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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.247 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023247.10 

Recensão

Recensão “The Warehouse. Workers and Robots at Amazon

1. Instituto Universitário Europeu » Via della Badia dei Roccettini, 9 - 50014 Fiesole FI, Itália. tiago.vieira@eui.eu

Delfanti, Alessandro. ., The Warehouse. Workers and Robots at Amazon. ,, Pluto Books, ,, Londres: ,, 2021. ,, 179 ppp. . ISBN, ISBN: 9780745342160.


Em The Warehouse. Workers and robots at Amazon [O Armazém. Trabalhadores e robôs na Amazon]1, Alessandro Delfanti dá-nos a conhecer como ninguém o fez até agora os meandros discretos da livraria digital que, em duas décadas apenas, se tornou num dos principais grupos económicos do mundo. Nesta viagem, que transporta o/a leitor(a) de Piacenza ao Alabama, passando por Berlim, Dublin, Las Vegas e Toronto, entre outras paragens, o autor oferece-nos uma resenha das várias dimensões deste autêntico império económico em ascensão - dos serviços digitais oferecidos pela joia da coroa do grupo (a Amazon Web Services) às instalações dos centros logísticos de onde milhões de encomendas saem diariamente.

Sem prejuízo desta abordagem caleidoscópica às várias alavancas que catapultaram o dono e CEO da Amazon, Jeff Bezos, a tornar-se o homem mais rico do mundo em plena pandemia COVID-19, Delfanti centra a sua análise no espaço do armazém. O autor justifica a sua escolha através da seguinte linha de pensamento:

“À medida que o comércio digital se converte na forma de consumo dominante, o armazém ultrapassa o centro comercial. E então o armazém torna-se, hoje, a linha da frente do capitalismo contemporâneo, tanto ideológica como organizativa e politicamente. A batalha atual pelo futuro do trabalho está a ser feita de forma crescente nos armazéns suburbanos. Nos armazéns da Amazon, em particular.” [p. 17]

Para quem viva em Portugal, ou qualquer outro país onde não existam armazéns da Amazon, esta afirmação poderá ser lida com natural ceticismo. No entanto, venham ou não a existir alguma vez instalações da empresa no país, é legítimo assumir que encontremos crescentemente locais de trabalho que, no setor da logística e fora dele, procuram mimetizar as práticas da Amazon - como, de resto, é notório, entre outras obras, n’A Produção do Mundo, livro organizado por Andrea Pavoni e Franco Tomassoni (2022). Por isso, os dados apresentados e as conclusões tiradas por Delfanti merecem leitura atenta de toda a comunidade científica que se dedica ao estudo das relações laborais. Neste quadro, quatro pontos merecem especial destaque.

1) A discussão sobre o futuro do trabalho é muito mais do que um debate sobre se os robôs substituirão os trabalhadores humanos ou não. Ecoando o que Phoebe Moore e Jamie Woodcock (2021) afirmam em Augmented Exploitation [Exploração Aumentada], Delfanti revela-nos como o desenvolvimento de tecnologias de ponta pela Amazon está muito mais centrado na ampliação da capacidade produtiva dos seres humanos do que necessariamente na sua completa substituição, pelo menos a curto e médio prazo. Esta observação convoca-nos a recentrar a discussão do futuro do trabalho nas consequências que a introdução de tecnologias como a realidade aumentada e a realidade virtual podem vir a ter, nomeada e respetivamente: a) na forma como permitem a intensificação dos ritmos de trabalho, conduzindo ao aumento da prevalência de doenças profissionais, tanto físicas como mentais; b) na deslocação de trabalho para outras latitudes, a partir de onde se poderão - por salários bem mais baixos - executar remotamente tarefas de natureza logística, como o movimento ou (des)empacotamento de objetos.

2) Na esteira do “capitalismo de vigilância” de Shoshana Zuboff (2019), os armazéns da Amazon constituem-se como viva demonstração da não-neutralidade da aplicação do desenvolvimento tecnológico. Para lá da supracitada intensificação dos ritmos de trabalho - também ela parcial, já que os lucros da empresa são desigualmente distribuídos -, a tecnologia está ainda ao serviço do controlo e vigilância dos trabalhadores. Geolocalização, gravação de voz ou deteção de emoções, entre outros, são recursos da empresa para (per)seguir movimentos, ritmos, conversas e comportamentos dentro das instalações dos seus armazéns. Tais elementos sobre os trabalhadores são convertidos em dados e processados por mecanismos automatizados (vulgo, algoritmos), por sua vez encarregues de decidir sobre questões tão centrais como a continuidade ou não de um trabalhador nos quadros da empresa.

A constituição desta forma de “escravização maquinal” (Lazzarato, 2014), no entanto, não parece significar o fim dos gerentes intermédios. Ainda que seja admissível que a robotização esteja a contribuir para a redução do seu contingente (Dixon, Hong e Wu, 2021), os dados apresentados por Delfanti parecem apontar sobretudo na direção da recalibração do papel do gerente, agora encarregue primordialmente de motivar os seus subordinados a atingirem os objetivos da empresa e a seguirem acriticamente (tanto quanto possível) as instruções fornecidas pelos equipamentos eletrónicos que são forçados a usar no seu quotidiano.

À semelhança do observado no trabalho por plataformas digitais, nos armazéns da Amazon o “controlo normativo” (Gandini, 2019) do contingente de trabalhadores apresenta-se entrelaçado com as tradicionais formas de controlo burocrático. Em síntese, na Amazon não só a realidade é aumentada como o poder das chefias intermédias se traduz naquilo a que, num artigo sobre o mesmo tema, Delfanti chama “despotismo aumentado” (Delfanti, 2021).

3) O controlo exercido sobre os trabalhadores excede os aspetos estritamente relacionados com o processo laboral da empresa. Segundo o autor e a realidade que apresenta, este controlo é sintomático da aversão da Amazon à organização dos trabalhadores. Ao elencar os esforços perversamente criativos dos responsáveis dos armazéns da Amazon à volta do mundo para sabotar a intervenção de sindicatos, Delfanti denuncia como neste caso - tal como em tantos outros - a glorificação do mercado livre assenta na despudorada opressão dos trabalhadores. Sem romantismos, o autor ilustra como as estratégias da empresa têm sido parcialmente eficazes no impedimento da intervenção sindical tradicional. Não obstante, e pese embora todos os condicionalismos, Delfanti dá-nos também a conhecer como diferentes formas de resistência, ora individual, ora coletiva, foram - particularmente no pico da pandemia - forjando redes de solidariedade e cooperação entre trabalhadores dentro de cada armazém e entre armazéns à escala mundial. Este é o ponto menos desenvolvido no livro, mas fica claro como esta é uma avenida profícua para futuros trabalhos de investigação. Com efeito, esta trajetória é já explorada por outros autores - por exemplo, Kassem (2022) - e, em virtude da constituição de estruturas sindicais em vários armazéns nos EUA e das múltiplas lutas dos trabalhadores do setor da logística um pouco por todo o mundo, promete manter atualidade.

4) Por último, mas não menos importante: a precariedade laboral é um elemento central do ADN da Amazon - é, em simultâneo, a principal causa e consequência das más práticas da empresa. De forma a garantir um contingente de mão de obra permanentemente maleável às suas necessidades, minimizando riscos de excesso ou escassez, a Amazon explora os limites da legislação laboral que cada contexto lhe oferece para contratar e despedir. Apesar das diferenças nacionais, isso significa que, em todas as instâncias em que a empresa opera, conta com instrumentos que lhe permitem dispor dos trabalhadores a seu bel-prazer, ainda que isso implique sujeitar milhares de pessoas por todo o mundo a rendimentos incertos, a pernoitarem nos próprios carros à porta das instalações da empresa ou ainda a trabalharem até à exaustão física e psicológica.

Como ilustrado por Delfanti, para os trabalhadores, que não perspetivam nada melhor, não resta alternativa a não ser engrossar o exército de reserva que assegura a elasticidade da operação da empresa ao longo do ano, ao sabor da procura dos clientes. Ainda neste contexto, a derradeira prova de que a temporalidade é central para a Amazon encontra-se na política de incentivos - económicos ou dedicados à reconversão ocupacional - para que os trabalhadores mais antigos a abandonem. Com esta política, é possível à Amazon libertar-se dos mais lentos, dos que padecem de lesões decorrentes do desgaste de anos de tarefas ou ainda dos que podem supor que a estabilidade lhes permite, entre outras ideias, sindicalizarem-se. Tal leitura convida a que se situe o crescimento da Amazon no contexto do desenvolvimento capitalista contemporâneo, particularmente no quadro da desregulação laboral trazida pela emergência do neoliberalismo enquanto contributo decisivo para a proliferação quantitativa e qualitativa da precariedade pelo mundo (Standing, 2011).

Em suma, The Warehouse, de Alessandro Delfanti, é uma obra que merece ser estudada e divulgada. Ao longo das suas páginas encontramos, muitas vezes pela voz dos próprios trabalhadores, entrevistados pelo autor, poderosos testemunhos da realidade vivida nos armazéns da Amazon. Tão importante como isso, a reflexão feita pelo autor constitui não apenas um relevante retrato do tempo que vivemos, mas sobretudo um gritante aviso sobre os caminhos por onde a transformação das relações de trabalho nos transporta, de forma subtil, mas inequívoca.

Referências bibliográficas

DELFANTI, A. (2021), “Machinic dispossession and augmented despotism: Digital work in an Amazon warehouse”.New Media & Society, 23(1), pp. 39-55. [ Links ]

DIXON, J., HONG, B., WU, L. (2021), F. (2019), “The robot revolution: Managerial and employment consequences for firms”.Management Science, 67(9), pp. 5586-5605. [ Links ]

GANDINI, A. (2019), “Labour process theory and the gig economy”.Human Relations, 72(6), pp. 1039-1056. [ Links ]

KASSEM, S. (2022), Work and Alienation in the Platform Economy, Bristol, Bristol University Press. [ Links ]

LAZZARATO, M. (2014), Signs and machines: Capitalism and the production of subjectivity, Los Angeles, Semiotext(e). [ Links ]

MOORE, P. V., WOODCOCK, J. (2021), Augmented Exploitation: Artificial Intelligence, Automation, and Work, Londres, Pluto Press. [ Links ]

PAVONI, A., TOMASSONI, F. (2022), A Produção do Mundo, Lisboa, Outro Modo. [ Links ]

STANDING, F. (2011), The Precariat: the New Dangerous Class, Londres, Bloomsbury Academic. [ Links ]

ZUBOFF, S. (2019), The Age of Surveillance Capitalism: the Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, Londres, Profile Books. [ Links ]

Notas

1 Todas as traduções são da inteira responsabilidade do autor desta recensão.

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