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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.247 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023247.11 

Resenção

Recensão A Sagração da Autenticidade

1. Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa » Palma de Cima - 1649-023 Lisboa, Portugal. ncaldeira@ucp.pt

Lipovetsky, Gilles. ,, A Sagração da Autenticidade. ,, Coimbra: ,, Edições 70, ,, 2022. ,, 448 ppp. . ISBN, ISBN: 9789724425948.


O mais recente livro do filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky, A Sagração da Autenticidade1, publicado em Portugal em 2022 pela Edições 70 e traduzido por Inês Guerreiro, não foge ao estilo acutilante que percorre as suas reputadas análises sociais. Professor agregado de Filosofia na Universidade de Grenoble (França), Doutor Honoris Causa pela Universidade de Sherbrook (Canadá) e pela Universidade de Aveiro (Portugal), cunhou o termo “hipermodernidade” para analisar as lógicas fundamentais do mercado, da tecnociência e da cultura individualista democrática.

Esta é uma obra de relevância transversal para a compreensão das complexidades atuais no contexto das áreas de direito, ciência política, ciências da comunicação, estudos culturais, antropologia, sociologia, filosofia, psicologia, mas também de gestão, economia, engenharias e das ciências naturais, uma vez que, como recorda o autor, as respostas credíveis para os grandes desafios do século dependem da concertação das várias inteligências coletivas.

Na introdução do livro, a autenticidade é apresentada como a febre da nossa época, infiltrada nos costumes como uma preocupação consensual da maioria, nos domínios social, individual, económico, mediático, familiar, escolar, religioso e político. A incerteza e a suspeição que caracterizam a contemporaneidade favorecem a disseminação da ética da autenticidade, que legitima a procura da autodeterminação individual de acordo com o princípio do be yourself. O livro pretende demonstrar como o ideal da autenticidade foi reconfigurado desde a modernidade democrática e individualista até à atualidade hipermoderna. Pretende também analisar os efeitos multidimensionais desta reconfiguração e esboçar o retrato do Homo authenticus.

O autor começa por assinalar que quanto mais a autenticidade é vista de forma consensual pela maioria, enquanto ideal e direito subjetivo fundamental, mais perde o interesse teórico que obteve entre pensadores consagrados, nomeadamente entre os existencialistas. Alerta que o virtuosismo atribuído à autenticidade não representa a solução efetiva para os grandes desafios de saúde, climáticos, demográficos e socio políticos da nossa época (Lipovetsky, 2022, pp. 9-20).

O livro divide-se em duas partes e está estruturado em doze capítulos, com vários subcapítulos curtos, ao longo de 448 páginas. A primeira parte, “Ser Eu: As metamorfoses de um ideal” inclui os seis primeiros capítulos. O primeiro aborda as três eras da autenticidade, que, enquanto paradigma, surge com Rousseau e o iluminismo europeu, tendo passado por uma mudança mais orientada para o expressivismo no século XVIII. Durante o século XIX e na primeira metade do século XX são referidos vários autores europeus (Kierkegaard, Stuart Mill, Nietzsche, Ibsen, Wilde, Heidegger, Sartre) e norte-americanos (os transcendentalistas) que se tornaram “apóstolos da ética da autenticidade, apelando a uma vida pessoal liberta do conformismo, da moral tradicional, dos valores heterónomos do passado” (Lipovetsky, 2022, p. 37). Quer a democracia liberal, quer o apelo a uma ética pessoal exigente, que liberte o individuo das pressões uniformizadoras das multidões, estiveram na base dos dois paradigmas que a modernidade criou sobre o eu autêntico. O primeiro implica a expressão psicológica da autenticidade pessoal - ser verdadeiro consigo próprio através da introspeção -, movimento que se estendeu à psicanálise e ao movimento atual do potencial humano. O segundo defende que o eu autêntico deve empreender esforços (heroicos) para se inventar a si próprio (Lipovetsky, 2022, pp. 44-45).

Nos restantes capítulos da primeira parte, o autor explica como a autenticidade deixou de ser um símbolo inconformista, associado às contraculturas rebeldes dos anos 60 e 70 do século XX, para se normalizar e institucionalizar. As exigências de autenticidade passam, na hipermodernidade, a ser vistas como um direito consensual da maioria em todas as áreas da existência. Passou-se ao estado cool da autenticidade, estimulado por instituições e práticas psíquicas e espirituais, pelos coaches e outros percursores da psicologia positiva. Mas à “medida que o princípio da autenticidade é promovido, o não conformismo esvazia-se da sua substância” (Lipovetsky, 2022, p. 69).

O autor defende que a era digital não é a principal responsável pelas novas subjetividades que alteraram as relações humanas, nem vai eliminar a procura por contacto físico; pelo contrário, “a ética da autorrealização é uma cultura que legitima e favorece a sensualização, a erotização, a hedonização da existência” (Lipovetsky, 2022, p. 116).

A crítica sobre o “novo espírito feminista” associado ao movimento #MeToo, que “desenvolve uma cultura de ressentimento e da vitimização”, reforçando o estereótipo de uma “feminilidade fraca” incapaz de se defender por si mesma e de forma autónoma da agressividade masculina, pretende confrontar o movimento feminista com os seus excessos e contradições internas (p. 125). Crítico do politicamente correto, que produz “mimetismo e conformismo ideológico” (p. 126), reconhece que, apesar de tudo, no plano social o #MeToo é “um instrumento que faz recuar os estereótipos e evoluir a emancipação feminina” (p. 127). Conhecido como adepto do capitalismo, uma vez que “não temos nada para pôr em seu lugar” (Queirós, 2019), algumas das perspetivas controversas de Lipovetsky são contestadas pela filósofa americana Nancy Fraser (2013, 2020), que refere que as armadilhas das narrativas neoliberais sobre o empoderamento feminino (força pessoal e meritocracia) unem, convenientemente, o sonho da emancipação das mulheres ao motor da acumulação de capital (Fraser, 2013, 2020).

Lamentando a perda da “dimensão corajosa” da autenticidade (p. 145), o autor tece também duras críticas aos movimentos identitários “radicais” antirracistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, que alimentam “um pensamento sectário e separatista” responsável pela cancel culture. Caracteriza a atual cultura da autenticidade subjetiva “na era do cibernarcisismo” (p. 170) como “espetáculo de massas” (p. 174) e um “divertimento comercializado” (p. 178), traçando um “diagnóstico negro” (p. 198) acerca do fraco e superficial envolvimento do Homo authenticus com o trabalho, com a arte e com a cidadania.

Nos seis capítulos da segunda parte do livro, “Alargamento dos territórios da autenticidade”, Lipovetsky aprofunda e fundamenta a sua análise da “fase consumista da autenticidade” (p. 242), que contaminou a “moda e a beleza” (p. 273), a antropologia e a “sociologia do turismo” (p. 299), a democratização do interesse concedido à herança “patrimonial” (p. 342) e as lideranças empresariais (p. 376).

Atualmente, os influencers “jogam a cartada da proximidade e da autenticidade” para se posicionarem como não sendo profissionais, logo mais espontâneos, e alargar, de forma não menos estratégica do que a das agências de comunicação, o seu poder de influenciar a opinião pública (p. 283).

É levantada a questão sobre “até onde se estendem o domínio e o espírito da Disney?” Citando Jean Baudrillard (1976, p. 114)2, o autor afirma que no mundo da “hiper-realidade” vivemos numa “alucinação estética da realidade”, com públicos atraídos por “cópias do real” e “jogos de ilusões” (p. 320). No entanto, opõe-se às teses que anunciam o “fim do princípio da realidade” caracterizando-as como “afirmações melancólicas infundadas” (p. 323). As experiências virtuais não preenchem a procura pela “existência corporal do real” (p. 324).

No universo empresarial, o ideal de autenticidade é apresentado como a chave de todos os desafios de liderança e a solução para a relação das marcas com os consumidores. A autenticidade do líder passa a ser panaceia para a “mobilização do pessoal” (p. 377), e Lipovetsky apresenta os quatro traços fundamentais do líder autêntico (pp. 378-379). Mas explica, logo de seguida, porque é que a autenticidade nem sempre é uma qualidade positiva: “Não se pode dizer toda a verdade, algumas verdades devem ser evitadas muito simplesmente porque ameaçam as boas relações humanas” (p. 381). Uma certa dose de hipocrisia é apresentada como sendo tão necessária à vida social quanto ao trabalho empresarial, porque ameniza as interações humanas e reduz os comportamentos agressivos.

Nesta perspetiva, mais do que ser sempre fiel a si próprio, é necessária uma abordagem inteligente à transparência, que admita fronteiras claras e rejeições: “Contra a religião da autenticidade, importa, mais uma vez, reabilitar o poder e a necessidade das máscaras, da aparência, da astúcia, do segredo, da dissimulação” (p. 385).

O autor reserva o último capítulo do livro para reflexões em torno da necessidade de uma “autenticidade inteligente” (p. 412), afirmando que: “não há caminhos de salvação que não políticas inteligentes, o investimento na razão, na inovação e nos recursos da inteligência coletiva” (p. 417). São apresentados os efeitos perniciosos da cultura da autenticidade na educação formal e parental (pp. 418-423), na desconfiança persistente entre cidadãos e responsáveis políticos (p. 424) e na criação de oportunidades para a exploração da “autenticidade tóxica” por populistas (p. 432). Lipovetsky estabelece as ligações entre os pressupostos da moralidade autêntica e a retórica populista, recordando que: “não há populismo sem a reivindicação baseada na autenticidade do partido e do seu líder” (pp. 428-429).

O livro termina com o reconhecimento das transformações profundas que a ética da autenticidade gerou “na maneira de ser dos indivíduos, na sua exigência de ser eu e de obter o reconhecimento social”, transformando-se num agente importante de mudança (pp. 437-438). Mas rejeita de forma veemente que ela possa ser a “fórmula mágica” para enfrentarmos os desafios que são o “desastre ecológico, o populismo, as desigualdades sociais e a crise da educação”, afirmando que temos de “desabsolutizar o ideal de autenticidade” (p. 438). A sabedoria de que precisamos “consiste em não esperar da autenticidade mais do que ela pode dar” (p. 439).

Este livro mantém a coerência com a restante obra de Gilles Lipovetsky, que, quando escreveu A Era do Vazio, em 19833, já referia que a emergência de um individualismo de tipo narcísico e hedonista nas sociedades ocidentais pós-modernas tinha afastado as pessoas da fé nas grandes ideologias. Agora, como nos recorda, os cidadãos perderam a confiança nas instituições democráticas, passaram a detestar os partidos e os políticos, e isso alimenta os populismos. A cultura digital, as fake news, a desinformação e as bolhas de conteúdos favorecem este ambiente, numa ilusão de que se tem acesso a algo autêntico, mas que reivindica, sobretudo, o direito de continuar a consumir. A Sagração da Autenticidade é um livro que conduz a uma reflexão crítica caleidoscópica sobre qual é a relação de cada indivíduo com o coletivo e sobre se conseguiremos encontrar respostas para os grandes desafios deste “século ansioso”.

Referências bibliográficas

FRASER, N. (2013), “How feminism became capitalism’s handmaiden - and how to reclaim it”. The Guardian, 14-10--2013. Disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/oct/14/feminism-capitalist-handmaiden-neoliberal. [ Links ]

FRASER, N. (2020), F. (2019), Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis, Londres, Verso Books. [ Links ]

LIPOVETSKY, G. (2022), A Sagração da Autenticidade, Coimbra, Edições 70. [ Links ]

QUEIRÓS, L. M. (2019), “Gilles Lipovetsky: ‘O capitalismo é que é a grande força revolucionária’ ”. Público, 23-01-2019. Disponível em https://www.publico.pt/2019/01/23/culturaipsilon/entrevista/gilles-lipovetsky-capitalismo-forca-revolucionaria-1859015. [ Links ]

Notas

1 Título original: Le Sacré de l’ authenticité, Gallimard, 2021.

2 Jean Baudrillard, L’ échange symbolique et la mort, Gallimard, 1976.

3 Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio, Edições 70, 2013 (1983).

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