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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.250 Lisboa mar. 2024  Epub 31-Mar-2024

https://doi.org/10.31447/202401r 

Recensão

O Processo Civilizacional da Tourada: Guerreiros, Cortesãos, Profissionais… e Bárbaros?

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. nuno.domingos@ics.ulisboa.pt

Ampudia de Haro, Fernando. O Processo Civilizacional da Tourada: Guerreiros, Cortesãos, Profissionais… e Bárbaros?. ,, , Lisboa: ,, Imprensa de História Contemporânea, ,, 2019. ,, 228, pp., ISBN, ISBN: 9789898956156.


Esta sociologia histórica da tourada, baseada numa seleção criteriosa de fontes, submete de forma original a história de Portugal a uma investigação de processos amplos inspirada na obra de Norbert Elias e nas suas grandes questões teóricas e históricas. Ampudia de Haro analisa a evolução da tourada no quadro da sucessão cronológica de três figurações típicas dominantes - a guerreiro-cavalheiresca, a cortesã-absolutista e a profissional-burguesa - evitando descrever a história da tourada a partir de narrativas individuais, familiares, ou que ficaram reféns de uma história regional ou cultural. Esta inquirição do tempo longo português suscitará dúvidas a especialistas de uma história fundada em objetos mais circunscritos. Mas é o gesto amplo e audacioso que distingue a obra de Ampudia de Haro e a deverá tornar numa referência em trabalhos futuros de investigação. Assim, como explica o autor, o desenvolvimento do processo civilizacional em Portugal transformou a tourada numa atividade progressivamente regulamentada e especializada, na qual os laços comunicativos entre espetáculo e audiência exprimiam uma alteração dos padrões sociais de sensibilidades, o que implicou um recalcamento, eufemização e eliminação da violência que desde sempre acompanhou a prática. Hoje, o processo de civilização da tourada encontra-se ainda em aberto, condicionado por conflitos permanentes acerca da definição da prática. Estas lutas opõem os defensores da tradição tauromáquica, da sua arte e significados próprios, aos que consideram, no outro extremo, as corridas de touros um resquício bárbaro a suprimir, apesar de a tourada contemporânea ser bastante menos incivil do que as suas versões antigas, como demonstra o autor.

A evolução da tourada aqui enunciada representa a concretização em Portugal de um conjunto de processos característicos de uma configuração social moderna. No quadro da proposta de Elias, estas dimensões dizem respeito ao papel de vanguarda das elites no processo de disseminação de novos hábitos e sensibilidades, à capacidade infraestrutural do Estado, em processo de centralização, de moldar o quotidiano e monopolizar o exercício da violência, à aversão generalizada da população à violência, ao aumento das interdependências sociais, ao aprofundamento da divisão social do trabalho, à densificação das malhas urbanas e à formação de ambientes que estimulam formas de igualização social e de democratização funcional.

Por várias vezes Ampudia de Haro refere como estes processos se manifestaram de forma incompleta em Portugal, até à atualidade. No geral, porém, a análise das etapas de desenvolvimento da tourada presente neste livro serve para contar a história do alinhamento da sociedade portuguesa com a transformação das práticas e das instituições, típica do que se designou por modernidade. Tal alinhamento ocorreu de diferentes modos. No entanto, sem enjeitar a capacidade de a teoria do processo civilizacional explicar a evolução das estruturas da sociedade portuguesa e das sensibilidades dominantes entre os seus grupos sociais, perguntar-se-á se as inconsistências deste processo, mais do que uma declinação de um tipo-ideal, singularizam mais vincadamente o caso nacional, revelando como, até bem dentro do século XX, permaneceram em Portugal as características de uma sociedade de antigo regime em evolução. Dito de outra forma, se este objeto extraordinário de investigação é um meio para aferir a relação do processo social português com um tipo ideal de modernidade, Hampudia de Haro destacou as proximidades e os alinhamentos com esse processo, concedendo menos relevância às distâncias e aos contrastes. Sem descurar a verdade destes alinhamentos, bastante bem argumentada pelo autor na sua prossecução das teses elisianas, discutir-se-ão brevemente os contrastes que estimulam uma outra representação da sociedade. Esta é uma discussão apenas possível pelo trabalho de Ampudia de Haro sobre a longa duração portuguesa, uma investigação, importa insistir, rara e ousada.

Como as cronologias concedem um sentido à história, importa questionar a narrativa moderna implícita ao processo de civilização da tourada. Esta baseia-se sobretudo no recurso a fontes de natureza estatal e legal para descrever a evolução de uma versão oficial da tourada, codificada e regulamentada, oposta a formas populares de lidar os touros, que são descritas neste livro como “espontâneas”, “desregradas” e “violentas”, o reduto do “incivilizado” - o que parece reproduzir, mais do que o sentido conceptual de Elias, tanto a visão normalizadora do Estado e o seu sentido moral e político, como a autorrepresentação das elites enquanto núcleos de civilização. Transformando-se com o tempo, a tourada oficial em Portugal permaneceu um monopólio das elites, já que, ao contrário do caso espanhol, não integrou indivíduos de extração popular, a não ser em funções específicas. Esta situação contrasta com o ocorrido nos desportos modernos mais populares, que escaparam ao reduto distintivo do amadorismo, para se converterem em atividades profissionais abertas. Na tourada, com uma história bem mais antiga, a profissionalização e democratização não convergiram significativamente. Até hoje, as corridas são momentos de exibição da distinção social e, com algumas recentes exceções no toureio a cavalo, de um ethos masculino patriarcal. Qual então o estatuto da tourada como meio de avaliação da ocorrência de processos de transformação modernos em Portugal, nomeadamente do enfraquecimento da segmentação social? Foram as transformações ocorridas na prática da tourada uma expressão do processo civilizacional moderno, ou correspondem, fundamentalmente, aos ajustamentos de uma velha ordem face às forças da mudança, que chegavam lentamente a Portugal? Estas questões justificam-se porque, até bem entrado o século XX, o país manteve uma organização social muito hierarquizada e segmentada, caracterizada pela enorme distância social entre as suas elites e o resto da população, gerida por um Estado frágil, pouco eficaz na promoção de hábitos e práticas modernas entre a população, e governado durante metade do século transato por uma ditadura. Nesse período, a modernização do Estado coincidiu com o abuso do monopólio do exercício da violência - na metrópole e, a um nível ainda mais perverso, no império colonial, onde também havia touradas -, com perseguições políticas e o medo generalizado, com um sistema escolar onde a ameaça física se consagrou como elemento de instrução, com um paternalismo laboral que anunciava a possibilidade do emprego da força, com a violência doméstica generalizada. Assim, as mudanças estruturais na sociedade portuguesa, registadas pela evolução da tourada descrita neste livro, conviveram com continuidades que são menos visíveis nas leis do Estado civilizador e no pensamento das suas elites pretensamente ilustradas.

Neste tempo longo português, os sinais que revelam uma aceleração no ritmo do processo civilizacional e da sua expansão social são recentes. Se tomarmos a tourada como meio de interpretação destas tendências, o sinal mais forte da mudança é a contestação organizada à tourada, que, em última instância, pretende acabar com ela. Os seus protagonistas não são fundamentalmente as elites sociais - incluindo as urbanas - mas grupos sociais passíveis de ser incluídos na movediça categoria de classes médias. Desafiando a estrutura de uma sociedade de antigo regime, estes grupos sociais nasceram de uma configuração social onde se destacam a dinâmica de aprofundamento da divisão social do trabalho, da urbanização, da industrialização e da terceirização, do fim da sociedade rural, da modernização do aparelho estatal, medida fundamentalmente pela sua capacidade de providenciar direitos, e pela democracia, conquistada após Abril de 1974. Neste contexto, são as gerações mais jovens os sujeitos deste ímpeto civilizador, os mais qualificados, sensíveis aos direitos dos animais, distantes da “vida no campo”, muitos já sem contacto “com a terra” - na realidade, ignorantes das suas lógicas e pouco dispostos a percebê-las - influentes no espaço público, e com um peso eleitoral crescente.

É legítimo antecipar que estes grupos liquidem, com maior ou menor ritmo, a tourada, como sucedeu noutras paragens. E, no entanto, não há nada que possa assegurar o rumo linear do processo civilizacional, orientado pelo aumento da aversão das populações à violência. Isso mesmo sugere Ampudia de Haro no final do livro. O processo civilizacional não é uma teleologia do progresso, mas uma dinâmica histórica dependente das características das configurações sociais ou, dito de outra forma, dos fatores que as determinam. Por isso, os níveis de violência e a sensibilidade à mesma estão tão dependentes da evolução da estratificação social - do seu grau de desigualdade e da possibilidade de mobilidade que consente - ou da prossecução das funções do Estado enquanto instância organizadora do quotidiano. Por tudo isto, é talvez arriscado prever o fim da tourada.

O autor deste livro, Fernando Ampudia de Haro morreu recentemente, aos 47 anos, com uma vida pela frente, e, assumindo o egoísmo próprio de um leitor satisfeito, com tantos bons livros que ficaram por escrever.

Referencia

Domingos, N. (2024). O Processo Civilizacional da Tourada: Guerreiros, Cortesãos, Profissionais… e Bárbaros?, de Fernando Ampudia de Haro. Análise Social, 49(250), 223-226. [ Links ]

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