a compreender realidades pautadas em desigualdades interseccionais. Buscamos sistematizar alguns princípios teórico-metodológicos oriundos de experiências e saberes que não romantizam a modernidade/capitalismo e desnudam o seu lado oculto, a colonialidade (Mignolo e Walsh, 2018). Identificar que os grupos sociais se encontram numa relação dialética com a tensão entre colonialidade e decolonialidade leva-nos a sustentar que a totalidade da vida social está alicerçada em relações sociais conflituosas em que as alternativas de superação das formas históricas de opressão que se apresentam não se enquadram, nem se restringem, a normativas fechadas e estáticas. As assimetrias de poder precisam de ser consideradas, mas não se pode deixar escapar as dimensões de (r) existência, enquanto possibilidades de um agenciamento mínimo dos sujeitos que emergem do locus fraturado criado pela experiência colonial.

Esperamos então que a reflexão aqui esboçada possa contribuir para fornecer: um mapeamento das teorias críticas decoloniais e seus principais diálogos com outras perspetivas críticas contemporâneas; uma ferramenta analítica, delineada pelo foco prioritário da crítica, colocado na tensão colonialidade-decolonialidade, munida de elementos teórico-epistémicos consistentes; uma análise ampliada do par privilégio-opressão, dando destaque ao conflito entre a permanência das desigualdades interseccionais e a (r) existência das lutas sociais contra as formas de opressão que se originam da matriz moderna, capitalista e colonial de poder.

Ao propormos uma forma de leitura da realidade social calcada nos aportes conceptuais das TCD, reconhecemos a necessidade de continuar a identificar os mecanismos de reprodução da colonialidade enquanto atividade crítica fundamental. Continuar apontando desde os seus aspectos mais evidentes e abrangentes, até às suas dimensões mais intangíveis. Porém, ousamos também ir mais adiante. Defendemos a ideia de que toda a possibilidade de crítica à colonialidade, principalmente no que diz respeito às formas de ação e (r) existência contra a reprodução de uma realidade colonial que persiste, não deve ser buscada em algum lugar que transcenda a própria condição histórica que alicerça uma ordem social colonial. Sustentamos o argumento de que é do próprio locus fraturado, que constituiu vidas e realidades colonizadas, que surgem experiências e existências que contrariam a própria reprodução da colonialidade. Com isso ensaiamos um primeiro passo no caminho de enxergarmos mais adiante, na própria experiência da fratura de práticas sociais de (r) existência. É necessário e urgente enxergar além de tudo aquilo que repõe hierarquias, naturaliza e normaliza opressões e subordinações, a produção de movimentos que questionam e confrontam o apagamento e o genocídio.

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Notas

1 É o tipo de relação que se estabelece entre colonialidade e decolonialidade (uma tensão) quando observamos a realidade social pelo prisma da reprodução ou resistência (portanto, pela tensão) contra a existência do par privilégio-opressão.

2 Trata-se das ações de resistir e existir, gerando a (r) existência.

3 Destaque para: Anibal Quijano, Enrique Dussel, Edgardo Lander, Ramon Grosfoguel, Santiago Castro-Gomez, Catherine Walsh (Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007).

4 Trata-se dos países centrais como França, Inglaterra, Alemanha e posteriormente EUA. Estes exercem uma posição central na constituição do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial reproduzindo as formas de colonialidade.

5 Este Sul não é geográfico, trata-se de regiões e países que se encontram na periferia do sistema-mundo moderno/capitalista/colonial, ou seja, espaços que se encontram sob uma permanente colonialidade da vida social.

6 A partir de Paul Gilroy (1993) podemos refletir como a diáspora forçada dos povos originários do atual continente africano, que num processo de escravização e desumanização impulsionou a constituição de uma identidade negra diversa ressignificada por tradições, memórias e valores construídos como forma de (r) existência à opressão/violência/exploração.

7 Lélia de Almeida Gonzalez (2020) identifica que a região da América Latina se constitui a partir de uma tripla discriminação em que mulheres, negras/ameríndias e pobres permanecem, da colonização até os dias atuais, nas franjas mais vulneráveis da sociedade. E como forma de (r)existir, a autora brasileira aponta, em diálogo com os Movimentos Negros, a importância de valorizar-se os elementos socioculturais de matrizes africanas e a admissão da permanência de um racismo dentro da nossa sociedade.

8 Como o genocídio e a desumanização dos povos originários.

9 Aqui é preciso considerar que além da crise sanitária na qual estamos imersos em decorrência da pandemia, soma-se também a crise econômica, política e social, que no caso brasileiro, instala-se em definitivo a partir do impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Denominamos esse contexto de crise total.

10 Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/32414-homens-pretos-e-pardos-morreram-mais-de-covid-do-que-brancos-em-2020>. Acessado em 05 de dezembro de 2021.

11 Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

12 A ideia de desigualdades interseccionais indica que toda vivência (individual ou de grupo) sofre a influência combinada e simultânea de diversos marcadores que, ao funcionarem de forma imbricada (se reforçando mutuamente), compõem uma matriz de dominação e opressão que aprofunda e oculta formas cruzadas de desigualdade. Sobre as relações entre o conceito de interseccionalidade e desigualdades sociais ver Medeiros (2019).

Recebido: 31 de Dezembro de 2021; Aceito: 04 de Setembro de 2022

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