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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.248 Lisboa set. 2023  Epub 30-Set-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023248.12 

Recensão

Recensão: Quest for Refuge: Reception Responses from the Global North

1. IFILNOVA - FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide Colégio Almada Negreiros, Tv. Estêvão Pinto - 1099-032 Lisboa, Portugal. gabriele.deangelis@fcsh.unl.pt

Sacramento, Octávio; Challinor, Elizabeth; Silva, Pedro Gabriel. (eds.)., Quest for Refuge: Reception Responses from the Global North. ,, , Famalicão: ,, Húmus, ,, 2021. ,, 296 ppp. ., ISBN 9789897555473,


É raro que os livros coletivos apresentem um nível de coerência interna como no caso de Quest for Refuge, editado por Octávio Sacramento, Elizabeth Challinor e Pedro Gabriel Silva. Resultado de uma conferência ocorrida em 2017, em Vila Real, e organizada pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, os contributos apresentados relatam o estado dos sistemas nacionais de asilo nos países do chamado “norte global”, tendo em consideração quer os países europeus no rescaldo da “crise dos refugiados” de 2015, que deu início a uma nova fase na receção de pessoas deslocadas e refugiados na Europa, quer os países extraeuropeus, quais Estados Unidos, Austrália e Canadá, também expostos, especialmente nos primeiros dois casos, a fluxos crescentes de pessoas deslocadas, refugiados e migrantes.

Os capítulos investigam as “fronteiras imateriais” (p. 9) de natureza social, económica, jurídica e política, que obstaculizam a integração de refugiados nas sociedades de acolhimento. No seu conjunto, os contributos visam fundamentar a tese, resumida pelos coordenadores logo na introdução, pela qual, se é legítimo falar em crise, não é da crise “dos refugiados”, mas sim “do refúgio” que se trata, isto é, dos aparelhos legislativos e organizativos prepostos ao seu acolhimento e integração: o aumento dos fluxos globais de pessoas deslocadas, refugiados, e dos que requerem asilo, é acompanhado, na opinião e segundo a avaliação dos coordenadores, por “erratic policy frames, structural and statutory obstacles and deficiencies in resource allocation and refugee recognition” (p. 12) [meios políticos erráticos, obstáculos estruturais e estatutários e deficiências na disponibilização de recursos e na recognição de refugiados].

Para argumentar a favor dessa tese, os autores comparam o quadro legal do acolhimento, assim como está definido pelas normas jurídicas nacionais e internacionais, com as práticas do acolhimento, observadas, através de métodos etnográficos, a partir do “micro-nível” das relações sociais que se estabelecem entre quem é acolhido e quem acolhe. Neste sentido, os contributos oferecem quer uma comparação entre a “law in books” [lei escrita] e a “law in action” (p. 15) [lei posta em ato], quer uma análise das interações entre os atores em causa, e apresentam, assim, uma dimensão interdisciplinar adequada à multidimensionalidade do fenómeno do asilo. A investigação empírica que está na origem dos casos de estudo ilustrados nos diferentes capítulos é enriquecida por sólidas referências ao estado da arte relativo aos sistemas de asilo dos países representados na amostra (a saber: Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Suécia, Finlândia, Austrália, Estados Unidos e Canadá).

Os trabalhos são muito coerentes, também, por partilharem a mesma perspetiva teórico-crítica: a maioria dos casos referidos caracteriza-se por uma externalização do acolhimento por parte das instituições públicas, que definem um quadro jurídico e administrativo, cuja implementação é transferida às organizações da sociedade civil, às autarquias e a outras instituições descentralizadas. Se tal articulação permite, por um lado, flexibilidade na execução das políticas de acolhimento, e poderia garantir, neste sentido, a devida e recíproca adaptação das necessidades, quer dos acolhidos, quer das comunidades que acolhem, por outro lado a externalização é geralmente acompanhada por um desinteresse, por parte das instituições públicas e do legislador, em relação às dificuldades específicas frequentemente causadas pela falta de competência técnica e de recursos materiais que poderiam alicerçar as práticas de acolhimento. Enquanto as organizações da sociedade civil atuam através de projetos limitados, quer no tempo, quer no que diz respeito aos recursos angariados no seu contexto, são as políticas governamentais que poderiam (e deveriam) garantir uma certa continuidade, e uma responsabilidade e uma capacidade de responsabilização e de contabilização em relação aos procedimentos e aos resultados. É por isso que, nas palavras dos coordenadores, os sistemas nacionais de asilo são afetados por uma “neoliberal turn” (p. 15) [virada neoliberal]. Perante esta “virada”, os coordenadores sublinham a importância de uma abordagem assente nos direitos das pessoas refugiadas, que seja capaz de promover a sua capacidade de ação autónoma, face a uma abordagem “humanitária”, que privilegia a satisfação de necessidades atribuídas ou “prescritas” à pessoa refugiada, que permanece, neste caso, na posição passiva de um destinatário de serviços e apoios (p. 17). Os textos permitem ilustrar, e discutir criticamente, a tese da externalização do asilo.

Os casos apresentados na amostra incluem dois tipos de países: os que só em tempos muito recentes começaram a tentar desenvolver um sistema de acolhimento à altura dos fluxos atuais (Portugal, Espanha, Itália, numa certa medida também a Alemanha, em consideração do súbito aumento dos fluxos), e os que podem contar com uma tradição e uma relativa discussão pública bem mais antigas (Suécia, França, Canadá, Finlândia, Austrália). Os percursos dos refugiados e requerentes de asilo nos dois grupos de países apresentam semelhanças e diferenças.

Entre as semelhanças, salienta-se o objetivo que todos os sistemas de asilo mencionados no volume determinam para os refugiados, e que consiste em alcançar a autonomia na gestão da sua própria existência. Mais complexo será especificar o que esse objetivo significa concretamente. “Autonomia” pode apontar para o objetivo mínimo de a pessoa se tornar independente, quer dos subsídios públicos, quer do acompanhamento que as entidades públicas ou a sociedade civil podem proporcionar na primeira fase da permanência no país de acolhimento, ou pode antes apontar para o objetivo “máximo” da inclusão, isto é, para uma plena capacidade de participação na vida social nas suas várias vertentes (os capítulos de Lacroix sobre o Canadá e de Turtiainen sobre a Finlândia destacam-se pelos detalhes que oferecem em relação ao problema da inclusão). Em vários contributos se observa como os aparelhos do Estado se focalizam sobre os aspetos funcionais do processo de integração: educação, formação e emprego, o que não é sinónimo da promoção da inclusão. Relativamente ao caso australiano (mas a análise deste caso de estudo parece poder ser apropriadamente alargada a outros países), Schech realça como a prática do acompanhamento individual da pessoa refugiada no seu percurso de integração não permite criar as redes que seriam necessárias para promover a autonomia factual da pessoa refugiada, no sentido de facilitar a sua própria autocapacitação através da colaboração com os outros.

Acrescente-se que, no caso-padrão, os percursos de integração estatutariamente definidos privilegiam o objetivo mínimo da independência dos subsídios estatais. A consequência mais frequente dessa escolha é um rebaixamento, no contexto do seu estatuto social, da pessoa refugiada, sendo este um fenómeno que afeta tanto os mais qualificados em termos profissionais, sobretudo por causa dos obstáculos administrativos relativos ao reconhecimento das qualificações, quanto, mais em geral, os requerentes de asilo, por causa da demora no processamento do pedido. Os tempos de espera, significativos em todos os países, aumentam, no caso europeu, quer pela dimensão dos fluxos recentes, ao crescimento dos quais não correspondeu um acréscimo da capacidade de processamento dos pedidos por parte das autoridades, quer pelos efeitos do regulamento de Dublin III, que atribui a responsabilidade do asilo ao primeiro país de chegada, facto este que contribui para o aumento da incerteza administrativa e legal. Maiores tempos de espera associam-se, como a literatura existente a propósito já demonstra, a uma reduzida probabilidade de alcançar a autonomia, quer no sentido pleno, quer no sentido mínimo. A descida na escada social, qualquer que seja a sua causa específica, tem consequências em todas as esferas da existência da pessoa refugiada: em relação às possibilidades habitacionais, à saúde física e mental, e à possibilidade de avanço social para as gerações seguintes (como bem mostra o contributo de Barou sobre a França).

São, todavia, significativas as diferenças entre os países que têm uma maior ou menor antiguidade e experiência na gestão de fluxos consistentes de refugiados e requerentes de asilo. Os países do segundo grupo apresentam dificuldades na adequação do próprio sistema de asilo, o que se concretiza antes de mais numa forma de congestionamento administrativo no processamento dos pedidos de asilo e na descentralização e na externalização da gestão material dos processos de integração, situação à qual não corresponde uma adequada coordenação ou supervisão exercida pelas entidades públicas. Daí resultam desigualdades, nomeadamente regionais, no acesso aos serviços fundamentais, ou ainda uma espécie de dependência do resultado do processo de integração, vinculado à “boa vontade” dos funcionários públicos ou dos representantes das várias organizações da sociedade civil, cuja atuação é “casuística” e cuja discricionariedade na implementação das políticas públicas é proporcional à incompletude da definição dos procedimentos administrativos (vejam-se os trabalhos de Jubany e Rué sobre Espanha e de Sacramento e Silva e Challinor sobre Portugal). Nestes países, refugiados e requerentes de asilo são expostos, no pior dos casos, ao risco de indigência e de marginalização ou, no melhor dos casos, de precarização das suas condições de existência. Tornar mais claros os procedimentos administrativos, otimizar e dar continuidade temporal aos recursos disponíveis, e formar uma cultura do acolhimento alicerçada na inclusão ativa parecem ser as condições mínimas para que um sistema nacional de asilo possa levar ao cabo a sua tarefa de integrar refugiados e pessoas deslocadas.

A discussão sobre o papel da descentralização e da externalização dos serviços e dos percursos de acolhimento continua, mesmo assim, em aberto. Os casos sueco, alemão e italiano (analisados por Östman e Jönsson, Kilian e Membretti e Lucchini, respetivamente) oferecem, neste sentido, material para hipóteses diferenciadas. Os capítulos ilustram casos de maior ou menor sucesso, todos assentes em sistemas descentralizados (de formação profissional e alojamento de menores, como no caso alemão e sueco, e de acolhimento e inclusão civil e profissional em comunidades de montanha que gozam de alguma autonomia administrativa, como no caso italiano). O que caracteriza estes casos é o facto de a descentralização ser inerente à própria arquitetura institucional dos países em questão: um qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, que precise de determinados serviços, terá de se dirigir a entidades descentralizadas. O que caracteriza os casos de sucesso (especialmente o alemão e o italiano) é a força da parceria estabelecida entre as entidades públicas e a sociedade civil, a capacidade de envolver as comunidades locais, a eficiência organizacional das organizações públicas, a definição clara dos direitos e dos deveres dos destinatários dos serviços públicos, e, finalmente, a cultura organizacional dos funcionários (evidente no caso alemão, no qual, por exemplo, os funcionários envolvidos nos percursos profissionais dos menores parecem ter uma cultura “ rights-based” [baseada em direitos], face a uma determinada cultura “humanitária” que é objecto, já na introdução, da crítica dos organizadores do volume). Os capítulos em questão, se partirmos do princípio de que os seus casos de estudo sejam estendíveis a outros contextos, evidenciam que o problema da inclusão social, mais do que estar relacionado com as variáveis “descentralização” ou “externalização”, pode antes interligar-se à qualidade, à eficiência, e à cultura das instituições.

Podemos assim avançar com a hipótese, a aprofundar em ulteriores estudos, de que as oportunidades de inclusão de refugiados e requerentes de asilo constituam, em boa verdade, um espelho que reflete a imagem da qualidade das instituições públicas em geral e das oportunidades de inclusão que, num determinado contexto, elas oferecem aos cidadãos, sejam eles estrangeiros ou nacionais.

Referências bibliográficas

Sacramento, Octávio, Challinor, Elizabeth, Silva, Pedro Gabriel (eds.). Quest for Refuge: Reception Responses from the Global North, Famalicão, Húmus, 2021 [ Links ]

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