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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.250 Lisboa Mar. 2024  Epub Mar 31, 2024

https://doi.org/10.31447/202402r 

Recensão

“Tenho o prazer de informar o Senhor Director…”. Cartas de Portugueses à PIDE (1958-1968)

Beatriz Valverde Contreras1 
http://orcid.org/0000-0002-0668-4277

Alexander Keese2 
http://orcid.org/0000-0002-2836-2084

1 Centro de História da Sociedade e da Cultura, Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. beatriz.valverde@gmx.net

2 Université de Genève, 5 rue de Candolle - 1211 Genève, Suiça. alexander.keese@unige.ch

Simpson, Duncan. “Tenho o prazer de informar o Senhor Director…”. Cartas de Portugueses à PIDE (1958-1968). ,, , Silveira: ,, BookBuilders, ,, 2022. ,, 192, pp., ISBN, ISBN: 9789898973382.


A história da vida quotidiana (everyday life history), perspetiva contestada, mas estabelecida noutros contextos de regimes autoritários, sobretudo em relação ao regime nazi na Alemanha, não tem encontrado muito interesse nos estudos sobre o autoritarismo em Portugal ( Lüdtke, 1995). Um artigo importante da autoria de Daniel Melo (2022), especialista na interpretação das estratégias de doutrinar a população portuguesa durante o salazarismo/marcelismo, discute os limites do controlo do regime e os espaços de “evasão” segundo a perspetiva da história da vida quotidiana, concentrando-se nas questões da manipulação pelo regime e na cultura popular. Outra forma importante de questionar a vida quotidiana de populações que vivem sob um regime autoritário é a relação das “pessoas normais” com as forças de repressão, sobretudo pelo seu contacto com as polícias políticas. Demonstrou-se, para o caso da Gestapo alemã, em estudos dos anos 1980 e 1990, a possibilidade de analisar meticulosamente as formas como os indivíduos entraram em contacto e utilizaram, ou manipularam, a polícia política para os seus fins (Mann, 1987; Gellately, 1996). A ausência de estudos deste tipo é evidente para muitos regimes autoritários do século XX, estudados frequentemente numa lógica binária entre agentes e vítimas da repressão. É certamente o caso de Portugal sob o regime do Estado Novo.

Embora Duncan Simpson, um dos principais historiadores desta forma de interpretação, que, no caso português, vem com um atraso considerável - fale mais de history from below e menos de história da vida quotidiana, o seu objetivo é semelhante. Concentra-se em cartas de denúncia existentes nos arquivos da PIDE/DGS e em processos ou outra correspondência em que “pessoas normais” interagiram com a polícia política. Nos últimos anos, publicou três artigos sobre o tema em inglês em revistas internacionais de destaque, e a monografia atual parece ser um outro passo importante para a divulgação dos resultados das últimas etapas da sua investigação em Portugal (Simpson, 2018, 2020, 2021).

Neste livro, Simpson escolhe uma década complexa dentro da experiência longa do regime autoritário do salazarismo. Explica o potencial das fontes específicas para este período, nomeadamente pela existência de cartas, frequentemente dispersas nos arquivos, em que indivíduos abordam a PIDE para atingir os seus próprios fins (p. 20). O autor pretende “chegar a uma compreensão mais aprofundada e nuanceada dos mecanismos de funcionamento da sociedade portuguesa que contribuiriam para a durabilidade do regime, matizando e completando a tradicional narrativa de repressão e violência” (p. 17); por outras palavras, tenta discutir como a polícia política e a sociedade portuguesa nesse período se relacionaram, e questionar a visão prevalecente na maioria dos estudos, que destacam, sobretudo, a função repressora da PIDE. Graças ao seu conhecimento excelente desta literatura, é efetivamente capaz de apresentar um argumento claro sobre as grandes tendências. Numa discussão preliminar longa - talvez demasiado longa -, Simpson explica os dilemas da natureza politizada da discussão (p. 46), como é o caso da história da vida quotidiana de outros regimes autoritários que podemos encontrar em debates dos anos 1980 e 1990, onde o autor assinala “o risco de se expor a acusações” como protagonista de um “revisionismo” (p. 49). À principal expressão de uma visão memorialista, em que o papel de especialista em repressão representado pela polícia política se misturaria com a vontade de defender a ideia de uma realidade binária entre os agentes da PIDE como perpetradores e a sociedade civil portuguesa como vítima, Simpson (p. 52) posiciona-se sobretudo contra as análises de Irene Flunser Pimentel, e explicitamente contra aquelas feitas na monografia A História da PIDE (Pimentel, 2007). A natureza politizada e profundamente hostil do debate entre os dois autores já tinha sido destacada numa discussão acalorada publicada no jornal Público, em fevereiro e março de 2021.

Duncan Simpson deixa abertas algumas possíveis pistas de investigação sobre o quotidiano da PIDE, com especial destaque para a sua relação com perspetivas de estudos mais pormenorizadas sobre as carreiras dos burocratas dentro da própria organização (p. 55). Concentra-se em três principais contextos de interação: as denúncias, as petições e as candidaturas espontâneas enviadas por indivíduos externos. No segundo capítulo, sobre denúncias, o autor mobiliza uma quantidade impressionante de 613 cartas de delação (p. 59). Consideradas uma fonte privilegiada para compreender as estratégias e as esperanças de indivíduos que tentavam tirar proveito da existência da polícia política, Simpson propõe uma tipologia para estas fontes (p. 60). Identifica temas que múltiplas cartas referem, entre os quais a luta contra a emigração clandestina, em que alguns indivíduos chantagearam prospetivos emigrantes ameaçando-os de os denunciar à polícia política (pp. 63-66). Outras situações típicas em que indivíduos contactaram a PIDE para efetuarem denuncias incluem quer casos difíceis de definir, em que o objetivo do delator era a obtenção de benefícios privados (pp. 68-71), quer casos de vingança, sobretudo no momento de um divórcio ou em função de ódios pessoais a terceiros (p. 72). Simpson identifica, ainda, denúncias que se fizeram numa lógica de rivalidade (p. 79).

Nas três categorias acima mencionadas, os limites entre elas são às vezes complicados de estabelecer. Talvez seja mais interessante trazer um quarto tipo à discussão: trata-se de cartas em que indivíduos argumentaram com o seu dever moral face ao Estado, abordando a PIDE para que esta pusesse termo a situações de orientação política ou moral duvidosas, instigando à perseguição a supostos comunistas ou opositores ao colonialismo e à defesa dos territórios ultramarinos (p. 84). Segundo Simpson, a PIDE valorizava parte da informação contida nas cartas de denúncia, mas como é impossível ver os processos em que agentes da polícia corroboraram estas informações, o grau de utilidade fica menos claro. Igualmente, não temos detalhes sobre denúncias de outros tipos, orais ou telefónicas (p. 92). O autor insiste em que as denúncias ilustram a maneira como os cidadãos se esforçaram para realizar os seus próprios objetivos através da instrumentalização da polícia política.

O terceiro capítulo interpreta a importância da PIDE na padronização de pedidos de indivíduos ou de coletividades, expressos em petições, para intervir a favor da eletrificação de uma aldeia conhecida de um agente da polícia (pp. 98-100). Outro tema das petições passa pela proteção de interesses de trabalhadores contra patrões considerados abusadores. Na lógica do corporativismo português, a polícia política tinha uma posição ambígua (p. 105), que Duncan Simpson refere neste livro sem, contudo, concretizar qual era a relação destas questões laborais com os agentes da repressão. O capítulo aborda ainda as petições relacionadas com pedidos de ajuda na contratação de indivíduos emigrados, reafirmando desta maneira a ideia de que a PIDE tinha um forte controlo sobre as questões fronteiriças e migratórias (p. 113).

A questão das candidaturas espontâneas para auxiliares e informadores aparece no quarto capítulo do livro e baseia-se na análise de 493 cartas, embora de forma bastante homogénea (pp. 118-119). O autor assinala que a maioria destas candidaturas revela pouco sobre o compromisso ideológico dos seus autores com o regime, mas muito sobre as situações sociais e sobre a perspetiva de tirar, de novo, proveito da existência da instituição. Dada a situação socioeconómica relativamente desfavorecida dos candidatos, Simpson considera que a polícia política funcionou como veículo de ascensão social (pp. 123-125) e que a pobreza de grande parte da população portuguesa terá condicionado as suas formas de contacto com as forças de repressão. No final do capítulo, o autor aborda uma mistura de outros temas, como a maior atratividade da PIDE face à PSP ou à GNR, que teriam recebido menos candidaturas (pp. 125-126) - mas parece difícil a comparação quantitativa -, ou os pagamentos que os agentes da PIDE recebiam dos contrabandistas nas zonas fronteiriças, e, finalmente, a ideia de que se tratava de um trabalho relativamente pouco exigente, cujas condições e vantagens económicas o tornavam interessante (p. 127).

Na conclusão, Simpson acentua a demonstração de múltiplos entrelaçamentos entre a sociedade portuguesa e a polícia política, inclusive a dimensão de um autopoliciamento de parte considerável da população portuguesa, e a possibilidade de interpretar a utilização da PIDE por parte desta população no sentido de obter benefícios como uma espécie de rede clientelar (p. 134). Assim, a sociedade, em vez de permanecer passiva, adaptou-se às circunstâncias e, em parte, aproveitou as oportunidades (p. 135).

Duncan Simpson apresenta aqui os resultados de um longo processo de investigação. A excelência da sua interpretação das fontes selecionadas torna esta obra uma leitura obrigatória para quem se interessa por uma discussão mais matizada da relação entre a sociedade portuguesa e as forças de repressão, sobretudo para quem não teve acesso aos artigos internacionais anteriormente publicados. De uma forma geral, o livro é um primeiro passo para uma interpretação mais vasta e completa da história do quotidiano da PIDE/DGS e da sua rede clientelar.

A crítica de Simpson à interpretação demasiado unidirecional da polícia política nos estudos anteriores é justificada, mas às vezes redunda muito extensa e algo forçada. Como o estudo não discute a repressão como experiência, não permite ainda a procura da complexidade simultaneamente dentro da PIDE como órgão de repressão e como polo de atração. Um futuro estudo maior do autor deveria poder oferecer este contraste, como também, na melhor lógica da história da vida quotidiana, dar alguma importância à parte da população que, simplesmente, se manteve distanciada da força de repressão e tentava viver sem nunca a contactar (fenómeno discutido como “evasão” por Lüdtke). No contexto de um estudo maior, seria interessante que o autor analisasse possíveis diferenças entre o mundo rural e o mundo urbano ou periurbano, e faria sentido que estabelecesse comparações com o regime franquista. Porém, e em vista do resultado desta etapa da sua investigação, o livro de Duncan Simpson é um poderoso primeiro passo numa revisão essencial, e uma importante primeira leitura sobre a complexa relação entre a população portuguesa e a PIDE.

Referências bibliográficas

GELLATELY, R. (1996), “Denunciations in twentieth-century Germany: Aspects of self-policing in the Third Reich and the German Democratic Republic”. Journal of Modern History, 68 (4), pp. 931-967. [ Links ]

LÜDTKE, A. (ed.) (1995), The History of Everyday Life: Reconstructing Historical Experiences and Ways of Life, Princeton, Princeton University Press. [ Links ]

MANN, R. (1987), Protest und Kontrolle im Dritten Reich: Nationalsozialistische Herrschaft im Alltag einer rheinischen Großstadt, Frankfurt e Nova Iorque, Campus. [ Links ]

MELO, D. (2022), “ ‘Living normally’: Everyday life under Salazarism”. European History Quarterly, 52 (2), pp. 200-220. [ Links ]

PIMENTEL, I. F. (2007), A História da PIDE, Lisboa, Círculo de Leitores - Temas e Debates. [ Links ]

SIMPSON, D. (2018), “The ‘sad grandmother’, the ‘simple but honest Portuguese,’ and the ‘good son of the Fatherland’: letters of denunciation in the final decade of the Salazar regime”. Análise Social, 226, LIII (1.º), pp. 6-27. [ Links ]

SIMPSON, D. (2020), “The PIDE between memory and history: Revolutionary tradition, historiography, and the missing dimension in the relation between society and Salazar’s political police”. E-Journal of Portuguese History, 18 (1), pp. 17-38. [ Links ]

SIMPSON, S. (2021), “Approaching the PIDE ‘from below’: Petitions, spontaneous applications and denunciation letters to Salazar’s secret police in 1964”. Contemporary European History, 30 (3), pp. 398-413. [ Links ]

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