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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.249 Lisboa Dec. 2023  Epub Dec 31, 2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023249.04 

Artigo

Portugal: sociedade ainda dualista, mas numa encruzilhada existencial.

Portugal: still a dualistic society, but at an existential crossroads

Renato Miguel do Carmo1 
http://orcid.org/0000-0002-0052-4387

1.CIES-Iscte, Iscte - Instituto Universitário de Lisboa » Av. das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. renato.carmo@iscte-iul.pt


Resumo

Partindo do artigo de Adérito Sedas Nunes intitulado “Portugal, uma sociedade dualista em evolução”, este texto apresenta uma perspetiva crítica sobre o modo como as configurações socioterritoriais mais determinantes progrediram na sociedade portuguesa desde a década de 1960. Apesar da persistência das dualidades, identifica-se, simultaneamente, um país em “puzzle” pautado por dinâmicas relevantes de diferenciação social, económica e cultural que carateriza a designada “terceira espacialidade”, também ela em evolução e reconfiguração. Na parte final, esboçam-se quatro desafios estruturais que apontam para caminhos possíveis a percorrer no futuro próximo.

Palavras-chave: território; desigualdades; sociedade portuguesa; políticas

Abstract

Based on the Adérito Sedas Nunes article, “Portugal, an evolving dualistic society”, this text presents a critical perspective on how the most decisive socio-territorial configurations have progressed in the Portuguese society since the 1960s. Despite the persistence of dualities, it also identifies a complex “puzzle” characterized by significant dynamics of social, economic, and cultural differentiation that characterize the so-called “third spatiality”, which is also evolving and reconfiguring. The final section outlines four structural challenges that point to possible paths to follow in the future.

Keywords: territories; inequalities; Portuguese society; policies

Introdução

O presente texto1 tem como ponto de partida uma leitura do artigo pioneiro de Adérito Sedas Nunes intitulado “Portugal, uma sociedade dualista em evolução”, e tenta fazer um balanço crítico sobre o modo como as configurações socioterritoriais mais determinantes evoluíram na sociedade portuguesa2 desde a década de 1960. Trata-se de um ensaio meramente reflexivo, que recorre a um conjunto de estudos publicados ao longo deste período e, por isso, não pretende ser exaustivo, deixando muita abertura para desenvolvimentos e questionamentos posteriores. De qualquer maneira, o artigo parte da premissa de que, apesar das profundas transformações, as dualidades estruturais persistem na sociedade portuguesa. Estas continuam a ser marcadas por traços vincados de desigualdade alimentados por “velhas” assimetrias que perduram e, em muitas situações, se agravam consideravelmente, e, ao mesmo tempo, por “novas” disparidades que tendem a ser produzidas (e reproduzidas) em diferentes contextos (dos territórios metropolitanos às áreas rurais).

Todavia, apesar da persistência das dualidades, identifica-se, simultaneamente, um país em “puzzle” pautado por fortes dinâmicas de diferenciação social, económica e cultural. Sobretudo quando se aponta para a microescala, emerge uma complexa heterogeneidade social na qual despontam múltiplos fatores de inovação e até de reinvenção. Este Portugal heterogéneo que engrandece e ganha escala numas áreas, mas que, infelizmente, vai também perdendo algum fulgor em certos territórios, coexiste com a perpetuação e a reconfiguração dos dualismos estruturais. De um lado, existe um país irrequieto que não cessa de se mexer, do outro, um país que parece estar parado no tempo e que não consegue libertar-se do peso das desigualdades que teimam em aprofundar-se. O presente artigo pretende identificar algumas dessas ambivalências, mais ou menos paradoxais, sem, no entanto, embarcar em essencialismos concetuais, nem em fatalismos prematuros sobre o pré-anunciado rumo a que estaríamos condenados. No final, avança-se com a enunciação de quatro desafios estruturais que, longe de esgotarem o debate, encetam alguns caminhos a percorrer para pensarmos devidamente o país e o seu (nosso) futuro.

Dualismo em evolução

Em 1964, Adérito Sedas Nunes publicou um dos artigos mais marcantes da sociologia portuguesa, onde, a partir de uma análise inovadora de indicadores sociais, económicos e demográficos, avança com uma leitura da sociedade portuguesa tendo como referência o dualismo sociológico entre um Portugal moderno em emergência - ainda circunscrito a espaços restritos situados na faixa litoral, com preponderância para as Áreas Metropolitanas de Lisboa (AML) e do Porto (AMP), que então conheciam uma forte urbanização e um intenso crescimento populacional - e um país tradicional disseminado por todo o território, marcado pela estagnação socioeconómica e pela regressão demográfica. O autor salienta a coexistência entre a sociedade moderna e a sociedade tradicional, no âmbito da qual se estabelecem dinâmicas distintas. Assim, de um lado, a modernidade tenderia a expandir-se e a infiltrar-se crescentemente nas áreas mais marginais e rurais, do outro, a sociedade tradicional aprofundaria os fatores de perda e de retração, designadamente por via dos fluxos migratórios em direção às maiores cidades situadas no litoral ou de emigração para países como França, Alemanha ou Suíça.

Trata-se, portanto, de um dualismo em evolução, no qual a modernização da sociedade e da economia se apresenta como um processo contínuo e progressivo, ao mesmo tempo que a retração e a erosão da sociedade tradicional são encaradas como um destino anunciado, no sentido em que esta tenderia a ser substituída por dinâmicas de modernização, como, por exemplo, a mecanização da agricultura, a industrialização difusa ou o aumento dos níveis de escolaridade da população residente. No caso de ficarem à margem dos principais eixos de modernização, muitas das localidades rurais iriam perder importância económica e relevo social.

O esquema analítico do autor inspira-se nas perspetivas dualistas desenvolvidas pela sociologia clássica na transição do século XIX para o século XX. Autores como Ferdinand Tönnies (1989 [1887]) ou Émile Durkheim (1989 [1893]) evidenciaram, no contexto de sociedades em forte industrialização e urbanização, o nível de transformação social que estava a ocorrer afetando não só a composição das estruturas sociais, como os modos de vida e as formas de solidariedade social. Segundo o primeiro, a comunidade, marcadamente rural e tradicional, ia dando lugar à sociedade, corporizada por efervescentes cidades industriais e vincadas alterações nas lógicas de organização social e económica. Nesta linha, Durkheim identifica uma profunda mudança nos tipos de relacionamento social, na qual as solidariedades mecânicas, presas aos valores e aos hábitos camponeses e às práticas tradicionais de interconhecimento e de controlo social (que até então se perpetuavam de geração para geração), davam lugar às solidariedades orgânicas, assentes em formas de contratualização social mediadas pela burocracia e por mecanismos de representação de interesses referentes aos mais diversos grupos sociais e às corporações profissionais.

É sintomático sublinhar que estes modelos dicotómicos não só não perdem relevância analítica, como se adequaram de maneira muito pertinente à interpretação da constituição da sociedade portuguesa nos anos 1960 do século passado. Isto revela o tremendo atraso económico, social e político de Portugal em relação a outros países, nomeadamente do centro e do norte do continente europeu. O país estava a conhecer os primeiros passos do processo de modernização, enquanto noutras geografias as sociedades já se encontravam numa fase avançada de consolidação da sua modernidade. O dualismo é, antes de mais, a manifestação de um país atrasado, maioritariamente rural, em que parte da população ainda vivia como os seus avós viveram. A extensão da taxa de analfabetismo, que atingia em 1960 cerca 27% da população masculina e 39% da feminina (fontes/entidades: INE, PORDATA), é talvez o indicador mais determinante desse atraso estrutural.

Dualismo em combinação e o despontar da “terceira espacialidade”

Tendo em conta este quadro, importa questionar até que ponto a visão dualista da sociedade continua a ser válida para os tempos mais recentes. Será que nas décadas seguintes o país conseguiu quebrar a oposição entre o moderno e o tradicional, que em grande medida corresponde à dicotomia entre os territórios localizados na faixa litoral versus os que se estendem ao longo do interior? De maneira a tentar responder esta questão, recorreremos, nesta secção, a alguns estudos e análises publicados desde os anos de 1980 até ao início da década de 2000.

Do ponto de vista sociológico, várias leituras sobre a composição das estruturas sociais da sociedade portuguesa identificaram uma teia de complexidades associada aos processos de transição incompletos para uma modernidade em consolidação, que gradualmente ia posicionando o país num polo menos periférico do sistema-mundo crescentemente globalizado. Embora fazendo uso de diferentes paradigmas teóricos, quer a ideia da modernidade inacabada (Machado e Costa, 1998), quer a de sociedade e economia semiperiférica (Santos, 1993), tendem a salientar uma visão pluridimensional sobre a sociedade portuguesa onde os fatores de desenvolvimento e de mudança social e económica se cruzam e se misturam com a persistência das estruturas e com os modos de vida mais tradicionais. Na verdade, um dos dados a reter por estas e por outras análises é que, em vez de uma mera infiltração e expansão da sociedade moderna em relação à tradicional, o que ocorre são sobretudo processos de imbricação e de combinação, mais ou menos regulares, entre o moderno e o tradicional, dos quais resultam novas e, por vezes, inesperadas configurações socias.

Podemos a este respeito referir dois exemplos bem estudados pela sociologia. O primeiro refere-se às mudanças na recomposição e na estratificação social que ocorreram em diversas comunidades camponesas situadas maioritariamente nos interstícios das Áreas Metropolitanas e/ou das áreas de industrialização difusa, e que originaram novas bacias de emprego industrial decorrentes da penetração da economia capitalista nos espaços rurais, alterando profundamente as formas de organização social. A este respeito, a investigação desenvolvida numa freguesia limítrofe do município de Penafiel no final dos anos de 1970 (Almeida, 1986; Pinto, 1985) identificou o surgimento de uma classe social híbrida, na qual as famílias camponesas puras, ou seja, dedicadas quase exclusivamente à atividade agrícola, perdiam relevo em detrimento de um campesinato parcial (impuro) que estava a emergir. No que diz respeito à organização e à divisão do trabalho na esfera familiar, esta nova classe social caraterizava-se pela capacidade de conciliação entre a manutenção da atividade agrícola e o exercício do trabalho assalariado na indústria e nos serviços situados em áreas mais urbanizadas. Esta reconfiguração, que implicava no seio das famílias uma forte divisão sexual e geracional do trabalho, possibilitava o incremento da pluriatividade laboral, fazendo coexistir na economia doméstica a labuta e o usufruto da exploração agrícola, de um lado, e o emprego na indústria e noutros setores de atividade, do outro. Tratavam-se, portanto, de estratégias de hibridação social e económica que favoreciam também o recurso a diferentes fontes e tipos de rendimento. O moderno cruzava-se com o tradicional, gerando assim novas configurações sociais.

Numa outra linha analítica, diversos estudos salientavam a persistência do papel da família tradicional na organização social enquanto suporte económico e enquanto elemento central nas práticas de solidariedade, designadamente de caráter intergeracional. O conceito de sociedade-providência (Santos, 1993) pretendeu abarcar esses mecanismos de apoio num contexto em que o país se modernizava, mas ainda não tinha consolidado suficientemente as suas instituições sociais (promotoras de bem-estar social) que permitiram, posteriormente, a universalização no acesso aos esquipamentos sociais e aos serviços públicos. Nas décadas de 1970 e de 1980 do século passado, a família mantinha um papel essencial de entreajuda e de proteção social, sobretudo em espaços de urbanização e de industrialização mais ou menos difusos. Também neste caso o moderno cruza-se com o tradicional e gera formas de organização social relativamente híbridas, capazes de conjugar a alteração das atividades profissionais e socioeconómicas, que estavam a ocorrer no seio das famílias, com as estratégias de manutenção das funções de apoio e de suporte social.

Do ponto de vista territorial, o país dualista não só persistia como se reforçava nas clássicas oposições litoral/interior, por via da densificação dos espaços urbanos localizados principalmente, mas não exclusivamente, nas duas grandes metrópoles, e no contínuo despovoamento dos territórios rurais cada vez mais referenciados como de baixa densidade. Contudo, no último quartel do século XX estava a surgir com alguma força uma “terceira espacialidade”, mais complexa e tendencialmente dispersa ao nível nacional. Estes territórios intermédios, que cresciam em termos populacionais e em dinamismo económico (Carmo, 2014; Marques, 2002, 2004), tendiam a desarrumar parcialmente o caráter binário das dualidades estruturais. Segundo um importante texto de João Ferrão (2002), estaria a despontar uma geografia “em arquipélago” (ou “em puzzle”) que, não anulando as clássicas oposições, contribuía decisivamente para a complexificação da configuração socioterritorial do país.

Nesta “terceira espacialidade”, as cidades médias surgiam como as protagonistas principais (sedes de concelho e/ou de distrito) que, com o desenvolvimento do país e a intervenção das políticas públicas, se foram dotando de redes relativamente adequadas de serviços públicos, principalmente nos setores da educação e da saúde, assim como na administração pública local e regional. Muitas conheceram a terciarização intensiva da sua economia (comércio e serviços) de maneira a responder aos anseios e às expetativas de consumo das classes médias, que, por sua vez, estavam a ascender e a crescer (nomeadamente, quadros técnicos e de enquadramento e profissionais liberais). Assim, a sociedade dualista parecia estar a evoluir para uma geografia mais complexa e multipolar - baseada no incremento da interconetividade devido, principalmente, ao investimento nas redes viárias e de transporte -, onde o moderno e o tradicional se mesclavam e se encadeavam em diferentes cambiantes.

Todavia, o país caminhava na sua modernização inacabada e relativamente desequilibrada. Mais uma vez, o sistema educativo é um exemplo relevante: se, por um lado, os níveis de escolarização média e superior estavam a crescer como resultado do investimento continuado na infraestruturação do setor, designadamente na construção de escolas do ensino básico e secundário e da instauração de uma rede nacional de instituições de ensino superior, ainda era muito notório o imenso atraso na escolarização da população que, face à generalidade dos países europeus, se encontrava numa situação muito deficitária. Portugal desenvolvia-se, mas essa modernização era ainda insuficiente para colmatar os tremendos atrasos estruturais herdados de décadas anteriores de estagnação devido ao regime fascista e conservador que imperou até abril de 1974.

Dualismo persistente e a complexidade em puzzle

Apesar das reconfigurações socioterritoriais que foram ocorrendo em diferentes matizes, estudos mais recentes, realizados na segunda década do século XXI, identificam uma matriz dualista que persiste nas estruturas sociais e económicas (Louçã, Lopes e Costa, 2014). Um dos fatores que mais contribui para essa persistência decorre das desigualdades sociais, que em Portugal se mantêm muito elevadas. Independentemente das pequenas oscilações nos indicadores e nos índices de desigualdade de rendimento e de riqueza, o país continua a ser pautado por fortes disparidades sociais e por um nível de pobreza monetária bastante expressivo (Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2016; Carmo et al., 2018). A este respeito, verifica-se que o modelo económico dominante mantém uma forte dependência da desvalorização do trabalho e dos baixos salários. Continuamos a ter uma percentagem relevante de trabalhadores pobres que, apesar de exercerem uma atividade laboral, não conseguem escapar à situação de pobreza, ao mesmo tempo que as desigualdades salariais não só prevalecem, como se acentuam em alguns setores, quando, por exemplo, se comparam os 10% da base com o decil do topo (Cantante, 2019). Estas e outras desigualdades materializam-se e incorporam-se nos territórios, amplificando em muitos casos as assimetrias socioeconómicas (Pereira, 2012). Isto é particularmente notório quando se comparam as disparidades inter-regionais, mas também as intraurbanas. Recorrendo a um trabalho científico sobre as desigualdades de remuneração verificou-se que, embora, em média, os salários tendam as ser mais elevados na capital face aos restantes municípios do país, é, contudo, em Lisboa que, simultaneamente, se encontram as maiores disparidades salariais internas entre os escalões do topo e da base (Carmo, 2014).

A crescente disponibilização de informação estatística à escala do município tem permitido uma maior sofisticação dos estudos sociológicos e geográficos sobre a generalidade do território nacional. Esta possibilidade não só facilita o aprofundamento e o aprimoramento das análises, como permite perceber as múltiplas variantes do dualismo estrutural e o modo como estas coexistem com configurações socioterritoriais mais complexas e multidimensionais. Numa investigação publicada em 2022 sobre os territórios de bem-estar (Mauritti et al., 2022), compilou-se um modelo conceptual com base em 29 indicadores de desigualdade e 78 de bem-estar e de qualidade de vida à escala municipal. A partir das dimensões de desigualdade, os autores constroem uma tipologia territorial composta por cinco diferentes perfis. Três destes encontram-se situados predominantemente na faixa litoral do continente: distinguem-se pelo seu grau de urbanização, os territórios urbanos em rede, pela diferenciação e maior especialização no setor da indústria, os territórios industriais em transição, e pela sua capacidade de inovação económica e social, os territórios inovadores. O primeiro perfil situa-se fundamentalmente nas duas maiores Áreas Metropolitanas e nas áreas policêntricas do litoral algarvio, o segundo circunscreve-se aos municípios do Noroeste, e o terceiro, composto apenas por sete concelhos, insere-se maioritariamente na AML. Em contraposição, encontra-se o perfil dos territórios de baixa densidade, que se estende ao longo do interior. Por último, surge o perfil mais indiferenciado, os territórios intermédios, ancorado principalmente nas cidades médias e nas sedes de concelho, e que se espalha em arquipélago por diversas geografias do país. Grosso modo, esta tipologia não foge muito às configurações referidas anteriormente: o litoral denso e composto por municípios mais urbanizados, industrializados e com economias mais inovadoras; o interior de baixa densidade repleto de territórios despovoados e crescentemente envelhecidos; a “terceira espacialidade”, corporizada pelos territórios em arquipélago, parte dos quais a padecer de algum retrocesso demográfico e socioeconómico.

As desigualdades entre estes perfis em termos do rendimento bruto médio anual e das disparidades internas entre escalões de rendimento são significativas. De uma forma geral, é nos municípios mais ricos que ocorre a maior amplitude de desigualdade interna, particularmente nos territórios urbanos e mais inovadores. No que diz respeito à estrutura de classes, é nestes dois perfis que se encontram em média as maiores percentagens de profissionais técnicos e de enquadramento, assim como de pessoas com qualificação superior. O estudo demonstra, de certa maneira, que as desigualdades sociais produzem fortes assimetrias territoriais e isso tende a perpetuar e, por vezes, a reforçar a matriz dualista da sociedade.

Num artigo recente que revisita o dualismo sociodemográfico e económico em Portugal, é traçado um diagnóstico semelhante. Relativamente às tendências da evolução populacional, que já considera os resultados provisórios dos censos de 2021, a primeira e mais forte imagem que surge é a de “um país fragmentado, marcado por um dualismo consolidado entre um litoral apertado e denso (com três ‘montanhas’) e um interior extenso e cada vez mais vazio, onde algumas ‘ilhas com suaves colinas’ irrompem a homogeneidade da paisagem demográfica” (Silva, Silva e Malheiros, 2021, p. 59). As designadas “montanhas” na analogia referida correspondem às duas maiores Áreas Metropolitanas e alguns municípios contíguos, e às áreas polinucleadas situadas no litoral algarvio. Por seu turno, as “suaves colinas” que despontam em arquipélago correspondem a algumas cidades médias, com destaque para Évora, Viseu e Vila Real, que se vão constituindo cada vez mais como polos urbanos de âmbito regional.

Embora não exista uma correspondência linear entre os dois últimos estudos mencionados, na medida em que utilizam diferentes metodologias e detêm distintas preocupações teóricas, não deixa de ser sintomático depreender que em ambos se reconhece a persistência do dualismo territorial marcado por vincadas desigualdades sociais e fortes disparidades demográficas. Relativamente aos designados territórios de baixa densidade e aos intermédios, é relevante retirar-se duas principais conclusões. No que diz respeito aos primeiros, verifica-se que estão claramente a afundar-se num profundo retrocesso demográfico e socioeconómico, que em muitos casos será mesmo irreversível. Relativamente aos segundos, se não contemplarmos as cidades mais dinâmicas e densificadas (como as enunciadas anteriormente), verifica-se que esta componente intermédia do sistema urbano e territorial se encontra, parcialmente, em estagnação ou mesmo em perda (veja-se a situação do município de Portalegre analisado no primeiro estudo). Este dado é particularmente preocupante, já que a designada “terceira espacialidade” é essencial para o maior equilíbrio deste sistema e para a sustentabilidade (e até viabilidade) da maior parte dos territórios localizados na faixa do interior. Assim, se nas últimas duas décadas do século XX as cidades médias surgiam com um dinamismo relativamente fulgurante, apresentando-se como verdadeiras âncoras na estancagem parcelar da sangria populacional a ocorrer nas áreas mais marginais e rurais, verifica-se, por inversão, que estas vão perdendo algum fulgor e protagonismo nas duas primeiras décadas do século XXI.

No entanto, apesar de o dualismo ter, de certa maneira, persistido, continua a ser evidente a sua coexistência com um “Portugal em puzzle”, marcado por dinâmicas e por singularidades próprias que não podem (nem devem) ser negligenciadas. Na análise efetuada sobre os territórios de bem-estar (Mauritti et al., 2022), considera-se um conjunto amplo de dimensões (trabalho, conciliação trabalho família, saúde, educação, cultura, sociedade digital, qualidade ambiental, habitação, participação cívica, contactos sociais, segurança) que, ao ser relacionado e cruzado com as desigualdades sociais, gera uma multitude complexa de segmentações territoriais difíceis de padronizar. Nessas configurações, percebe-se que certas dimensões de bem-estar estão até melhor incrustadas nos territórios menos centrais e afastados das Áreas Metropolitanas do que em diversas áreas urbanas do litoral. Por exemplo, isso verifica-se nos equipamentos, no acesso à habitação e, em alguns municípios, na qualidade da educação de nível básico e secundário. Por outro lado, as áreas mais inovadoras encontram-se muito bem dotadas no que diz respeito a grande parte dos indicadores de bem-estar, mas, ao mesmo tempo, tendem a ser caracterizadas por elevadas desigualdades internas e, também, por maiores desequilíbrios no mercado de trabalho. De facto, um dos fatores de desigualdade que se vai alastrando sobretudo nos territórios urbanos deriva, em parte, do aumento e da disseminação da precaridade laboral associada a certos setores em expansão, como a atividade turística.

Dualismo em fragilização e os impactos das crises sociais e económicas

A partir de um olhar focado nas múltiplas vulnerabilidades que deflagraram e foram amplificadas com os impactos diferenciados e cumulativos da crise financeira iniciada em 2008 e da crise da pandemia da COVID-19 (2020-2021), vários estudos publicados em 2022 e em 2023 revelam o incremento de um número relevante de fragilidades que afetam não só os territórios mais marginais, como os que se situam nas Áreas Metropolitanas.

Uma investigação recente concetualizou e operacionalizou o grau de vulnerabilidade territorial a partir da interação entre dois eixos analíticos principais (Ferrão et al., 2023):3 a suscetibilidade, que mede o grau de robustez interna das estruturas socioeconómicas ao nível municipal, considerando a estrutura e a qualidade do emprego, a desigualdade na distribuição salarial e a robustez ou a fragilidade do tecido empresarial (entre outros indicadores identificativos de maior ou menor debilidade em relação a determinados embates externos, como a crise financeira e a pandemia); a exposição, que mede o grau de permeabilidade dos territórios a circunstâncias externas adversas, identificando a maior ou menor dependência das economias a fluxos externos de bens e de serviços sob a forma de importações e exportações. Tendo por base estas dimensões, o estudo calculou seis situações-tipo de vulnerabilidade que remetem para diferentes configurações geográficas.

Este trabalho teve como objetivo analisar o impacto da pandemia da COVID-19 nos diferentes perfis delineados. Um dos aspetos a realçar tem que ver com a multiplicidade das vulnerabilidades que afetam diferentemente os territórios. A este respeito, uma das descobertas mais pertinentes revela que os territórios metropolitanos e urbanos situados na faixa litoral foram particularmente afetados. Ao medir a evolução do desemprego registado nos anos de 2020 e 2021 em função dos perfis territoriais, verifica-se um forte embate imediato nos municípios da AML e nos do Algarve. Relativamente aos primeiros, os autores avançam com a seguinte hipótese: “É possível que tenha ocorrido um efeito conjugado entre o maior grau de internacionalização direta e indireta da economia e uma exposição mais imediata aos efeitos da pandemia no emprego mais frágil e precário em atividades ligadas ao setor do turismo, como é o caso do alojamento e da restauração, mas também em empresas do comércio e dos serviços, que devido à quebra das atividades acabaram por dispensar e despedir os trabalhadores em situação contratual não permanente” (Ferrão et al., 2023, p. 174).

Um quadro interpretativo relativamente similar adequa-se em relação ao impacto da pandemia nos municípios algarvios fortemente dependentes da atividade turística e de trabalho sazonal predominantemente precário. Embora se trate de uma abordagem exploratória, estes resultados indicam que a pandemia destapou vulnerabilidades persistentes que se foram aprofundando nos territórios mais densificados e mais urbanizados. Parte destas fragilidades são produzidas por mercados de trabalho desequilibrados, onde uma camada relevante de trabalhadores em situação laboral precária foi crescendo nos últimos anos (Carmo et al., 2021). Não deixa de ser elucidativo perceber que uma das maiores suscetibilidades destes territórios advém precisamente da fraca qualidade de parte do emprego criado, associado não só às atividades turísticas, mas, também, a diversos setores dos serviços.

Tendo por base um livro publicado no âmbito do Observatório das Crises e das Alternativas dedicado à AML, é possível evidenciar um conjunto de debilidades que se adensaram e se amplificaram entre a crise financeira e a crise pandémica. Num capítulo dessa publicação, José Reis (2022) analisa uma série de indicadores e constata que, na última década, a AML sofreu não só um notório retrocesso social e económico ao nível da produtividade das empresas nela sediadas e do poder de compra das populações, como uma desaceleração do crescimento das remunerações quando comparado com a média nacional. Na mesma publicação, José Castro Caldas (2022) detalha a análise do incremento considerável das atividades do turismo ocorrido na AML, verificando que este aumento assentou em grande medida no emprego de baixa qualidade, mal remunerado, e na fraca produtividade. O autor avança a hipótese de que a continuada desvalorização do trabalho e precarização do emprego pode estar a contaminar outros setores, afetando o conjunto da AML.

Estas e outras tendências podem estar a contribuir para para um certo retrocesso daquela que é a principal “cordilheira” do dinamismo social e económico e da modernidade portuguesa. Importa sublinhar que a precarização das condições de vida se estende a outras áreas, como o acesso à habitação, que se tornou particularmente difícil para as camadas médias da população. A relação perversa entre a crescente turistificação e financeirização da economia das duas maiores cidades do país tem contribuído para uma efetiva especulação imobiliária, que, por sua vez, tem provocado o aumento exponencial e continuado dos preços da habitação, afastando as populações residentes para territórios exteriores às grandes cidades e localizados nos municípios mais periféricos das Áreas Metropolitanas (Drago, 2020). Esta forte exposição à dependência do turismo e aos mercados globais cada vez mais especulativos representa um fator de vulnerabilização muito preocupante e que está a reforçar as desigualdades sociais.

Portugal ainda dualista, mas numa encruzilhada existencial

Através deste breve (e muito incompleto) itinerário pelas diferentes configurações sociais e espaciais que estruturam a sociedade portuguesa desde a década de 1960, percebemos que os dualismos sociológicos e geográficos assinalados por Sedas Nunes persistem no país, embora incorporando diferentes roupagens e matizes. Não é, pois, estranho que se continue a enquadrar as suas disparidades mais vincadas nas habituais dicotomias estabilizadas. Elas não perderam (longe disso) a sua pertinência interpretativa e analítica. Portugal mantém traços de uma sociedade dualista, onde o nível das várias desigualdades continua muito pronunciado. Por outro lado, é também notório verificar que as assimetrias são alimentadas por novos tipos de vulnerabilidade social e territorial, como é o caso das dinâmicas de precarização laboral e do acesso crescentemente desigual à habitação nas maiores áreas urbanas, para dar apenas dois exemplos relevantes.

Todavia, tendo em conta os processos mais recentes, não é demasiado forçado referir que a primeiras duas décadas do século XXI são pautadas pela coexistência de fragilidades cumulativas e profundas nas três principais configurações socioterritoriais identificadas ao longo do texto. Em primeiro lugar, saltam à vista o enorme retrocesso e a situação degradante de muitos dos territórios de baixa densidade. Além de perderem consecutivamente população e de conhecerem um continuado envelhecimento nas últimas cinco ou seis décadas, estas áreas são atualmente marcadas por inúmeros riscos acrescidos que advêm da delapidação e da retração de serviços, que deixaram de funcionar devido a encerramentos consecutivos ou resultantes de rearranjos (concentrações e fusões) ocorridos nas redes públicas (ao longo das últimas décadas têm fechado escolas, estações de correios, unidades de saúde, sedes de juntas de freguesia, farmácias, etc.). Estes territórios estão literalmente em erosão e a perder capacidade de gerar qualquer tipo de centralidade funcional. Perdem residentes, envelhecem e deixaram há muito de atrair população. Os campos não são tratados devidamente e o desordenamento territorial transformou-se numa infeliz constante. Estas tendências regressivas alimentam outros riscos, dos quais se destaca a enorme fragilidade no enfrentamento às alterações climáticas, com consequências radicais na destruição das florestas e dos diversos recursos ambientais. Os tremendos e frequentes fogos florestais que devastam quase tudo ao redor são o exemplo mais gritante e mais elucidativo do enorme risco que afeta os espaços rurais. São áreas claramente deprimidas, que entraram numa espiral regressiva e sem retorno na maior parte dos casos.

Também nos designados territórios intermédios se observam alguns fatores de retrocesso ou de estagnação. Diversos serviços públicos retraíram-se nas cidades médias e algumas têm conhecido um decréscimo da população residente desde, pelo menos, o início dos anos 2000. Esta rede complementar do sistema urbano era vista como tendo um papel determinante no reequilíbrio do dualismo estrutural entre o litoral (urbano e moderno) e o interior (rural e tradicional), mas encontra-se neste momento em certa fragilização e apresenta dificuldades em conseguir capacitar e protagonizar uma nova vaga de dinamismo social e de desenvolvimento económico, como ocorreu nas décadas de 1980 e de 1990. É importante frisar que, apesar deste quadro, identificam-se, a partir da análise dos dados provisórios dos censos de 2021, dinâmicas em diversas freguesias situadas sobretudo nestes territórios (Albuquerque, 2022). São “ilhas de dinamismo” que vão resistindo às tendências sociodemográficas mais regressivas, conseguindo, aqui e ali, atrair novos grupos populacionais de origem nacional ou imigrante (Pinto, 2023). Estas não só devem ser reconhecidas e valorizadas, como representam um potencial de desenvolvimento socioeconómico a ser considerado e enquadrado pela intervenção das políticas públicas. Contudo, se não se produzirem alterações estruturais e transversais, a designada “terceira espacialidade” corre o risco de se ir esfumando e de se diluir no dualismo perene.

Finalmente, as Áreas Metropolitanas e os territórios fortemente urbanizados. É ainda cedo para descortinar o seu rumo no futuro próximo, mas não há dúvida de que surgiram nos anos mais recentes alguns dados e tendências que merecem preocupação e atenção por parte dos decisores políticos. Contudo, uma coisa é certa: a crise financeira e a crise pandémica produziram impactos consideráveis nestas áreas e abriram feridas difíceis de sarar no imediato. As debilidades laborais e sociais geradas por fortes desequilíbrios nos mercados de trabalho devido à proliferação crescente da precarização do emprego estão a ter consequências em várias esferas do mundo social, representando não só uma degradação das condições de vida, como uma limitação no incremento do bem-estar social e de saúde nas áreas mais densamente urbanizadas (Carmo et al., 2021).

No entanto, este quadro preocupante que atravessa diferentemente os vários territórios não põe em causa a melhoria geral que o país viveu e conheceu ao longo de décadas consecutivas. Também não significa o desdenhar das múltiplas dinâmicas regionais e locais que se desenvolvem nos mais variados setores de atividade, criando fatores de inovação a ter em conta e a valorizar devidamente. Assim como é importante olhar para os processos de internacionalização e de abertura à economia global a partir de uma visão crítica capaz de, por um lado, apontar as fortes disparidades que esta gera, mas, por outro, salientar os lados positivos e virtuosos associados ao desenvolvimento de formas cosmopolitas de interconexão social, cultural e económica.

De qualquer maneira, feito o sublinhado, são evidentes os diversos sinais de retrocesso, com origens, amplitudes e escalas distintas, que vão afetando em simultâneo os mais variados territórios situados em geografias muito diferenciadas, revelando que o país se encontra numa encruzilhada de cariz existencial merecedora de reflexão profunda e de um debate continuado que deve envolver variados atores individuais e coletivos em diversos contextos sociais e espaciais de intervenção. Não querendo limitar os contornos desse debate necessário, avanço muito sinteticamente quatro desafios estruturais que parecem fundamentais para a discussão pública e democrática das situações identificadas.

O desafio sociodemográfico. Os níveis de envelhecimento da população residente em Portugal estão a atingir patamares muito elevados, que a breve prazo produzirão desequilíbrios insustentáveis. Em grande parte dos designados territórios de baixa densidade, e mesmo nos intermédios, o envelhecimento associa-se ao despovoamento perene com consequências profundas e, em muitas situações, inultrapassáveis de esvaziamento continuado das suas localidades. A este desafio não se responde com políticas efémeras normalmente designadas de “incentivo à natalidade”, cuja eficácia tem sido muito circunscrita e com reduzidos retornos para as comunidades. Além destas, é incontornável desenvolver políticas integradas de acolhimento de populações imigrantes jovens que possam não só residir nestes espaços, como ter a possibilidade de alicerçar projetos de vida com viabilidade para construir futuro.

O desafio da qualidade do emprego. Um dos fatores que mais contribuem para o aumento das desigualdades decorre da precarização do emprego, que afeta sobremaneira a população ativa mais jovem (Tavares, Cândido e Carmo, 2021). Este fenómeno tem provocado efeitos de fragilização social que atingem, inclusivamente, os territórios mais densos e mais urbanizados detentores de economias altamente terciarizadas e, em muitos casos, demasiado dependentes da atividade turística. Torna-se necessário associar uma política de diminuição drástica da precariedade laboral ao aumento sustentável e gradual dos salários (sobretudo os mais baixos e os intermédios). Aliás, a resposta a este desafio contribuirá simultaneamente para aumentar a capacidade de atração e de fixação da população jovem (mais ou menos qualificada), que tem emigrado de forma significativa, fruto, fundamentalmente, do impacto das crises consecutivas que corroeram as reais possibilidades de melhoria das suas condições de vida e de emprego. Neste sentido, a resposta a este desafio contribui, parcialmente, para melhor enfrentar o anterior.

O desafio do desenvolvimento económico sustentável. Trata-se de um desafio muito amplo e transversal a todos os territórios, que não se compadece com os objetivos do presente texto. De qualquer maneira, esboço umas breves notas sobre alguns aspetos a mudar de modo a fazer-se uma transição virtuosa para a designada economia verde. Um dos dados mais marcantes sobre a composição das economias regionais e locais revela-se na enorme dependência de muitos municípios em relação ao setor do comércio e dos serviços - com várias exceções relevantes, nomeadamente a mancha de concelhos situados no Noroeste do país, pautados pelo maior peso da atividade industrial -, a que acresce uma excessiva especialização no turismo, afetando principalmente, mas não exclusivamente, diversos municípios localizados a Sul. Embora não considere que a atividade turística seja intrinsecamente perniciosa ao desenvolvimento económico e social, havendo aspetos positivos que decorrem da mesma, parece não restarem dúvidas de que o modelo assente na monoespecialização económica e na criação de emprego de baixa qualidade carece de sustentabilidade e tende a produzir fortes desajustamentos funcionais e estruturais nas economias locais, difíceis de solucionar e de inverter. Neste sentido, é essencial apostar na multifuncionalidade dos territórios, incorporando valor acrescentado que resulte da articulação virtuosa entre as atividades terciárias e o incremento de novas, ou a revitalização e modernização das antigas indústrias. A este respeito é importante, ao mesmo tempo, valorizar o papel da agricultura, que não pode continuar a replicar até à saturação o modelo da agroindústria intensiva assente na monocultura e na utilização de mão de obra imigrante barata a viver em condições pouco dignas. Outra agricultura mais sustentável em termos sociais e ambientais é possível e desejável.

O desafio da consolidação do Estado social. São imensas as debilidades das redes de serviços e de equipamento públicos. É, por isso, fundamental reabilitar algumas dessas redes de maneira a se ramificarem de forma mais equitativa e equilibrada pelos territórios (por exemplo, nos serviços de saúde e no apoio domiciliário e de proximidade ou numa rede pública de estações de correio vocacionadas para prestar múltiplos serviços locais), assim como investir noutras áreas, das quais destacaria as políticas de construção e de reabilitação da habitação pública (em diferentes modelos de articulação com o setor cooperativo e da economia solidária), destinadas não só às populações vulneráveis (como os desempregados de longa duração ou os imigrantes), mas, também, aos jovens em início da vida ativa. Outra nota sobre este desafio tem que ver com a transição para a digitalização, que irá alterar transversalmente muitas das modalidades de organização do trabalho e de relacionamento social. No que diz respeito à digitalização da administração pública central e local, convém que esta não se sobreponha nem substitua as práticas de prestação dos serviços de proximidade, afastando ainda mais as populações da esfera de intervenção do Estado. Pelo contrário, a digitalização deve representar um facilitador na mediação burocrática com a administração pública, libertando, por esta via, recursos humanos imprescindíveis para qualificar e habilitar os serviços de proximidade, que podem fazer toda a diferença na sinalização das vulnerabilidades locais e na antecipação dos vários riscos. A transição digital só será verdadeiramente bem-sucedida se conseguir propiciar novos espaços relacionais e de qualidade que possam melhorar o apoio às populações.

Virar a página do dualismo

O enfrentamento da encruzilhada existencial implica concomitantemente uma certa rutura epistemológica no modo como as ciências sociais (e outras) olham para os territórios e interpretam a maneira como as distintas espacialidades se produzem e se reproduzem. Isto significa perspetivar abordagens teóricas e metodológicas multidimensionais e menos presas a nomenclaturas concetuais tradicionais. Paradoxalmente, apesar de se perceber que o país mantém estruturas dualistas e vincadamente assimétricas, é tempo de questionar os dualismos sociológicos e geográficos por dentro. A título de exemplo, num outro texto (Carmo, 2022) avanço com a ideia, inspirada nos escritos de Durkheim, de se conceber as densidades espaciais não só a partir da sua materialidade (volume, relevo, textura…), mas, igualmente, de contemplar as densidades dinâmicas (fluxos, mobilidades, interconexões, transações…) com as quais se cruzam incessantemente em diferentes escalas geográficas cada vez mais interdependentes.

Ir além dos dualismos não representa negligenciar a sua pertinência interpretativa e até explicativa. Significa, sim, enquadrar e incorporar novas e, por vezes, imprevistas dimensões de análise. Não é necessário inventar a roda e, em certos casos, os vislumbres que inspiram perspetivas teóricas e metodológicas refrescadas passam pela releitura dos autores clássicos. Tendo em conta este desafio de natureza científica, diria que o presente artigo é um escrito que tenta fazer um balanço crítico, mas ainda enredado nos paradigmas anteriores, sem conseguir dar o salto qualitativo para uma efetiva rutura epistemológica.

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Notas

1 Agradeço a João Ferrão a leitura e os comentários elaborados numa versão preliminar deste texto.

2 Refere-se a Portugal continental, não abarcando os arquipélagos dos Açores e da Madeira.

3 Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto EmployALL envolvendo um estudo aprofundado sobre vulnerabilidades territoriais, pandemia e (des)emprego, realizado por João Ferrão, Hugo Pinto, José Castro Caldas e Renato Miguel do Carmo (ver em: https://vulnerabilidades-territoriais.datalabor.pt/)

Recebido: 12 de Setembro de 2022; Aceito: 30 de Novembro de 2022

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