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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  n.89 Lisboa  2010

 

III Congresso Internacional do GIGU “A questão do centro, o centro em questão”

 

Luís Mendes*

*Investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. E-mail: luis.mendes@ceg.ul.pt

 

Nos dias 6 e 7 de Março de 2008, teve lugar no Auditório Grande da Faculdade de Geografia e História da Universidade de Barcelona, o 3º Congresso Internacional do GIGU (Grupo de Investigações em Geografia Urbana) – “A questão do centro, o centro em questão”. A organização do evento ficou, naturalmente, a cargo do GIGU, dirigido pelo Professor Catedrático de Geografia Humana da Universidade de Barcelona, Carles Carreras, e presidido pelo Catedrático Emérito da Universidade Complutense de Madrid e doutor Honoris Causa pelas Universidades de Barcelona e de Granada, Professor Joaquín Bosque Maurel.

Um total de 18 comunicações internacionais foram apresentadas ao longo de três sessões temáticas, todas incidindo sobre a problemática fundamental do encontro: o processo de nobilitação urbana (“gentrification”) das áreas centrais das cidades europeias. Concretamente, a primeira sessão intitulada A teoria social da recuperação do centro reuniu múltiplos professores já consagrados nas diversas áreas de especialização das ciências sociais e do território, indo de encontro a um dos objectivos do congresso, nomeadamente o de apostar no desenvolvimento de um entendimento interdisciplinar do fenómeno da nobilitação urbana, pelo incentivo à troca de experiências entre investigadores com formação académica variada, mas sempre com um olhar crítico sobre o território urbano e as mudanças contemporâneas na organização socio-espacial. Assim, participaram Professores de Teoria Económica, Gonzalo Bernardos; de Geografia Humana, Carles Carreras; de Teoria Sociológica, Filosofia do direito e Metodologia das Ciências Sociais, Marisol García; de Geografia Humana da Universidade Complutense, Aurora García Ballesteros; e de Geografia da Universidade de Nápoles, Rosario Somella.

Nesta sessão focaram-se fundamentalmente os novos cenários, desafios e problemáticas com os quais a cidade centro se tem debatido, no quadro dos processos de regeneração levados a cabo desde os anos 80. Se o discurso inicial que justificou estes processos derivou da crise experimentada pela maioria das áreas centrais e históricas da cidade, o actual discurso sobre o centro, propõelas como áreas de crescente revalorização, ainda que não contrariando completamente a tendência geral centrífuga para a desconcentração e despovoamento.

Assim, a sessão deu sobretudo conta de como a evolução recente da urbanização apresentou novas dinâmicas que intervieram no sentido de complicar ulteriormente o quadro da cidade centro. Embora – considerando vastos agregados urbanos e metropolitanos – se possa dizer que a difusão urbana ainda prossegue no período mais recente, devemos reconhecer que, em muitas áreas metropolitanas dos países do capitalismo tardio e avançado e, em particular, nas que polarizam funções de nível mundial, surgiu, nos fins dos anos 80, uma requalificação de numerosas áreas da cidade central, comportando uma nova atractividade residencial.

As experiências dos centros das diversas cidades europeias apresentadas neste congresso evidenciam essa complexidade, uma vez que, à semelhança de tantos outros processos de produção social do espaço urbano contemporâneo, revelam também, na mobilidade residencial, sinais contraditórios. Paralelamente a um movimento dominante de periferização, surgem tendências em contra-corrente de novas procuras e valorização das áreas da cidade centro. Como se viu ao longo do Congresso, estas novas procuras – no que toca à habitação – são quase sempre limitadas a alguns grupos sociais de estatuto médio-elevado. Portanto, e em todo o caso, sublinhou-se nesta primeira sessão que esta retoma da capacidade atractiva do centro não pode ser interpretada como sinal de uma nova viragem de época na dinâmica urbana. A periferização continua a ser a tendência mais importante. Contudo, a gentrification é suficiente para contrastar, pelo menos parcialmente, com os processos centrífugos e o declínio demográfico das áreas centrais. Procurou-se compreender como o contínuo impulso centrífugo e a revalorização da cidade centro representam duas tendências consistentes, mas não forçosamente contraditórias, radicando ambas, salguardada a sua especificidade característica, nas recomposições do sistema produtivo. Estas apresentam uma evolução pautada por uma crescente polarização das funções do terciário superior e pela emergência de um novo modelo de acumulação capitalista mais flexível, com efeitos na diversidade de tendências locativas das funções urbanas. Aquelas duas tendências que marcam o espaço urbano contemporâneo ligam-se também a uma redistribuição espacial dos grupos sociais, propiciando, geralmente, fenómenos de dualização.

Nesta primeira sessão discutiu-se também a ideia de que as formas de intervenção, caracterizadas pelas parceiras público-privadas, inicialmente reformas de reabilitação urbana, convertem-se porsteriomente em programas de revitalização urbana afectando o uso, as funções e o valor do centro. Em paralelo, as políticas de intervenção no campo social parecem também evoluir no sentido de tentar minimizar o conflito, despolitizando as acções, as respostas e as possibilidades de resistência dos residentes dos bairros centrais. Novas actividades económicas, baseadas no cultural, no turístico e no comercial parecem colonizar o centro, de tal forma que, se nos anos 80 a pergunta mais pertinente dizia respeito às condições em que se construia/produzia socialmente a cidade centro, na actualidade assume mais pertinência a interrogação sobre que as condições em que se consome o centro.

Esgotadas as ricas orientações teóricas da primeira sessão, seguiu-se o painel da tarde do primeiro dia do Congresso, exclusivamente dedicado à análise da nobilitação urbana nas cidades de Turim, Bilbao, Granada e Lisboa.

Neoliberalismo, transformação urbana e processo de gentrification: o caso de Turim. Os primeiros sintomas da crise do welfare state começaram a manifestar-se por volta de meados dos anos 70. A partir de então, a gradual desagregação do modelo predominante de intervenção pública fez-se paralelamente à superação do fordismo pelo pós-fordismo, tornando cada vez mais difícil para o Estado reunir os recursos necessários para garantir a intervenção da despesa pública ao mesmo ritmo que se atingira em anos anteriores. À inevitável precariedade da situação laboral dos trabalhadores mais desqualificados e dos grupos sociais mais desfavorecidos, acumulou-se a desregulação do mercado de habitação e do uso do solo urbano, que tende a valorizar um padrão mais aleatório na produção temporal e espacial dos acontecimentos urbanos e o fabrico de uma segregação residencial a escalas mais finas. Este padrão é produto social do jogo do mercado imobiliário pouco regulado, de processos especulativos de valorização. O governo urbano orienta-se por um modelo gestionário (gestão estratégica importada do meio empresarial) em que o uso dos recursos públicos se faz para atrair investimento, pasando o fornecimento dos serviços a fazer-se pelo mercado e pelo sector privado, sendo valorizadas as parcerias público-privadas.

A propósito do desmantelamento das políticas de assistência pública como tentativa de incutir alento à iniciativa económica dos privados, de que o neoliberalismo dos governos urbanos se tem vindo a revestir, e de como a crise do welfare state está associada também à afirmação de intenções conservadoras, responsáveis pela produção de transformações no governo da cidade, discutiu-se o conceito de cidade revanchista, ainda que de forma breve. Este conceito denuncia como o discurso “regenerativo” da nobilitação no âmbito de políticas urbanas de valorização da imagem da cidade, ainda que vise a fixação da população já existente, a modernização do tecido económico, o aumento do emprego e o crescimento económico, não deixa também de funcionar como mecanismo de legitimação do poder instituído e da mobilização de grande investimento público que, em última análise, é desviado do auxílio aos mais carenciados, funcionando como subsídio aos mais ricos (Banca, instituições financeiras, grandes grupos económicos e de construção civil, empreendedores, governantes, etc.). Não só porque significa reformular o todo e a parte da cidade no sentido de se adaptar à evolução das necessidades do sistema neoliberal, mas também nos meios pelos quais o desencadear dos processos de nobilitação procuram atrair população com um elevado capital cultural e económico. A análise do estudo de caso de Turim – que muitas vezes está descrito na literatura como uma cidade fordista por excelência – foi pertinente ao propor uma leitura das transformações urbanas que têm sido importantes na sua cidade centro, desde a segunda metade dos anos setenta. Especificamente, apresentando o contexto de mudança socio-económica e política local neste contexto urbano nos últimos trinta anos, esta comunicação deu um enfoque principalmente na produção dos equipamentos, planos e projectos de desenvolvimento urbano e no seu papel numa realidade em transição de um modelo de desenvolvimento fordista para um modelo de desenvolvimento pós-fordista, tendo desmontado as mudanças de carácter neo-liberal.

A segunda comunicação desta sessão, intitulada Regeneração urbana, áreas de oportunidades e gentrification no “novo Bilbao” explorou a estreita relação entre os processos de nobilitação e as políticas urbanas, que ao longo das três últimas décadas, têm ocupado numerosas investigações sobre os processos de revitalização de diferentes cidades. Deste modo, a gentrification, longe de ser um perverso efeito não intencional, poderá ter-se tornado uma componente essencial das estratégias de revitalização urbana. Este novo e crescente papel do governo no processo de nobilitação parece ter contribuído tanto para a expansão global do fenómeno como para o surgimento de novas formas de nobilitação, com a consequente reformulação das definições e perspectivas tradicionais do processo. Esta intervenção destacou a relação existente entre os programas de revitalização urbana e o processo de nobilitação em Bilbao, defendendo esta estratégia como legitimadora da retórica da cidade competitiva, atraente e criativa, reforçada ainda pelo sucesso do “efeito Guggenheim” e do “modelo de Bilbao”. Através da análise de três casos (Abandoibarra, Bilbao Velha e Olabeaga) tenta-se mostrar, não só a nobilitação urbana como uma parte integrante das iniciativas para a “regeneração” em determinadas áreas da cidade, as chamadas “áreas de oportunidade”, mas também a diversidade de um processo que se desdobra em formas específicas e dinâmicas em cada uma das áreas estudadas.

Em Albayzín Granada: um bairro multicultural entre etnização da diversidade religiosa e a nobilitação turística exploraram-se os grandes desafios para a gestão urbana colocados pelo turismo religioso para a diversidade, e que a sociedade andaluza, crescentemente multicultural, enfrenta. Na cidade de Granada tem-se vindo a assistir a uma convergência de dois processos: primeiro, a cidade em si e o bairro de Albayzín têm vindo a experimentar um forte aumento na população imigrante, nos quais se destaca uma significativa percentagem de muçulmanos provenientes da África do Norte. Em paralelo, desde o final de Franco esboça-se nas cidades andaluzas de Granada e Córdoba uma tendência de conversão ao Islão pela população local. de um estudo etnográfico do antigo bairro árabe, o Albayzin, parte-se para a análise dos diversos espaços-interface que são abertos entre muçulmanos e não muçulmanos, contribuindo para a discussão da formação de neo-comunidades muçulmanas e a sua ligação com a tentativa das elites locais criarem uma identidade multi-religiosa, com origens exploráveis importantes para estabelecer um destino de turismo cultural “orientalista”, visando a nobilitação turística da cidade. Esta comunicação afigurou-se polémica – sendo também a que mais questões suscitou no público assistente por altura do debate – pois apresentou, e por um lado, uma definição pouco ortodoxa de nobilitação associada ao desenvolvimento turístico dos territórios urbanos, por outro, as clivagens culturais e religiosas entre comunidades autóctones e os novos visitantes. Ainda a propósito do debate suscitado por esta comunicação, a definição clássica de nobilitação urbana foi contestada e discutiram-se os últimos contributos académicos conhecidos, talvez um dos momentos mais altos de todo o congresso.

A realidade da nobilitação urbana em Lisboa foi representada em A gentrification não é um efeito directo da política de reabilitação urbana: o caso do centro histórico de Lisboa, que desenvolveu a hipótese de que – como o próprio título indica – as políticas de reabilitação urbana no centro histórico de Lisboa podem facilitar o processo de nobilitação. No entanto, são apenas condições necessárias, não sendo por si só suficientes para induzir tal processo socio-espacial. Um dos pontos de polémica em torno do processo de nobilitação das áreas centrais da cidade reside na associação imediata do processo à reabilitação urbana. Se é certo que a re-apropriação de um espaço de habitat antigo – e por vezes em estado de degradação urbanística acentuada – implica, necessariamente, a presença de um processo prévio de reabilitação do edificado, não é menos certo que a nobilitação não pode ser vista como consequência automática de políticas de reabilitação, conservação ou renovação urbana, ou de qualquer política de incentivo ao investimento privado no sentido da reabilitação de edifícios de habitação. Ao invés, argumentou-se que a nobilitação deve ser contextualizada nas profundas alterações económicas que têm decorrido nos espaços urbanos dos países ocidentais de capitalismo avançado desde os finais dos anos sessenta e das transformações que esta reestruturação económica desencadeou na estrutura profissional e na textura social da cidade, com o declínio da produção e do emprego industriais e o rápido crescimento do sector terciário qualificado no seu interior. Seleccionando o Bairro Alto como caso ilustrativo deste processo de reestruturação urbana na cidade de Lisboa, analisaram-se as importantes transformações na sua estrutura demográfica e sócio-cultural, com a chegada de novos moradores desde o início dos anos 80.

A terceira sessão do Congresso iniciou-se na manhã do dia 7 de Março, intitulandose Da regeneração do centro à regeneração da periferia e das cidades médias, e estendeu-se até ao fim da tarde. A primeira comunicação A relação centro-periferia. A mutação na periferia da cidade, explorou o papel da nobilitação no reforço da metropolização de Barcelona. As preferências residenciais da população afiguram-se um bom indicador para observar e analisar esse processo de metropolização do território. A homogeneização de comportamento residencial entre Barcelona e as cidades da sua periferia pode indicar uma consolidação da Área Metropolitana de Barcelona, apontada para o aparecimento de novas formas significativas de nobilitação que não se restringem às definições tradicionais, ou pelo menos à definição mais clássica do processo, tal como era definida nos anos 70 e 80.

Na mesma linha de reflexão, surgiu a comunicação Entre a centralização da periferia e a gentrificação dos subúrbios: propondo um debate aberto, que propôs a reflexão sobre a dispersão da nobilitação nos subúrbios, desafiando a definição conceptual do fenómeno e a sua geografia não necessariamente exclusiva à cidade centro. Neil Smith, Paul Caris, Elvin Wyly ou Randolph Capps são os principais teóricos que estudaram os processos de nobilitação nos subúrbios pobres da costa leste dos Estados Unidos. Os autores defenderam que mesmo que as cidades da Europa do Sul tenham uma morfologia completamente diferente das dos E.U.A., os processos urbanos crescentemente complexos têm posto em causa esta distinção na análise dos novos fenómenos sociais e culturais nas cidades do Sul da Europa. Concretamente, nesta comunicação, propôs-se uma abordagem à realidade da área urbana de L’Hospitalet de Llobregat, segunda cidade da Catalunha, localizada nos subúrbios de Barcelona. Apresentaram-se os novos agentes, os novos processos e as novas procuras que podem suscitar a discussão sobre a existência ou não de nobilitação em áreas suburbanas de Barcelona, mormente emergentes das grandes transformações urbanas e da animação nocturna nos bairros centrais de L’Hospitalet. Explorou-se também o surgimento de um novo mercado imobiliário para a nova classe média e se tudo isso é parte do processo de formação de novas centralidades na periferia.

Em As cidades médias catalãs e as condições para uma gentrification municipal defendeu-se a limitação explicativa da tese do rent-gap na geografia contemporânea da nobilitação, face ao poder que as estratégias do desenvolvimento cultural têm tido na valorização do território urbano e no desenvolvimento regional do fenómeno. Foram apresentados vários exemplos de bairros em cidades médias da Catalunha para, a partir daí, se propor a reflexão em torno da especificidade das capitais regionais como realidades urbanas de diferentes épocas, com texturas socio-espaciais diferenciadas e, consequentemente, diferentes susceptibilidades ao fenómeno da nobilitação.

A terminar o Congresso, e tal como as anteriores, a última comunicação continuou a avançar e a pressionar os limites conceptuais de nobilitação até ao de regeneração ou recomposição das áreas urbanas. Exemplo foi a comunicação de Sergio Redón que se debruçou sobre a gentrification comercial, intitulada Actividades comerciais, centralidade, gentrification. Qualquer processo de transformação urbana significa mudanças nalguns elementos sociais, económicos ou culturais, mas eles nem sempre são visíveis e identificáveis. O debate sobre a nobilitação, em geral, tem-se centrado na origem, na definição ou nas consequências do processo sobre a população ou a morfologia urbana. Um dos aspectos visíveis desse processo, difícil de avaliar, é a reestruturação das actividades comerciais que lhe estão na origem ou que daquele são produto, pois têm características específicas devido à sua relação directa com a fluidez da procura, do preço da terra e até da cooperação e competição intra-urbanas. Portanto, a análise da dinâmica urbana da oferta comercial é um indicador que ajuda a explicar a nobilitação e a compreender a importância da mesma no processo de recuperação económica da cidade centro.

O problema que nos ocupou nestas jornadas sobre a cidade centro disse respeito ao funcionamento de um segmento específico do mercado imobiliário no espaço urbano. Todavia, o tema da nobilitação urbana é suficientemente rico de implicações nos mais diversos campos de actividade e do pensamento social e geográfico para poder ser abordado sob uma grande diversidade de pontos de vista. O seu estudo, mesmo quando referido a uma situação concreta de contornos bem delimitados, revela-nos um problema complexo, dada a soma de aspectos a considerar: económicos, sociais, político-ideológicos, técnicos, etc. O interesse deste Congresso em lhe dedicar dois dias de trabalhos proveio tanto de se tratar de um problema fundamental da existência humana na cidade centro, como da necessidade que os académicos da Europa do Sul têm vindo a revelar em discutir uma temática que tem já várias décadas na história da teoria urbana, mas que poucos consensos reúne quando consideramos as suas geografias múltiplas.

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